L`O S S E RVATOR E ROMANO

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L`O S S E RVATOR E ROMANO
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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00
L’OSSERVATORE ROMANO
EDIÇÃO SEMANAL
EM PORTUGUÊS
Unicuique suum
Non praevalebunt
Cidade do Vaticano
Ano XLVIII, número 4 (2.449)
quinta-feira 26 de janeiro de 2017
Francisco presidiu às vésperas para o encerramento da semana de oração pela unidade dos cristãos
Aprender uns dos outros
para uma reconciliação autêntica
recordou que a «Palavra de Deus» nos
encoraja a «tirar força da memória, a
recordar o bem recebido do Senhor;
mas pede-nos também que deixemos o
passado para trás a fim de seguir Jesus
no presente e, n’Ele, viver uma vida
nova». Portanto, o Papa exorta-nos a
consentir «Àquele que renova todas as
coisas que nos oriente para um futuro
novo, aberto à esperança que não desilude, um futuro onde seja possível superar as divisões».
Em síntese, o Papa exortou os cristãos a não se basearem em «programas, cálculos e benefícios, a não se
abandonar a oportunidades e modas
passageiras» mas a aprenderem «uns
dos outros, sem esperar que primeiro
sejam os outros a aprender de nós».
«Deixar de viver para nós mesmos,
buscando os nossos interesses e a promoção da nossa imagem» para «reproduzir a imagem de Cristo, vivendo para Ele e de acordo com Ele, com o seu
amor e no seu amor», foi a recomendação que o Santo Padre fez durante a
celebração das Vésperas presididas na
basílica de São Paulo Extramuros no
final da tarde de quarta-feira, 25 de janeiro, festa da conversão de São Paulo,
no encerramento da semana de oração
pela unidade dos cristãos.
«Olhar para trás é útil e muito necessário para purificar a memória»,
afirmou o Pontífice, mas «fixar-se no
passado, delongando-se a lembrar as
injustiças sofridas e cometidas e julgando com parâmetros apenas humanos, pode paralisar e impedir de viver
o presente». Por conseguinte, o Papa
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À Rota o Papa pediu mais atenção aos noivos e aos recém-casados
Mensagem para o dia das comunicações sociais
O amor precisa da verdade
Ver com os óculos certos
A «relação entre fé e matrimónio»,
e em particular «as perspetivas de
fé inerentes ao contexto humano e
cultural no qual se forma a intenção
matrimonial», estiveram no centro
do discurso dirigido pelo Papa
Francisco a juízes, oficiais, advogados e colaboradores do Tribunal
apostólico da Rota romana, recebidos na manhã de sábado, 21 de janeiro, por ocasião da inauguração
do ano judiciário.
Formação e acompanhamento são
os dois termos em volta dos quais o
Pontífice desenvolveu a sua reflexão, que partiu da premissa de que
é «necessário como nunca aprofundar a relação entre amor e verdade,
porque «o amor precisa da verda-
de». A este propósito Francisco disse estar ciente de «que a mentalidade difundida tende a obscurecer o
acesso às verdades eternas», envolvendo «as atitudes e os comportamentos dos próprios cristãos». E
«este contexto, carente de valores
religiosos e de fé, condiciona também o consenso matrimonial». Eis
por que, sugeriu o Papa, «face a esta situação, é preciso encontrar remédios válidos». E indicou como
um dos primeiros «a formação dos
jovens, mediante um adequado caminho de preparação destinado a
redescobrir o matrimónio e a família segundo o desígnio de Deus».
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E
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As boas notícias não fazem notícia:
num sistema informativo global onde parece que vigora este paradoxo
singular, é preciso trabalhar ao serviço de «uma comunicação construtiva que, ao rejeitar os preconceitos
em relação ao outro, favoreça uma
cultura do encontro, graças à qual
se possa aprender a olhar para a
realidade com convicta confiança».
Foi a recomendação do Papa Francisco na mensagem para o quinquagésimo primeiro dia mundial das
comunicações sociais, que se celebra
a 28 de maio próximo, solenidade
da Ascensão do Senhor.
Apresentado na terça-feira 24 de
janeiro, na Sala de imprensa da
Santa Sé, o texto papal é um decidido apelo a «romper o círculo vicioso da angústia e deter a espiral
do medo, resultante do hábito de fixar a atenção nas “más notícias”
(guerras, terrorismo, escândalos e
todo o tipo de falência nas vicissitudes humanas). Não se trata, naturalmente — advertiu o Pontífice —
de promover desinformação onde é
ignorado o drama do sofrimento»,
nem de «cair num otimismo ingénuo que não se deixe tocar pelo escândalo do mal».
«A todos queria convidar — escreveu — a oferecer aos homens e
Invocada a conversão dos criminosos
Contra todas as máfias
Marc Chagall, «Amantes com flores» (1949)
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David Datuna, «Pontos de vista»
mulheres do nosso tempo relatos
permeados pela lógica da “boa notícia”». Trata-se de um compromisso
que deve ser enfrentado com a
consciência de que «em si mesma, a
realidade não tem um significado
unívoco. Tudo depende do olhar
com que a enxergamos, dos “óculos” que decidimos pôr para a ver:
mudando as lentes, também a realidade parece diversa». Então, qual
poderia ser o ponto de partida bom
para ler a realidade com os «óculos» certos? Para o Pontífice «os
óculos adequados para decifrar a
realidade só podem ser os da boa
notícia: partir da Boa Notícia por
excelência, ou seja, o Evangelho de
Jesus».
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quinta-feira 26 de janeiro de 2017, número 4
No Angelus o Pontífice convidou os cristãos a levar a palavra de Jesus a cada contexto humano
Luz da periferia
Oração pelas vítimas do terramoto e votos aos orientais para o ano novo lunar
Dado que a luz de Cristo se difundiu
da periferia — visto que a Galileia é
geograficamente periférica — é
necessário continuar a «levar a
palavra a todas as periferias»,
reafirmou o Papa Francisco
comentando o Evangelho do terceiro
domingo do tempo comum, no Angelus
de 22 de janeiro, recitado com os fiéis
presentes na praça de São Pedro.
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
A hodierna página evangélica (cf.
Mt 4, 12-23) narra o início da pregação de Jesus na Galileia. Ele deixa
Nazaré, uma aldeia situada nos
montes, e estabelece-se em Cafarnaum, importante centro nas margens do lago, habitado essencialmente por pagãos, ponto de cruzamento entre o Mediterrâneo e o interior da Mesopotâmia. Esta escolha
indica que os destinatários da sua
pregação não são apenas os seus
conterrâneos, mas quantos desembarcam na cosmopolita «Galileia das
gentes» (v. 15; cf. Is 8, 23): assim se
chamava. Vista da capital Jerusalém,
aquela terra é geograficamente periférica e religiosamente impura, porque estava cheia de pagãos, por causa da mistura com os que não pertenciam a Israel. Da Galileia não se
esperavam certamente grandes coisas
para a história da salvação. No entanto, precisamente dali — exatamente dali — se espalha aquela “luz” sobre a qual meditámos nos domingos
passados: a luz de Cristo. Difundese precisamente da periferia.
A mensagem de Jesus imita a do
Batista, anunciando o «reino dos
céus» (v. 17). Este reino não comporta a instauração de um novo poder
político, mas o cumprimento da
aliança entre Deus e o seu povo que
inaugurará uma época de paz e de
justiça. Para realizar este pacto de
aliança com Deus, cada um está chamado a converter-se, transformando
a sua maneira de pensar e de viver.
Isto é importante: converter-se não
significa só mudar o modo de viver,
mas também a forma de pensar. É
uma transformação do pensamento.
Não se trata de mudar de roupa,
mas de costumes. O que diferencia
Jesus de João Batista é o estilo e o
método. Jesus escolhe ser um profeta itinerante. Não fica à espera das
pessoas, mas vai ao seu encontro. Jesus está sempre na rua! As suas primeiras saídas missionárias dão-se ao
longo das margens do lago de Galileia, em contacto com a multidão,
sobretudo com os pescadores. Ali Jesus não só proclama a vinda do reino de Deus, mas procura companheiros para a sua missão de salvação. Neste mesmo lugar encontra
dois pares de irmãos: Simão e André, Tiago e João; chama-os dizendo: «Segui-me, e far-vos-ei pescadores de homens» (v. 19). A chamada
alcança-os no auge das suas atividades diárias: o Senhor revela-se a nós
não de forma extraordinária ou sensacional, mas na quotidianidade das
nossas vidas. Ali devemos encontrar
o Senhor; e ali Ele revela-se, faz sentir ao nosso coração o seu amor; e
ali — com este diálogo com Ele no
dia a dia da vida — muda o nosso
coração. A resposta dos quatro pescadores é imediata e pronta: «No
mesmo instante eles deixaram as
suas redes e o seguiram» (v. 20).
Com efeito, sabemos que tinham sido discípulos do Batista e que, graças ao seu testemunho, já tinham
Apresentação dos cordeirinhos
Caros irmãos e irmãs!
monsenhor Bartolacci. Participaram
também duas religiosas da Sagrada
Família de Nazaré, que segundo a
tradição que remonta a 1884, se
ocupam da preparação dos cordeirinhos na sua casa romana no bairro Esquilino. No final, sob a guia
do decano de sala, os cordeirinhos
foram entregues ao mosteiro.
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GIOVANNI MARIA VIAN
diretor
Giuseppe Fiorentino
vice-diretor
Cidade do Vaticano
[email protected]
www.osservatoreromano.va
iniciado a acreditar em Jesus como
Messias (cf. Jo 1, 35-42).
Nós, cristãos de hoje, temos a alegria de proclamar e testemunhar a
nossa fé porque houve aquele primeiro anúncio, porque houve aqueles homens humildes e corajosos que
responderam generosamente à chamada de Jesus. Nas margens do lago, numa terra inimaginável, nasceu
a primeira comunidade dos discípulos de Cristo. A consciência destes
primórdios suscite em nós o desejo
de levar a palavra, o amor e a ternura de Jesus a todos os contextos, inclusive ao mais inacessível e relutante. Levar a Palavra a todas as periferias! Todos os espaços de vivência
humana são terreno no qual lançar a
semente do Evangelho, a fim de qu
e traga frutos de salvação.
A Virgem Maria nos ajude com a
sua intercessão materna a responder
com alegria à chamada de Jesus, a
colocar-nos ao serviço do Reino de
D eus.
No final da prece mariana o Pontífice
recordou a semana ecuménica,
expressou proximidade para com as
vítimas do terramoto e da tempestade
na Itália central, e falou do ano novo
lunar que se celebra no Extremo
Oriente.
Memória litúrgica de santa Inês
Na manhã de sábado, 21 de janeiro, na capela Urbano VIII do Palácio apostólico, o Papa Francisco
presidiu à cerimónia de apresentação dos cordeirinhos — benzidos
na basílica de Santa Inês fora dos
muros na via Nomentana — cuja lã
será utilizada para confeccionar os
pálios. O rito, realizado na memória litúrgica da virgem e mártir romana, foi dirigido por monsenhor
Marini, mestre das celebrações litúrgicas pontifícias. Estavam presentes entre outros o arcebispo
Gänswein, prefeito da Casa Pontifícia, com monsenhor Sanchirico;
D. Pio Vito Pinto, decano do Tribunal da Rota Romana, com o
pró-decano monsenhor Monier e
Kim Ki-Chang, «Jesus chama os primeiros apóstolos»
Redação
via del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano
telefone +390669899420
fax +390669883675
Estamos na Semana de Oração pela
Unidade dos Cristãos. Este ano ela
tem como tema uma expressão, tirada de São Paulo [Pablo], que nos
indica o caminho a seguir. E diz assim: «É o amor de Cristo que nos
impele para a reconciliação» (cf. 2
Cor 5, 14). Na próxima quarta-feira
concluiremos a Semana de Oração
com a celebração das Vésperas na
Basílica de São Paulo Extramuros,
na qual participarão os irmãos e as
irmãs das outras Igrejas e Comunidades cristãs presentes em Roma.
Convido-vos a perseverar na oração,
a fim de que se cumpra o desejo de
Jesus: «Para que todos sejam um»
(cf. Jo 17, 21).
TIPO GRAFIA VATICANA EDITRICE
L’OSSERVATORE ROMANO
don Sergio Pellini S.D.B.
diretor-geral
Nos últimos dias, o terramoto e as
fortes nevadas submeteram a uma
dura prova muitos nossos irmãos e
irmãs da Itália central, especialmente
nos Abruzos, Marcas e Lácio. Estou
próximo das famílias que tiveram vítimas entres os seus entes queridos
com a oração e o afeto. Encorajo
quantos estão comprometidos com
grande generosidade nas obras de
socorro e de assistência; assim como
as Igrejas locais, que se prodigalizam para aliviar os sofrimentos e as
dificuldades. Muito obrigado por esta proximidade, pelo vosso trabalho
e pela ajuda concreta que lhes levais.
Obrigado! E convido-vos a rezar
juntos a Nossa Senhora pelas vítimas e também por aqueles que se
comprometem nas obras de socorro
com grande generosidade.
[Oração da Ave-Maria]
No Extremo Oriente e em várias
partes do mundo, milhões de homens e mulheres preparam-se para
celebrar do ano novo lunar no dia
28 de janeiro. A minha cordial saudação chegue a todas as suas famílias, com os bons votos a fim de que
eles se tornem cada vez mais uma
escola onde se aprende a respeitar o
próximo, a comunicar e a cuidar uns
dos outros de forma desinteressada.
Possa a alegria do amor propagar-se
no seio das famílias e delas irradiarse para toda a sociedade.
Saúdo todos vós, fiéis de Roma e
peregrinos de vários países, em particular o grupo de jovens de Panamá
e os estudantes do Instituto “D iego
Sánchez” de Talavera la Real (Espanha).
Saúdo os sócios da União Católica de Professores, Dirigentes, Educadores e Formadores, que terminou o
25º Congresso nacional, e desejolhes um frutuoso trabalho educativo,
em colaboração com as famílias.
Sempre em colaboração com as famílias!
A todos desejo um bom domingo.
E, por favor, não vos esqueçais de
rezar por mim. Bom almoço e até à
vista!
Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África,
Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: 162.00 - U.S. $ 240.00.
Administração: telefone +390669899480; fax +390669885164; e-mail: [email protected]
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número 4, quinta-feira 26 de janeiro de 2017
L’OSSERVATORE ROMANO
«Se o sal perder o seu sabor não serve
para mais nada. Ai de uma Igreja que
perder o sabor! Ai de um sacerdote, de
um consagrado, de uma congregação
que perder o sabor»: eis quanto
recomendou o Pontífice aos padres
pregadores, celebrando na tarde de
sábado, 21 de janeiro, na basílica
papal de São João de Latrão, a missa
de encerramento do jubileu pelos
oitocentos anos da confirmação da
ordem dominicana.
A palavra de Deus hoje apresentanos dois cenários humanos opostos:
por um lado, o “carnaval” da curiosidade mundana, por outro, a glorificação do Pai mediante as boas
obras. E a nossa vida move-se sempre entre estes dois cenários. Com
efeito, eles pertencem a todas as
épocas, como demonstram as palavras de São Paulo a Timóteo (cf. 2
Tm 4, 1-5). E também São Domingos
juntamente com os seus primeiros irmãos, há oitocentos anos, movimentava-se entre estes dois cenários.
Com os dominicanos o Papa concluiu as celebrações jubilares
Sabor do Evangelho
Paulo advertiu Timóteo que deveria anunciar o Evangelho no meio
de um contexto onde as pessoas
procuram sempre novos “mestres”,
“fábulas”, doutrinas diversas, ideologias... «Prurientes auribus» (2 Tm 4,
3). É o “carnaval” da curiosidade
mundana, da sedução. Por esta razão, o Apóstolo instruiu o seu discípulo usando também alguns verbos
fortes: «insiste», «admoesta», «repreende», «exorta» e depois «vigia», «suporta os sofrimentos» (vv.
2.5).
Estudo, pregação e inquisição
PAOLO VIAN
Dado que ambos nasceram do despertar evangélico do século XII, explicado por Marie-Dominique Chenu naquela obra-prima esquecida
que é A teologia no século XII (1957),
dominicanos e franciscanos têm algumas caraterísticas em comum,
não obstante a diversidade substancial das respetivas experiências.
Sem dúvida, foram os grandes aliados, os providenciais instrumentos
do papado da baixa idade média,
na luta contra a heresia e no renovado impulso missionário interno e
externo. Mas Domingos é um cónego, formado no contexto de uma
cultura clerical à qual o leigo Francisco, no início, é absolutamente
alheio. Disto derivam diferenças
importantes, na própria estrutura
das tipologias de vida religiosa. Entre as muitas, os seguidores de Domingos estabelecem com a pobreza
e com os estudos uma relação que
não parece contrastada nem difícil
como a dos franciscanos, atravessados e até dilacerados por desacordos internos entre os diferentes espíritos do movimento que os primeiros não conhecem, pelo menos
não na medida triste e desoladora
dos segundos. Mas nas suas múltiplas diversidades, no imaginário coletivo, dominicanos e franciscanos
compartilham um destino análogo:
são considerados substancialmente
religiosos «medievais», como se a
riqueza da sua história se esgotasse
na fase inicial do seu caminho.
O mérito de dois volumes, publicados em concomitância com o oitavo centenário (1216-2016) da confirmação da Ordem dos Pregadores
por parte de Honório III, é de nos
ajudar a considerar a história da
Ordem no período completo, multiforme e surpreendente do seu de-
senvolvimento. As fórmulas são diferentes. Massimo Carlo Giannini,
historiador da era moderna, oferece
em oito capítulos um perfil denso,
linear e unitário da história da Ordem (Massimo Carlo Giannini, I
Domenicani, Bolonha, Il Mulino,
2016 — Universale Paperbacks, 711
— 236 páginas). Ao contrário, Gianni Festa e Marco Rainini, historiadores dominicanos jovens e brilhan-
«O Papa Honório III aprova a ordem»
(Anónimo do século XVI)
tes (o primeiro, conhecido tanto pelas pesquisas sobre Pietro da Verona e Giovanni Dominici, como pela
compilação de um bonito volume
sobre a «santa dos Gonzaga», a cidadã de Mântua Osanna Andreasi;
e o segundo, especialista em Gioacchino da Fiore e no seu ambiente,
de Liber figurarum a Raniero da
Ponza), promoveram e prepararam
um volume com muitas vozes
(L’Ordine dei Predicatori. I Domenicani: storia, figure e istituzioni [12162016], por G. Festa e M. Rainini,
Bari, Laterza, 2016 — Quadrante —
210, XI + 490 páginas).
Trata-se de 19 contributos subdivididos em três partes (História; Figuras; Instituições, Escritos, Pensamento), que voltam a percorrer as
vicissitudes e proezas da Ordem.
Assim são eficazmente revisitados
não apenas personagens conhecidos, quase inevitáveis «topoi» sobrecarregados de perigos de banalização e de repetição que sempre
ameaçam os lugares-comuns (Domingos e Tomás de Aquino, os místicos do Reno e Catarina de Sena,
Jerónimo Savonarola e Bartolomeu
de Las Casas), ma são apresentadas
também figuras que a maioria desconhece (Bartolomeu dos Mártires,
«um bispo santo no Concílio de
Trento») e outras quase nossas contemporâneas
(Marie-Jean-Joseph
Lataste, o biblista Giuseppe Girotti,
o bispo de Orano Pierre Claverie,
nos vários cenários das prisões femininas do segundo Império francês, no campo de concentração nazista de Dachau e na Argélia ensanguentada pelo fundamentalismo islâmico). Depois, a presença dominicana é considerada nos âmbitos
da pregação e do estudo, da vida
religiosa feminina e da inquisição,
da mística e da literatura italiana,
até à contribuição mais propriamente histórica e teológica, da Paris do
século XIII à escola de Salamanca,
do neotomismo dos finais do século
XIX à École biblique do padre Lagrange, do trabalho filológico da
Comissão leonina para a edição crítica dos escritos de Tomás à vivacidade inovadora da escola de Le
Saulchoir, até à «nouvelle théoloCONTINUA NA PÁGINA 4
página 3
É interessante ver como já então,
há dois milénios, os apóstolos do
Evangelho se encontravam diante
deste cenário, que nos nossos dias se
desenvolveu muito e se globalizou
por causa da sedução do relativismo
subjetivista. A tendência à busca de
novidades típicas do ser humano encontra o ambiente ideal na sociedade da aparência, no consumo, na
qual muitas vezes se reciclam coisas
velhas, mas o importante é fazer
com que pareçam como novas,
atraentes, cativantes. Inclusive a verdade é camuflada. Movemo-nos na
chamada “sociedade líquida”, sem
pontos fixos, minada, desprovida de
referências firmes e estáveis; na cultura do efémero, do descartável.
Diante deste “carnaval” mundano
destaca-se nitidamente o cenário
oposto, que encontramos nas palavras de Jesus que acabamos de ouvir: «que eles glorifiquem o vosso
Pai que está nos céus» (Mt 5, 16). E
como ocorre esta passagem da superficialidade pseudofestiva para a
glorificação, que é festa verdadeira?
Ocorre graças às boas obras daqueles que, tornando-se discípulos de
Jesus, se tornaram “sal” e “luz”.
«Assim brilhe a vossa luz diante dos
homens — diz Jesus — para que eles
vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus»
(Mt 5, 16).
No meio do “carnaval” de ontem
e de hoje, esta é a resposta de Jesus
e da Igreja, este é o apoio sólido no
meio do ambiente “líquido”: as boas
obras que podemos realizar graças a
Cristo e ao seu Espírito Santo, e que
fazem nascer no coração a ação de
graças a Deus Pai, o louvor, ou pelo
menos a admiração e a pergunta:
“porquê?”, «por que aquela pessoa
se comporta dessa maneira?»: ou seja, a inquietude do mundo diante do
testemunho do Evangelho.
Mas para que ocorra este «sobressalto» é preciso que o sal não perca
o sabor e a luz não se esconda (cf.
Mt 5, 13-15). Jesus diz muito claramente: se o sal perder o seu sabor
não serve para mais nada. Ai do sal
que perder o seu sabor! Ai de uma
Igreja que perder o sabor! Ai de um
padre, de um consagrado, de uma
congregação que perder o sabor!
Hoje damos glória ao Pai pela
obra que São Domingos, cheio da
luz e do sal de Cristo, realizou há
oitocentos anos; uma obra ao serviço
do Evangelho, pregado com a palavra e com a vida; uma obra que,
com a graça do Espírito Santo, fez
com que muitos homens e mulheres
fossem ajudados a não se perder no
meio do “carnaval” da curiosidade
mundana, mas, ao contrário sentissem o sabor da sã doutrina, o sabor
do Evangelho, e se tornassem, por
sua vez, luz e sal, artesãos de boas
obras... e verdadeiros irmãos e irmãs
que glorificam a Deus e ensinam a
glorificar a Deus com as boas obras
da vida.
L’OSSERVATORE ROMANO
página 4
quinta-feira 26 de janeiro de 2017, número 4
Pessoas reunidas para homenagear
as vítimas do massacre do Bataclan
Uma resposta à fragilidade psíquica do Ocidente face à violência
Ter esperança
no meio do tumulto
ex-Jugoslávia entre 1992 e 1995, há
sete décadas que a Europa não coom o retorno do terrorismo e nhece a guerra no próprio território.
De repente, com a Ucrânia, a Sídos conflitos, os «discursos
sobre a guerra» multiplicam- ria, o Iraque e o jihadismo homicida
se, até produzir uma desencorajado- no meio de nós, várias tragédias
ra cacofonia. Não desejamos acres- complexas põem-nos de novo com
centar uma análise a este excesso de os pés no chão. A violência, sobretu«recomendações». Portanto, limita- do bélica, torna-se brutalmente o
mo-nos a recordar dois elementos que é: um componente «natural»
que, se refletirmos bem, nos dão um das nossas sociedades, ao qual o fimotivo para esperar. Inclusive no lósofo cristão René Girard dedicou a
meio de semelhantes aversões. Escre- sua obra inteira. Digamos claramente, acostumados com a paz aqui,
vo-o sem o mínimo moralismo.
acabámos por pensar que
fosse a condição natural
de uma sociedade. Girard recorda-nos que, ao
Há muito tempo desaprendemos
contrário, efetivamente a
condição «natural» do
a pensar no modo de enfrentar
mundo é a violência, e
a guerra. Tudo isto permitiu
que portanto deve ser
contida, combatida (tamque viesse à tona a incrível
bém dentro de nós), evivulnerabilidade das nossas sociedades
tada, «vigiada».
Este retorno da guerra
na Europa surpreendeu
os governantes do velho
Antes de tudo, constatamos que continente, os quais hesitaram nas
há setenta anos, nós europeus nos tí- suas primeiras reações, às vezes denhamos habituado a considerar a sordenadas. Em vez de dar garantias
paz como a condição natural de aos cidadãos, por vezes — involuntauma sociedade. De facto, se excluir- riamente — contribuíram para os asmos as — já distantes — guerras colo- sustar ainda mais como fez a grande
niais dos anos cinquenta e sessenta e imprensa. Há muito tempo «desaas trágicas mas breves atrocidades na prendemos» a pensar no modo de
enfrentar a guerra. Tudo isto permitiu que viesse à tona a incrível vulnerabilidade das nossas sociedades.
Ainda devemos entender por que
esta fragilidade, sobretudo psíquica,
se tenha agravado tanto assim. Na
França, só para dar um exemplo, os
crimes horríveis do Bataclan (13 de
novembro de 2015) e de Nice (14 de
JEAN-CLAUDE GUILLEBAUD
C
Riqueza
da história
dominicana
julho de 2016) foram suficientes para
fazer vacilar o Estado por um momento. E no entanto,
no passado, violências dez ou cem vezes maiores foram
vividas com dor
imensa mas com
mais
sangue-frio.
Penso nos bombardeios sobre Londres em 1941 por
parte da Luftwaffe
nazista que cada
noite ceifavam algumas centenas de
vidas. E que nunca
sobrepujou os ingleses.
Uma constatação
análoga pode ser feita comparando
os balanços de duas guerras muito
longas: a do Vietname que durou
dez anos (1965-1975) e a do Iraque,
onze anos (2003-2014). Entretanto, a
comoção, a dor, o luto, a cólera suscitada nos Estados Unidos pelo número de vítimas — civis e militares —
de um lado e de outro foi de uma
intensidade análoga. Mesmo se o
custo da guerra do Vietname foi doze vezes mais elevado do que a do
Iraque, trinta anos depois.
Isto significa que no Ocidente a
sensibilidade coletiva à violência bélica cresceu consideravelmente. Agora comove-nos e indigna-nos muito
mais que no passado próximo. Embora às vezes haja interrupções, aliás
alguns breves retrocessos, o sentido
desta evolução é claro: tornam-nos
alérgicos à violência. Incluída a vio-
lência diária, urbana, quotidiana.
Ainda que a longo prazo está a diminuir — como observam os historiadores — mas temos a sensação de
que esteja a aumentar. É a nossa
«perceção», não a realidade, que
muda.
Por quê? Fiel a René Girard (falecido a 5 de novembro de 2015), sugiro uma explicação. Aliás retomo a
terminologia deste grande filósofo: é
a ação constante, permanente, impercetível do «fermento evangélico»
que pouco a pouco nos salva da violência desenfreada, quer ela seja vindicadora ou simplesmente bárbara.
Esta «boa nova» torna-se ainda mais
preciosa se pensarmos que, em toda
a parte, Deus é instrumentalizado
pelos violentos ou recrutado à força
para bárbaros massacres.
CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 3
gie», de Marie-Dominique Chenu
e Yves Congar.
Sem dúvida, tem razão Giannini quando realça a necessidade de
ir além dos estereótipos, como a
interpretação sombria do inquisidor Bernardo Gui da versão cinematográfica de O nome da rosa
(1986), de Jean-Jacques Annaud.
Ao longo do tempo, a instituição
muda, adapta-se, adquire novas
formas e estratégias. Mas como
frisa o mestre-geral da Ordem,
Bruno Cadoré, na apresentação
do volume publicado pela editora
Laterza, o multiforme serviço dominicano é prestado retrospetivamente, em profunda continuidade
e em constante fidelidade às instituições originárias, reformuladas
em diferentes épocas e circunstâncias: anunciar Cristo, servir a
Igreja e a Sé Apostólica, defendendo sempre o povo cristão, os
pobres e os deserdados contra os
incontáveis lobos que os ameaçam.
Reunida a 18 de janeiro
Comunicado conjunto da comissão bilateral permanente
de trabalho entre a Santa Sé e o Estado de Israel
A Comissão Bilateral Permanente de Trabalho entre a
Santa Sé e o Estado de Israel reuniu-se a 18 de janeiro
em sessão plenária, em Jerusalém, para dar continuidade
às negociações com base no Artigo 10 § 2 do Fundamental Agreement entre a Santa Sé e o Estado de Israel
de 1993.
O encontro foi presidido pelo Senhor Tzachi Hanegbi, Ministro da Cooperação Regional do Estado de Israel, e por Monsenhor Antoine Camilleri, Subsecretário
para as Relações com os Estados.
A Sessão Plenária reconheceu os progressos obtidos
pela Comissão de trabalho relativos às negociações com
base no Artigo 10 § 2, apreciando o facto de terem sido
realizadas numa atmosfera reflexiva e construtiva. Além
disso, a Plenária reconheceu o trabalho realizado pelo
Ministério da Justiça em relação à aplicação do Acordo
Bilateral de 1997 sobre a Personalidade Jurídica. As Partes concordaram os passos futuros, na perspetiva da próxima Plenária prevista para março de 2017 na Cidade do
Vaticano.
Depois da reunião da Comissão Bilateral Permanente
de Trabalho, a Santa Sé e o Estado de Israel realizaram
uma sessão de consultas bilaterais no Ministério dos Negócios Estrangeiros. As Delegações trataram temas de
interesse comum e analisaram novas oportunidades de
cooperação.
número 4, quinta-feira 26 de janeiro de 2017
L’OSSERVATORE ROMANO
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O Santo Padre presidiu ao encerramento da semana de oração pela unidade dos cristãos
Aprender uns dos outros
para uma reconciliação autêntica
Orientemo-nos «para um futuro novo,
aberto à esperança que não desilude,
onde será possível superar as divisões»,
afirmou o Sumo Pontífice na homilia
pronunciada durante as vésperas de
encerramento da Semana de oração
pela unidade dos cristãos. A celebração
teve lugar no final da tarde de quartafeira 25 de janeiro, na basílica de São
Paulo Extramuros.
O encontro com Jesus na estrada para Damasco transforma radicalmente
a vida de Paulo. A partir de então,
para ele, o sentido da existência já
não está em confiar nas próprias forças para observar escrupulosamente
a Lei, mas em aderir com todo o seu
ser ao amor gratuito e imerecido de
Deus, a Jesus Cristo crucificado e
ressuscitado. Conhece, assim, a irrupção duma vida nova, a vida segundo o Espírito, na qual, pelo poder do Senhor ressuscitado, experimenta perdão, confidência e conforto. E Paulo não pode guardar para
si mesmo esta novidade: é impelido
pela graça a proclamar a feliz notícia
do amor e da reconciliação que
Deus oferece plenamente em Cristo
à humanidade.
Para o Apóstolo dos Gentios, a
reconciliação do homem com Deus,
da qual foi feito embaixador (cf. 2
Cor 5, 20), é um dom que vem de
Cristo. Vê-se isto claramente no texto da II Carta aos Coríntios, onde se
foi buscar, este ano, o tema da Semana de Oração pela Unidade dos
Cristãos: «O amor de Cristo impelenos para a reconciliação» (cf. 2 Cor 5,
14-20). «O amor de Cristo»: não se
trata do nosso amor por Cristo, mas
do amor que Cristo tem por nós. Da
mesma forma, a reconciliação para a
qual somos impelidos não é simplesmente iniciativa nossa: é primariamente a reconciliação que Deus nos
oferece em Cristo. Antes de ser esforço
humano de crentes que procuram
superar as suas divisões, é um dom
gratuito de Deus. Como resultado
deste dom, a pessoa perdoada e
amada é chamada, por sua vez, a
proclamar o evangelho da reconciliação
em palavras e obras, a viver e dar
testemunho duma existência reconciliada.
Nesta perspetiva, podemos hoje
perguntar-nos: Como é possível proclamar este evangelho de reconciliação depois de séculos de divisões? O
próprio Paulo nos ajuda a encontrar
o caminho. Ele sublinha que a reconciliação em Cristo não se pode
realizar sem sacrifício. Jesus deu a sua
vida, morrendo por todos. De modo
semelhante os embaixadores de reconciliação, em seu nome, são chamados a dar a vida, a não viver mais
para si mesmos, mas para Aquele
que morreu e ressuscitou por eles
(cf. 2 Cor 5, 14-15). Como ensina Jesus, só quando perdemos a vida por
amor d’Ele é que verdadeiramente a
temos ganha (cf. Lc 9, 24). É a revolução que Paulo viveu, mas é também a revolução cristã de sempre:
deixar de viver para nós mesmos,
buscando os nossos interesses e pro-
moção da nossa imagem, mas reproduzir a imagem de Cristo, vivendo
para Ele e de acordo com Ele, com o
seu amor e no seu amor.
Para a Igreja, para cada Confissão
Cristã, é um convite a não se basear
em programas, cálculos e benefícios,
a não se abandonar a oportunidades
e modas passageiras, mas a procurar
o caminho com o olhar sempre fixo
na cruz do Senhor: lá está o nosso
programa de vida. É um convite
também a sair de todo o isolamento,
a superar a tentação da autorreferência, que impede de individuar aquilo
que o Espírito Santo realiza fora do
nosso próprio espaço. Poderá realizar-se uma autêntica reconciliação
entre os cristãos, quando soubermos
reconhecer os dons uns dos outros e
formos capazes, com humildade e
docilidade, de aprender uns dos outros — aprender uns dos outros —,
sem esperar que primeiro sejam os
outros a aprender de nós.
Se vivermos este morrer para nós
mesmos por amor de Jesus, o nosso
estilo velho de vida é relegado para
o passado e, como aconteceu a São
Paulo, entramos numa nova forma
de existência e comunhão. Com
Paulo, poderemos dizer: «O que era
antigo passou» (2 Cor 5, 17). Olhar
para trás é útil e muito necessário
para purificar a memória, mas fixarse no passado, delongando-se a lembrar as injustiças sofridas e cometidas e julgando com parâmetros apenas humanos, pode paralisar e impedir de viver o presente. A Palavra de
A guarda suíça pontifícia celebra aniversário de fundação
Vontade e paciência
A Guarda suíça pontifícia comemorou os 511
anos da sua fundação.
Para a ocasião, o franciscano
conventual
Rocco Rizzo, reitor do
Colégio dos penitencieiros do Vaticano, presidiu à concelebração
eucarística, na tarde de
domingo, 22 de janeiro,
na igreja de Santa Maria da Piedade no Campo Santo Teutónico. Os
penitencieiros
foram
convidados pelo comandante, Christoph Graf, em sinal de gratidão
pelo grande esforço demonstrado durante o jubileu extraordinário da
misericórdia. No final da missa, o vice-comandante Philippe Morard,
leu o discurso preparado pelo comandante, no qual reafirmou a importância da disciplina, indicando em particular na «vontade» e na
«paciência» os requisitos essenciais para a vida comunitária e espiritual
das guardas.
Deus encoraja-nos a tirar força da
memória, a recordar o bem recebido
do Senhor; mas pede-nos também
que deixemos o passado para trás a
fim de seguir Jesus no presente e,
n’Ele, viver uma vida nova. Àquele
que renova todas as coisas (cf. Ap 21,
5), consintamos-Lhe que nos oriente
para um futuro novo, aberto à esperança que não desilude, um futuro
onde será possível superar as divisões e os crentes, renovados no
amor, encontrar-se-ão plena e visivelmente unidos.
Enquanto avançamos pelo caminho da unidade, recordamos este
ano de modo particular o quinto
centenário da Reforma Protestante.
O facto de católicos e luteranos poderem hoje recordar, juntos, um
evento que dividiu os cristãos e de o
fazerem com a esperança posta sobretudo em Jesus e na sua obra de
reconciliação, constitui um marco
significativo, alcançado – graças a
Deus e à oração – através de cinquenta anos de mútuo conhecimento
e de diálogo ecuménico.
Implorando de Deus o dom da
reconciliação com Ele e entre nós,
dirijo as minhas cordiais e fraternas
saudações a Sua Eminência o Metropolita Gennadios, representante do
Patriarcado Ecuménico, a Sua Graça
David Moxon, representante pessoal
em Roma do Arcebispo de Cantuária, e a todos os representantes das
diversas Igrejas e Comunidades eclesiais aqui reunidos. Saúdo com particular alegria os membros da Comissão Mista para o Diálogo Teológico entre a Igreja Católica e as
Igrejas Ortodoxas Orientais, a quem
desejo um fecundo trabalho na Sessão Plenária que se desenrola nestes
dias. Saúdo também os alunos do
Instituto Ecuménico de Bossey — vios esta manhã muito contentes —,
que visitam Roma para aprofundar o
seu conhecimento da Igreja Católica,
e os jovens ortodoxos e todos os ortodoxos orientais que estudam em
Roma, graças às bolsas de estudo do
Comité de Colaboração Cultural
com as Igrejas Ortodoxas, sediado
no Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos.
Aos Superiores e a todos os Colaboradores deste Dicastério, exprimo a
minha estima e gratidão.
Amados irmãos e irmãs, a nossa
oração pela unidade dos cristãos é
participação na oração que Jesus dirigiu ao Pai, antes da Paixão, «para
que todos sejam um só» (Jo 17, 21).
Nunca nos cansemos de pedir a
Deus este dom. Na expectativa paciente e confiada de que o Pai conceda a todos os crentes o bem da
plena comunhão visível, prossigamos
o nosso caminho de reconciliação e
diálogo, encorajados pelo testemunho heroico de tantos irmãos e irmãs, de ontem e de hoje, unidos no
sofrimento pelo nome de Jesus.
Aproveitemos todas as oportunidades que a Providência nos oferece
para rezar juntos, anunciar juntos,
amar e servir juntos sobretudo quem
é mais pobre e negligenciado.
L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 26 de janeiro de 2017, número 4
O Papa a uma delegação ecuménica finlandesa
Com a simplicidade das crianças
de Oração pela Unidade dos Cristãos, que nos chama à aproximação
a partir da conversão. Com efeito, o
verdadeiro ecumenismo baseia-se na
conversão comum a Jesus Cristo como nosso Senhor e Redentor. Se nos
aproximarmos juntos d’Ele, aproximar-nos-emos também uns dos outros. Nestes dias
invoquemos mais
intensamente
o
Espírito Santo para que suscite em
Invocamos a unidade dos cristãos
nós esta converporque invocamos Cristo
são, que torna
possível a reconciQueremos viver a unidade
liação.
porque queremos seguir Cristo
Por esta via, cae viver o seu amor
tólicos e luteranos
de vários países,
(@Pontifex_pt)
juntamente com
diversas comunidades que partilham o caminho
Queridos irmãos e irmãs!
ecuménico, percorremos uma etapa
significativa, quando, a 31 de outuSaúdo com alegria todos vós que,
bro passado, nos reunimos em
nesta Delegação ecuménica, viestes Lund, na Suécia, para comemorar o
em peregrinação da Finlândia a Ro- início da Reforma com uma oração
ma por ocasião da Festa de Santo comum. Esta comemoração conjunta
Henrique. Agradeço ao Bispo lutera- da Reforma teve um significado imno de Turku as suas gentis palavras portante a nível humano e teológico— em espanhol! Há mais de trinta espiritual. Depois de cinquenta anos
anos é um bonito hábito que a vossa de diálogo ecuménico oficial entre
peregrinação coincida com a Semana católicos e luteranos, conseguimos
«Precisamos da simplicidade das
crianças, elas ensinam-nos o caminho
que leva a Jesus». Disse o Papa
Francisco no discurso dirigido à
delegação ecuménica vinda da
Finlândia por ocasião da festa de
Santo Henrique, recebida na manhã de
quinta-feira, 19 de janeiro.
expor claramente as perspetivas sobre as quais hoje podemos dizer que
estamos de acordo. Por isto estamos
gratos. Ao mesmo tempo mantemos
vivo no coração o arrependimento
sincero pelas nossas culpas. Neste
espírito, em Lund foi recordado que
a intenção de Martinho Lutero, há
quinhentos anos, era renovar a Igreja, não dividi-la. Aquele encontro
deu-nos a coragem e a força de
olhar em frente, em nosso Senhor
Jesus Cristo, para o caminho ecuménico que estamos chamados a percorrer juntos.
Ao preparar a comemoração conjunta da Reforma, católicos e luteranos tomaram maior consciência também do facto de que o diálogo teológico permanece essencial para a reconciliação e deve ser levado em
frente com dedicação constante. Assim, naquela comunhão concorde
que permite que o Espírito Santo
aja, poderemos chegar a ulteriores
convergências acerca dos conteúdos
da doutrina e do ensinamento moral
da Igreja e poderemos aproximarnos cada vez mais da unidade plena
e visível. Rezo ao Senhor para que
acompanhe com a sua bênção a Comissão de diálogo luterano-católica
da Finlândia, que está a trabalhar
com dedicação numa interpretação
sacramental conjunta da Igreja, da
Eucaristia e do ministério eclesial.
Por conseguinte, o ano de 2017,
comemorativo da Reforma, representa para católicos e luteranos uma
ocasião privilegiada para viver a fé
de maneira mais autêntica, redescobrir juntos o Evangelho, procurar e
testemunhar Cristo com renovado
impulso. Na conclusão do dia comemorativo de Lund, olhando para o
futuro, o nosso comum testemunho
de fé diante do mundo infundiu-nos
coragem, quando juntos nos comprometemos a apoiar quantos sofrem, os que se encontram em necessidade, aqueles que estão expostos a
perseguições e violências. Ao fazer
isto, como cristãos já não estamos
divididos, mas unidos no caminho
rumo à plena comunhão.
Além disso, apraz-me recordar
que os cristãos finlandeses festejam
este ano o centenário do Conselho
Ecuménico Finlandês, que é um instrumento importante para promover
a comunhão de fé e vida entre vós.
Por fim, em 2017 a vossa Pátria, a
Finlândia, completa cem anos como
Estado independente. Que este aniversário encoraje todos os cristãos
do vosso país a professar a fé no Senhor Jesus Cristo — como fez com
grande zelo Santo Henrique — testemunhando-a hoje diante do mundo
e traduzindo-a também em gestos
concretos de serviço, de fraternidade
e de partilha.
Ao desejar que esta vossa peregrinação contribua para fortalecer ulteriormente a boa colaboração entre
ortodoxos, luteranos e católicos na
Finlândia e no mundo, e que o comum testemunho de fé, esperança e
caridade, com a intercessão de Santo
Henrique, dê frutos abundantes, invoco de coração a graça e a bênção
de Deus sobre todos vós.
E, amado irmão Bispo, desejo
agradecer-lhe o bom gosto de ter
trazido os netinhos: precisamos da
simplicidade das crianças, elas ensinar-nos-ão o caminho que leva a Jesus Cristo. Obrigado, muito obrigado!
Discurso aos organizadores da exposição sobre a história dos jubileus realizada no senado italiano
A misericórdia é o âmago de cada ano santo
«Há um elemento essencial, o coração de cada Ano
Santo, que nunca se deve perder de vista: no Jubileu
encontram-se a bondade de Deus e a fragilidade do
homem»: disse o Papa na audiência aos
organizadores da exposição «Antiquorum habet»
sobre a história dos jubileus, realizada no senado da
República italiana de março a junho de 2016. O
Pontífice recebeu-os no final da manhã de quintafeira, 19 de janeiro na Sala do Consistório.
Estimadas Senhoras e Senhores!
Obrigado por terdes vindo. Saúdo-vos cordialmente, começando pelo Senhor Presidente do Senado, Deputado Pietro Grasso, ao qual agradeço
as suas gentis palavras.
Este encontro oferece-me a oportunidade de
vos expressar o meu profundo agradecimento pela
Exposição relativa à história dos Jubileus, realizada no Senado da República no ano passado. Ela
documentou numerosos aspetos dos Anos Santos,
a partir do primeiro, proclamado pelo Papa Bonifácio VIII com a Bula Antiquorum habet. A partir
de 1300, cada Jubileu marcou a história de Roma:
arquitetura, acolhimento dos peregrinos, arte e
atividades assistenciais e caritativas. Mas há um
elemento essencial, o coração de cada Ano Santo,
que nunca se deve perder de vista: no Jubileu encontram-se a bondade de Deus e a fragilidade do
homem, que tem sempre necessidade do amor e
do perdão do Pai. Com efeito, é próprio de Deus
ser misericordioso, e sobretudo nisto se manifesta
a sua omnipotência. O Senhor [dirige-se ao Presidente Grasso] falou do acolhimento como do cerne de cada Jubileu; e é este o grande acolhimento: quando Deus nos acolhe, sem fazer perguntas,
perdoa-nos, abraça-nos, beija-nos e diz-nos estas
bonitas palavras: «meu filho, minha filha».
Ao agradecer aos organizadores e aos voluntários da Exposição, e ao Senado que a hospedou,
pela obra de sensibilização histórica e cultural
oferecida em benefício dos visitantes, desejo que
cada um continue a obter da experiência jubilar
frutos espirituais abundantes e duradouros. Que a
Virgem Maria, Mãe de Misericórdia os obtenha.
Bula «Antiquorum habet»
Obrigado, Senhor Presidente, por esta visita.
Rezo pelo seu alto serviço institucional e pelo trabalho de todos vós. Abençoo-vos juntamente com
os vossos familiares. E também vós, por favor, rezai por mim. Muito obrigado.
número 4, quinta-feira 26 de janeiro de 2017
L’OSSERVATORE ROMANO
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Na mensagem para o dia das comunicações sociais o Papa convidou a ter um novo olhar sobre a realidade
Ver com os óculos certos
«A realidade, em si mesma, não tem
um significado unívoco»: tudo depende
«do olhar com que a enxergamos», dos
«óculos» com os quais se escolhe
observá-la. Eis quanto recordou o
Papa Francisco na mensagem para o
quinquagésimo dia mundial das
comunicações sociais, que se celebra no
próximo dia 28 de maio, solenidade da
Ascensão do Senhor.
sistema comunicativo onde vigora a
lógica de que uma notícia boa não
desperta a atenção, e por conseguinte não é uma notícia, e onde o drama do sofrimento e o mistério do
mal facilmente são elevados a espetáculo, podemos ser tentados a anestesiar a consciência ou cair no desespero.
Gostaria, pois, de dar a minha
contribuição para a busca dum estilo
comunicativo aberto e criativo, que
não se prontifique a conceder papel
de protagonista ao mal, mas procure
evidenciar as possíveis soluções, inspirando uma abordagem propositiva
e responsável nas pessoas a quem se
comunica a notícia. A todos queria
convidar a oferecer aos homens e
mulheres do nosso tempo relatos
permeados pela lógica da «boa notícia».
ponde ao seu conteúdo e, principalmente, que este conteúdo é a própria pessoa de Jesus.
Esta boa notícia, que é o próprio
Jesus, não se diz boa porque nela
não se encontra sofrimento, mas
porque o próprio sofrimento é vivido num quadro mais amplo, como
parte integrante do seu amor ao Pai
e à humanidade. Em Cristo, Deus
fez-Se solidário com toda a situação
humana, revelando-nos que não estamos sozinhos, porque temos um
Pai que nunca pode esquecer os seus
filhos. «Não tenhas medo, que Eu
estou contigo» (Is 43, 5): é a palavra
consoladora de um Deus desde sempre envolvido na história do seu povo. No seu Filho amado, esta promessa de Deus — «Eu estou contigo» — assume toda a nossa fraqueza,
chegando ao ponto de sofrer a nossa
morte. N’Ele, as próprias trevas e a
«Não tenhas medo, que Eu estou
contigo» (Is 43, 5)
Comunicar esperança e confiança
no nosso tempo
Graças ao progresso tecnológico, o
acesso aos meios de comunicação
possibilita a muitas pessoas ter conhecimento quase instantâneo das
notícias e divulgá-las de forma capilar. Estas notícias podem ser boas
ou más, verdadeiras ou falsas. Já os
nossos antigos pais na fé comparavam a mente humana à mó da azenha que, movida pela água, não se
pode parar. Mas o moleiro encarregado da azenha tem possibilidade
de decidir se quer moer, nela, trigo
ou joio. A mente do homem está
sempre em ação e não pode parar de
«moer» o que recebe, mas cabe a
nós decidir o material que lhe fornecemos (cf. Cassiano o Romano, Carta a Leôncio Igumeno).
Gostaria que esta mensagem pudesse chegar como um encorajamento a todos aqueles que diariamente,
seja no âmbito profissional seja nas
relações pessoais, «moem» tantas informações para oferecer um pão fragrante e bom a quantos se alimentam dos frutos da sua comunicação.
A todos quero exortar a uma comunicação construtiva, que, rejeitando
os preconceitos contra o outro, promova uma cultura do encontro por
meio da qual se possa aprender a
olhar, com convicta confiança, a realidade.
Creio que há necessidade de romper o círculo vicioso da angústia e
deter a espiral do medo, resultante
do hábito de se fixar a atenção nas
«notícias más» (guerras, terrorismo,
escândalos e todo o tipo de falimento nas vicissitudes humanas). Não se
trata, naturalmente, de promover desinformação onde é ignorado o drama do sofrimento, nem de cair num
otimismo ingénuo que não se deixe
tocar pelo escândalo do mal. Antes,
pelo contrário, queria que todos procurássemos ultrapassar aquele sentimento de mau-humor e resignação
que muitas vezes se apodera de nós,
lançando-nos na apatia, gerando medos ou a impressão de não ser possível pôr limites ao mal. Aliás, num
Reino de Deus com a semente, cuja
força vital irrompe precisamente
quando morre na terra (cf. Mc 4, 134). O recurso a imagens e metáforas para comunicar a força humilde
do Reino não é um modo de reduzir
a sua importância e urgência, mas a
forma misericordiosa que deixa, ao
ouvinte, o «espaço» de liberdade para a acolher e aplicar também a si
mesmo. Além disso, é o caminho
privilegiado para expressar a dignidade imensa do mistério pascal, deixando que sejam as imagens — mais
do que os conceitos — a comunicar a
beleza paradoxal da vida nova em
Cristo, onde as hostilidades e a cruz
não anulam, mas realizam a salvação
de Deus, onde a fraqueza é mais forte do que qualquer poder humano,
onde o falimento pode ser o prelúdio da maior realização de tudo no
amor. Na verdade, é precisamente
assim que amadurece e se entranha a
esperança do Reino de Deus, ou seja, «como um homem que lançou a
semente à terra. Quer esteja a dormir, quer se levante, de noite e de
dia, a semente germina e cresce»
(Mc 4, 26-27).
O Reino de Deus já está no meio
de nós, como uma semente escondida a um olhar superficial e cujo
crescimento acontece no silêncio.
Mas quem tem olhos, tornados limpos pelo Espírito Santo, consegue
vê-lo germinar e não se deixa roubar
a alegria do Reino por causa do joio
sempre presente.
Os horizontes do Espírito
A boa notícia
A vida do homem não se reduz a
uma crónica asséptica de eventos,
mas é história, e uma história à espera de ser contada através da escolha duma chave interpretativa capaz
de selecionar e reunir os dados mais
importantes. Em si mesma, a realidade não tem um significado unívoco. Tudo depende do olhar com que
a enxergamos, dos «óculos» que decidimos pôr para a ver: mudando as
lentes, também a realidade aparece
diversa. Então, qual poderia ser o
ponto de partida bom para ler a realidade com os «óculos» certos?
Para nós, cristãos, os óculos adequados para decifrar a realidade só
podem ser os da boa notícia: partir
da Boa Notícia por excelência, ou
seja, o «Evangelho de Jesus Cristo,
Filho de Deus» (Mc 1, 1). É com estas palavras que o evangelista Marcos começa a sua narração: com o
anúncio da «boa notícia», que tem a
ver com Jesus; mas, mais do que
uma informação sobre Jesus, a boa
notícia é o próprio Jesus. Com efeito,
ao ler as páginas do Evangelho, descobre-se que o título da obra corres-
morte tornam-se lugar de comunhão
com a Luz e a Vida. Nasce, assim,
uma esperança acessível a todos,
precisamente no lugar onde a vida
conhece a amargura do falimento.
Trata-se duma esperança que não
dececiona, porque o amor de Deus
foi derramado nos nossos corações
(cf. Rm 5, 5) e faz germinar a vida
nova, como a planta cresce da semente caída na terra. Visto sob esta
luz, qualquer novo drama que aconteça na história do mundo torna-se
cenário possível também duma boa
notícia, uma vez que o amor consegue sempre encontrar o caminho da
proximidade e suscitar corações capazes de se comover, rostos capazes
de não se abater, mãos prontas a
construir.
A confiança
na semente do Reino
Para introduzir os seus discípulos
e as multidões nesta mentalidade
evangélica e entregar-lhes os «óculos» adequados para se aproximar
da lógica do amor que morre e ressuscita, Jesus recorria às parábolas,
nas quais muitas vezes se compara o
A esperança fundada na boa notícia que é Jesus faz-nos erguer os
olhos e impele-nos a contemplá-Lo
no quadro litúrgico da Festa da Ascensão. Aparentemente o Senhor
afasta-Se de nós, quando na realidade são os horizontes da esperança
que se alargam. Pois em Cristo, que
eleva a nossa humanidade até ao
Céu, cada homem e cada mulher
consegue ter «plena liberdade para a
entrada no santuário por meio do
sangue de Jesus. Ele abriu para nós
um caminho novo e vivo através do
véu, isto é, da sua humanidade»
(Heb 10, 19-20). Através «da força
do Espírito Santo», podemos ser
«testemunhas» e comunicadores duma humanidade nova, redimida,
«até aos confins da terra» (cf. At 1,
7-8).
A confiança na semente do Reino
de Deus e na lógica da Páscoa não
pode deixar de moldar também o
nosso modo de comunicar. Tal confiança que nos torna capazes de
atuar — nas mais variadas formas em
que acontece hoje a comunicação —
com a persuasão de que é possível
enxergar e iluminar a boa notícia
presente na realidade de cada história e no rosto de cada pessoa.
Quem, com fé, se deixa guiar pelo
Espírito Santo, torna-se capaz de
discernir em cada evento o que
acontece entre Deus e a humanidade, reconhecendo como Ele mesmo,
no cenário dramático deste mundo,
esteja compondo a trama duma história de salvação. O fio, com que se
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Marc Chagall
«Noivos de perfil» (1950)
Formação e acompanhamento: são os dois
termos em volta dos quais o Papa
Francisco desenvolveu a sua reflexão, no
discurso dirigido aos membros da
comunidade do Tribunal apostólico da
Rota romana, recebidos em audiência na
manhã de 21 de janeiro, na sala
Clementina, por ocasião da inauguração
do ano judiciário. Em seguida, a
tradução do discurso do Santo Padre.
Prezados Juízes
Oficiais, Advogados
e Colaboradores do Tribunal
Apostólico da Rota Romana
Dirijo a cada um de vós as minhas cordiais saudações, a começar pelo Colégio dos Prelados Auditores com o Decano, Mons. Pio Vito Pinto, a quem
agradeço as palavras, e o pró-Decano
que acaba de ser nomeado para esta
função. Desejo a todos vós que trabalheis com serenidade e com amor fervoroso pela Igreja durante este Ano judiciário que hoje nós inauguramos.
Agora gostaria de voltar a abordar o
tema da relação entre fé e matrimónio,
em particular as perspetivas de fé ínsitas no contexto humano e cultural em
que se forma a intenção matrimonial.
Baseando-se no ensinamento da Sagrada Escritura, São João Paulo II esclareceu bem «quão profunda é a ligação
entre o conhecimento da fé e da razão
[...]. O caráter peculiar que distingue o
texto bíblico reside na convicção de
que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão
e da fé» (Carta Encíclica Fides et ratio,
16). Portanto, quanto mais se afasta das
perspetiva de fé, tanto mais «o homem
se afasta destas regras, corre o risco da
falência e acaba por se encontrar na
condição do “insensato”. Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma
À Rota romana Francisco pediu mais atenção aos noivos e aos jovens casais
O amor precisa da verdade
Novo catecumenado na preparação para o matrimónio
ameaça contra a vida. É que o insensato se ilude, pensando que conhece muitas coisas, mas na realidade não é capaz de fixar o olhar nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr ordem na sua mente (cf. Pr 1, 7) e de assumir uma atitude correta para consigo
mesmo e para com o ambiente ao seu
redor. Depois, quando chega a afirmar
que “Deus não existe” (cf. Sl 14 [13], 1),
isso revela com absoluta clareza quanto
é deficiente o seu conhecimento e quão
distante ele está da verdade plena a respeito da realidade, da sua origem e do
seu destino» (Carta Encíclica Fides et
ratio, 18).
Por sua vez, no último discurso que
vos dirigiu, o Papa Bento XVI recordava
que «só quando nos abrimos à verdade
de Deus é possível compreender, e realizar concretamente também na vida
conjugal e familiar, a verdade do homem como seu filho, regenerado pelo
batismo [...]. A rejeição da proposta divina, com efeito, conduz a um desequilíbrio profundo em todas as relações
humanas [...], incluída a matrimonial»
(26 de janeiro de 2013, n. 2). È necessário como nunca aprofundar a relação
entre amor e verdade. «O amor tem necessidade da verdade [...]. Apenas na
medida em que o amor estiver fundado
na verdade é que poderá perdurar no
tempo, superar o instante efémero e
permanecer firme para sustentar um caminho comum. Se o amor não tivesse
relação com a verdade, estaria sujeito à
alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo. Ao contrário, o
amor verdadeiro unifica todos os elementos da nossa personalidade, tornando-se uma luz nova que aponta para
Saudação do decano
Além do barulho de vozes deturpadas
«Para além do tumulto de vozes deturpadas e enganadoras», o magistério
pontifício «exaltou incessantemente a
alegria do verdadeiro amor conjugal de
milhões de casais no santo povo de
Deus, sem ceder diante dos ventos da
interpretação pessimista das realidades
humanas, indicados como contrários ao
coração do evangelho» enquanto subtraem «aos fiéis cristãos a esperança e a
misericórdia, dons certos do Espírito de
Jesus», frisou o decano do tribunal,
Mons. Pio Vito Pinto, na saudação dirigida ao Papa no início da audiência.
Depois de mencionar alguns episódios da história recente do tribunal,
que hoje resulta composto por quase
dois terços de estrangeiros, o decano
elogiou o processo de internacionalização e de reforma empreendido pelo Papa Francisco, no qual se insere também
a nomeação do francês monsenhor
Maurice Monier como pró-decano. Em
seguida, apresentou a família de Stefano e Lucia, de origem italiana, mas residentes em Miami (EUA) há mais de
vinte anos, com os seus dez filhos.
Dois deles já são casados, um está para
casar, outro seguiu a própria vocação
sacerdotal e foi chamado para desempenhar o seu ministério numa diocese
africana. «Pequeno, mas feliz presságio
— comentou — do tema do próximo sínodo: as vocações».
Após ter definido Francisco «o depositário e defensor infalível da única fé
ensinada pelos santos apóstolos Pedro
e Paulo», Mons. Pio Vito Pinto agradeceu às «famílias que não dividem, não
levantam muros, mas dão testemunho».
Como aquele oferecido por uma «família em nascimento», composta por Elisabetta e Luigi e pelo seu filhinho —
que no último momento não puderam
comparecer à audiência por motivos de
saúde — que há mais de vinte anos, recordou o decano, estão também «ausentes do sacramento da Eucaristia»
mas que como «crentes e praticantes
carregaram a cruz da obediência à fé
católica», através de um calvário de
grandes sofrimentos na lentidão do
processo canónico.
Na conclusão, outras palavras de
gratidão ao Pontífice: «Vós encorajastes
a nós e a todos os juízes eclesiásticos
do mundo — disse — a fazer do processo e da sentença não o deleite de cursos universitários nem de publicações
eruditas e menos ainda de ilícitos e absurdos lucros», ensinando «a ver no irmão infeliz o rosto comovido do crucificado» com o «integralismo evangélico
que caracterizou o Papa São João
XXIII» e que, concluiu o decano, «revive no vosso ministério».
uma vida grande e plena. Sem a verdade, o amor não pode oferecer um vínculo sólido, não consegue arrancar o
“eu” do seu isolamento, nem libertá-lo
do instante fugaz para edificar a vida e
produzir fruto» (Carta Encíclica Lumen
fidei, 27).
Não podemos ignorar que uma mentalidade difundida tende a ofuscar o
acesso às verdades eternas. Uma mentalidade que envolve, muitas vezes de
modo vasto e minucioso, as atitudes e
os comportamentos dos próprios cristãos (cf. Exortação Apostólica Evangelii
gaudium, 64), cuja fé se debilita e perde
a sua originalidade de critério interpretativo e ativo para a existência pessoal,
familiar e social. Desprovido de valores
religiosos e de fé, este contexto não pode deixar de condicionar também o
consenso matrimonial. As experiências
de fé de quantos pedem o casamento
cristão são muito diferentes. Alguns
participam ativamente na vida da paróquia; outros aproximam-se dela pela
primeira vez; outros ainda levam uma
vida de oração até intensa; alguns, ao
contrário, são guiados por um sentimento religioso mais genérico; e às vezes há pessoas que se afastaram da fé
ou dela são carentes.
Perante esta situação, é necessário
encontrar soluções válidas. Indico um
primeiro remédio na formação dos jovens, mediante um caminho de preparação adequado, destinado a descobrir
de novo o casamento e a família em
conformidade com o desígnio de Deus.
Trata-se de ajudar os futuros esposos a
sentir e a apreciar a graça, a beleza e a
alegria do amor autêntico, salvo e redimido por Jesus. A comunidade cristã à
qual os nubentes se dirigem está chamada a anunciar cordialmente o Evangelho a estas pessoas, a fim de que a
sua experiência de amor possa tornar-se
um sacramento, um sinal eficaz da salvação. Nesta circunstância, a missão redentora de Jesus alcança o homem e a
mulher na realidade da sua vida de
amor. Este momento torna-se para toda
a comunidade uma extraordinária ocasião de missão. Hoje, mais do que nunca, esta preparação apresenta-se como
uma verdadeira oportunidade de evangelização dos adultos e, muitas vezes,
dos chamados distantes. Com efeito,
são numerosos os jovens para os quais
o aproximar-se das núpcias constitui
uma ocasião para voltar a encontrar a
fé, desde há muito tempo relegada às
margens da própria vida; além disso,
eles encontram-se num momento particular, caracterizado com frequência
também pela disponibilidade a rever e
a mudar a orientação da própria existência. Portanto, pode ser um tempo
favorável para renovar o seu encontro
com a pessoa de Jesus Cristo, com a
mensagem do Evangelho e com a doutrina da Igreja.
Por conseguinte, é necessário que os
agentes e os organismos responsáveis
pela pastoral familiar sejam animados
por uma forte preocupação de tornar
cada vez mais eficazes os itinerários de
preparação para o sacramento do matrimónio, para o crescimento não somente
humano, mas sobretudo da fé dos noivos. A finalidade fundamental dos encontros consiste em ajudar os noivos a
realizar uma inserção gradual no mistério de Cristo, na Igreja e com a Igreja.
Isto comporta um amadurecimento
progressivo na fé, através do anúncio
da Palavra de Deus, da adesão e do seguimento generoso de Cristo. Ou seja,
o objetivo desta preparação consiste em
ajudar os noivos a conhecer e a viver a
realidade do casamento que tencionam
celebrar, para que o possam fazer não
apenas válida e licitamente, mas também de modo fecundo, e para que estejam dispostos a fazer de tal celebração
uma etapa do seu percurso de fé. Para
realizar tudo isto, são necessárias pessoas com uma competência específica,
adequadamente preparadas para este
serviço, uma sinergia oportuna entre sacerdotes e casais.
Neste espírito, sinto que devo reiterar a necessidade de um «novo catecumenato» em preparação para o casamento. Acolhendo os votos dos Padres
do último Sínodo Ordinário, é urgente
atuar concretamente aquilo que já foi
proposto na Familiaris consortio (cf. n.
66), ou seja, que assim como para o batismo dos adultos o catecumenato faz
parte do processo sacramental, também
a preparação para o matrimónio se torne uma parte integrante de todo o procedimento sacramental do casamento,
como antídoto que impede o multiplicar-se de celebrações matrimoniais nulas ou então inconsistentes.
Um segundo remédio consiste em
ajudar os recém-casados a percorrer o
caminho da fé e na Igreja, inclusive depois da celebração do matrimónio. É
preciso encontrar, com coragem e criatividade, um projeto de formação para
os jovens esposos, com iniciativas destinadas a uma consciência crescente do
sacramento recebido. Trata-se de os encorajar a ter em consideração os vários
aspetos da sua vida conjugal de todos
os dias, que constitui um sinal do amor
de Deus, encarnado na história dos homens. Cito dois exemplos: antes de tudo o amor, do qual a nova família vive,
tem a sua raiz e fonte última no mistério da Trindade, e é por isso que traz
esta marca, não obstante as dificuldades e as formas de pobreza com as
quais se deve medir na sua vida quotidiana. Outro exemplo: a história de
amor do casal cristão faz parte da história sagrada, porque é habitada por
Deus e porque Deus nunca falta ao
compromisso que assumiu com os noivos no dia do casamento; com efeito,
Ele é «um Deus fiel e não pode renegar-se a si mesmo» (2 Tm 2, 13). A comunidade cristã está chamada a receber, acompanhar e ajudar os jovens casais, proporcionando ocasiões e instru-
mentos adequados — a partir da participação na Missa dominical — para cuidar da vida espiritual tanto dentro da
vida familiar como no âmbito da programação pastoral na paróquia ou nas
agremiações. Muitas vezes os jovens
são deixados a si mesmos, talvez simplesmente porque frequentam pouco a
paróquia; isto acontece acima de tudo
com o nascimento dos filhos. Mas é
exatamente nestes primeiros momentos
da vida familiar que é necessário garantir uma maior proximidade e um forte
apoio espiritual, inclusive na tarefa de
educação dos filhos, em relação aos
quais são as primeiras testemunhas e
portadores da dádiva da fé. No itinerário de desenvolvimento humano e espiritual dos jovens casais é desejável que
haja grupos de referência com os quais
poder percorrer um caminho de formação permanente: através da escuta da
Palavra, do diálogo sobre temáticas que
dizem respeito à vida das famílias, à
oração e à partilha fraternal.
Estes dois remédios que indiquei têm
por finalidade favorecer um contexto
de fé idóneo onde celebrar e viver o
matrimónio. Um aspeto tão determinante para a solidez e a verdade do sacramento nupcial exorta os párocos a
estar cada vez mais conscientes da delicada tarefa que lhes foi confiada na
gestão do percurso sacramental matrimonial dos futuros nubentes, tornando
neles inteligível e real a sinergia entre
foedus e fides. Trata-se de passar de uma
visão claramente jurídica e formal da
preparação dos futuros esposos, para
uma fundação sacramental ab initio, isto é, a partir do caminho rumo à plenitude do seu foedus-consenso, que Cristo
elevou a sacramento. Isto exigirá a contribuição generosa de cristãos adultos,
homens e mulheres, que acompanham
o sacerdote na pastoral familiar para
construir «a obra-prima da sociedade»,
ou seja, «a família: o homem e a mulher que se amam» (Catequese, 29 de
abril de 2015), em conformidade com
«o plano luminoso de Deus» (Saudação
durante o Consistório Extraordinário, 20
de fevereiro de 2014).
O Espírito Santo, que guia sempre e
em tudo o Santo Povo de Deus, assista
e sustenha quantos, sacerdotes e leigos,
se comprometem e ainda se hão de
comprometer neste setor, a fim de que
nunca percam o entusiasmo nem a coragem de trabalhar em prol da beleza
das famílias cristãs, não obstante as armadilhas desastrosas da cultura dominante do efémero e do provisório.
Estimados irmãos, como eu já disse
várias vezes, na época em que vivemos
é necessária uma grande coragem para
se casar. E quantos têm a força e a alegria de dar este passo importante devem sentir ao seu lado o afeto e a proximidade concreta da Igreja. É com estes votos que vos renovo o desejo de
bom trabalho para o novo ano que o
Senhor nos oferece. Asseguro-vos a minha oração e também eu conto com a
vossa, e concedo-vos de coração a Bênção apostólica.
L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 26 de janeiro de 2017, número 4
Missas matutinas em Santa Marta
Quinta-feira
19 de janeiro
A luta no coração
O coração de cada cristão é teatro
de uma «luta». Todas as vezes que o
Pai «nos atrai» a Jesus, há «outro
alguém que faz guerra contra nós»,
sublinhou o Papa Francisco na homilia, durante a qual, comentando o
Evangelho do dia (Mc 3, 7-12) analisou as razões que impelem o homem
a seguir Jesus e examinou como esta
sequela nunca está isenta de dificuldades, aliás, se não combatêssemos
todos os dias contra uma série de
«tentações», correríamos o risco de
uma religiosidade formal e ideológica.
No trecho evangélico, observou o
Pontífice, «pronuncia-se por três vezes a palavra “multidão”: seguia-o
uma grande multidão, vinda de todas as partes; uma grande multidão;
e a multidão lançava-se sobre ele,
para o tocar». Uma multidão «com
um entusiasmo fervoroso, que seguia
Jesus calorosamente e vinha de todas as partes: de Tiro e Sidónia, da
Idumeia e da Transjordânia». Muitos «percorriam este caminho a pé
para encontrar o Senhor». E perante
esta insistência surge uma pergunta:
«Por que vinha esta multidão? Porquê este entusiasmo? Do que precisava». As motivações sugeridas por
Francisco podem ser multíplices. «O
próprio Evangelho diz-nos que havia
doentes que queriam ser curados»,
mas havia também numerosos que
iam «para o ouvir». Aliás, «estas
pessoas gostavam de ouvir Jesus,
porque não falava como os seus
doutores, mas com autoridade. Isto
mexia com o coração». Certamente,
sublinhou o Papa, «era uma multidão que vinha espontaneamente:
não a levavam de autocarro, como
vemos muitas vezes quando se organizam manifestações e tantos devem
ir para “verificar” a presença, para
não perder depois o posto de trabalho».
Portanto, esta gente «ia porque
sentia algo». E eram tão numerosos
«que Jesus teve que pedir uma barca
e afastar-se um pouco da margem
do rio, para que não o esmagasse».
Mas qual era o verdadeiro motivo, o
profundo? Segundo o Pontífice «o
próprio Jesus no Evangelho explica»
esta espécie de «fenómeno social» e
diz: «Ninguém pode vir ter comigo
se não o atrair o Pai». Com efeito,
esclareceu Francisco, se é verdade
que esta multidão ia ter com Jesus
porque «necessitava» ou porque «alguns eram curiosos» o motivo real
encontra-se no facto de que «esta
multidão era atraída pelo Pai. Era o
Pai que atraía as pessoas a Jesus». E
Cristo «não ficava indiferente, como
um mestre estático que proferia as
suas palavras e depois lavava as
mãos. Não! Esta multidão mexia
com o coração de Jesus». Precisamente no Evangelho lê-se que «Jesus estava comovido, porque via estas pessoas como rebanho sem pastor».
Portanto, explicou o Pontífice, «o
Pai, através do Espírito Santo, atrai
as pessoas a Jesus». É inútil ir pro-
curar «todas as argumentações».
Qualquer motivo pode ser «necessário», mas «não é suficiente para fazer levantar um dedo. Não podes
mover-te» dar «um passo só com as
argumentações apologéticas». Ao
contrário, o que é deveras necessário
e decisivo é «que seja o Pai quem te
atrai a Jesus».
A inspiração decisiva para a reflexão do Pontífice chegou quando
examinou as últimas linhas do breve
excerto evangélico proposto pela liturgia: «É curioso» — observou —
que neste trecho ao falar «de Jesus,
da multidão, do entusiasmo, também do amor com o qual Jesus os
recebia e os curava» encontra-se um
final um pouco insólito. Com efeito,
está escrito: «Os espíritos impuros
quando o viam prostravam-se aos
seus pés e gritavam “Tu és o Filho
de Deus!”».
Mas precisamente esta — disse o
Papa — «é a verdade; esta é a realidade que cada um de nós sente
quando Jesus se aproxima», ou seja,
«que os espíritos impuros procuram
impedi-lo, fazem guerra contra
nós».
Alguém poderia objetar: «Mas,
padre, eu sou muito católico; eu vou
sempre à missa... Mas nunca, nunca
tenho estas tentações. Graças a
Deus!». Mas não. A resposta é:
«Não! Reza, porque estás no caminho errado!» pois «uma vida cristã
sem tentações não é cristã: é ideológica, é gnóstica, mas não é cristã».
Com efeito, acontece que «quando o
Pai atrai as pessoas a Jesus, há outro
alguém que atrai de forma contrária
e faz guerra dentro de ti!». Não é
por acaso que São Paulo «fala da vida cristã como de uma luta: uma luta de todos os dias. Para vencer, para destruir o império de satanás, o
império do mal». E é precisamente
por esta razão, acrescentou o Papa,
que «Jesus veio, para destruir satanás! Para destruir a sua influência
sobre os nossos corações».
Com esta observação final no trecho evangélico sublinha-se o essencial: «parece que, nesta cena», desaparecem «quer Jesus, quer a multidão e apenas permanecem o Pai e os
espíritos impuros, ou seja, o espírito
do mal. O Pai que atrai as pessoas a
Jesus e o espírito do mal que procura destruir sempre!».
Assim compreendemos — concluiu
o Pontífice — que «a vida cristã é
Sandip Roychowdhury, «A luta da vida»
uma luta» na qual «ou te deixas
atrair por Jesus, por meio do Pai, ou
podes dizer “Fico tranquilo, em
paz!... Mas nas mãos desta gente,
destes espíritos impuros”». Contudo,
«se quiseres avançar deves lutar!
Sentir o coração que luta, para que
Jesus vença».
Por conseguinte, é a conclusão,
cada cristão deve fazer este exame
de consciência e perguntar-se: «Sinto esta luta no meu coração?». Este
conflito «entre o conforto ou o serviço aos outros, entre o divertir-me
um pouco ou rezar e adorar o Pai,
entre uma coisa e outra?». Sinto «o
desejo de fazer o bem» ou há «algo
que me detém, que me torna rígido?». E ainda: «Penso que a minha
vida comove o coração de Jesus? Se
não acredito nisto — admoestou o
Papa — devo rezar muito para poder
crer, para que me seja concedida esta
graça».
Sexta-feira
20 de janeiro
Um coração novo
«A debilidade de Deus» é que, perdoando-nos, chega a esquecer os
nossos pecados. E portanto está
sempre pronto para nos fazer radicalmente «mudar de vida, não só a
mentalidade e o coração». Mas, da
nossa parte, tem que haver o compromisso a viver até ao fim esta «nova aliança», esta «recriação», pondo
de lado a tentação de condenar e os
desatinos da mundanidade, e reavivando sempre a nossa «pertença» ao
Senhor. Eis as indicações práticas
sugeridas pelo Papa na missa celebrada em Santa Marta.
A liturgia, observou imediatamente Francisco, «contém uma prece,
uma oração muito bonita, que nos
faz compreender a profundidade da
obra de Jesus Cristo: “Ó Deus, tu
que maravilhosamente criaste o
mundo, mas mais admiravelmente o
recriaste”, ou seja, com o sangue de
Jesus, com a redenção». Precisamente «esta renovação, esta recriação é
aquilo de que fala hoje a primeira
leitura», tirada da carta aos Hebreus
(8, 6-13).
Estamos diante da promessa do
Senhor: «Eis que virão dias nos
quais eu estabelecerei uma nova
aliança. Mas não será como a que
fiz com os seus pais”». É portanto
«uma aliança nova e a nova aliança
que Deus estabelece em Jesus Cristo
é a recriação: renova todas as coisas». É este o significado de «renovar todas as coisas pela raiz, não só
na aparência».
Esta nova aliança — explicou o
Papa — tem as suas próprias características». Lê-se ainda na carta aos
Hebreus: «Esta é a aliança que eu
estabelecerei com a casa de Israel
depois daqueles dias, diz o Senhor:
porei as minhas leis nas suas mentes
e inscrevê-las-ei nos seus corações».
Isto significa, afirmou Francisco, que
«a lei do Senhor não é só um modo
de agir externo», porque «a aliança
que ele fará é gravar a lei na mente
e no coração: muda a nossa mentali-
dade». Por isso «na nova aliança há
uma mudança de mentalidade, há
uma mudança de coração, uma mudança de sentir, de agir: é uma maneira diversa de ver as coisas».
Para fazer compreender este ponto, o Pontífice recorreu a um «exemplo: posso ver a obra de uma pessoa, pensemos num arquiteto» e
avaliá-la «com uma atitude fria, técnica, objetiva», dizendo: «está bem,
tecnicamente está bem». Ou então,
prosseguiu o Papa, «posso vê-la com
inveja porque fez uma coisa boa que
eu não sou capaz de fazer», e esta é
outra atitude». Mas, ainda, «a posso
ver com benevolência, até com alegria», dizendo: «parabéns, foste excecional, gosto muito disto, também
eu estou feliz!». Portanto são «três
atitudes diversas».
«A nova aliança — disse Francisco
— muda o nosso coração e mostranos a lei do Senhor com este novo
coração, com esta nova mente». Depois, referindo-se «aos doutores da
lei que perseguiam Jesus», o Papa
recordou que «faziam tudo o que a
lei prescrevia, tinham o direito na
mão, tudo. Mas a sua mentalidade
estava distante de Deus, era uma
mentalidade egoísta, centrada sobre
eles mesmos: o seu coração era um
coração que condenava». Em suma,
viviam «sempre a condenar». Mas
eis que «a nova aliança nos muda o
coração e a mente: dá-se uma mudança de mentalidade».
Retomando o trecho da carta aos
Hebreus, o Pontífice pôs em evidência como «o Senhor vai em frente:
“Gravarei as minhas leis na sua mente e imprimi-las-ei nos seus corações.
Porque eu perdoarei as suas iniquidades e não me recordarei dos seus
pecados”».
Precisamente refletindo sobre estas palavras, acrescentou Francisco,
«por vezes gosto de pensar, quase a
brincar com o Senhor: “Tu não tens
boa memória!”». Esta «é a debilidade de Deus: quando Deus perdoa,
esquece». A ponto que «o Senhor
nunca dirá “vais pagar!”: ele esquece, porque perdoa». Perante «um
coração arrependido, perdoa e esquece: “Eu esquecerei, não recordarei os pecados deles”». E «também
este é um convite a não fazer recordar ao Senhor os pecados, ou seja, a
não voltar a pecar: “Tu perdoasteme, tu esqueceste, mas eu tenho
que...”». Trata-se precisamente de
uma verdadeira «mudança de vida: a
nova aliança renova-me e faz-me
mudar de vida, não só de mentalidade e de coração, mas de vida». Ela
estimula a «viver assim, sem pecado,
longe do pecado». E «esta é a recriação: assim o Senhor recria todos
nós».
O trecho da carta aos Hebreus
propõe depois «uma terceira característica, uma mudança de pertença».
Com efeito, lê-se: «Serei o seu Deus
e eles serão o meu povo». É «aquela
pertença» que leva a dizer: «Tu és o
único Deus para mim, os outros
deuses não existem». Porque, acrescentou Francisco, «os outros deuses,
como dizia um idoso que conheci,
são disparates: “só tu és o meu Deus
e eu sou teu, este povo é teu”».
Por conseguinte, insistiu o Pontífice, «mudança de mentalidade, de
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número 4, quinta-feira 26 de janeiro de 2017
L’OSSERVATORE ROMANO
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Missas matutinas em Santa Marta
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coração, de vida e de pertença: esta
é a recriação que o Senhor faz de
modo mais maravilhoso do que a
primeira criação».
Em conclusão, Francisco sugeriu
que pedíssemos «ao Senhor para
continuar esta aliança, para ser fiéis;
o selo desta aliança, desta fidelidade,
ser fiel a esta obra que o Senhor faz
para mudar a nossa mentalidade e
coração». Recordando sempre que
«os profetas diziam: “o Senhor mudará o teu coração de pedra em coração de carne”». Eis então, reafirmou o Papa, o compromisso a «mudar o coração, a vida, a não voltar a
pecar e a não fazer recordar ao Senhor com os nossos pecados de hoje
aquilo que ele esqueceu, e a mudar
de pertença: nunca pertencer à mundanidade, ao espírito do mundo, aos
disparates do mundo, só ao Senhor».
Segunda-feira
23 de janeiro
Três maravilhas
São três «as grandes maravilhas do
sacerdócio de Jesus: ofereceu a vida
por nós uma vez por todas; continua
também agora a rogar por cada um
de nós; voltará para nos levar consigo». Ao homem é pedido que «não
feche o coração» para «se deixar
perdoar pelo Pai». E precisamente a
missa faz compreender plenamente
esta linda verdade, disse o Papa
Francisco.
«Cantai ao Senhor um canto novo, porque fez maravilhas»: com as
palavras do salmo responsorial o
Pontífice abriu a sua meditação, repetindo que «o Senhor fez maravilhas». E com as palavras do salmo
97 continuou: «O Senhor fez grandes coisas, grandes maravilhas».
Mas, acrescentou, «a maior maravilha é o seu Filho sacerdote». Na primeira leitura, explicou, «o autor da
carta aos Hebreus (9, 15.24-28) apresenta-nos Cristo sacerdote, mediador
da aliança que Deus faz com os homens: Jesus é o sumo sacerdote». E
«o sacerdócio de Cristo — podemos
dizer, daquilo que se vê aqui — realiza-se em três momentos, três etapas».
A primeira etapa, afirmou, «consiste na redenção: Cristo ofereceu-se
uma vez para sempre, pelo perdão
dos pecados». Ele «faz a comparação com os sacerdotes da antiga
aliança que, todos os anos, deviam
oferecer sacrifícios». Eis a novidade:
com Cristo é «uma vez para sempre,
e isto é uma maravilha; e com esta
maravilha Ele fez-nos filhos, levounos ao Pai, perdoou os nossos pecados, recriou a harmonia da criação
com a sua vida».
«A segunda maravilha, de certo
modo ligada ao pecado, é a que o
Senhor faz agora», prosseguiu o Papa. Com efeito, «agora o Senhor intercede, roga por nós: sim, neste momento, enquanto nós rezamos Ele
roga por nós, certamente por todos,
Jesus em vestes sacerdotais (séc. VIII, Roma
basílica de Santa Maria Antiqua)
por cada um de nós». É «a intercessão, o sacerdote que intercede: primeiro ofereceu a vida em resgate;
agora, vivo, diante do Pai, intercede». Na última ceia, recordou, o Senhor «disse: “Roguei por vós, para
que a vossa fé não desfaleça”». Portanto, Jesus «roga por nós e isto é
uma segurança: Cristo, nosso sacerdote, roga por nós». De resto, observou, «quantas vezes dizemos ao
sacerdote: “Padre, reze por mim, pelo meu filho, pela minha família, temos este problema...”». Fazemo-lo
«porque sabemos que a oração do
sacerdote tem uma certa força, precisamente no sacrifício da missa». E
«neste momento é Jesus quem roga
por nós, por cada um de nós, e isto
é uma maravilha, uma segunda maravilha».
«A terceira maravilha será o fim,
quando Ele voltar», afirmou o Pontífice. Ele «voltará como sacerdote,
sim, desligado do pecado: a primeira
vez deu a sua vida pelo perdão dos
pecados; a segunda vez — agora —
roga por nós, porque somos pecadores e vamos em frente na vida cristã;
mas quando vier pela terceira vez
não estará ligado ao pecado, será
para tornar o reino definitivo». E a
«palavra mais bonita daquele dia»
será: «Vinde, bem-aventurados, vinde a mim!». Assim «nos levará todos ao Pai: é este o sacerdócio de
Cristo, do qual nos fala a primeira
leitura, e trata-se da grande maravilha que nos faz cantar um canto novo».
Francisco indicou também «dois
pontos contrastantes na liturgia de
hoje». Por um lado, «há esta grande
maravilha, este sacerdócio de Jesus
em três etapas — aquela em que perdoa os pecados uma vez para sempre; aquela em que intercede agora
por nós; e aquela que terá lugar
quando Ele voltar — mas há também
o contrário, “a blasfémia imperdoável”», como se lê no trecho do
Evangelho de Marcos (3, 22-30). E
«é duro — comentou — ouvir Jesus
dizer isto: mas é Ele quem o diz, e
se o diz é verdade».
Com efeito, Marcos escreve, citando as palavras do Senhor: «Em verdade vos digo: tudo será perdoado
aos filhos dos homens — e sabemos
que o Senhor perdoa tudo, se abrirmos um pouco, totalmente, o coração! — os pecados e todas as blasfé-
mias que disserem — até as blasfémias serão perdoadas! — mas quem
tiver blasfemado contra o Espírito
Santo não será perdoado eternamente: é réu de culpa eterna». Assim esta pessoa, «quando o Senhor voltar,
ouvirá estas palavras: “Afasta-te de
mim!”». E isto porque, explicou, «a
grande unção sacerdotal de Jesus foi
o Espírito Santo quem a fez no seio
de Maria: os sacerdotes, na celebração de ordenação, são ungidos com
o óleo; e fala-se sempre da unção sacerdotal». Até «Jesus, como sumo
sacerdote, recebeu esta unção». E «a
primeira unção» foi «a carne de Maria por obra do Espírito Santo». Assim, quem «blasfema sobre isto, fálo sobre o fundamento do amor de
Deus, que é a redenção, a recriação;
blasfema sobre o sacerdócio de Cristo».
«O Senhor perdoa tudo — explicou — mas quem diz tais coisas está
fechado ao perdão, não quer ser perdoado, nem se deixa perdoar». Precisamente «esta é a fealdade da blasfémia contra o Espírito Santo: não
se deixar perdoar, porque renega a
unção sacerdotal de Jesus feita pelo
Espírito Santo».
E assim, prosseguiu, «hoje ouvimos, nesta liturgia da palavra, as
grandes maravilhas do sacerdócio de
Cristo que se oferece a si mesmo pelo perdão dos pecados, que continua
a rogar por nós agora e que voltará
para nos levar com Ele». È verdadeiramente uma «grande maravilha».
Mas, acrescentou, «também ouvimos
que há uma “blasfémia imperdoável”
e não porque o Senhor não quer
perdoar tudo, mas porque certas
pessoas são tão fechadas que não se
deixam perdoar: a blasfémia contra
esta grande maravilha de Jesus».
Concluindo, Francisco sugeriu
que «hoje nos fará bem, durante a
missa, pensar que aqui no altar se
faz a memória viva — porque ali Ele
estará presente — do primeiro sacerdócio de Jesus, quando oferece a sua
vida por nós; há também a memória
viva do segundo sacerdócio, porque
Ele rogará aqui; mas também nesta
missa — di-lo-emos após o Pai-Nosso
— há o terceiro sacerdócio de Jesus,
quando Ele voltar como nossa esperança da glória». Portanto, insistiu o
Papa, «nesta missa pensemos nestas
coisas boas e peçamos ao Senhor a
graça de que o nosso coração nunca
se feche — nunca se feche! — diante
desta maravilha, desta grande gratuidade».
Terça-feira
24 de janeiro
Um depois do outro
Elos de uma longa corrente de «eisme!» que começa com Abraão e chega até hoje, passando por aquele decisivo de Jesus ao Pai. Segundo o
Papa Francisco assim são os cristãos
chamados todos os dias para «fazer
a vontade do Senhor», inseridos no
desígnio providencial da história da
salvação. Uma realidade aprofundada graças à meditação sobre as leituras deste dia. A liturgia, observou o
Pontífice, em continuidade com a do
dia anterior, fez refletir «sobre o sacerdócio de Jesus, o sacerdócio definitivo, único». Ponto de partida,
mais uma vez, foi a primeira leitura
tirada da carta aos Hebreus (10, 1-10)
na qual é tratado o tema do sacrifício.
«Os sacerdotes — explicou Francisco — naquela época, ofereciam sacrifícios que deviam ser oferecidos
continuamente, ano após ano, porque não eram definitivos, de uma
vez para sempre». A mudança decisiva foi realizada com «o sacerdócio
de Jesus que faz o único sacrifício
de uma vez para sempre». Uma diferença substancial: «naqueles sacrifícios renova-se cada ano a memória
dos pecados com o pedido de perdão», pelo contrário, Cristo diz:
«Não quiseste sacrifícios nem oblação, mas formaste-me um corpo. E
afirma: “Eis que venho — ó Deus —
para fazer a tua vontade”».
Foi precisamente este, sugeriu o
Papa, «o primeiro passo» de Jesus
no mundo: «venho para fazer a tua
vontade». E a vontade do Pai era
que «com este sacrifício se abolissem
todos os sacrifícios e este permanecesse o único». Portanto lê-se na Escritura: «Tu não quiseste, tu não recebeste com agrado os sacrifícios
nem as ofertas, nem os holocaustos,
nem as vítimas pelo pecado. Eis que
venho para fazer a tua vontade».
Precisamente esta palavra de Jesus, disse o Pontífice, encerra uma
história de «eis-me» encadeados — a
história da salvação é isto: uma sucessão de “eis-me” encadeados». Tudo teve início com Adão que «se escondeu porque temia o Senhor»: a
partir de então o Senhor começou
«a chamar e a ouvir a resposta de
homens e mulheres que dizem: “Eisme. Estou disposto. Estou disposta”». Até chegar «ao último “eisme”, o de Jesus: “para fazer a tua
vontade”». O Papa recordou brevemente
esta
história
evocando
Abraão, Moisés, os profetas Isaías e
Jeremias. E também: o pequeno Samuel, que ouve a voz do Senhor e
responde: «Eis-me, Senhor». Até
chegar «ao último grande “eis-me”
de Maria: “Faça-se a vontade de
Deus. Sou a serva. Eis-me”».
Trata-se de «uma história de “eisme”», mas — frisou Francisco — de
«“eis-me”» não automáticos». De
facto, em cada uma das narrações
bíblicas mencionadas constatamos
que «o Senhor dialoga com aqueles
que convida».
Abraão até «negociou» com ele
para «não destruir as duas cidades».
Do mesmo modo, Isaías objetava:
«Mas, são pecadores, não posso...»,
e Jeremias: «Mas sou um menino,
não sei falar...» e o Senhor tranquilizava-o: «Eu farei com que fales!».
Para Elias que se lamentava: «Tenho
medo, quero morrer, não, tenho medo, não quero», a resposta foi: «Levanta-te: come, bebe e vai!».
«O Senhor — disse o Papa resumindo com uma única consideração
todas estas citações — dialoga sempre com aqueles que convida a percorrer esta estrada e a responder
“eis-me”. Tem tanta paciência, muita
paciência». E acrescentou um ulterior exemplo recordando «os raciocínios de Job, que não compreende»,
e as respostas do Senhor que «o corCONTINUA NA PÁGINA 12
página 12
L’OSSERVATORE ROMANO
quinta-feira 26 de janeiro de 2017, número 4
Fé, esperança e busca
Encontros e desencontros com Deus
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
A linguagem da fé, a linguagem da
razão, a linguagem da consciência,
convergem através de duas dimensões: a dúvida e a busca, que, no seu
conjunto, não se confundem com ceticismo, relativismo ou niilismo. Entre o dogma de fé, a convicção da
razão e o sentimento da consciência,
estamos diante de um teste à nossa
fortaleza ou à nossa fragilidade. Saber porque somos, porque pensamos
e porque sentimos leva-nos, ontologicamente, ao divino. Deus deu-nos
a liberdade, sem a qual não seríamos
irrepetíveis, diferentes e sujeitos de
responsabilidades e sem a qual não
seríamos sequer capazes de duvidar
da certeza do Absoluto. O Criador
deu-nos até a liberdade suprema de
O negar.
Neste contexto, realço o baluarte
intemporal da oração, porque tudo
está na ligação com O que nos concedeu o dom da vida. Na oração,
não se diz apenas. Dialoga-se. Ouve-se. Reflete-se. Na oração, mais do
que ir ao encontro, o importante é
saber receber o encontro. De portas
abertas, sem as nossas circunstâncias, com graça e alegria. Até no silêncio, que é uma forma de respeito,
uma expressão do amor, uma oportunidade para a plenitude do encontro. A oração no sofrimento, na súplica, na dor, no pedido de perdão é
necessária, mas a oração na alegria,
na ausência de nós e do nosso egoísmo, na felicidade, é a mais pura forma de nos darmos. A oração não é
um “deve e haver”, uma espécie de
registo contabilístico da nossa relação com Deus. A oração é uma entrega sem contrapartidas, a não ser a
da ajuda na busca d’Ele.
Sem alarde, que essa não é a maneira de se ser em fé. Com alegria
Se me aparto de ti, Deus da bondade
Se me aparto de ti,
Deus da bondade,
Que ausência tão cruel!
Como é possível
Que me leve a um abismo tão
terrível
O pendor infeliz da humanidade!
Conforta-me Senhor,
que esta saudade
Me despedaça o coração sensível;
Se a teus olhos na cruz
sou desprezível,
Não olhes para a minha
iniquidade!
Ver com
os óculos certos
CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 7
tece esta história sagrada, é a esperança, e o seu tecedor só pode
ser o Espírito Consolador. A esperança é a mais humilde das virtudes, porque permanece escondida nas pregas da vida, mas é semelhante ao fermento que faz levedar toda a massa. Alimentamola lendo sem cessar a Boa Notícia, aquele Evangelho que foi
«reimpresso» em tantas edições
nas vidas dos Santos, homens e
mulheres que se tornaram ícones
do amor de Deus. Também hoje
é o Espírito que semeia em nós o
desejo do Reino, através de muitos «canais» vivos, através das
pessoas que se deixam conduzir
pela Boa Notícia no meio do drama da história, tornando-se como
que faróis na escuridão deste
mundo, que iluminam a rota e
abrem novas sendas de confiança
e esperança.
Vaticano, 24 de janeiro de 2017
À suave esperança me entregaste,
E o preço de teu sangue precioso
Me afiança que não me
abandonaste.
Se, justo, castigar-me te é forçoso
lembra-te que te amei, e me criaste
para habitar contigo o Céu
lustroso!
[Marquesa de Alorna (1750-1839)
— in Rosa do Mundo, 2001 —
Poemas para o futuro, Assírio &
Alvim, 2001]
que a fé nos concede, com a dúvida
que torna a fé mais livre e consistente.
A oração começa no mais singelo
sinal: o da cruz. Uns segundos apenas para nos aproximarmos d’Ele,
na pequenez da nossa insignificância. O sinal, no que ele representa
de comunhão entre o que somos e o
que procuramos ser, a ponte entre a
nossa fraqueza e a nossa fé. Da cruz,
como o maior símbolo de entrega e
de resgate de Deus feito Homem.
Meu Deus! clamam, em situações
de desespero, crentes, como até
ateus e agnósticos.
Minha Mãe! dizem os filhos, novos ou velhos, como a primeira palavra na aflição, mesmo que da mãe só
reste a presença da saudade.
Entre Meu Deus e Minha Mãe
não há tempo, nem espaço. Há os
encontros na intimidade natural e
sobrenatural do alfa terreno com o
ómega divino e do alfa divino com o
ómega terreno. O princípio e o fim
na expressão transcendente do mistério, o princípio e o fim na expressão uterina da nossa natureza.
Se Deus é a nossa intimidade absoluta, a Mãe é a nossa cumplicidade plena.
Por isso, não concebo Deus sem a
Mãe, a nossa. Nem a Mãe, nosso
anjo da guarda, sem a proteção de
Deus de todos. Eis a síntese da vida,
esse dom de Deus trazido ao mundo
pela Mãe e certificado no mundo
através do Senhor pela Graça de sua
Mãe.
Tudo com o sentido do bem soberano da vida, perante a imortalidade
da alma e a esperança da ressurreição. O porquê? O para quê? O para
Ilustração de Nuno Quaresma
onde? O como? A esperança exige
um nexo de causalidade. Dentro de
nós para Ele, para nós mesmos e para o que nos é exterior. A esperança
é generosa, mas não acomodada.
Não se dá com a demissão, a indiferença, o ceticismo, o destino, o conto de fadas. Alimenta-se da busca.
Da inquietude. Do inconformismo.
Do combate. Da ansiedade. Do ânimo. Afinal, lutamos porque temos
esperança! A esperança na ressurreição começa na vida cá, no nosso testemunho e nos nossos valores. A esperança é “iluminadora e encorajadora, mas também a mais misteriosa
virtude” (Bento XVI, Spe salvi). Ou
como se pode ler (e sentir) na chamada oração da Paz de São Francisco, “onde houver desespero, que eu
leve a esperança”.
(Tirado do Boletim Salesiano de janeiro-fevereiro de 2017 — Por vontade
do autor este texto não segue o Novo
Acordo Ortográfico)
Um depois do outro
mo Jonas que não queria fazer o na duramente» porque «fingimos» e
que o Senhor lhe pedia?». Ou en- dizemos: «Tudo bem... nada de perrige», até chegar o seu «eis-me»: tão: «finjo que faço a vontade do guntas: faço isto e nada mais»! En«Senhor, tu tens razão: eu conhecia- Senhor, mas só externamente, como tre as respostas possíveis poderia este só de ouvir falar, agora os meus os doutores da lei que Jesus conde- tar também aquela de olhar «para o
outro lado como fizeram o leviolhos viram-te». Neste ponto o
ta e o sacerdote diante daquele
Pontífice introduziu um ensinapobre homem ferido, espancamento válido para todos os hodo pelos salteadores e abandomens de hoje: «A vida cristã é
nado quase morto».
isto: um “eis-me”, um “eis-me”
Então, prosseguiu o Pontíficontínuo».
ce, dado que o Senhor chama
«Um atrás do outro» todos
«cada um de nós», e «todos os
os «eis-me» pronunciados se
dias»: devemos questionar-nos:
encontram na Bíblia. «É bom»,
«Como é a minha resposta ao
disse o Papa, «ler a Escritura»
Senhor?». É a resposta do «eisindo buscar precisamente «as
me»? «ou me escondo? Fujo?
respostas das pessoas ao SeFinjo? Olho para o outro lanhor», todas as vezes que aldo?».
guém respondeu: «Eis-me, esAlguém poderia até ter uma
tou aqui para fazer a tua vontadúvida: «Pode-se discutir» com
de». Bom e envolvente, porque
o Senhor? «Sim! — disse Fran— explicou Francisco — esta «licisco — Ele aprecia isto. Ele
turgia da palavra de hoje nos
gosta de discutir connosco».
convida a refletir: “Mas como
Por isso, contou o Papa, quanvai o meu “eis-me” ao Senhor?
do alguém me diz: «Mas, paE o “eis-me” da minha vida, codre, quando eu rezo muitas vemo está?». Exatamente quando
zes, enraiveço-me com o Serevemos as Escrituras damo-nos
nhor...», a resposta é: «também
conta de que a resposta não é
isto é oração! Deus gosta quanbanal:
«Escondo-me
como
do te enraiveces e lhe dizes na
Adão para não responder? Ou
cara o que sentes, porque é pai!
quando o Senhor me chama,
Mas também isto é um “eisem vez de dizer “eis-me” ou “o
Dante
Gabriel
Rossetti,
«Ecce
Ancilla
Domini»
(1850)
me”».
que queres de mim?”, fujo, coCONTINUAÇÃO DA PÁGINA 11
número 4, quinta-feira 26 de janeiro de 2017
L’OSSERVATORE ROMANO
página 13
Francisco denunciou a chaga da criminalidade organizada e invocou a conversão dos criminosos
Contra todas as máfias
O dinheiro dos negócios sujos está ensanguentado e produz um poder iníquo
Um renovado apelo a lutar contra
todos os tipos de máfia foi lançado pelo
Papa Francisco na manhã de 23 de
janeiro, durante a audiência concedida
à Direção nacional antimáfia e
antiterrorismo italiana, recebidos na
sala do Consistório.
Ilustres Senhoras e Senhores
Estou feliz por vos receber, a vós
que representais a Direção Nacional
Antimáfia e Antiterrorismo. Saúdovos cordialmente e agradeço ao Dr.
Franco Roberti as suas palavras.
As funções que vos foram confiadas pelo Estado dizem respeito à
perseguição dos delitos das três
grandes organizações criminosas de
tipo mafioso: máfia, camorra e
’ndrangheta. Elas encontram um terreno fértil para realizar os seus projetos deploráveis, explorando carências económicas, sociais e políticas.
Entre as vossas competências há
também a luta contra o terrorismo,
que adquire um aspeto cada vez
mais cosmopolita e devastador. Desejo manifestar-vos o meu apreço e o
meu encorajamento pela vossa atividade, difícil e perigosa, e contudo
mais indispensável do que nunca para o resgate e a libertação do poder
das associações criminosas, que se
tornam responsáveis por violências e
opressões manchadas de sangue humano.
A sociedade tem necessidade de
ser curada da corrupção, das extorsões, do tráfico ilícito de drogas e de
Telegrama ao presidente norte-americano Trump
Dignidade humana e liberdade
No dia da tomada de posse na Casa Branca de Donald Trump, quadragésimo
quinto presidente dos Estados Unidos da América, o Pontífice enviou-lhe um
telegrama de bons votos do qual apresentamos a tradução.
No momento da sua tomada de posse como quadragésimo quinto presidente dos Estados Unidos da América, apresento-lhe os meus cordiais
bons votos e a certeza das minhas preces a fim de que Deus Omnipotente lhe conceda sabedoria e força no desempenho do seu alto cargo. Num
tempo em que a nossa família humana está afligida por graves crises humanitárias que requerem respostas políticas clarividentes e unidas, rezo
para que as suas decisões sejam guiadas pelos ricos valores espirituais e
éticos que forjaram a história do povo americano e o compromisso da sua
nação pela promoção da dignidade humana e da liberdade em todo o
mundo. Sob a sua guia, possa a grandeza da América continuar a ser medida antes de mais com base na sua solicitude pelos pobres, os marginalizados e os necessitados que, como Lázaro, estão diante da nossa porta.
Com estes sentimentos, peço ao Senhor que lhe conceda, bem como à
sua família, e a todo o amado povo americano, as suas bênçãos de paz,
concórdia e prosperidade material e espiritual.
FRANCISCO
armas, do tráfico de seres humanos,
entre os quais numerosas crianças,
reduzidas à escravidão. Trata-se de
autênticos flagelos sociais e, ao mesmo tempo, de desafios globais que a
coletividade internacional é chamada
a enfrentar com determinação. Nesta
perspetiva, tomei conhecimento de
que a vossa atividade de combate ao
crime se desenvolve oportunamente
em colaboração com os colegas de
outros Estados. Este trabalho, levado a cabo em sinergia e com meios
eficazes, constitui uma proteção eficaz e uma guarnição de segurança
para a coletividade.
A sociedade tem grande confiança
no vosso profissionalismo e na vossa
experiência de magistrados de investigação, comprometidos no combate
e na erradicação do crime organizado. Exorto-vos a dedicar todos os
esforços, especialmente na luta contra o tráfico de pessoas e o contrabando de migrantes: trata-se de crimes muito graves que atingem os
mais frágeis entre os frágeis! A este
propósito, é necessário incrementar
as atividades de tutela das vítimas,
prevendo a assistência jurídica e social a estes nossos irmãos e irmãs em
busca de paz e de futuro. Aqueles
que fogem dos seus países por causa
da guerra, das violências e das perseguições têm o direito de receber
hospitalidade adequada e salvaguarda idónea nos países que se definem
civis.
Para completar e fortalecer a vossa
preciosa obra de repressão, são necessárias intervenções educacionais
de longo alcance, destinadas de modo especial às novas gerações. Com
esta finalidade, as várias agências no
campo da educação, entre as quais
famílias, escolas, comunidades cristãs, realidades desportivas e culturais, são chamadas a favorecer uma
consciência de moral e de legalidade
visando modelos de vida honestos,
pacíficos e solidários que, gradual-
mente, vençam o mal e aplainem o
caminho para o bem. Trata-se de começar a partir das consciências para
purificar os propósitos, as escolhas e
as atitudes dos indivíduos, de tal
forma que o tecido social se abra à
esperança de um mundo melhor.
O fenómeno mafioso, como repressão de uma cultura de morte,
deve ser contrastado e combatido.
Ele opõe-se radicalmente à fé e ao
Evangelho, que são sempre favoráveis à vida. Quantos seguem Cristo
têm pensamentos de paz, de fraternidade, de justiça, de acolhimento e
de perdão. Quando a linfa do Evangelho escorre nos discípulos de Cristo, amadurecem frutos bons que se
podem reconhecer também a partir
de fora, com comportamentos correspondentes que o Apóstolo Paulo
identifica com «caridade, alegria,
paz, paciência, afabilidade, bondade,
fidelidade» (Gl 5, 22).
Penso nas numerosas paróquias e
associações católicas que são testemunhas destes frutos. Elas desempenham um trabalho louvável no território, em vista de favorecer o povo,
uma promoção cultural e social destinada a extirpar progressivamente
pela raiz a erva daninha da criminalidade organizada e da corrupção.
Nestas iniciativas, manifesta-se igualmente a proximidade da Igreja em
relação a quantos vivem situações
dramáticas e têm necessidade de ser
ajudados a sair da espiral da violência e a regenerar-se na esperança.
Caros irmãos e irmãs, o Senhor
vos dê sempre a força para ir em
frente, para não desanimar e para
continuar a lutar contra a corrupção,
a violência, a máfia e o terrorismo.
Estou consciente de que o trabalho
por vós realizado comporta também
o risco da vida, como bem sei; e o
risco de outros perigos para vós e
para as vossas famílias. O modo mafioso de agir causa estas coisas. Por
isso, exige um suplemento de paixão, de sentido do dever e de força
de espírito mas também, da nossa
parte, de todos os cidadãos que beneficiam do vosso trabalho [um suplemento] de ajuda, de oração e de
proximidade. Asseguro-vos que estou muito perto de vós no vosso trabalho e que rezo por vós.
Ao mesmo tempo, o Senhor justo
e misericordioso toque o coração dos
homens e das mulheres das várias
máfias, a fim de que parem, deixem
de praticar o mal, se convertam e
mudem de vida. O dinheiro dos negócios sujos e dos delitos mafiosos
está ensanguentado e produz um
poder iníquo. Todos nós sabemos
que o diabo «entra pelos bolsos»:
eis a primeira corrupção!
Sobre vós, as vossas famílias e o
vosso trabalho, invoco a ajuda do
Senhor. Repito-vos: estou próximo
de vós! E enquanto vos peço, também a vós, que oreis por mim, abençoo-vos de coração.
O Senhor vos abençoe, bem como
as vossas famílias.
L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 26 de janeiro de 2017, número 4
Diálogo com Mussie Zerai
Uma voz
para quem não a tem
ROSSELLA FABIANI
Éa história de uma vida, mas ao
mesmo tempo, a de centenas de outras vidas. Aquelas dos desesperados
que fogem para a Europa e que o
«padre Moisés» há anos ajuda de
todas as maneiras. O «padre Moisés» é Mussie Zerai, sacerdote escalabriniano, eritreu de Asmara, por
sua vez refugiado, que chegou à Itália em 1992 com 17 anos, fundador
da associação humanitária Habeshia,
candidato ao Nobel para a paz em
2015, inserido pelo semanário Time
entre as cem personalidades mais influentes de 2016 na categoria «pioneiros», que acabou de publicar a
sua autobiografia, escrita juntamente
com o jornalista da Rai, Giuseppe
Carrisi (Florença, Giunti, 2017, 224
páginas). Um livro que se enlaça em
duplo sentido com as vicissitudes e
com o destino dos migrantes. «Nasceu como um testemunho para dizer
concretamente o quê e como se pode fazer, partindo da minha experiência pessoal. Porque cada um de
nós deve ser promotor de solidariedade e justiça. A quem se sente esmagado pelo problema enorme das
migrações e acredita que nada pode
fazer, digo: começa a ajudar quem
está ao teu lado». Também Mussie
Zerai antes de ajudar os outros, a
ponto de ser apelidado como «anjo
dos migrantes», foi ajudado. «Encontrei-me com o meu primeiro benfeitor quando eu tinha 16 anos, ele
era o abade dos cistercienses de Casamari em visita à Eritreia e Etiópia.
Conheci-o no avião que de Asmara
me levava a Adis Abeba onde eu tinha ido a fim de obter os documentos para entrar na Itália. Ajudei-o
um pouco servindo de intérprete e
disse-lhe que, se tudo corresse bem,
dali a pouco tempo estaria em Roma. Ele ofereceu-me hospitalidade
na casa que os cistercienses possuem
na praça de Trevi. Cheguei lá à noite, estava tudo escuro e não me dei
conta de onde estava. De manhã
acordei com o rumor da água e das
pessoas. Perguntei a um monge se
eram abelhas. Ele olhou para mim
admirado, fez-me subir ao teto e
mostrou-me aquela maravilha. O
meu segundo benfeitor foram dois
gémeos, dois jovens voluntários e
que hoje são pianistas famosos. Perguntaram-me desde quando eu não
falava com os meus parentes. Pagaram-me a refeição e ofereceram-me
um cartão telefónico. Isto foi importantíssimo para mim, mas todos podem fazer o mesmo, todos podem
comprar um cartão telefónico de 5
euros».
Agora o «padre Moisés» tem um
telemóvel que está sempre ligado.
Esse número começou a circular entre os migrantes depois que, em
2003, visitou como intérprete uma
prisão líbica e deu-o a um refugiado
eritreu que em seguida o escreveu na
parede, acompanhando-o com uma
frase: «Em caso de necessidade, ligai
para este número». Desde então
Mussie Zerai recebe telefonemas
continuamente: «Nos últimos cinco
ou seis anos penso que contribuí para salvar pelo menos cento e sessenta mil pessoas. A minha tarefa é servir de voz a quem não tem voz. Isto
dá-me a força para continuar. Os
migrantes sofrem as violências mais
atrozes. Como a dos traficantes que
com frequência se transformam em
escravistas que sequestram quem
tenta fugir para pedir um resgate às
famílias e assim obter mais dinheiro,
quando não matam para vender os
órgãos, como aconteceu no Egito,
no Sinai e ainda acontece noutros
lugares para onde foram deslocadas
as rotas das migrações». No subtítulo do livro do padre Zerai está escrito: «Na viagem do desespero o seu
número de telefone é a última esperança».
Se a ajuda mais eficaz é a que
vem de baixo — «a fórmula ajudemo-los na sua casa, transformou-se
em exploremo-los na sua casa e as
remessas dos emigrantes até agora
foram o único instrumento para melhorar as condições de vida de quem
permanece» — para enfrentar a questão migratória Mussie Zerai propõe
Padre Mussie Zerai
uma estratégia em três pontos. «O
primeiro, a longo prazo, é intervir
na raiz do problema: se for a guerra,
é preciso acabar com ela; se for a ditadura, a violação dos direitos, é
preciso exercer pressões diplomáticas
sobre os governos que oprimem os
seus cidadãos; se for a fome é necessário apostar num efetivo desenvolvimento económico. Mas estas não
são questões que se resolvem de hoje
para amanhã. Eis então o segundo
ponto: começar a proteger quem foge para os países próximos. Se não a
fuga continua para outros países e
os únicos que lucram com isto são
os traficantes».
Mas como se pode deveras ajudar
a África? «A África é o continente
mais rico de todos em matérias-primas e em potencialidades agrícolas.
Audiência ao presidente
da República do Paraguai
A 20 de janeiro o Papa Francisco recebeu em audiência Horacio Manuel Cartes Jara, presidente da República do Paraguai, o qual se encontrou sucessivamente com o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, acompanhado pelo arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário
para as Relações com os Estados.
Os colóquios, realizados num clima de cordialidade, focalizaram as
boas relações existentes entre a Santa Sé e o Paraguai. Foram tratados
temas de interesse comum, como o desenvolvimento integral da pessoa
humana, a luta contra a pobreza e a paz social. Nesta perspetiva, evidenciaram a colaboração com a Igreja católica e o contributo que ela
oferece no âmbito social, formativo e na assistência aos mais necessitados.
Durante os diálogos houve um intercâmbio de opiniões sobre a situação política e social regional, com referência especial ao desenvolvimento das instituições democráticas.
Não precisa de ajuda, precisa de justiça. A pobreza mais grave da África
é a de liderança. Não há líderes que
coloquem o bem-estar dos povos no
centro do seu programa. É a África
que se deve ajudar a si mesma. Inclusive redescobrindo a sua cultura,
as suas raízes. Por exemplo, há um
livro da autoria de um monge cisterciense, que é um recenseamento dos
sítios e dos vestígios cristãos no planalto da Etiópia e na Eritreia. Existem iniciativas para reunir as tradições orais, as poesias, para fazer pesquisas arqueológicas. Algo começa a
mover-se. Lentamente e nem em todos os países. Mas o papel da cultura e da espiritualidade pode ser decisivo. A minha experiência é uma
prova disto. Senti a minha vocação
aos 14 anos, quando vivia em Asmara. Mas meu pai, que migrou quando eu tinha quatro anos e telefonava
uma vez por mês para a minha avó
com a qual eu vivia, disse que devia
estudar e decidir quando fosse maior
de idade. Depois, também eu deixei
a Eritreia e a vocação voltou com vigor em 2000, no ano do jubileu».
Mussie Zerai desempenhou muitos trabalhos: vendedor de frutas na
praça Vittorio, de jornais, camareiro
num teatro paroquial. Fez sobretudo
voluntariado na paróquia da comunidade eritreia em Roma. «Abria a
igreja que durante a noite se tornava
dormitório. Servia de intérprete aos
jovens que chegavam, às mulheres
que trabalhavam como domésticas, a
todos que tinham um problema.
Certa vez uma senhora disse-me:
não precisamos só de ajuda material
mas também de auxílio espiritual.
Para mim tornou-se claro o desejo
de ser sacerdote. Mas sacerdote dos
migrantes. Recordei-me que em 1997
tinha visto na tv a beatificação de
Giovanni Scalabrini, o qual dedicou
a sua vida a ajudar os migrantes e
pensei: precisamos de pessoas como
ele. Foi como a conclusão de um ciclo. Em setembro de 2000 comecei a
minha formação sacerdotal e em
2010 recebi a ordenação na igreja de
Santo Estêvão dos Abissínios». Desde 2011 o padre Zerai é responsável
pelos 14 centros dos eritreus que vivem na Suíça e, desde 2014, é coordenador de todos os católicos eritreus que vivem na Europa. Mas o
telefone do «padre Moisés» está
sempre ligado para todos os migrantes.
L’OSSERVATORE ROMANO
número 4, quinta-feira 26 de janeiro de 2017
página 15
INFORMAÇÕES
Audiências
O Senhor Cardeal Zenon Grocholewski, Prefeito Emérito da Congregação para a Educação Católica (para os Institutos de Estudos); D. Vincenzo Paglia, Presidente da Pontifícia Academia para a Vida; D. Giuseppe Sciacca, Secretário do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica; e D. Robert Rivas, Arcebispo de
Castries (Santa Lúcia).
chael Neary, Arcebispo de Tuam; D.
Brendan Kelly, Bispo de Achonry;
D. John Kirby, Bispo de Clonfert;
D. Kevin Peter Doran, Bispo de Elphin, com o Bispo Emérito D. Christopher Jones; D. John Fleming,
Bispo de Killala; D. Fintan Monahan, Bispo de Killaloe; e D. Liam
S. MacDaid, Bispo Emérito de
Clogher; e os Rev.mos Monsenhores
Michael Ryan, Administrador Diocesano
de
Ossory;
Michael
McLaughlin, Administrador Diocesano de Galway and Kilmacduagh; e
Joseph McGuinness, Administrador
Diocesano de Clogher.
A 20 de janeiro
A 21 de janeiro
Sua Ex.cia o Senhor James Kwame
Bebaako-Mensah, Embaixador de
Gana, em visita de despedida.
Os Senhores Cardeais Angelo Amato, Prefeito da Congregação para as
Causas dos Santos; Marc Ouellet,
Prefeito da Congregação para os
Bispos; e Gerhard Ludwig Müller,
Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé; Mons. Pio Vito
Pinto, Decano do Tribunal da Rota
Romana, com o Pró-Decano, Mons.
Maurice Monier; e o Colégio dos
Prelados Auditores do Tribunal da
Rota Romana.
O Papa Francisco recebeu em audiências particulares:
A 19 de janeiro
Os seguintes Prelados da Conferência Episcopal da Irlanda, em visita
«ad limina Apostolorum»: D. Eamon Martin, Arcebispo de Armagh;
D. Francis Duffy, Bispo de Ardagh;
D. Donal McKeown, Bispo de Derry; D. Noël Treanor, Bispo de Down
and Connor; D. John McAreavey,
Bispo de Dromore; D. Philip Leo
O’Reilly, Bispo de Kilmore; D. Michael Smith, Bispo de Meath; D.
Philip Boyce, Bispo de Raphoe; D.
Kieran O’Reilly, Arcebispo de
Cashel and Emly; D. William Crean,
Bispo de Cloyne; D. John Buckley,
Bispo de Cork and Ross; D. Raymond Browne, Bispo de Kerry; D.
Brendan Leahy, Bispo de Limerick,
com o Bispo Emérito D. Donal
Brendan Murray; D. Alphonsus Cullinan, Bispo de Waterford and Lismore; D. Diarmuid Martin, Arcebispo de Dublim, com os Auxiliares D.
Eamonn Oliver Walsh e D. Raymond W. Field; D. Denis Brennan,
Bispo de Ferns; D. Denis Nulty, Bispo de Kildare and Leighlin; D. Mi-
A 23 de janeiro
O Senhor Cardeal Stanisław Ryłko,
Arcipreste da Basílica Papal de Santa Maria Maior; D. Ghaleb Bader,
Núncio Apostólico no Paquistão; e
D. Lázaro You Heung-sik, Bispo de
Daejeon (Coreia).
Renúncias
O Santo Padre aceitou a renúncia:
No dia 23 de janeiro
De D. Antonios Aziz Mina ao governo pastoral da Eparquia de Guizé
dos Coptas (Egito).
Congregação para as causas dos santos
Promulgação de decretos
No dia 20 de janeiro, o Papa Francisco recebeu em audiência o Senhor Cardeal Angelo Amato,
S.D.B., prefeito da Congregação para as causas dos santos, durante a
qual o Sumo Pontífice autorizou a
Congregação a promulgar os decretos relativos:
— ao milagre, atribuído à intervenção do venerável servo de Deus
Arsénio de Trigolo (no século: José
Migliavacca), sacerdote professo da
ordem dos Frades menores capuchinhos, fundador da congregação
das irmãs de Maria Santíssima
Consoladora; nascido a 13 de junho
de 1849 e falecido no dia 10 de dezembro de 1909;
— às virtudes heroicas do servo
de Deus Raimundo Jardón Herrera, sacerdote diocesano; nascido no
dia 21 de janeiro de 1887 e falecido
a 6 de janeiro de 1934;
— às virtudes heroicas do servo
de Deus João Sáez Hurtado, sacerdote diocesano; nascido no dia 18
de dezembro de 1897 e falecido a 8
de agosto de 1982;
— às virtudes heroicas do servo
de Deus Inácio Beschin (no século:
José), sacerdote professo da ordem
dos Frades menores; nascido a 26
de agosto de 1880 e falecido no dia
29 de outubro de 1952;
— às virtudes heroicas do servo
de Deus José Wech Vandor, sacerdote professo da Sociedade salesiana de São João Bosco; nascido a
29 de outubro de 1909 e falecido
no dia 8 de outubro de 1979;
— às virtudes heroicas do servo
de Deus Francisco Convertini, sacerdote professo da Sociedade salesiana de São João Bosco; nascido a
29 de agosto de 1898 e falecido no
dia 11 de fevereiro de 1976;
— às virtudes heroicas da serva
de Deus Santina Maria das Dores
(no século: Maria Addolorata De
Pascali), fundadora da congregação
das irmãs Discípulas do Sagrado
Coração; nascida no dia 10 de junho de 1897 e falecida a 19 de maio
de 1981; e
— às virtudes heroicas do servo
de Deus João Tyranowski, leigo;
nascido no dia 9 de fevereiro de
1901 e falecido a 15 de março de
1947.
No dia 24 de janeiro
De Thomas Antony Vazhapilly ao
governo pastoral da Diocese de Mysore (Índia).
Nomeações
O Sumo Pontífice nomeou:
A 19 de janeiro
Legado para a celebração do XXV
Dia Mundial do Doente, que terá
lugar em Lourdes (França) a 11 de
fevereiro, o Senhor Cardeal Pietro
Parolin, Secretário de Estado.
A 20 de janeiro
Bispo da Diocese de Kerema (Papua-Nova Guiné), o Rev.do Pe. Pedro Baquero, S.D.B., até hoje Vigário
Provincial dos Salesianos de PapuaNova Guiné e Ilhas Salomão.
D. Pedro Baquero, S.D.B., nasceu
em Manila (Filipinas), no dia 15 de
setembro de 1970. Recebeu a Ordenação sacerdotal a 8 de dezembro de
1999.
A 21 de janeiro
Núncio Apostólico na Índia e no
Nepal, D. Giambattista Diquattro,
Arcebispo Titular de Giromonte, até
hoje Núncio Apostólico na Bolívia.
Núncio Apostólico no Uzbequistão,
D. Celestino Migliore, Arcebispo Titular de Canosa, atualmente Núncio
Apostólico na Federação Russa.
James T. Schuerman, ambos do clero da mesma Arquidiocese, até esta
data Reitor da Cathedral of Saint
John the Evangelist em Milwaukee,
o primeiro, e Pároco da Saint Francis de Sales Parish em Lake Geneva,
o segundo, simultânea e respetivamente eleitos Bispos Titulares de Tagamuta e de Girba.
D. Jeffrey R. Haines nasceu no dia
6 de outubro de 1958, em Milwaukee
(EUA). Foi ordenado Sacerdote a 17 de
maio de 1985.
D. James T. Schuerman nasceu em
Milwaukee (EUA) a 5 de abril de
1957. Recebeu a Ordenação sacerdotal
no dia 17 de maio de 1986.
Disposições especiais
O Papa confirmou:
No dia 24 de janeiro
A eleição canónica realizada sob a
norma do n. 130 dos Estatutos, nomeando Prelado da Prelatura Pessoal da Santa Cruz e Opus Dei, o
Rev.mo Mons. Fernando Ocáriz, até
hoje Vigário Auxiliar da mesma Prelatura.
Prelados falecidos
Adormeceram no Senhor:
A 20 de janeiro
A 23 de janeiro
D. José Luis Astigarraga Lizarralde,
ex-Vigário Apostólico de Yurimaguas (Peru).
Administrador Apostólico sede vacante da Eparquia de Guizé dos
Coptas (Egito), Sua Beatitude D.
Ibrahim Isaac Sedrak, atualmente
Patriarca de Alexandria dos Coptas.
O saudoso Prelado nasceu em Azcoitia (Espanha), a 4 de maio de 1940.
Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia
1 de fevereiro de 1964. Foi ordenado
Bispo em 29 de fevereiro de 1992.
Auxiliar de San Antonio (EUA), o
Rev.mo Mons. Michael J. Boulette,
do clero da mesma Arquidiocese, até
agora Diretor do centro espiritual
«Saint Peter upon the Water» em
Ingram, simultaneamente eleito Bispo Titular de Geron.
A 21 de janeiro
D. Michael J. Boulette nasceu a 4
de junho de 1950, em Hudson Falls
(EUA). Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 19 de março de 1976.
A 24 de janeiro
D. Francesco Saverio Salerno, ex-Secretário do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica.
O ilustre Prelado nasceu em Caserta
(Itália), no dia 27 de agosto de 1928.
Foi ordenado Sacerdote a 16 de março
de 1952. Recebeu a Ordenação episcopal em 6 de janeiro de 1998.
D. José de Jesús Madera Uribe, exAuxiliar do Ordinariato Militar dos
Estados Unidos da América.
Auxiliar da Arquidiocese de Bamenda (Camarões), o Rev.do Pe. Michael
Miabesue Bibi, até esta data Secretário Chanceler da mesma Arquidiocese, simultaneamente eleito Bispo Titular de Amudarsa.
O venerando Prelado nasceu em San
Francisco (EUA), no dia 27 de novembro de 1927. Recebeu a Ordenação sacerdotal a 15 de junho de 1957. Foi ordenado Bispo em 4 de março de 1980.
D. Michael Miabesue Bibi nasceu a
28 de julho de 1971, em Bamessing
(Camarões). Foi ordenado Sacerdote no
dia 26 de abril de 2000.
D. Pietro Bottacioli, Bispo Emérito
de Gubbio (Itália).
A 24 de janeiro
Bispo de Mysore (Índia), o Rev.do
Pe. Kannikadass William Antony, do
clero de Mysore, Pároco de Saint Joseph’s Church e porta-voz (Public
Relation Officer) da mesma Diocese.
D. Kannikadass William Antony
nasceu a 27 de fevereiro de 1965, em
Polibeta (Índia). Recebeu a Ordenação
sacerdotal em 18 de maio de 1993.
Auxiliares de Milwaukee (EUA), os
Rev.dos Padres Jeffrey R. Haines e
A 22 de janeiro
O saudoso Bispo nasceu no dia 15
de fevereiro de 1928, em Umbertide
(Itália). Foi ordenado Sacerdote a 1 de
outubro de 1950. Recebeu a Ordenação
episcopal em 16 de maio de 1989.
Igrejas Católicas
O rientais
O Sínodo dos Bispos da Igreja Arquiepiscopal-Mor
Sírio-Malancar
aceitou a renúncia ao governo pastoral da Eparquia de Puthur (Índia),
apresentada por D. Geevarghese
Mar Divannasios Ottathengil.
L’OSSERVATORE ROMANO
página 16
quinta-feira 26 de janeiro de 2017, número 4
Stacy Tompkins, «Judite mata Holofernes»
Na audiência geral o Papa falou da figura de Judite
A coragem
das mulheres
Mulher «de grande beleza e sabedoria», mas sobretudo de «coragem», Judite fala com «a
força de um profeta», indicando aos homens «o caminho da confiança» em Deus, frisou o
Papa Francisco durante a audiência de quarta-feira 25 de janeiro, na sala Paulo VI,
dedicando a catequese à figura bíblica que «dá nova força ao seu povo em perigo mortal,
conduzindo-o pelos caminhos da esperança». Eis a reflexão do Sumo Pontífice.
Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
Entre as figuras femininas que o Antigo
Testamento nos apresenta, sobressai a de
uma grande heroína do povo: Judite. O
Livro bíblico que tem o seu nome descreve a imponente campanha militar do rei
Nabucodonosor que, reinando em Nínive,
amplia os confins do império derrotando e
subjugando todos os povos ao seu redor.
O leitor entende que se encontra diante
de um inimigo grande e invencível, que
semeia morte e destruição, e chega até à
Terra Prometida, pondo em perigo a vida
dos filhos de Israel.
Com efeito, o exército de Nabucodonosor, sob a guia do general Holofernes, impõe o cerco a uma cidade da Judeia, Betúlia, interrompendo o fornecimento de
água, minando assim a resistência da população.
A situação torna-se dramática, a tal
ponto que os habitantes da cidade vão ter
com os anciãos para lhes pedir que se rendam aos inimigos. As suas palavras são
desesperadas: «Agora não há ninguém para nos socorrer, e Deus entregou-nos nas
mãos deles, para morrermos de sede, na
miséria extrema. Chegaram a dizer isto:
“Deus entregou-nos nas mãos deles”; o
desespero daquela gente era grande. Entregai toda a cidade em cativeiro ao povo
de Holofernes e a todo o seu exército» (Jt
7, 25-26). O fim já parece iniludível, esgotou-se a capacidade de se confiar a Deus.
E quantas vezes nós chegamos a situações
limite, quando nem sequer sentimos a capacidade de ter confiança no Senhor. É
uma tentação horrível! E, paradoxalmente,
parece que para fugir da morte não há outra coisa a fazer, a não ser entregar-se nas
mãos de quem mata. Sabem que estes soldados entrarão para saquear a cidade, raptar as mulheres como escravas e depois
matar todos os outros. É exatamente este
«o limite».
E diante de tanto desespero, o chefe do
povo procura propor um pretexto de esperança: resistir mais cinco dias, à espera
da intervenção salvífica de Deus. Mas é
uma esperança frágil, que o leva a concluir: «Mas se esses cinco dias passarem
sem que nos venha o socorro, então farei
segundo o que dizeis» (7, 25). Pobrezinho: estava sem saída. Concedem cinco
dias a Deus — e nisto consiste o pecado —
são concedidos cinco dias a Deus para intervir; cinco dias de espera, mas já na
perspetiva do fim. Concedem cinco dias a
Deus para os salvar, mas sabem que não
têm confiança, esperam o pior. Na realidade, no meio do povo já ninguém é capaz
de esperar. Estavam desesperados.
É nesta situação que Judite entra em cena. Viúva, mulher de grande beleza e sabedoria, fala ao povo com a linguagem da
fé. Corajosa, repreende o pov0 na cara
(dizendo): «Agora tentais o Senhor TodoPoderoso [...]. Não, irmãos, não provoqueis o Senhor nosso Deus! Se não quiser
ajudar-nos nestes cinco dias, Ele tem o
poder, nos dias que quiser, para nos ajudar ou então para nos exterminar diante
dos nossos inimigos. [...] Por isso, aguardando a salvação da sua parte, supliquemos-lhe que venha em nosso auxílio e Ele
escutará a nossa voz, se bem lhe aprouver» (8, 13.14-15.17). É a linguagem da esperança! Batamos à porta do Coração de
Deus, Ele é Pai e pode salvar-nos! Aquela
mulher, viúva, corre o risco de fazer má figura diante dos outros! Mas é corajosa,
vai em frente! Esta é a minha opinião: as
mulheres são mais corajosas do que os homens (aplausos na sala).
E com a força de um profeta, Judite repreende os homens do seu povo para os
reconduzir à confiança em Deus; com o
olhar de um profeta, ela vê mais além do
horizonte limitado proposto pelos chefes e
que o medo torna ainda mais restrito. Sem
dúvida Deus intervirá — afirma ela — enquanto a proposta dos cinco dias de espera é um modo para o tentar e para se subtrair à sua vontade. O Senhor é Deus de
salvação — e crê nisto — independentemente da forma que ela assuma. Libertarse dos inimigos e deixar viver é salvação,
mas nos seus planos insondáveis também
a entrega à morte pode ser salvação. Como mulher de fé, ela sabe isto. Depois,
conhecemos o fim, como termina a história: Deus salva.
Caros irmãos e irmãs, nunca coloquemos condições a Deus mas, ao contrário,
deixemos que a esperança vença os nossos
receios. Confiar em Deus quer dizer entrar
nos seus desígnios sem nada pretender,
aceitando inclusive que a sua salvação e o
seu auxílio cheguem a nós de modo diverso das nossas expetativas. Pedimos ao Senhor vida, saúde, afetos, felicidade; e é
justo fazê-lo, mas com a consciência de
que até da morte Deus sabe haurir vida,
que é possível experimentar a paz inclusive na doença e que até na solidão pode
haver serenidade, e bem-aventurança no
pranto. Não somos nós que podemos ensinar a Deus o que Ele deve fazer, aquilo
de que temos necessidade. Ele sabe-o me-
lhor do que nós e devemos ter confiança
porque os seus caminhos e os seus pensamentos são diferentes dos nossos.
A senda que Judite nos indica é a via
da confiança, da espera na paz, da oração
e da obediência. É o caminho da esperança. Sem fáceis resignações, fazendo tudo o
que está ao nosso alcance, mas permanecendo sempre no sulco da vontade do Senhor, porque — bem sabemos — ela rezou
muito, falou tanto ao povo e depois partiu
com coragem para procurar o modo de se
aproximar do chefe do exército e conseguiu cortar-lhe a cabeça, degolá-lo. É intrépida na fé e nas obras. E procura sempre o Senhor! Com efeito, Judite tem um
plano, coloca-o em prática com sucesso e
leva o povo à vitória, mas sempre com a
atitude de fé de quem aceita tudo das
mãos de Deus, convicta da sua bondade.
Deste modo, uma mulher cheia de fé e
de coragem dá nova força ao seu povo em
perigo mortal e leva-o pelos caminhos da
esperança, apontando-o também a nós.
Quanto a nós, se tivermos um pouco de
memória, quantas vezes ouvimos palavras
sábias e corajosas de pessoas humildes, de
mulheres simples que na opinião de alguns — sem as desprezar — eram ignorantes... Mas são palavras da sabedoria de
Deus! As palavras das avós... Quantas vezes as avós sabem pronunciar a palavra
certa, uma palavra de esperança, porque
têm a experiência da vida, sofreram muito,
confiaram em Deus e o Senhor concedenos a graça de nos dar o conselho da esperança. E, percorrendo estes caminhos,
será alegria e luz pascal confiar-nos ao Senhor com as palavras de Jesus: «Pai, se é
do teu agrado, afasta de mim este cálice!
Contudo, não se faça a minha vontade,
mas a tua» (Lc 22, 42). Esta é a prece da
sabedoria, da confiança e da esperança.
No final o Santo Padre proferiu ainda, entre
outras, as seguintes saudações.
Dirijo uma cordial saudação aos peregrinos de língua portuguesa, especialmente a
quantos vieram do Brasil, convidando todos a permanecer fiéis a Cristo Jesus. Ele
desafia-nos a sair do nosso mundo limitado e estreito para o Reino de Deus e a
verdadeira liberdade. O Espírito Santo
vos ilumine para poderdes levar a Bênção
de Deus a todos os homens. A Virgem
Mãe vele sobre o vosso caminho e vos
proteja!
Enfim dirijo um pensamento especial
aos jovens, aos doentes e aos recém-casados. Hoje celebramos a Festa da Conversão de São Paulo. Amados jovens, a figura
de Paulo seja para todos vós modelo do
discipulado missionário. Prezados doentes, oferecei as vossas esperanças pela causa da unidade da Igreja de Cristo. E vós,
diletos recém-casados, inspirai-vos no
exemplo do Apóstolo das nações, reconhecendo na vossa vida familiar o primado de Deus e do amor.