L`O S S E RVATOR E ROMANO

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L`O S S E RVATOR E ROMANO
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L’OSSERVATORE ROMANO
EDIÇÃO SEMANAL
Unicuique suum
EM PORTUGUÊS
Non praevalebunt
Cidade do Vaticano
Ano XLVIII, número 5 (2.450)
quinta-feira 2 de fevereiro de 2017
Aos consagrados Francisco pediu que valorizem a vida fraterna em comunidade
Dizer não
à cultura do provisório
«Imergidos na chamada cultura do
fragmento, do provisório, que pode
levar a viver “à la carte” e a ser escravos das modas», a vida consagrada está a sofrer uma “hemorragia”
«que enfraquece a própria Igreja».
Por isso, é necessário valorizar a vida fraterna em comunidade, oferecendo ao mundo um testemunho de
«esperança e alegria». Eis quanto recomendou o Papa Francisco à plenária da Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica, recebida na
manhã de 28 de janeiro.
O Pontífice enumerou os «fatores
que influenciam a fidelidade nesta
mudança de época, em que resulta
difícil assumir compromissos sérios e
definitivos». O primeiro fator é o
contexto social hodierno marcado
pela «cultura do provisório», a qual
«induz à necessidade de ter sempre
algumas “portas laterais” abertas sobre outras possibilidades». Além disso «vivemos em sociedades onde as
regras económicas substituem as morais, ditam leis e impõem sistemas
de referências»; sociedades onde reina «a ditadura do dinheiro».
O segundo elemento diz respeito
«ao mundo juvenil» considerado
«não negativo», mas contudo «complexo, rico e desafiador. O terceiro
fator indicado «provém da própria
vida consagrada, onde além de tamanha santidade, não faltam situações de contra testemunho». Entre
elas «a rotina, o cansaço, as divisões
internas, a busca de poder — os arrivistas — um serviço da autoridade
que por vezes se torna autoritarismo
e, outras vezes, um “deixar fazer”».
Mas o Papa sugeriu também um itinerário centrado na esperança e na
alegria, remarcando enfim a importância inclusive do acompanhamento.
PÁGINAS 6
E
Na audiência geral dedicada à esperança o apelo do Papa
Depois das ordens executivas do presidente norte-americano
Responder
ao grito da terra e dos pobres
Fechamento não é progresso
Um apelo angustiado «a fim de que
as Igrejas locais respondam com determinação ao grito da terra e dos
pobres» foi lançado pelo Papa
Francisco no final da audiência geral de quarta-feira 1 de fevereiro.
Saudando como de costume os grupos linguísticos presentes na Sala
Paulo VI, o Pontífice dirigiu-se em
particular à delegação do Movimento católico mundial pelo clima,
agradecendo «o compromisso a cuidar da casa comum nestes tempos
de grave crise socioambiental».
Precedentemente, dando prosseguimento às reflexões sobre a esperança cristã à luz das leituras bíblicas, Francisco comentou o trecho
da primeira carta de São Paulo aos
Tessalonicenses (5, 4-11) sobre o tema da morte, para reafirmar com vigor que «também a nossa ressurreição e a dos nossos saudosos entes
queridos não é algo que poderá verificar-se ou não, mas é uma reali-
GIUSEPPE FIORENTINO
Sharon Cummings, «Hope» (detalhe)
dade certa, enquanto radicada» na
ressurreição de Cristo. Em síntese, o
cristão tem «a certeza» de estar «a
caminho rumo a algo que existe».
PÁGINA 12
A resistência não violenta
Comissão mista internacional
Mais fortes
que as armas
O caminho
dos mártires
ANTONELLA LUMINI
NA PÁGINA
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PÁGINA 3
Estão perfeitamente em sintonia
com as promessas feitas durante a
campanha eleitoral as ordens executivas que Donald Trump assinou
imediatamente depois de ter assumido a presidência dos Estados
Unidos. Do muro na fronteira com
o México fez o seu cavalo de batalha nos meses que precederam a vitória contra Hillary Clinton. E também a promessa de limitar a imigração dos países de maioria islâmica
foi um dos pontos fulcrais do seu
programa.
Muitos tinham considerado as
suas propostas irrealizáveis ou classificaram-nas como exageros típicos
do clima pré-eleitoral. E talvez também por esta razão todas as sondagens, sem exceção alguma, tinham
prognosticado até ao último dia a
vitória de Hillary Clinton na corrida para a Casa Branca. Ao contrário, quem venceu foi Trump. Mas
não devemos pensar que o seu
triunfo é devido aos projetos de fechamento. O candidato republicano
pôde entrar na sala oval porque
soube ocupar um espaço que a classe política de Washington — não
por acaso indicada por Trump como o inimigo número um — não
conseguiu aproveitar. Ou seja, elaborou um programa cujo ponto deveras significativo é a retomada da
produção industrial no território
7
norte-americano, como resposta ao
empobrecimento causado pela globalização.
Contudo, só uma análise muito
superficial pode fazer pensar que a
luta contra as distorções de uma
globalização mal gerida caminhe de
mãos dadas com o fechamento das
fronteiras ou com a construção de
muros cada vez mais altos. É a própria história dos Estados Unidos
que demonstra tudo isto, tendo
construído o seu poder económico,
e por conseguinte a sua influência
política, graças ao trabalho dos imigrantes. Que, ademais, ainda são
um recurso precioso, como testemunham as reações de muitas personalidades de primeiro plano do novo
capitalismo «com estrelas e riscas»
face à decisão de limitar a imigração.
De Tim Cook de Apple (Steve
Jobs era de origem síria) a Mark
Zuckerberg de Facebook, o distanciamento da iniciativa de Trump foi
unânime. Mas se não é uma surpresa que o silicon valley da Califórnia
pós-hippie esteja por sua natureza
distante do novo presidente, certamente é inédita a atitude dos gigantes das finanças como Goldman Sachs, que conta com a presença de
algumas figuras mais proeminentes
no seio da nova administração. Não
obstante tudo, uma mensagem foi
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L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 2 de fevereiro de 2017, número 5
A cena do martírio
LUCETTA SCARAFFIA
filme de Scorsese está a suscitar amplos debates, dentro
e fora do mundo católico,
precisamente pela riqueza dos temas
que trata. Refere-se ao Japão do século XVII, mas também ao hoje, época de perseguição dos cristãos por
causa da sua fé, e propõe uma série
de perguntas às quais há muito tempo já não estávamos acostumados a
responder.
Certamente a primeira é a crucial:
tem sentido morrer por Deus? Hoje
como outrora esta questão abala
profundamente o sentido da fé e o
valor que atribuímos à vida, a cobardia e a coragem, a esperança e o desespero. A resposta dos camponeses
japoneses sugere que é mais fácil ter
a coragem de morrer — se sabemos
que vamos para o paraíso, onde estaremos muito melhor que no mundo em que vivemos — para quem vive neste mundo em situações de
opressão e de dificuldades extremas.
O
Debate sobre «Silence»
Grandes questões
esquecidas
Esta pergunta faz surgir outra:
existe ainda algo nas nossas sociedades pelo qual se está disposto a morrer? Na realidade, pensamos que já
não há nada pelo qual vale a pena
oferecer a vida, aliás, não ousamos
nem sequer formular a questão.
Contudo, este não é o único so-
Em nome do Papa
Missão em Alepo
Em nome do Papa Francisco, de 18
a 23 de janeiro, o secretário delegado do dicastério para o serviço do
desenvolvimento humano integral,
monsenhor Giampietro Dal Toso,
fez uma visita a Alepo, juntamente
com o cardeal Mario Zenari, núncio apostólico na Síria, e com o
conselheiro da nunciatura, monsenhor Thomas Habib. Tratou-se da
primeira visita oficial por parte de
representantes da Santa Sé depois
do fim das hostilidades em Alepo.
A delegação pôde encontrar-se
com as comunidades cristãs e com
os seus pastores, que expressaram
gratidão ao Pontífice pela sua solicitude constante para com a amada
Síria. Além disso, visitou as instituições de caridade católica e alguns campos de refugiados. Em
particular, foi criado um centro de
assistência humanitária gerido pela
Caritas Alepo no bairro de Hanano. Durante a missão teve lugar
um momento de oração ecuménico
organizado por ocasião da semana
para a unidade dos cristãos e foram supervisionadas as condições
de algumas estruturas hospitalares
católicas, à luz de um futuro projeto de reconstrução e implementa-
ção das mesmas. Além disso, houve
encontros com os representantes do
islão, durante os quais foi sublinhada a responsabilidade das religiões na educação para a paz e a
reconciliação. Durante a visita, as
autoridades civis e religiosas homenagearam a delegação, manifestando um agradecimento especial pelo
gesto do Papa de elevar à dignidade cardinalícia o representante
pontifício no país e reconhecendo
nisto a proximidade particular de
Francisco à martirizada população
da Síria.
Por fim, durante os encontros
com os organismos de caridade católicos sobressaiu a importância da
assistência proporcionada por eles
em benefício de toda a população
síria. Com o apoio da Igreja universal e graças ao contributo generoso da comunidade internacional,
esta ajuda poderá intensificar-se no
futuro para fazer frente às crescentes necessidades das pessoas. Entre
as urgências imediatas, devem ser
assinaladas as relativas às necessidades alimentares, ao vestuário, à
educação, à assistência no campo
da saúde e aos alojamentos.
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GIOVANNI MARIA VIAN
diretor
Giuseppe Fiorentino
vice-diretor
Cidade do Vaticano
[email protected]
www.osservatoreromano.va
Redação
via del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano
telefone +390669899420
fax +390669883675
traição? A questão num certo sentido permanece aberta, mas a fidelidade de Rodrigues a Jesus é testemunhada pelo pequeno crucifixo que a
esposa japonesa lhe põe nas mãos
depois da morte. Uma sepultura budista, mas nas mãos o óbolo para o
paraíso cristão...
O tema da traição e do perdão
permanece subentendido em todas
as vicissitudes, representado pelo japonês cobarde e traidor que contudo, com o seu insistente pedido de
perdão, restitui ao jesuíta Rodrigues
o papel sacerdotal, e que no final
morre como mártir.
Mas a questão que mais intrigou
os comentadores leigos — em primeiro lugar o filósofo Roberto Esposito
— foi o silêncio de Deus, do qual o
romance e depois o filme assumiram
o nome. O silêncio de Deus que esteve no centro das reflexões e da experiência de místicos e filósofos, e
que se apresentou como questão
dramaticamente atual depois da tragédia do Shoah.
Uma resposta possível, sugerida
pelo filósofo, é que este eclipse de
Deus no momento mais dramático
deixaria o homem livre para decidir
e, por conseguinte, também para
descobrir que as diferenças religiosas
não têm valor algum, portanto a
apostasia não seria pecado. Esta in-
bressalto que o filme provoca na
consciência do espectador: ele propõe outras três questões graves.
Uma relativa às possibilidades de inculturação da fé cristã: os camponeses japoneses que sofrem sob as terríveis perseguições são deveras cristãos ou construíram uma religião
sincretista, na qual acreditam cegamente mas que no final tem pouco a
ver com a tradição cristã? Nunca o
saberemos, mas a pergunta paira sobre toda a vicissitude, pondo em crise o projeto de evangelização dos jesuítas desde o início.
A resposta de
Ferreira a esta pergunta é negativa:
os cristãos japoneO filme de Scorsese está a suscitar
ses não são verdaamplos debates
deiros cristãos, toda a obra de conRefere-se ao Japão do século XVII
versão na qual
mas também ao hoje, época de perseguição
muitos se comprometeram, até perdos cristãos por causa da sua fé
dendo a vida, foi
e propõe uma série de perguntas às quais
uma falência. E
nisto encontra a
há muito tempo já não estávamos
justificação da sua
acostumados a responder
apostasia. Contudo, na raiz da
apostasia dos dois
jesuítas
insere-se
outra razão: o sofrimento que a sua terpretação deixou-me muito perplerejeição causava a alguns campone- xa: no filme de Scorsese a contínua
ses inermes. Um cristão é senhor de referência à paixão de Cristo — desdoar a sua vida, mas não a do outro. de o Getsémani até ao brado de JeE é através deste intercâmbio de sus na cruz — sugere que o caminho
destino que os japoneses conseguem da apostasia para salvar os outros é
provocar a rendição dos dois missio- uma via de amor semelhante a do
nários. Mas aceitar que se renegue o crucificado.
cristianismo para salvar outros de
A complexidade da questão, ou
torturas horríveis, para crentes ver- melhor dizendo das questões, que o
dadeiros significa perder a própria filme propõe constituem o centro do
alma: tem sentido danar a alma pe- seu interesse e desempenham sem
los outros? Porventura não é este o dúvida uma função de despertador
supremo sacrifício que Cristo pede de consciências adormecidas. E, por
aos dois jesuítas? Este não é o ato conseguinte, razão principal do intede caridade suprema, e não uma resse e do debate que está a suscitar.
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número 5, quinta-feira 2 de fevereiro de 2017
L’OSSERVATORE ROMANO
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Francisco recordou os cristãos perseguidos e condenou o extremismo fundamentalista
O caminho dos mártires
Nas regiões ensanguentadas pela
violência e pelo fundamentalismo o
caminho do ecumenismo é indicado
pelos mártires, sublinhou o Papa
Francisco no discurso dirigido aos
membros da Comissão mista
internacional para o diálogo teológico
entre a Igreja católica e as Igrejas
ortodoxas orientais, recebidos na
manhã de sexta-feira, 27 de janeiro,
na Sala Clementina.
mente exprime e realiza a unidade
do povo de Deus (Conc. Ecum. Vat.
Cost. Lumen gentium, 11). Ao encorajar-vos a prosseguir, acalento a
esperança de que a vossa obra possa
indicar sendas preciosas ao nosso
percurso, facilitando o caminho rumo àquele dia tão esperado em que
teremos a graça de celebrar o Sacrifício do Senhor no mesmo altar, como sinal da comunhão eclesial plenamente restabelecida.
II,
Queridos irmãos em Cristo!
Ao dar-vos as jubilosas boas-vindas,
agradeço-vos a vossa presença e as
gentis palavras que o Metropolita
Bishoy me dirigiu em nome de todos. Agradeço também o bonito ícone, tão significativo, do sangue de
Cristo, que nos revela a redenção do
ventre de Nossa Senhora. Muito bonita! Através de vós, dirijo uma cordial saudação aos Chefes das Igrejas
Ortodoxas Orientais, meus venerados irmãos.
Olho com gratidão para o trabalho da vossa Comissão, fundada em
2003 e que chegou ao décimo quarto
encontro. No ano passado iniciastes
um aprofundamento sobre a natureza dos Sacramentos, em particular
do Batismo. Precisamente no Batismo redescobrimos o fundamento da
comunhão entre os cristãos; Católicos e Ortodoxos Orientais podemos
repetir quanto afirmava o Apóstolo
Paulo «Em um só Espírito fomos
batizados todos nós» e pertencemos
a «um só corpo» (1 Cor 12, 13). Ao
longo desta semana pudestes refletir
ulteriormente sobre aspetos históricos, teológicos e eclesiológicos da
santa Eucaristia, «fonte e centro de
toda a vida cristã», que admiravel-
Muitos de vós pertencem a Igrejas
que assistem quotidianamente ao
alastrar-se da violência e a ações terríveis, perpetradas pelo extremismo
fundamentalista. Estamos cientes de
que situações de sofrimento tão trágico se radicam mais facilmente em
contextos de pobreza, injustiça e exclusão social, causadas também pela
instabilidade gerada por interesses
particulares, muitas vezes externos, e
por conflitos precedentes, que produziram condições de vida miseráveis, desertos culturais e espirituais
nos quais é fácil manipular e instigar
ao ódio. Todos os dias as vossas
Igrejas estão próximas do sofrimen-
to, chamadas a semear concórdia e a
reconstruir pacientemente a esperança, confortando com a paz que vem
do Senhor, uma paz que juntos devemos oferecer a um mundo ferido e
dilacerado.
«Se um membro sofre, todos os
membros padecem com ele», escrevia ainda são Paulo (1 Cor 12, 26).
Estes vossos sofrimentos são os nossos sofrimentos. Uno-me a vós na
oração, invocando o
fim dos conflitos e a
proximidade de Deus
às populações profundamente
desgastadas,
especialmente as crianças, os doentes e os
idosos. Sobretudo tenho a peito os bispos,
os sacerdotes, os consagrados e os fiéis, vítimas
de
sequestros
cruéis, e todos aqueles
que foram feitos reféns
ou reduzidos à escravidão.
Possam ser de grande apoio às comunidades cristãs a intercessão e o
exemplo de muitos nossos mártires e
santos, eles que deram corajosamente testemunho a Cristo e alcançaram
a unidade plena. E nós o que esperamos? Eles revelam-nos o âmago da
nossa fé, que não consiste numa genérica mensagem de paz e reconciliação, mas no próprio Jesus, crucificado e ressuscitado: Ele é a nossa
paz e a nossa reconciliação (cf. Ef 2,
14; 2 Cor 5, 18). Como seus discípulos, somos chamados a testemunhar
em toda a parte, com vigor cristão, o
seu amor humilde que reconcilia o
homem de todos os tempos. Ali on-
de violência chama violência e violência semeia morte, a nossa resposta
é o fermento puro do Evangelho
que, sem ceder às lógicas da força,
faz brotar frutos de vida também da
terra árida e alvoradas de esperança
depois das noites de terror.
O centro da vida cristã, o mistério
de Jesus morto e ressuscitado por
amor, é o ponto de referência também para o nosso caminho rumo à
unidade plena. Os mártires, mais
uma vez, indicam-nos o caminho:
quantas vezes o sacrifício da vida levou os cristãos, aliás divididos sobre
muitas questões, a estar unidos.
Mártires e santos de todas as tradições eclesiais já são em Cristo um só
(cf. Jo 17, 22); os seus nomes estão
escritos no único e indiviso martirológio da Igreja de Deus. Tendo-se
sacrificado por amor na terra, habitam a única Jerusalém celeste, próximos do Cordeiro imolado (cf. Ap 7,
13-17). A sua vida oferecida em dom
apela-nos para a comunhão, a percorrer mais rapidamente o caminho
rumo à unidade plena. Assim como
na Igreja primitiva o sangue dos
mártires foi semente de novos cristãos, também hoje o sangue de numerosos mártires seja semente de
unidade entre os crentes, sinal e instrumento de um porvir em comunhão e em paz.
Queridos irmãos, estou-vos grato
porque trabalhais para este objetivo.
Ao agradecer-vos a vossa visita, invoco sobre vós e sobre o vosso ministério a bênção do Senhor e a proteção da Santa Mãe de Deus.
E se vos parece bom, cada um na
própria língua, podemos rezar o PaiNosso juntos.
Mensagem do Santo Padre aos participantes
Milhares de americanos participaram
recentemente em Washington na
«March for life», encontro tradicional, nascido em 1974, promovido pelos movimentos e organizações próvida com o apoio da Conferência
episcopal americana. O evento foi
realizado na capital federal no aniversário da sentença «Roe vs Wade», com a qual a 22 de janeiro de
1973 o supremo tribunal legalizou a
interrupção da gravidez. Aos partici-
Em Washington na marcha pela vida
pantes na quadragésima quarta edição, o Papa Francisco ofereceu o seu
«caloroso» apoio. Numa mensagem
assinada pelo cardeal secretário de
Estado, Pietro Parolin, e enviada ao
núncio apostólico nos Estados Unidos, D. Christoph Pierre, o Santo
Padre afirmou: «É tão grande o valor de uma vida humana e é tão inalienável o direito à vida da criança
inocente que cresce no ventre materno, que de modo algum é possível
apresentar como um direito sobre o
próprio corpo a faculdade de tomar
decisões em relação a tal vida, que é
um fim em si mesma, e que nunca
pode ser objeto de domínio por parte de outro ser humano». Além disso, o Papa Francisco disse que «espera que este evento, no qual muitos
Fechamento não é progresso
CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 1
enviada a todos os funcionários para sublinhar que o instituto «não
apoia estas políticas».
Essas tomadas de posição explicam-se com a simples constatação
que fechar as portas aos migrantes
significa privar o país de recursos
potencialmente muito importantes.
E é necessário recordar que a iniciativa do presidente diz respeito às
pessoas provenientes de sete países
considerados de risco em termos de
terrorismo, com exclusão daqueles
que mantêm relações económicas
mais estreitas com os Estados Unidos.
Certamente, ainda é muito cedo
para falar de um Trump isolado, e
o próprio presidente — segundo o
qual o bloqueio parcial do aeroporto de Nova Iorque não é devido
aos protestos, mas a um problema
relativo ao sistema da Delta Airlines — apressou-se a afirmar que a
maioria dos norte-americanos está
do seu lado. Mas, sem dúvida,
Trump deverá ter em consideração
as reações da sociedade civil, provenientes inclusive da parte católica,
em relação a uma iniciativa que não
só pode revelar-se prejudicial para a
esfera económica, mas que, no que
concerne à recusa do acolhimento
dos refugiados, parece realmente ir
contra a tradição norte-americana
de tutela dos direitos humanos.
Duríssimas também as reprovações do âmbito político internacional relativamente às ordens executivas do presidente. Da Onu à Ue o
coro foi unânime. Mas num mundo
que tolera a perseguição dos cristãos no Médio Oriente, a tragédia
dos rohingya ou os arames farpados
no centro da Europa realmente ninguém se pode considerar inocente.
cidadãos americanos manifestam a
favor dos nossos irmãos e irmãs mais
indefesos, possa contribuir para uma
mobilização das consciências em defesa da vida e para medidas eficazes
que garantam a sua adequada proteção jurídica».
Na marcha de Washington, caracterizada por numerosos cartazes que
convidavam a «pôr fim à prática do
aborto» e «a escolher a vida» participaram diversas autoridades políticas. Como nos anos anteriores, a
manifestação foi precedida por uma
novena de oração e de arrependimento e por uma vigília noturna no
santuário da Imaculada Conceição,
que prosseguiu na cripta com as
confissões, a recitação do terço, a
oração noturna e a ostensão do Santíssimo Sacramento.
A vigília e a marcha pela vida são
consideradas pela Igreja nos Estados
Unidos o momento culminante da
novena de oração e penitência que
nesses dias envolveu milhares de
fiéis de todas as dioceses do país.
No decorrer dos anos o número
de adesão à marcha pela vida cresceu progressivamente chegando a
contar, por exemplo em 2010, cerca
de 300.000 presenças.
L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 2 de fevereiro de 2017, número 5
A resistência não violenta de Dietrich Bonhoeffer, Edith Stein e Jerzy Popiełuszko
Mais fortes que as armas
ANTONELLA LUMINI
oje, na era do mundo
global, dispomos dos
instrumentos para conhecer o que acontece até longe de
nós: guerras, genocídios, povos em
fuga e perseguições. No entanto,
muitas vezes tudo isto acontece no
silêncio ou na indiferença do mundo. Também no presente, como no
passado, muitos preferem não escolher, permanecendo à janela como
espetadores que assistem a um naufrágio»: são as palavras inquietadoras de Anselmo Palini, na conclusão
do seu livro Più forti delle armi. Dietrich Bonhoeffer, Edith Stein, Jerzy Popiełuszko (Roma, Editrice Ave, 2016,
346 páginas), com as quais formula
interrogações urgentes à nossa época.
Ainda nos questionamos como foi
possível que quantos sabiam o que
acontecia na Alemanha nazista nada
tenham feito. Infelizmente, a mesma
pergunta continua a ser válida inclusive nos nossos dias. Sabemos, vemos, assistimos ao vivo a destruições, execuções e violências de todos
os tipos, como se se tratasse de cenas de um filme, já habituados ao
horror das imagens, que praticamente já não conseguimos distinguir se
são reais ou virtuais, como se estivéssemos anestesiados. Dietrich Bonhoeffer e Edith Stein, vítimas do
regime nazista, Jerzy Popiełuszko,
vítima do regime comunista polaco
nos anos de Solidarność, de quem já
se falou abundantemente, interpelam
com força as consciências. Testemunham com a própria vida a possibilidade de atravessar a história permanecendo fiéis a si mesmos, sem se
deixar esmagar pelas turbulências do
engano, da violência e da opressão
mais horrível. «Resistentes não violentos, não responderam ao mal com
o mal, mas sim com palavras de verdade e com gestos de justiça». Pondo-se completamente em jogo, «até
à própria vida antepuseram o primado da consciência e a fidelidade aos
valores da paz e da liberdade». O
sentido da memória não consiste
apenas em chamar a atenção para
acontecimentos de uma época histórica ainda próxima, mas em despertar as consciências, muitas vezes entorpecidas diante da realidade. Através de uma reconstrução pontual
com base nos documentos, o autor
consegue realçar a vida destas três
grandes figuras, levando-as a sobressair como pontos de luz na obscuridade do tempo. O que os irmana é
a determinação a enfrentar a realidade, a arcar com o sofrimento do
mundo, encarnando até ao fundo
aquele amor que ultrapassa os limites humanos. Diz Bonhoeffer: «Não
se vencem as batalhas com as armas,
mas com Deus (...) inclusive quando
o caminho leva rumo à cruz». E afirma Edith Stein: «Quantos entendem
que tudo isto é a Cruz de Cristo deveriam assumi-la sobre si em nome
do próximo». Em 1938, quando se
desencadeiam as perseguições contra
os judeus e ganha terreno a ideologia da raça, o governo das Igrejas
oficiais convida todos os pastores a
fazer um juramento de fidelidade a
Hitler. Bonhoeffer toma uma posi-
«H
ção explícita: «A Igreja permaneceu
emudecida quando deveria ter gritado, porque o sangue dos inocentes
clamava aos céus». Ele prefere «analisar os grandes acontecimentos da
história universal a partir de baixo,
da perspetiva de quantos são excluídos (...) dos oprimidos, dos desprezados e, em síntese, de todos os sofredores».
Edith Stein
Sem dúvida, é difícil ler a história
enquanto a vivemos; é muito mais
fácil interpretá-la a posteriori, quando as causas amadureceram os seus
efeitos nefastos. Mas precisamente o
Evangelho exorta a acordar, a captar
os sinais do que acontece: «Hipócritas! Sabeis distinguir os aspetos do
céu e da terra; como, pois, não sabeis reconhecer o tempo presente?»
(Lc 12, 56). Também Edith Stein
sente imediatamente o perigo que o
nazismo representa não apenas para
o povo judeu, mas inclusive para o
povo alemão: «Quem transformará
esta culpa horrível numa bênção para ambas as estirpes? Só quem não
permitir que estas feridas abertas pelo ódio gerem mais ódio». Em 12 de
abril de 1933 escreve a Pio XI para
lhe pedir que não se cale, mas dali a
poucos meses será ratificada a Concordata entre o Vaticano e o governo
nazista. Pouco tempo depois o Papa
publicará a encíclica Mit brennender
Sorge (Com ardente preocupação) na
qual, embora não de modo explícito,
condena o nazismo. A Igreja ao contrário, como bem sabemos, toma a
clara posição de condenação dos regimes comunistas, assumindo uma
função dinâmica para a sua derrocada, sobretudo durante o pontificado
de João Paulo II. Jerzy
Popiełuszko, que desde
1982 celebrava missas
pela pátria em Varsóvia,
com grande afluência
de fiéis, principalmente
de operários, tornou-se
testemunha de uma
Igreja ao lado «de
quantos vivem desprovidos de liberdade e cujas consciências são violadas». Numa das numerosas homilias, afirma: «Não vendamos o
nosso ideal por um prato de lentilhas» e convida a esperar, dizendo
que a mudança depende «de todos nós, da
nossa solicitude pelos
nossos irmãos inocentes, prisioneiros, da nossa existência vivida cada dia na verdade».
Também hoje atravessamos um tempo de turbulências.
Desde o fim da segunda guerra
mundial, talvez pela primeira vez,
sentimos que regredimos, como se os
valores adquiridos com tanta dificuldade tivessem sido engolidos pela
fúria de um vento contrário que ao
mesmo tempo cancela até as ilusões,
deixando todos è mercê da ansiedade e do medo em relação ao futuro.
Revelam-se os enormes abusos da
injustiça, mas diante de contradições
insolúveis e do aniquilamento de povos ferozmente ofendidos na própria
dignidade, só podemos contar com a
consciência, com a finalidade de lhe
permitir recuar. A história não se detém, é como um rio em cheia; se não
se intervém, ele transborda. É necessário dar um passo atrás, enquanto
ainda há tempo. Renunciar a algo,
pôr-se em questão. Poder e abusos
considerados direitos adquiridos in-
quietam e interrogam. Todos somos
chamados a responder, como em Nínive. O Ocidente acostumou-se a
um teor excessivo, e por isso o próprio Papa Francisco exorta todos a
um novo estilo de vida. Se a população mundial tivesse que viver neste
nível, seriam necessários vários planetas Terra. Falta a medida, o abuso
é grande. «Resistência e capitulação», como para Bonhoeffer, exigem
firmeza nos valores e rendição do
ego. Para cada mulher e homem de
fé, não podem deixar de significar
rendição a Deus e à sua vontade,
que certamente não consiste em destruir para punir, mas em fazer com
que a humanidade se converta e
possa corrigir as graves consequências da injustiça. Se não se der um
passo atrás nem houver o arrependimento, cada confronto levará a um
conflito de interesses egoístas contrastantes, e as palavras tornar-se-ão
um cálculo torvo, cada vez mais cínico e cego. Enquanto não nos colocarmos em estado de rendição, seremos todos cúmplices de um sistema.
Só dando um passo atrás poderemos
encontrar a medida de uma relação
entre seres humanos, já sem máscaras, nus. A humanidade ocidental é
viciada, prisioneira de demasiadas
necessidades induzidas, decadente.
O espetro dos poderes fortes ocorre
quando o ego se arvora em ídolo, levando a crer que pode resolver as
contradições do mundo. A supremacia é o maior perigo e sobressai exatamente do sentido de máxima impotência, quando todos se deixam
arrebatar pelo medo e tendem a elevar quem grita mais alto, prometendo a resolução de todos os males. É
no momento de máxima cegueira
que a falsidade impera e seduz os
deserdados, levando-os a crer que na
terra nasceu um salvador, mas que
na verdade é apenas um vendedor
ambulante. Quando o perigo incumbe, «resistência e capitulação» tornam-se as únicas palavras que ainda
falam. Rendição a Deus e resistência
às seduções do engano, confiando-se
à luz do Espírito: é isto, como afirma Bonhoeffer, que «salvará a alma
das gerações vindouras».
Francisco recebeu uma delegação
do European Jewish Congress
No dia da memória das vítimas do Shoah, 27 de janeiro, o Papa recebeu em audiência uma delegação de
cinco membros da European Jewish Congress, acompanhados pelo salesiano Norbert Hofmann, secretário da
Comissão para as relações religiosas com o judaísmo
do Pontifício conselho para a promoção da unidade
dos cristãos. Numa entrevista concedida à Rádio Vaticano o religioso evidenciou que o encontro foi muito
significativo e demonstrou mais uma vez o diálogo fecundo que decorre entre católicos e judeus. De resto,
acrescentou Hofmann, o próprio Pontífice recordou
que a sua família, na Argentina, com frequência recebia
visitas dos judeus. Um hábito amistoso que depois ele
manteve. Durante a audiência o presidente do European Jewish Congress, Moshe Kantor, face ao aviltamento ético atual fez votos a fim de que sejam reforçados os valores partilhados por judeus e cristãos. Por
sua vez, o Papa disse que o dia da memória é uma comemoração importante para todos e não só para os judeus, a fim de que uma tragédia como a do Shoah
nunca mais se repita.
L’OSSERVATORE ROMANO
número 5, quinta-feira 2 de fevereiro de 2017
página 5
No Angelus o Santo Padre pediu
Solidariedade constante
e menos burocracia
«Às populações da Itália central que
ainda sofrem as consequências do
terramoto e das difíceis condições
atmosféricas» não devem faltar «o
apoio constante das instituições e a
solidariedade constante». Com este
apelo lançado no final do Angelus de
29 de janeiro o Papa Francisco
auspiciou que «qualquer tipo de
burocracia não faça esperar nem sofrer
ulteriormente» estas pessoas.
Precedentemente o Pontífice tinha
comentado para os fiéis presentes na
praça de São Pedro o Evangelho do
domingo, centrado sobre as bemaventuranças.
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
A liturgia deste domingo faz-nos
meditar sobre as Bem-Aventuranças
(cf. Mt 5, 1-12a), que abrem o grande
sermão chamado “da montanha”, a
“magna charta” do Novo Testamento. Jesus manifesta a vontade de
Deus de conduzir os homens à felicidade. Esta mensagem já estava
presente na pregação dos profetas:
Deus está próximo dos pobres e dos
oprimidos e liberta-os de quantos os
maltratam. Mas nesta sua pregação
Jesus segue um caminho particular:
começa com o termo «bem-aventurados», ou seja, felizes; prossegue com
a indicação da condição para ser tais;
e conclui fazendo uma promessa. O
motivo da bem-aventurança, ou seja,
da felicidade, não consiste na condição exigida — por exemplo, «pobres
em espírito», «aflitos», «famintos de
justiça», «perseguidos»... — mas na
promessa sucessiva, que deve ser
acolhida com fé como dom de Deus.
Parte-se da condição de mal-estar
para se abrir ao dom de Deus e aceder ao mundo novo, o «reino»
anunciado por Jesus. Este não é um
mecanismo automático, mas um caminho de vida na esteira do Senhor,
motivo pelo qual a realidade de malestar e de aflição é considerada numa perspetiva nova e experimentada
segundo a conversão que se realiza.
Não podemos ser bem-aventurados
se não nos convertermos, se não formos capazes de apreciar e viver os
dons de Deus.
Quero meditar sobre a primeira
bem-aventurança: «Bem-aventurados
os pobres em espírito, porque deles é o
Reino dos Céus» (v. 4). O pobre em
espírito é quem assumiu os sentimentos e as atitudes daqueles pobres
que na sua condição não se rebelam,
mas sabem ser humildes, dóceis, disponíveis à graça de Deus. A felicidade dos pobres — dos pobres em espírito — tem uma dúplice dimensão:
em relação aos bens e em relação a
Deus. Relativamente aos bens, aos
bens materiais, esta pobreza em espírito é sobriedade: não necessariamente renúncia, mas capacidade de
apreciar o essencial, de partilhar; capacidade de renovar todos os dias a
admiração pela bondade das coisas,
sem sucumbir à opacidade do consumo voraz. Quanto mais tenho,
mais quero; quanto mais tenho, mais
quero: esse é o consumo voraz. E isso mata a alma. E o homem ou a
mulher que faz isso, que tem essa
atitude “quanto mais tenho, mais
quero”, não é feliz e não alcançará a
felicidade. Em relação a Deus é louvor e reconhecimento que o mundo
é bênção e que na sua origem está o
amor criador do Pai. Mas é também
abertura a Ele, docilidade à sua senhoria: Ele é o Senhor, Ele é o
Grande, eu não sou grande porque
tenho muitas coisas! É Ele: Ele que
quis o mundo para todos os homens
e o quis para que os homens fossem
felizes.
O pobre em espírito é o cristão
que não confia em si mesmo, nas riquezas materiais, não se obstina nas
suas opiniões pessoais, mas escuta
com respeito e aceita de bom grado
as decisões de outros. Se nas nossas
comunidades existissem mais pobres
em espírito, haveria menos divisões,
contrastes e polémicas! A humildade, como a caridade, é uma virtude
essencial para a convivência nas comunidades cristãs. Os pobres, nesse
sentido evangélico, parecem-se com
aqueles que mantêm viva a meta do
Reino dos céus, fazendo entrever
que este é antecipado de forma germinal na comunidade fraterna, que à
posse privilegia a partilha. Gostaria
de sublinhar isto: à posse privilegiar
a partilha. Ter sempre o coração e as
mãos abertas (faz o gesto), não fechadas (faz o gesto). Quando o coração
está fechado (faz o gesto), é um coração apertado: nem sequer sabe como
amar. Quando o coração está aberto
(faz o gesto), se encaminha para a
senda do amor.
A Virgem Maria, modelo e primícia dos pobres em espírito, porque
totalmente dócil à vontade do Senhor, nos ajude a abandonar-nos a
O cardeal Turkson denunciou as discriminações sociais
A lepra
desafio ainda não vencido
«É demasiado cada novo caso de
lepra, é demasiada cada forma resídua de estigma causada por esta
doença, é demasiada toda a lei
que discrimina os doentes e qualquer forma de indiferença». O
cardeal Peter Kodwo Appiah
Turkson, prefeito do Dicastério
para o serviço do desenvolvimento humano integral, não usou eufemismos na mensagem para o sexagésimo quarto Dia mundial de
luta contra a lepra, que se celebrou no domingo 29 de janeiro.
Eloquente o tema escolhido para
2017: «Erradicação da lepra e
reinserção das pessoas atingidas
pela hanseníase: um desafio ainda
não vencido».
«A pesquisa de terapias farmacológicas eficazes — escreveu o
cardeal — e o forte compromisso a
nível planetário difundido por
muitos organismos e realidades
nacionais e internacionais, com a
Igreja católica em primeira linha», permitiram realizar importantes progressos na luta contra a
lepra. «Mas ainda há muitíssimo
a fazer», relevou o purpurado.
Antes de tudo, «devemos comprometer-nos a todos os níveis
para que em todos os países sejam modificadas as políticas familiares, trabalhistas, escolares, desportivas e de qualquer outro tipo
que discriminam direta ou indiretamente estas pessoas». Os governos devem «elaborar planos exequíveis que envolvam as pessoas
doentes».
Além disso — observou o cardeal Turkson na mensagem — «é
fundamental reforçar a pesquisa
científica para descobrir novos remédios e obter melhores instrumentos diagnósticos, que aumentem as possibilidades de diagnose
precoce». De facto, em grande
parte «os novos casos só são
identificados quando a infeção já
provocou lesões permanentes».
Infelizmente, reconheceu, «nas
áreas mais remotas é difícil garantir a assistência necessária para
prosseguir o tratamento».
Depois, há a grave questão da
reinserção «total» da «pessoa curada no tecido social originário:
na família, na comunidade, na escola e no ambiente de trabalho».
E «nos dias de hoje, talvez este
seja o maior obstáculo a superar
para quem foi marcado pela hanseníase e para quem trabalha a
seu favor: as deficiências, os sinais
inconfundíveis
deixados
pela
doença ainda são semelhantes a
marcas de fogo». O medo — denunciou o cardeal — com muita
frequência predomina «sobre a
razão e a falta de conhecimento
da patologia por parte da comunidade que exclui as pessoas saradas que, por sua vez, devido ao
sofrimento e às discriminações,
perderam o sentido da dignidade
que lhe é própria, inalienável inclusive se o corpo apresenta mutilações».
Deus, rico em misericórdia, a fim de
que nos enche dos seus dons, especialmente da abundância do seu perdão.
No final da prece mariana o Papa
recordou entre outras coisas o dia
mundial dos doentes de lepra e saudou
os jovens da Ação católica e os grupos
presentes.
Queridos irmãos e irmãs!
Como vedes, chegaram os invasores... estão aqui! Celebra-se hoje o
Dia mundial dos doentes de lepra.
Esta doença, apesar do seu declínio,
ainda está entre as mais temidas e
atinge os mais pobres e marginalizados. É importante lutar contra esta
enfermidade, mas também contra as
discriminações que gera. Encorajo
quantos estão comprometidos no socorro e na reinserção social de pessoas atingidas pelo mal de Hansen,
às quais garantimos a nossa oração.
Saúdo com afeto todos vós, que
viestes de diversas paróquias da Itália e de outros países, assim como as
associações e os grupos. Saúdo em
particular os estudantes de Murcia e
Badajoz, os jovens de Bilbao e os
fiéis de Castellón. Saúdo os peregrinos de Reggio Calabria, Castelliri, e
o grupo siciliano da Associação Nacional de Pais. Gostaria também de
renovar a minha proximidade às populações da Itália Central que ainda
sofrem as consequências do terramoto e das difíceis condições atmosféricas. E por favor, que nenhum tipo
de burocracia os faça esperar e sofrer
ulteriormente!
Agora dirijo-me a vós, aos jovens
e às moças da Ação católica, das paróquias e das escolas católicas de
Roma. Este ano, acompanhados pelo Cardeal Vigário, viestes após a
«Caravana da Paz», cujo lema é Circundados pela paz: bonito, este lema.
Obrigado pela vossa presença e pelo
vosso compromisso generoso na
construção de uma sociedade de
paz. Agora, todos ouçamos a mensagem que os vossos amigos, aqui ao
meu lado, nos vão ler.
[leitura da mensagem]
E agora serão lançados os balões,
símbolo de paz. Símbolo de paz...
A todos desejo bom domingo, desejo paz, humildade, partilha nas
vossas famílias. Por favor, não vos
esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!
L’OSSERVATORE ROMANO
número 5, quinta-feira 2 de fevereiro de 2017
página 6/7
Aos consagrados o Papa pediu que valorizem a vida fraterna em comunidade
Dizer não
à cultura do provisório
«Imersos na chamada cultura do fragmento, do
provisório, que nos pode levar a viver “à la carte” e a
ser escravos das modas» face à “hemorragia” «que
debilita a própria Igreja» os consagrados estão
chamados a valorizar a vida fraterna em comunidade.
Foi a recomendação do Papa Francisco aos
participantes na plenária da Congregação para os
institutos de vida consagrada e as sociedades de vida
apostólica, recebidos em audiência na manhã de 28 de
janeiro, na Sala Clementina.
Amados irmãos e irmãs!
É para mim motivo de alegria poder receber-vos hoje, quando estais reunidos em Sessão Plenária
para refletir acerca do tema da fidelidade e dos abandonos. Saúdo
o Cardeal Prefeito e agradeço-lhe
as palavras de apresentação; e
saúdo todos vós expressando-vos
o meu reconhecimento pelo vosso
trabalho ao serviço da vida consagrada na Igreja.
O tema que escolhestes é importante. Podemos dizer que neste momento a fidelidade é posta à
prova; as estatísticas que examinastes demonstram-no. Estamos
diante de uma “hemorragia” que
debilita a vida consagrada e a
própria vida da Igreja. Os abandonos na vida consagrada preocupam-nos. É verdade que alguns
Vivemos numa sociedade
na qual a ditadura do dinheiro
e do lucro propugna uma visão
da existência segunda a qual
quem não rende é descartado
primeiro é preciso deixar-se evangelizar
para depois se comprometer
na evangelização
deixam por motivo de coerência,
porque reconhecem, depois de
um discernimento sério, que nunca tiveram vocação; mas outros,
com o passar do tempo, não respeitam a fidelidade, muitas vezes
poucos anos depois da profissão
perpétua. O que aconteceu?
Como justamente indicastes,
são muitos os fatores que condicionam a fidelidade nesta que é
uma mudança de época e não só
uma época de mudança, na qual é
difícil assumir compromissos sérios e definitivos. Há tempos, um
bispo contou-me que um jovem
bom com formação universitária,
que trabalhava na paróquia, foi
ter com ele e disse-lhe: “Eu quero
ser padre, mas por dez anos”. A
cultura do provisório.
O primeiro fator que não ajuda
a manter a fidelidade é o contex-
to social e cultural no qual nos
movemos. Vivemos imersos na
chamada cultura do fragmento, do
provisório, que pode levar a viver
“à la carte” e a ser escravos das
modas. Esta cultura induz à necessidade de ter sempre “portas
secundárias” abertas a outras possibilidades, alimenta o consumismo e esquece a beleza da vida
simples e austera, causando muitas vezes um grande vazio existencial. Difundiu-se também um
forte relativismo prático, segundo
o qual tudo é julgado em função
de uma autorrealização muitas vezes alheia aos valores do Evangelho. Vivemos em sociedades nas
quais as regras económicas substituem as morais, ditam leis e impõem os próprios sistemas de referência em desvantagem dos valores da vida; uma sociedade na
qual a ditadura do dinheiro e do
lucro propugna uma visão da
existência segunda a qual quem
não rende é descartado. Nesta situação, é claro que primeiro é
preciso deixar-se evangelizar para
depois se comprometer na evangelização.
A este fator do contexto sociocultural devemos acrescentar outros. Um deles é o mundo juvenil,
um mundo complexo, rico e ao
mesmo tempo desafiador. Não é
negativo, mas complexo, sim, rico
e desafiador. Não faltam jovens
muito generosos, solidários e dedicados a nível religioso e social;
jovens que procuram uma verdadeira vida espiritual; jovens que
têm fome de algo diverso daquilo
que o mundo oferece. Há jovens
maravilhosos e não são poucos.
Mas entre os jovens há também
muitas vítimas da lógica da mundanidade, que se pode sintetizar
assim: busca do sucesso a qualquer preço, do dinheiro fácil e do
prazer fácil. Esta lógica seduz
também muitos jovens. O nosso
compromisso mais não pode ser
do que estar ao lado deles para os
contagiar com a alegria do Evangelho e da pertença a Cristo. Esta
cultura deve ser evangelizada se
quisermos que os jovens não sucumbam.
Um terceiro fator condicionante provém do interior da própria
vida consagrada, onde ao lado de
tanta santidade — há muita santidade na vida consagrada! — não
faltam situações de contratestemunho que tornam difícil a fidelidade. Tais situações, entre outras,
são: a rotina, o cansaço, o peso da
gestão das estruturas, as divisões
internas, a busca de poder — os
arrivistas — uma maneira mundana de governar os institutos, um
serviço da autoridade que por vezes se torna autoritarismo e outras vezes um “deixar fazer”. Se a
vida consagrada quiser manter a
sua missão profética e o seu fascínio, continuando a ser escola de
fidelidade para os próximos e para
os distantes (cf. Ef 2, 17), deve
manter o vigor e a novidade da
centralidade de Jesus, o fascínio
Paolo Veronese, «Bodas de Caná»
tarefa antes de tudo de cada um
de nós, que fomos chamados a
seguir Cristo mais de perto com
fé, esperança e caridade, cultivadas todos os dias na oração e reforçadas por uma boa formação
teológica e espiritual, que defende
das modas e da cultura do efémero e permite caminhar firme na
fé. Sobre este fundamento é possível praticar os conselhos evangélicos e ter os mesmos sentimentos
de Cristo (cf. Fl 2, 5). A vocação
é um dom que recebemos do Senhor, o qual olhou para nós e nos
amou (cf. Mc 10, 21), chamandonos a segui-lo na vida consagrada, e é ao mesmo tempo uma responsabilidade de quem recebeu
este dom. Com a graça do Senhor, cada um de nós está chamado a assumir com responsabilidade em primeira pessoa o compromisso do próprio crescimento humano, espiritual e intelectual e,
ao mesmo tempo, a manter viva a
chama da vocação. Isto comporta
que por nossa vez mantenhamos
o olhar fixo no Senhor, prestando
da espiritualidade e a força da
missão, mostrar a beleza do seguimento de Cristo e irradiar esperança e alegria. Esperança e
alegria. Isto mostra-nos o andamento de uma comunidade, o
que há dentro. Há esperança, há
alegria? Está bem. Mas quando
falta a esperança e não há alegria,
a situação está feia.
Um aspeto que deverá ser cuidado de maneira particular é a vida fraterna em comunidade. Ela deve ser alimentada com a oração
comunitária, a leitura
Se a vida consagrada quiser
orante da Palavra, a
manter a sua missão profética
participação ativa nos
sacramentos da Eucadeve manter o vigor
ristia e da Reconciliae a centralidade de Jesus
ção, o diálogo fraterno
e a comunicação sino fascínio da espiritualidade
cera entre os seus
e a força da missão
membros, a correção
fraterna, a misericórdia em relação ao irmão ou à irmã que
peca, a partilha das responsabili- sempre atenção a caminhar sedades. Tudo isto, acompanhado gundo a lógica do Evangelho e a
por um eloquente e jubiloso tes- não ceder aos critérios da mundatemunho de vida simples ao lado nidade. Muitas vezes as grandes
dos pobres e de uma missão que infidelidades começam por peprivilegie as periferias existen- quenos desvios ou distrações.
ciais. Da renovação da vida fra- Também neste caso é importante
terna em comunidade dependem fazer nossa a exortação de São
muito o resultado da pastoral vo- Paulo: «Já é hora de despertarcacional, o poder dizer «vinde mos do sono» (Rm 13, 11).
ver» (cf. Jo 1, 39) e a perseveranFalando de fidelidade e de
ça dos irmãos e das irmãs jovens abandonos, devemos dar muita
e menos jovens. Porque quando importância ao acompanhamento.
um irmão ou uma irmã não en- E gostaria de frisar este aspeto. É
contra apoio para a sua vida con- necessário que a vida consagrada
sagrada dentro da comunidade, invista na preparação de acompavai procurá-lo fora, com tudo o nhadores qualificados para este
que isto comporta (cf. Vida frater- ministério. E digo a vida consana em comunidade, 2 de fevereiro grada, porque o carisma do
de 1994, 32).
acompanhamento espiritual, digaA vocação, como a própria fé, mos, do guia espiritual, é um caé um tesouro que trazemos em risma «laical». Também os padres
vasos de barro (cf. 2 Cor 4, 7); o têm; mas é «laical». Quantas
por isto devemos preservá-la, co- vezes encontrei religiosas que me
mo se preservam as coisas mais diziam: «Padre, por acaso conhepreciosas, a fim de que ninguém ce um sacerdote que possa ser
nos roube este tesouro, e que ele meu guia?» — «Mas, diz-me, na
não perca a sua beleza com o tua comunidade não há uma relipassar do tempo. Este cuidado é giosa sábia, uma mulher de
Deus?» — «Sim, há aquela velhinha que... mas...» — Vai ter com
ela!». Cuidai vós mesmos dos
membros da vossa congregação.
Já na precedente Plenária verificastes esta exigência, como consta
também do vosso recente documento Vinho novo em odres novos
(cf. nn. 14-16). Nunca insistiremos
o suficiente sobre esta necessidade. É difícil manter-se fiel caminhando sozinho, ou caminhando
com a guia de irmãos e irmãs que
não são capazes de escuta atenta
e paciente, ou que não tenham
uma adequada experiência da vida consagrada. Precisamos de irmãos e irmãs peritos nas sendas
de Deus, para poder fazer o que
Jesus fez com os discípulos de
Emaús: acompanhá-los no caminho da vida e no momento da
desorientação e reacender neles a
fé e a esperança mediante a Palavra e a Eucaristia (cf. Lc 24, 1335). Esta é a tarefa delicada e importante de um acompanhador.
Não poucas vocações perdem-se
por falta de acompanhadores válidos. Todos nós, consagrados, jovens ou menos jovens, precisamos
de uma ajuda adequada para o
momento humano, espiritual e
vocacional que estamos a viver.
Mas devemos evitar qualquer modalidade de acompanhamento
que crie dependências. Isto é importante: o acompanhamento espiritual não deve criar dependências. Enquanto devemos evitar
qualquer modalidade de acompanhamento que crie dependências,
que proteja, controle ou torne infantil, não podemos resignar-nos
a caminhar sozinhos, é necessário
um acompanhamento próximo,
frequente e plenamente adulto.
Tudo isto servirá para garantir
um discernimento contínuo que
leve a descobrir a vontade de
Deus, a procurar tudo aquilo que
mais agrada ao Senhor, como diria Santo Inácio, ou — com as palavras de São Francisco de Assis
— a «querer sempre aquilo que
lhe agrada» (cf. FF 233). O discernimento requer, da parte do
acompanhador e da pessoa acompanhada, uma aguda sensibilidade espiritual, um pôr-se diante de
si mesmo e do outro «sine proprio», com total afastamento de
preconceitos e de interesses pessoais ou de grupo. Além disso, é
preciso recordar que no discerni-
Devemos preservar a vocação como
se preservam as coisas mais preciosas
a fim de que ninguém nos roube este tesouro
e que ela não perca a sua beleza
com o passar do tempo
mento não se trata apenas de escolher entre o bem e o mal, mas
entre o bem e o melhor, entre
aquilo que é bom e o que leva à
identificação com Cristo. E continuaria a falar, mas terminemos
aqui.
Queridos irmãos e irmãs, agradeço-vos de novo e invoco sobre
vós e sobre o vosso serviço como
membros e colaboradores da
Congregação para os Institutos
de vida consagrada e as Sociedades de vida apostólica a assistência contínua do Espírito Santo,
enquanto de coração vos abençoo. Obrigado!
L’OSSERVATORE ROMANO
página 8
quinta-feira 2 de fevereiro de 2017, número 5
Missas matutinas em Santa Marta
Sexta-feira
27 de janeiro
Almas encolhidas
A veste do cristão deve ser costurada
com «memória, coragem, paciência e
esperança» para resistir também às
chuvas mais intensas sem ceder nem
encolher. Foi precisamente acerca do
«pecado da pusilanimidade» — «ter
medo de tudo» e tornar-se «almas
encolhidas para se conservarem» —
que o Papa advertiu na missa deste
dia, recordando que também Jesus
admoestou que «quem quer conservar a própria vida, sem arriscar e
apelando-se à prudência, a perderá».
Francisco, para a sua meditação,
partiu da primeira leitura do dia
que, observou imediatamente, é um
trecho da carta aos Hebreus (10, 3239): «Uma exortação a viver a vida
cristã, uma exortação com três pontos de referência, três pontos temporais, digamos assim: o passado, o
presente e o futuro». O autor da
carta «começa com o passado e
exorta-nos a fazer memória: “Irmãos, recordai-vos daqueles primeiros dias”». São — explicou o Papa —
«os dias do entusiasmo, de ir em
frente na fé, quando se começou a
viver a fé, as provações sofridas».
Com efeito, «não se compreende a
vida cristã, nem a vida espiritual de
cada dia, sem memória». E «não só
não se compreende: não se pode viver cristãmente sem memória».
Trata-se, afirmou Francisco, da
«memória da salvação de Deus na
minha vida», da «memória dos
meus problemas na minha vida: como me salvou o Senhor destes problemas?». Por isso, «a memória é
uma graça, uma graça a pedir: “Senhor, que eu não me esqueça o teu
passo na minha vida, que eu não me
esqueça dos bons momentos, nem
dos maus; das alegrias e das cruzes”».
Por conseguinte, explicou o Pontífice, «o cristão é um homem de
memória». A ponto que «quando lemos a Bíblia, vemos que os profetas
nos fazem olhar sempre para trás:
pensai no que Deus fez convosco,
como vos libertou da escravidão».
Porque «a vida cristã não começa
hoje, continua hoje». E «fazer memória é sabedoria: recordar tudo, o
bom, o menos bom, o mau; tantas
graças, tantos pecados, a família, a
história pessoal de cada um». Assim
«eu vou diante de Deus mas com a
minha história, não a devo cobrir,
esconder: não, é a minha história,
diante da minha alma, diante de ti».
Eis que «a exortação a viver bem
uma vida cristã começa com este
ponto de referência: a memória».
Depois, prosseguiu o Papa, o autor da carta aos Hebreus «faz-nos
compreender que estamos a caminho, e estamos a caminho à espera
de algo, à espera de chegar ou de
encontrar». Significa «chegar a um
ponto: um encontro; encontrar o Senhor». Com efeito, lê-se na carta:
«Só mais um pouco, e aquele que
há de vir, vem sem tardar». E imediatamente «nos exorta a viver por
fé: “O meu justo por fé viverá”».
Aqui entra em jogo «a esperança:
olhar para o futuro».
Com efeito, explicou Francisco,
«assim como não se pode viver uma
vida cristã sem a memória dos passos dados, também não se pode viver uma vida cristã sem olhar para o
futuro com a esperança do encontro
com o Senhor». O autor da carta
aos Hebreus escreve «uma frase bonita: “Só mais um pouco...”». Sabemos bem, recordou o Papa, que «a
vida é um sopro, passa: quando uma
pessoa é jovem, pensa que tem muito tempo diante de si, mas depois a
vida ensina-nos aquela palavra, que
todos dizemos: “mas como passa o
tempo!”». Portanto «a esperança de
o encontrar é uma vida em tensão,
entre a memória e a esperança, o
passado e o futuro».
O terceiro ponto «está no meio»:
é hoje, ou seja, o presente», afirmou
o Pontífice. Trata-se de «um hoje
entre o passado e o futuro». E «o
conselho para viver o hoje é continuar com esta atitude, que descreve
os primeiros cristãos, corajosos, pacientes, que vão em frente, que não
têm medo». Porque «o cristão vive o
presente — muitas vezes doloroso e
triste — corajosamente ou com paciência». Há «duas palavras que
agradam muito a Paulo e ao seu dis-
Bispos do Camboja e do Laos
em visita «ad limina»
Na manhã de quinta-feira, 26 de janeiro, Francisco recebeu os prelados da Conferência
episcopal do Camboja e do Laos, por ocasião da visita «ad limina Apostolorum»
cípulo que escreveu esta Carta: coragem e paciência». «É curioso», observou o Papa, que o autor do texto
para dizer «paciência, usa uma palavra em grego que significa “suportar”; e coragem significa franqueza,
diz aqui, dizer as coisas de maneira
clara, ir em frente de cabeça erguida». São «as duas palavras — prosseguiu — que ele usa tanto, muito: a
parresia e a hypomone, a coragem e
a paciência». E «a vida cristã é assim». É verdade, reconheceu Francisco, que todos somos pecadores,
«quem antes quem depois», e «se
quiserdes podemos fazer a lista, mas
vamos em frente com coragem e
com paciência; não fiquemos ali, parados, porque isto não nos fará crescer».
Por conseguinte, explicou o Pontífice, «é assim a nossa vida cristã,
como a liturgia de hoje nos exorta a
vivê-la: com grande memória do caminho percorrido, com grande esperança daquele belo encontro que será uma boa surpresa». Sem dúvida,
insistiu, «não sabemos quando: pode ser amanhã, pode ser daqui a
quinze anos, não sabemos, mas é
sempre amanhã, é cedo, porque o
tempo passa». Contudo, devemos
ter sempre «a esperança do encontro». E também a atitude de «suportar, com paciência: «ter paciência,
coragem, franqueza», de «cabeça erguida, sem vergonha». Precisamente
«assim se leva por diante a vida cristã».
Para terminar — evidenciou o
Pontífice — «há uma pequena coisa
sobre a qual o autor» da carta aos
Hebreus «chama a atenção da comunidade à qual está a falar: um pecado». É um pecado «que lhe impede de ter esperança, coragem, paciência e memória: o pecado é a pusilanimidade». Trata-se, explicou
Francisco, de «um pecado que não
deixa ser cristão, é um pecado que
não te deixa ir em frente por receio». Por esta razão «muitas vezes
Jesus dizia: “Não tenhais medo”»:
precisamente para advertir contra a
«pusilanimidade» e deste modo não
ceder, não «retroceder sempre», preservando «demasiado a si mesmos»
por «medo de tudo», para «não arriscar» apelando-se à «prudência».
A ponto que, afirmou o Papa, se
pode até dizer que se observam «todos os mandamento, sim, é verdade;
mas isto paralisa-te, faz-te esquecer
muitas graças recebidas, priva-te da
memória, da esperança porque não
te deixa ir». E «o presente de um
cristão, de uma cristã, é como quando alguém caminha pela estrada e
chega uma chuva inesperada e a veste não é de qualidade e o tecido encolhe: almas encolhidas». Precisamente esta imagem expressa bem o
que é «pusilanimidade: o pecado
contra a memória, a coragem, a paciência e a esperança».
Antes de retomar a celebração eucarística, Francisco convidou a pedir
na oração ao Senhor que «nos faça
crescer em memória, em esperança, e
nos dê todos os dias a coragem e a
paciência e nos liberte da pusilanimidade», ou seja, da atitude de
quantos têm «medo de tudo» e acabam por ser «almas encolhidas para
se preservarem». Ao contrário, Jesus
diz-nos que «quem quer preservar a
própria vida, perdê-la-á».
Segunda-feira
30 de janeiro
Se o mártir não é notícia
Pelos «mártires de hoje», pelos cristãos perseguidos e na prisão, pelas
Igrejas sem liberdade, com um pensamento particular pelas mais pequenas: foi a intenção com a qual o Papa celebrou esta missa. Ciente de
que «uma Igreja sem mártires é uma
Igreja sem Jesus», o Pontífice reafirmou que são precisamente os mártires que apoiam e levam por diante a
Igreja. E mesmo se «os meios de comunicação não o dizem, porque não
é notícia», hoje «muitos cristãos no
mundo são bem-aventurados porque
são perseguidos, insultados, encarcerados só por usar uma cruz ou por
confessar Jesus Cristo». Portanto,
quando nos lamentamos «por nos
faltar algo», deveríamos ao contrário
pensar «nestes irmãos e irmãs que
hoje, em número maior do que nos
primeiros séculos, sofrem o martírio».
Na sua meditação o Pontífice retomou antes de tudo os conteúdos
da carta aos Hebreus. «Quase no final — afirmou — o autor apela à memória: “Chamai à memória os vossos
antepassados, chamai à memória os
primeiros dias da vossa vocação, recordai-vos, chamai à memória toda a
história do povo do Senhor”». Tudo
isto «para ajudar a tornar mais firme
a nossa esperança: recordar melhor
para esperar melhor; sem memória
não há esperança».
Precisamente «a memória das coisas que o Senhor realizou entre nós
— explicou Francisco — nos dá a força para ir em frente e também a
consistência». Assim «neste final da
carta aos Hebreus, no capítulo 11,
proposto pela liturgia nesses dias, há
a memória da docilidade de muitas
pessoas, começando pelo nosso pai
Abraão que saiu da sua terra sem saber para onde ia, dócil: memória de
docilidade».
«Depois, hoje há duas memórias»
observou o Pontífice citando expressamente o trecho da carta proposto
pela liturgia (11, 32-40). Antes de tudo «a memória das grandes ações do
Senhor, feitas por homens e mulheres, e o autor da carta diz: “Faltarme-ia o tempo se quisesse narrar sobre...”». A ponto que «começa a nomear Gedeão, Barac, Sansão, Jefté,
David: muitos que realizaram grandes ações na história de Israel». Esta
«é a memória, podemos dizer, dos
nossos heróis do povo de Deus». E
«o terceiro grupo» — o primeiro
«era aquele de quantos foram dóceis
à chamada do Senhor», o segundo
«de quantos realizaram grandes coisas» — evoca «a memória dos que
sofreram e deram a vida como Jesus».
De facto, na carta lê-se: «Outros
sofreram escárnio e açoites, cadeias e
prisões. Foram apedrejados, massacrados, serrados ao meio, mortos a
fio de espada. Andaram errantes,
vestidos de pele de ovelha e de cabra, necessitados de tudo, perseguidos e maltratados — homens de que
o mundo não era digno! — Refugiaram-se nas solidões das montanhas,
CONTINUA NA PÁGINA 9
número 5, quinta-feira 2 de fevereiro de 2017
L’OSSERVATORE ROMANO
página 9
Missas em Santa Marta
CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 8
nas cavernas e em antros subterrâneos». Numa palavra é a «memória
dos mártires». E a Igreja é exatamente «este povo de Deus que é pecador mas dócil, que faz grandes
coisas e também dá testemunho de
Jesus Cristo até ao martírio».
«Os mártires — afirmou a propósito o Papa — são os que levam a
Igreja em frente; são os que apoiam
a Igreja, que a apoiaram e a apoiam
também hoje. E atualmente há mais
mártires do que nos primeiros séculos», embora «os meios de comunicação não o digam porque não é notícia: muitos cristãos no mundo hoje
são bem-aventurados porque são
perseguidos, insultados, encarcerados». Hoje, insistiu Francisco, «muitos estão na prisão, só porque usam
uma cruz ou confessam Jesus Cristo:
esta é a glória da Igreja e o nosso
apoio, mas também a nossa humilhação, nós que temos tudo, que tudo parece fácil para nós e se nos faltar algo nos lamentamos». Mas
«pensemos nestes irmãos e irmãs
que hoje, em número maior do que
nos primeiros séculos, sofrem o martírio».
«Não posso esquecer — confidenciou o Papa — o testemunho daquele
sacerdote e daquela religiosa na catedral de Tirana: anos e anos de prisão, trabalhos forçados, humilhações, os direitos humanos não existem para eles». Era 21 de setembro
de 2014 quando, durante as vésperas
na catedral de São Paulo em Tirana,
foram apresentados ao Pontífice os
comovedores testemunhos de dois
sobreviventes das perseguições do
regime contra os cristãos: tomaram a
palavra a irmã Maria Kaleta e o padre Ernest Simoni, que depois Francisco quis criar e publicar cardeal no
consistório de 19 de novembro passado.
Também nós, prosseguiu o Pontífice, é justo que «fiquemos satisfeitos quando vemos um grande ato
eclesial, que teve um enorme sucesso, os cristãos que se manifestam».
E isto pode ser visto como uma
«força». Mas «a maior força da
Igreja hoje está nas Igrejas pequenas», pequeninas, com poucas pessoas, perseguidas, com os seus bispos na prisão. Esta é a nossa glória
e a nossa força hoje». Inclusive porque, afirmou, «uma Igreja sem mártires, ouso dizer, é uma Igreja sem
Jesus».
Depois Francisco convidou a rezar
«pelos nossos mártires que sofrem
tanto, por aqueles que estiveram e
que estão na prisão, por aquelas
Igrejas que não são livres de se expressar: elas são o nosso apoio, a
nossa esperança». Já «nos primeiros
séculos da Igreja um antigo escritor
dizia: “O sangue dos cristãos, o sangue dos mártires, é semente dos cristãos”». «Com o seu martírio, testemunho, sofrimento, até perdendo a
vida, oferecendo a vida, semeiam
cristãos para o futuro e nas outras
Igrejas». E por esta razão, o Papa
quis oferecer a «missa pelos nossos
mártires, por aqueles que agora sofrem, pelas Igrejas que sofrem, que
não têm liberdade», dando graças
«ao Senhor por estar presente com a
fortaleza do seu Espírito nestes nossos irmãos e irmãs que hoje dão testemunho d'Ele».
Anthony Falbo
«Quem me tocou?»
Terça-feira
31 de janeiro
Jesus olha
para cada um de nós
Jesus não olha para as «estatísticas»
mas presta atenção em «cada um de
nós». Um por um. A «admiração do
encontro com Jesus», aquela maravilha que surpreende quem olha para
ele e se dá conta de que o Senhor já
«lhe tinha dirigido o olhar», foi descrita pelo Papa Francisco na homilia
da missa de hoje. O fio condutor da
meditação
foi
precisamente
o
«olhar», inspirando-se no trecho da
carta aos Hebreus (12, 1-4) no qual o
autor, depois de ter frisado a importância de fazer «memória», exorta
todos: «Corramos com perseverança,
com o olhar fixo no autor e consumador da nossa fé, Jesus». Acolhendo tal sugestão, o Pontífice examinou o evangelho do dia (Mc 5, 2143) para verificar «o que faz Jesus».
O detalhe mais evidente é que
«Jesus está sempre no meio da multidão». No trecho evangélico proposto pela liturgia «a palavra “multidão”» repete-se três vezes. E não se
trata, frisou o Papa, de um ordenado
«cortejo de pessoas», com os guardas «que lhe fazem escolta, a fim de
que as pessoas não o toquem»: antes, é uma multidão que envolve Jesus, que o «abraça». E ele «permanece ali». Aliás, «cada vez que Jesus
saía, a multidão era maior». Talvez,
disse Francisco com uma piada, «os
especialistas em estatísticas teriam
podido publicar: “Diminui a popularidade do Rabi Jesus”». Mas «ele
procurava outro aspeto: procurava as
pessoas. E elas procuravam-no: mantinham os olhos fixos n’Ele e Ele nelas».
Poder-se-ia objetar: Jesus dirigia o
olhar «para as pessoas, para a multidão». Contudo, não era assim, explicou o Pontífice: «para cada um».
Porque precisamente esta é «a peculiaridade do olhar de Jesus. Ele não
massifica as pessoas: Jesus olha para
cada um». A prova pode ser encontrada, várias vezes, nas narrações bíblicas. No evangelho do dia, por
exemplo, lê-se que Jesus perguntou:
«Quem me tocou?», quando «estava
no meio do povo, que o comprimia». Parece estranho, os próprios
discípulos «diziam-lhe: “Mas tu vês
a multidão que se comprime ao teu
redor!”». Desconcertados, disse o
Papa tentando imaginar a sua reação, pensaram: «Mas talvez ele não
tenha dormido bem. Talvez se confunda». Contudo Jesus tinha certeza: «Alguém me tocou!». De facto
«no meio daquela multidão Jesus
deu-se conta daquela idosa que o tinha tocado. E curou-a». Havia
«muitas pessoas» mas ele prestou
atenção precisamente nela, «uma senhora idosa».
A narração evangélica continua
com o episódio de Jairo, ao qual dizem que a filha tinha morrido. Jesus
tranquiliza-o: «Não temas! Tem fé!»,
assim como anteriormente à idosa tinha dito: «A tua fé te salvou!».
Também nesta situação Jesus se encontra no meio da multidão, com
«muitas pessoas que choravam, gritavam no velório» — com efeito, na
época, explicou o Pontífice, era habitual «“alugar” mulheres para que
chorassem e gritassem no velório.
Para sentir a dor...» — e a eles Jesus
diz: «Mas, estai tranquilos. A menina dorme». Os presentes, disse o
Papa, talvez «tenham pensado:
“Mas ele não dormiu bem!”», e «escarneciam-no». Mas Jesus entra e
«ressuscita a menina». O que salta
aos olhos, observou Francisco, é que
A Conferência episcopal internacional
dos Santos Cirilo
e Metódio em visita «ad limina»
Na manhã de segunda-feira, 30 de janeiro, o Papa Francisco recebeu em audiência
os prelados da Sérvia, Montenegro, Kosovo e ex-República Jugoslava
da Macedónia, por ocasião da visita «ad limina Apostolorum» da Conferência
episcopal internacional dos Santos Cirilo e Metódio
Jesus naquele alvoroço, com «as mulheres que gritavam e choravam», se
preocupa em dizer «ao pai e à mãe
“Dai-lhe de comer!”». É a atenção
ao «pequenino», é «o olhar de Jesus
para o pequeno. Mas não tinha outras coisas com as quais se preocupar? Não, só disto».
Não obstante as «estatísticas que
teriam podido dizer: “Continua a
queda de popularidade do Rabi Jesus”», o Senhor pregava por horas e
«as pessoas ouviam-no, ele falava a
cada um». E como «sabemos que
falava a cada um?», questionou o
Pontífice. Porque se deu conta, observou, que a menina «tinha fome»
e disse: «Dai-lhe de comer!».
O Pontífice prosseguiu com exemplos, citando o episódio de Naim.
Também ali «havia a multidão que o
seguia». E Jesus «vê que sai um cortejo fúnebre: um jovem, filho único
de mãe viúva». Mais uma vez o Senhor se dá conta do «pequeno». No
meio de tantas pessoas «vai, detém
o cortejo, ressuscita o jovem e entrega-o à mãe».
Em Jericó, quando Jesus entra na
cidade, a multidão «clama: “Viva o
Senhor! Viva Jesus! Viva o Messias!”. Havia muito rumor... até um
cego começa a gritar; e Jesus, apesar
de todo aquele barulho, ouve o cego». O Senhor, frisou o Papa, «deuse conta do pequeno, do cego».
Tudo isto para dizer que «o olhar
de Jesus se dirige para o grande e
para o pequeno». Ele, disse o Pontífice, «olha para todos nós, mas olha
para cada um de nós. Olha para os
nossos grandes problemas, para as
nossas grandes alegrias; e olha também para as nossas pequenas coisas,
porque está próximo. Assim Jesus
olha para nós».
Retomando o fio da meditação, o
Papa recordou que o autor da carta
aos Hebreus sugere para «correr
com perseverança, com o olhar fixo
em Jesus». Mas, perguntou, «o que
nos acontecerá se fizermos isto, se
mantivermos o olhar fixo em Jesus?». Acontecerá, respondeu, o que
aconteceu com aquelas pessoas depois da ressurreição da menina: «Foram tomados por grande admiração». De facto, «vou, olho para Jesus, caminho na frente, fixo o olhar
em Jesus e o que descubro? Que ele
olhou para mim». E isto faz-me sentir «grande admiração. É a maravilha do encontro com Jesus». Contudo, para sentir isto, não é preciso ter
medo, «como aquela idosa que não
teve medo de tocar a bainha do
manto». Eis a exortação final do Papa: «Não tenhamos medo! Corramos por este caminho, com o olhar
sempre fixo em Jesus. E teremos esta
bonita surpresa: encher-nos-á de admiração. O próprio Jesus mantém fixo o seu olhar sobre mim».
L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 2 de fevereiro de 2017, número 5
Entrevista com o cardeal Lorenzo Baldisseri
Amoris laetitia
prepara o Sínodo
NICOLA GORI
Há um traço de união ideal entre o
recente sínodo sobre a família e o
próximo dedicado aos jovens, explicou o cardeal Lorenzo Baldisseri na
vigília da apresentação do documento preparatório da assembleia sinodal que terá lugar em outubro de
2018 sobre o tema: «Os jovens, a fé
e o discernimento vocacional». Nesta entrevista a L’Osservatore Romano o purpurado delineou um primeiro balanço da aplicação da Amoris
laetitia, frisando que a exortação
apostólica pós-sinodal obteve uma
ampla aceitação e relevando a continuidade com o sínodo sobre os jovens, contida em três palavras-chave:
alegria, discernimento e acompanhamento.
Que balanço pode ser feito na aplicação
da Amoris laetitia quase um ano após
a sua promulgação?
Esta Secretaria geral, a 12 de maio
passado, precisamente um mês depois da publicação da Amoris laetitia,
enviou às conferências episcopais do
mundo inteiro e também a cada bispo uma carta pedindo informações
relativas ao modo em que a exortação apostólica pós-sinodal era recebida nos diversos países e, ao mesmo tempo, para conhecer as iniciativas empreendidas para a sua aplicação. Chegaram já inúmeras respostas
e ainda continuam a chegar. Das informações recebidas posso afirmar
em primeiro lugar que a Amoris laetitia suscitou imenso interesse na comunidade eclesial e em todo o mundo, com um acolhimento muito positivo e enorme aceitação, um verdadeiro dom feito à Igreja e à humanidade. A sua aplicação realiza-se a diversos níveis. A publicação do documento, como se sabe, foi em abril
passado e pudemos constatar desde
aquele momento que foram organizados encontros, congressos, seminários para estudo e aprofundamento
em todo o mundo. Eu mesmo fui
convidado a participar em diversas
destas iniciativas, tanto na Itália como noutros países. Pronunciei conferências, participei em encontros de
apresentação e li relatórios acerca do
desenvolvimento do sínodo e da sua
relação com a Amoris laetitia. Portanto posso dizer que certamente sou
uma testemunha direta da atenção e
do compromisso com o qual os bispos observam a exortação apostólica, centrando a pastoral nos valores
da família e procurando encarnar do
melhor modo possível indicações,
sugestões e propostas que ela contém.
Concretamente, o que fizeram os episcopados?
Muitos bispos encontraram-se
com o próprio presbitério para refletir em profundidade sobre os argumentos e as temáticas contidos nas
palavras do Papa Francisco. Diversos episcopados ofereceram indicações concretas acerca da modalidade
de aplicação do que o texto propõe,
em particular dos capítulos seis, sobre as perspetivas pastorais, e oito,
que se refere ao acompanhamento,
discernimento e integração das pessoas que vivem em situações de fragilidade. Neste trabalho pastoral
participam famílias, casais, jovens,
associações e movimentos. Constatase uma grande produção de subsídios e de material informativo de todos os tipos para facilitar a compreensão e a difusão do documento.
Portanto, a pastoral familiar das dioceses conseguiu captar o espírito do Sínodo sobre a família?
Posso dizer que em muitas dioceses a receção da Amoris laetitia, na
qual se reflete o espírito do Sínodo,
é positiva e propositiva e já se veem
os benefícios. Está a tornar-se um
instrumento formidável de renovação pastoral, aliás como era o desejo
dos padres sinodais e do Papa. Efetivamente estão a compreender o
sentido profundo do documento,
que quer ser uma renovação da pastoral familiar na continuidade. De
facto, um grande número de sacerdotes e de agentes pastorais sentemse solicitado pelo convite do Papa
Francisco a uma reflexão realista e
criativa sob o ponto de vista pastoral
dos conteúdos do documento.
De que modo as famílias foram envolvidas?
Tendo presente sobretudo o que
se afirma nos capítulos quatro e cinco sobre o amor no matrimónio e no
capítulo sete acerca da educação dos
filhos, começou-se por pensar e programar itinerários de formação à
preparação para o matrimónio que
vão além dos encontros «oficiais»
previstos para os casais que decidem
casar; foram propostos encontros de
acompanhamento para os casais jovens; assumiram-se compromissos
para envolver cada vez mais casais
peritos na tarefa de aproximar e
acompanhar outros casais que passam por momentos de crise na própria relação. Nalgumas paróquias
surgiram grupos nos quais famílias
inteiras se encontram periodicamente para rezar unidas, narrar as próprias experiências, partilhar os muitos momentos que experimentam na
vida diária, confrontar-se sobre as
dificuldades que sentem para se ajudar reciprocamente e procurar juntas
indícios de solução aos problemas.
Certamente, estamos só no início. O
campo das possibilidades para a
ação pastoral é muito amplo e os
nove meses passados desde a publicação da exortação apostólica são
um tempo demasiadamente breve
para indicar e realizar todas as potencialidades que ela contém. Mas
em todos existe a perceção de que é
necessário um compromisso diverso
e renovado para apoiar a família no
seu dia a dia, feito de acolhimento,
proximidade, acompanhamento, partilha dos acontecimentos bons e das
dificuldades. Estas são indicações
eficazes acerca das modalidades nas
quais viver a alegria do amor.
O que se poderia responder a quem solicita ulteriores esclarecimentos sobre as
indicações pastorais da exortação apostólica?
Já foram dadas várias respostas.
Expressaram-se inclusive pessoas
competentes pelo seu papel e autoridade. Antes de tudo, trata-se de proceder a fim de reforçar a família e
garantir a estabilidade do matrimónio e a serenidade da vida familiar.
Também é importante apresentar a
beleza do matrimónio cristão a
quem não vive uma união sacramental. Nos casos de pessoas que saem
de uma união falhada, é preciso saber distinguir as situações, as resCONTINUA NA PÁGINA 11
Celebrada no Vaticano a festa de Dom Bosco
A mesma missão
Dom Bosco não pertence a uma
lenda, a um mito nem a uma teoria:
é uma pessoa com uma história
concreta, que ainda hoje continua a
ser significativa, disse o padre Renato dos Santos, diretor técnico da
Tipografia Vaticana, celebrando na
manhã de 31 de janeiro, na capela
do coro da basílica de São Pedro, a
missa pela festa litúrgica do santo
fundador da família salesiana. Participaram no rito os responsáveis e os
funcionários da Tipografia Vaticana, de L’Osservatore Romano e do
Serviço fotográfico do jornal.
Na homilia o sacerdote — que comemorou o vigésimo quinto aniversário de ordenação — evidenciou
que João Bosco ajudava os jovens
necessitados precisamente onde viviam, na periferia de Turim, Valdocco. Procurava-os nas situações
de vulnerabilidade e dificuldade
existenciais para os acolher e lhes
oferecer refúgio e liberdade de tudo
o que os oprimia. É a mesma missão, recordou o padre Renato, na
qual trabalham também hoje em 133
países os salesianos que vivem o carisma do santo.
Através dos seus projetos educativos, prosseguiu o celebrante, dom
Bosco edificou muitas pontes e encontrou na juventude o sentido
mais profundo da sua vida. Depois,
comentando o trecho do Evangelho
de Mateus proposto pela liturgia, o
padre Renato dos Santos exortou a
pôr sempre no centro as crianças de
hoje a fim de lhes garantir um presente digno.
No final da concelebração, monsenhor Dario Edoardo Viganò, prefeito da Secretaria para a comunicação, dirigiu uma saudação ao religioso salesiano entregando-lhe um
pergaminho de bênção pelo jubileu
sacerdotal assinado pelo Papa Francisco. Em seguida, agradeceu à comunidade pelo trabalho desempenhado ao serviço do Pontífice.
Também o diretor-geral da Tipografia Vaticana editora L’O sservatore Romano, padre Sergio Pellini, no
início da missa cumprimentou o padre Renato em nome de todos os
funcionários.
Para a ocasião, sobre o altar foi
colocado o relicário de Dom Bosco,
exposto pela primeira vez durante a
canonização a 1 de abril de 1934,
concedido por monsenhor Guido
Marini, mestre das celebrações litúrgicas do Sumo Pontífice.
L’OSSERVATORE ROMANO
número 5, quinta-feira 2 de fevereiro de 2017
INFORMAÇÕES
Audiências
O Papa Francisco recebeu em audiências particulares:
A 26 de janeiro
D. Ivo Scapolo, Núncio Apostólico
no Chile; D. Miguel Maury Buendia, Núncio Apostólico na Roménia;
e os seguintes Prelados da Conferência Episcopal do Camboja e Laos,
em visita «ad limina Apostolorum»:
Rev.do Pe. Tito Banchong Thopanhong, Administrador Apostólico do
Vicariato Apostólico de Luang Prabang (Laos); D. Louis-Marie Ling
Mangkhanekhoun, Vigário Apostólico de Paksé (Laos); D. Jean Marie
Vianney Prida Inthirath, Vigário
Apostólico de Savannakhet (Laos);
D. Jean Khamsé Vithavong, Vigário
Apostólico de Vientiane (Laos); D.
Olivier Michel Marie Schmitthaeusler, Vigário Apostólico de PhnomPenh (Camboja); Rev.do Pe. Enrique
Figaredo Alvargonzalez, S.I., Prefeito
Apostólico de Hattambang (Camboja); e Rev.do Pe. Antonysamy Susairaj, M.E.P., Prefeito Apostólico de
Kompong-Cham (Camboja).
A 27 de janeiro
Os Senhores Cardeais George Pell,
Prefeito da Secretaria para a Economia; e Fernando Filoni, Prefeito da
Congregação para a Evangelização
dos Povos.
Calendário
das celebrações
presididas
pelo Pontífice
Fevereiro
A 28 de janeiro
A 28 de janeiro
Os Senhores Cardeais Marc Ouellet,
Prefeito da Congregação para os
Bispos; e Mauro Piacenza, Penitenciário-Mor, com Mons. Krzysztof
Jozef Nykiel, Regente da Penitenciaria Apostólica; e D. Giampiero Gloder, Presidente da Pontifícia Academia Eclesiástica.
Bispo de Gokwe (Zimbábue), o
Rev.do Pe. Rudolf Nyandoro, até esta
data Chanceler da Diocese de Masvingo.
A 30 de janeiro
D. Francisco Polti Santillán, Bispo
Emérito de Santiago del Estero (Argentina); D. Jean-Claude Hollerich,
Arcebispo de Luxemburgo; e os seguintes Prelados da Conferência
Episcopal internacional dos Santos
Cirilo e Metódio, em visita «ad limina Apostolorum»: D. Stanislav
Hočevar, Arcebispo de Belgrado
(Sérvia); D. János Pénzes, Bispo de
Subotica (Sérvia); D. Ladislav Nemet, Bispo de Zrenjanin (Sérvia); D.
Đuro Gašparović, Bispo de Srijem
(Sérvia); D. Djura Džudžar, Exarca
Apostólico para os fiéis de rito bizantino (Sérvia); D. Rrok Gjonlleshaj, Arcebispo de Bar (Montenegro); D. Ilija Janjić, Bispo de Kotor
(Montenegro); D. Dodë Gjergji, Administrador Apostólico de Prizren
(Kosovo); e D. Kiro Stojanov, Bispo
de Skopje (Macedónia), Exarca
Apostólico para os fiéis de rito bizantino residentes na ex-República
Jugoslava da Macedónia.
No dia 26 de janeiro
De D. Dorick G. Wright ao governo
pastoral da Diocese de Belize City —
Belmopan (Belize).
De D. Angel Floro Martínez,
I.E.M.E., ao governo pastoral da Diocese de Gokwe (Zimbábue).
Basílica de São Pedro, 17h30, Santa Missa com os membros dos Institutos de Vida Consagrada e das
Sociedades de Vida Apostólica
De D. Elias Nassar, ao governo pastoral da Eparquia de Saida dos Maronitas (Líbano).
1 QUARTA-FEIRA
DE
CINZAS
5 1º D OMINGO
DE
QUARESMA
Ariccia, início dos exercícios espirituais para a Cúria Romana
10 SEXTA-FEIRA
Encerramento dos exercícios espirituais para a Cúria Romana
Cidade do Vaticano, 24 de janeiro
de 2017.
Monsenhor Guido Marini
Mestre das Celebrações
Litúrgicas Pontifícias
Bispo da Diocese de Itabuna (Brasil), D. Carlos Alberto dos Santos,
até esta data Bispo de Teixeira de
Freitas-Caravelas.
Bispo de Patti (Itália), o Rev.mo
Mons. Guglielmo Giombanco, até
esta data Vigário-Geral da Diocese
de Acireale.
D. Guglielmo Giombanco nasceu em
Catania (Itália), no dia 15 de setembro de 1966. Recebeu a Ordenação sacerdotal a 7 de setembro de 1991.
Disposições especiais
No dia 30 de janeiro
Administrador Apostólico sede vacante da Eparquia de Saida dos Maronitas (Líbano), D. Maroun Ammar, Bispo Titular de Canata, atualmente Vigário Patriarcal de Joubbé.
Prelados falecidos
Adormeceram no Senhor:
A 24 de janeiro
D. Martin Nicholas Lohmuller, exAuxiliar de Filadélfia (EUA).
O venerando Prelado nasceu a 21 de
agosto de 1919, em Filadélfia (EUA).
Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia
3 de junho de 1944. Foi ordenado Bispo em 2 de abril de 1970.
O Papa confirmou:
A 26 de janeiro
No dia 28 de janeiro
D. Paul Lanneau, ex-Auxiliar de
Malinas-Bruxelas (Bélgica).
Membros dos Dicastérios da Cúria
Romana, os Senhores Cardeais: Blase Joseph Cupich, Arcebispo de
Chicago, na Congregação para os
Bispos; Dieudonné Nzapalainga, Arcebispo de Bangui, na Congregação
O ilustre Prelado nasceu em Anderlecht (Bélgica), no dia 22 de julho de
1925. Foi ordenado Sacerdote a 24 de
julho de 1949. Recebeu a Ordenação
episcopal em 20 de março de 1982.
O Santo Padre aceitou a renúncia:
No dia 28 de janeiro
Igreja de Santo Anselmo, 16h30,
Statio e procissão penitencial; Basílica de Santa Sabina, 17h, Santa
Missa, bênção e imposição das
Cinzas
A 1 de fevereiro
para a Evangelização dos Povos; Joseph William Tobin, Arcebispo de
Newark, na Congregação para os
Institutos de Vida Consagrada e as
Sociedades de Vida Apostólica; e
Carlos Aguiar Retes, Arcebispo de
Tlalnepantla, no Pontifício Conselho
para o Diálogo Inter-Religioso.
Renúncias
2 QUINTA-FEIRA
FESTA DA APRESENTAÇÃO
D O SENHOR
XXI DIA MUNDIAL
DA VIDA CONSAGRADA
Março
D. Rudolf Nyandoro nasceu em
Gweru (Zimbábue), no dia 11 de outubro de 1968. Foi ordenado Sacerdote a
19 de dezembro de 1998.
página 11
No dia 30 de janeiro
No dia 1 de fevereiro
De D. Josef Hrdlička, ao cargo de
Auxiliar de Olomouc (República
Checa).
De D. Czesław Stanula, C.SS.R., ao
governo pastoral da Diocese de Itabuna (Brasil).
De D. Ignazio Zambito, ao governo
pastoral da Diocese de Patti (Itália).
Nomeações
O Sumo Pontífice nomeou:
A 26 de janeiro
Bispo da Diocese de Belize City —
Belmopan (Belize), o Rev.do Pe.
Lawrence Sydney Nicasio, do clero
de Belize, até agora Pároco da Catedral em Belize City.
D. Lawrence Sydney Nicasio nasceu
em Belize a 5 de setembro de 1956.
Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia
16 de junho de 1989.
Entrevista com o cardeal Baldisseri
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ponsabilidades e as atitudes que
elas assumem a fim de proceder
gradualmente a uma maior integração na comunidade eclesial. A tal
propósito é indispensável um discernimento atento e apropriado pela pessoa, sendo capaz de inserir
adequadamente a relação entre a
norma e a consciência. Não penso
que haja necessidade de acrescentar
mais, exceto afirmar que todas as
respostas que pedimos já estão
contidas no texto da própria exortação apostólica.
Existe uma continuidade entre a
exortação apostólica Amoris laetitia e
o próximo sínodo dedicado aos jovens?
A Amoris laetitia indicou a beleza
e a força da família, a sua capacidade de resposta às expectativas
presentes no coração do homem, a
importância do seu papel na sociedade. Uma das finalidades principais do próximo sínodo é ajudar os
jovens a aprender a discernir de
modo concreto como podem realizar plenamente a sua vida, a fim
de que possam gozar a alegria do
amor. A maior parte dos jovens
orienta-se para a escolha de constituir uma família. Para que a sua escolha seja o mais possível correspondente à sua vocação é importante que tenham instrumentos
adequados para se conhecer a si
mesmos e se orientar oportunamente na escolha do parceiro e na
compreensão dos elementos essen-
ciais que permitirão que a sua futura família tenha bases sólidas. Sem
querer antecipar nem limitar a riqueza que emergirá do caminho sinodal, penso que se pode sintetizar
a continuidade entre a Amoris laetitia e o próximo sínodo com três
palavras que se encontram na exortação apostólica: alegria, discernimento e acompanhamento.
Corresponde a uma das observações
evidenciadas no sínodo sobre a família a escolha de aprofundar a relação
entre jovens e escolhas vocacionais?
Evidentemente existe uma correlação entre jovens, escolhas vocacionais e família. Quando se fala
da família não se pode deixar de
considerar o seu momento constitutivo e portanto a idade juvenil,
que é aquela na qual cada um elabora um projeto próprio e se orienta para a escolha do estado de vida. A relatio finalis da assembleia
sinodal de 2015 recordava que «o
desejo de família permanece vivo
nas jovens gerações». Certamente,
a vocação para o matrimónio não é
a única maneira de realizar de modo jubiloso e autêntico a própria
existência, mas permanece verdadeiro que «muitos jovens continuam a ver o matrimónio como o
grande âmbito da sua vida e o projeto de uma família como a realização das suas aspirações». A Amoris
laetitia fala muito desta correlação
e estou certo de que o próximo sínodo fará disto um objeto de reflexão.
L’OSSERVATORE ROMANO
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quinta-feira 2 de fevereiro de 2017, número 5
Sharon Cummings, «Hope» (pormenor)
Na audiência geral o Papa falou da esperança na vida depois da morte
Realidade certa
«Também a nossa ressurreição e a dos nossos amados
defuntos não é algo que poderá realizar-se ou não, mas
constitui uma realidade certa, dado que está radicada no
evento da ressurreição de Cristo», frisou com força o Papa
Francisco na audiência geral de quarta-feira 1 de fevereiro,
na sala Paulo VI. Eis a reflexão do Santo Padre.
Bom dia, amados irmãos e irmãs!
Nas catequeses passadas demos início ao nosso percurso sobre o tema da esperança, relendo nesta perspetiva algumas páginas do Antigo Testamento. Agora desejamos começar a
esclarecer o alcance extraordinário que esta
virtude assume no Novo Testamento, quando
encontra a novidade representada por Jesus
Cristo e pelo evento pascal: a esperança cristã.
Nós, cristãos, somos mulheres e homens de
esperança.
É quanto sobressai de modo claro desde o
primeiro texto que foi escrito, ou seja, a Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses.
No trecho que ouvimos, podemos sentir todo
o vigor e a beleza do primeiro anúncio cristão. A comunidade de Tessalonica é jovem,
recém-fundada; e no entando, não obstante as
dificuldades e as numerosas provações, está
radicada na fé e celebra com entusiasmo e
com alegria a ressurreição do Senhor Jesus.
Então, o Apóstolo alegra-se de coração com
todos, dado que quantos renascem na Páscoa
se tornam verdadeiramente «filhos da luz e filhos do dia» (5, 5), em virtude da plena comunhão com Cristo.
Quando Paulo lhe escreve, a comunidade
de Tessalonica tinha acabado de ser fundada,
e só poucos anos a separam da Páscoa de
Cristo. Por isso, o Apóstolo procura explicar
todos os efeitos e consequências que este
acontecimento singular e decisivo, isto é, a
ressurreição do Senhor, comporta para a história e para a vida de cada um. Em particular,
a dificuldade da comunidade não consistia
tanto em reconhecer a ressurreição de Jesus,
todos acreditavam, quanto em crer na ressurreição dos mortos. Sim, Jesus ressuscitou, mas
a dificuldade consistia em crer que os mortos
ressuscitam. Em tal sentido, esta carta revelase atual como nunca. Cada vez que nos encontramos diante da nossa morte, ou da de
uma pessoa querida, sentimos que a nossa fé é
posta à prova. Sobressaem todas as nossas dúvidas, toda a nossa fragilidade, e questionamo-nos: «Mas realmente haverá vida depois
da morte...? Ainda poderei ver e reabraçar as
pessoas que amei...?». Eis a pergunta que há
poucos dias, durante uma audiência, uma se-
nhora me dirigiu manifestando uma dúvida:
«Encontrarei os meus?”. Também nós, no
contexto atual, temos necessidade de voltar à
raiz e aos fundamentos da nossa fé, de maneira a adquirir a consciência sobre aquilo que
Deus fez por nós em Jesus Cristo e o que significa a nossa morte. Todos nós temos um
pouco de medo desta incerteza da morte.
Vem-me à memória um velhinho, um bom
idoso que dizia: «Não temo a morte. Tenho
um pouco de medo de a ver aproximar-se».
Temia isto.
Perante os temores e as perplexidades da
comunidade, Paulo convida a manter firme
sobre a cabeça, como um elmo, sobretudo nas
provações e nos momentos mais difíceis da
nossa vida, «a esperança da salvação». É um
elmo. Eis o que é a esperança cristã. Quando
se fala de esperança, podemos ser levados a
entendê-la segundo o significado comum deste termo, ou seja, em referência a algo de bom
que desejamos, mas que pode realizar-se ou
não. Esperamos que aconteça, é como um desejo. Por exemplo, dizemos: «Espero que
amanhã «Espero que amanhã o tempo seja
bom!»; mas sabemos que, ao contrário, no dia
seguinte o tempo pode ser mau... A esperança
cristã não é assim. A esperança cristã é a espera de algo que já se cumpriu; ali está a porta,
e espero chegar à porta. Que devo fazer? Caminhar rumo à porta! Tenho a certeza que
chegarei à porta. Assim é a esperança cristã:
ter a certeza de que estou a caminho de algo
que existe, não de algo que eu desejo que
exista. Esta é a esperança cristã. A esperança
cristã é a expetativa de algo que já se cumpriu
e que certamente se há de realizar para cada
um de nós. Portanto, também a nossa ressur-
nhor. Isto não é fácil, mas aprende-se: viver
na na expetativa. Esperar significa e implica
um coração humilde, um coração pobre. Somente o pobre sabe esperar. Quem já está repleto de si e dos seus pertences, não sabe depositar a própria confiança em nenhum outro,
a não ser em si mesmo.
Escreve ainda São Paulo: «[Jesus] morreu
por nós, a fim de que nós, quer em estado de
vigília, quer de sono, vivamos em união com
Ele» (1 Ts 5, 10). Estas palavras são sempre
motivo de grande consolação e de paz. Portanto, somos chamados a rezar também pelas
pessoas amadas que nos deixaram, a fim de
que elas vivam em Cristo e permaneçam em
plena comunhão connosco. Algo que me toca
profundamente o coração é uma expressão de
São Paulo, ainda dirigida aos Tessalonicenses.
Ela enche-me da segurança da esperança. Reza assim: «Assim estaremos para sempre com
o Senhor» (1 Ts 4, 17). Uma coisa boa: tudo
passa, mas depois da morte estaremos para
sempre com o Senhor. É a certeza total da esperança, a mesma que, muito tempo antes, levava Job a exclamar: «Sei que o meu redentor
está vivo [...] Eu mesmo o contemplarei, vêlo-ão os meus olhos e não os olhos de outrem» (Job 19, 25.27). E assim estaremos para
sempre com o Senhor. Vós acreditais nisto?
Pergunto-vos: credes nisto? Para terdes um
pouco de força, convido-vos a dizê-lo três vezes comigo: «Assim estaremos para sempre
com o Senhor». Encontrar-nos-emos lá, com
o Senhor.
Um apelo a «responder ao clamor da terra e dos
pobres» foi lançado pelo Pontífice no final da
audiência geral. Saudando como de costume os
grupos linguísticos presentes, o Papa
dirigiu-se de modo especial à
delegação do Movimento católico
mundial pelo clima, agradecendo-lhe
o compromisso a favor da nossa casa
comum nesta época de crise
socioambiental. Além disso, recordou
a festa da Apresentação do Senhor e
o Dia mundial da vida consagrada.
Eis algumas das suas saudações.
Dirijo uma saudação especial a todos os peregrinos de língua portuguesa, nominalmente aos estudantes vindos de Portugal. Queridos
amigos, que a fé na Ressurreição
nos leve a olhar para o futuro, fortalecidos pela esperança na vitória
de Cristo sobre o pecado e a morte. Deus vos abençoe!
Dou as cordiais boas-vindas à
delegação do Movimento Católico
Mundial pelo Clima e agradeçolhe o compromisso a favor da nossa casa comum nesta época de
O Pontífice saúda o coro infantil da Coreia do Sul
grave crise socioambiental. Encorajo a continuar a tecer redes a
reição e a dos nossos amados defuntos não é fim de que as Igrejas locais respondam com
algo que poderá realizar-se ou não, mas cons- determinação ao clamor da terra e dos pobres.
titui uma realidade certa, dado que está radiDirijo uma saudação aos jovens, aos doencada no evento da ressurreição de Cristo. Portes e aos recém-casados. Amanhã celebraretanto, esperar significa aprender a viver na exmos a festa da Apresentação do Senhor e o
petativa. Aprender a viver à espera e encontrar a vida. Quando uma mulher compreende Dia Mundial da Vida Consagrada. Confio às
que está grávida, cada dia aprende a viver na vossas preces quantos foram chamados a proexpetativa de fitar o olhar daquela criança que fessar os conselhos evangélicos a fim de que,
há de vir. Assim, também nós devemos viver e com o seu testemunho de vida, possam irraaprender destas expetativas humanas e viver à diar no mundo o amor de Cristo e a graça do
espera de fitar o Senhor, de encontrar o Se- Evangelho.