DanteCultural-09 - Colégio Dante Alighieri
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DanteCultural-09 - Colégio Dante Alighieri
DanteCultural Ano IV - nº 9 - Junho/2008 ISSN 1980-637X A cidade da saudade Italianos tentaram recriar em São Paulo casinhas como as de sua terra e ainda trouxeram uma arquitetura requintada para erguer grandes monumentos da capital paulista Ennio Candotti O presidente de honra da SBPC trabalha pela divulgação da ciência no Brasil Cinema 15 anos sem Federico Fellini, mestre da fantasia, do humor e do humanismo Juó Bananére O criador de paródias em linguagem macarrônica que imitava o sotaque dos imigrantes italianos e foi precursor do modernismo Puglia A gastronomia de misturas ousadas e as atrações turísticas da região que liga a Itália ao Oriente Aqui contamos a história do amanhã Sala Ho ra do Conto Centro de Pesquisa Multimídia Biblioteca Infantil Biblioteca Central Colégio Dante Alighieri Onde seu filho começa uma grande história Educação Infantil (Maternal e Jardim) s Ensino Fundamental s Ensino Médio www.colegiodante.com.br / (11) 3179-4400 Mensagem do Presidente O Sino Uma taça invertida de metal, com badalo suspenso no seu interior, quando percutida, produz sonoridade musical. No século IX a.C., na Ásia, o instrumento já era confeccionado. Na China, era utilizado nas aldeias. Presume-se que, nos momentos festivos, avisava as comunidades a pretexto de convite para participação nos eventos. No mesmo período, na Assíria, era também fabricado. Descoberto por arqueólogos, já apresentava ricos ornamentos. Referem os pesquisadores que, na Grécia antiga, o seu repicar destinava-se ao anúncio da chegada do peixe fresco nas feiras-livres. Quando invasores eram vistos à porta das cidades, tal instrumento prevenia seus habitantes de que se preparassem para a defesa. Roma, que já possuía cultos religiosos, dele se utilizava para chamar os fiéis. Porém, o sino somente chegou ao norte da Europa por meio das tribos célticas, que já haviam aprimorado sua fundição. A França o introduziu no ano 550 d.C.. Cem anos depois, a Inglaterra passou a utilizá-lo. Obediente ao espaço que me é destinado nesta revista cultural, desejo apenas aduzir que o sino, no nosso Colégio, teve origem no ano de 1911, no nascimento da própria instituição. Acredito que foi introduzido, àquela época, com a finalidade de acordar os preguiçosos “excito lentos”. Residia eu, no ano de 1935, quando matriculado no 1º ano elementar, na Alameda Franca. Como eu, a grande maioria de alunos e de professores residia nas proximidades do então Istituto Medio-Italo Brasiliano Dante Alighieri. Daí a razão pela qual o 1º sineiro da Escola, Ezio Baldi (1878/1941), com vigoroso entusiasmo golpeava o sonante instrumento. Já o 2º sineiro, Marino Serafini (1906/1983), muito embora não houvesse conhecido o primeiro, percebeu, desde logo, que os dorminhocos deveriam ser acordados com suaves vibrações.... Por meio desta singela crônica, a Diretoria eleita para o triênio 2008/2011 houve por bem homenagear essas duas figuras imortais, que nos educaram a respeitar o horário dos compromissos. Nos nossos ouvidos vibra ainda aquele timbre claro e nítido, encantando também as novas gerações! Nós, os velhos guerreiros, quando do sino nos lembramos, tornamo-nos alunos! Acreditamos que os novos guerreirinhos, quando hoje ouvem o seu soar, se projetam para um futuro acalentador e amoroso! José de Oliveira Messina 3 A.E.D.A. COLÉGIO DANTE ALIGHIERI Próximo ao seu centenário, que será comemorado em 2011, o Colégio Dante Alighieri, em parceria com a associação de seus ex-alunos (AEDA), quer entrar em contato com pessoas que nele tenham estudado. Para tanto, solicita a você, que lá também estudou, o preenchimento do formulário abaixo, que deverá ser enviado para o Departamento de Comunicação e Eventos do Colégio Dante Alighieri, à Alameda Jaú, 1061 - 01420-001 - São Paulo - SP. Obrigado. CADASTRO DE EX-ALUNO Nome completo: * Ano que entrou no Colégio: * Ano que saiu no Colégio: * Nacionalidade: * Data Nascimento: / * Formação acadêmica: * Atividade atual: * Estado civil: Quantos filhos? / / / Curso/Série: * / / Sexo: Fo Mo Os filhos estudam no Dante? Sim o Não o O cônjuge estudou no Dante? Sim o Não o Endereço: * CEP: Bairro: * * Telefone: ( ) * Cidade: * Email: * Gostaria de receber gratuitamente a revista cultural do Colégio? Sim o Não o * Gostaria de receber gratuitamente o informativo semestral com as atividades pedagógicas do Colégio? Sim o Não o * Nota: Este cadastro é sigiloso e intransferível, resguardamos com carinho que merece sua personalidade e de sua família. * Os campos marcados são de preenchimento obrigatório Carta ao leitor Caros Leitores: Assim como este Colégio, próximo de seu centenário, as construções planejadas pelos arquitetos italianos de São Paulo são um bom exemplo da solidez dos projetos feitos pelos oriundi. Na matéria de capa deste número da DanteCultural, vamos conhecer um pouco da obra desses artistas, desde os anônimos construtores do fim do século XIX até Telesforo Cristofani, famoso arquiteto falecido em 2002, passando por Tommaso Gaudenzio Bezzi, que projetou o Museu do Ipiranga, e Giulio Micheli, que, além do viaduto Santa Ifigênia, traçou as linhas do nosso Dante. Lutador incansável pela divulgação da Ciência, Ennio Candotti é o nosso ex-aluno entrevistado nesta DanteCultural. Nascido na Itália, veio jovem para o Brasil, e nunca mais parou de viajar. Hoje, é presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade que já dirigiu. Outro personagem retratado em nossas páginas é um homem que brincava com as palavras, um brasileiro que escrevia propositalmente em um italiano macarrônico. Trata-se de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, que, sob a alcunha de “Juó Bananére”, em seus textos publicados no jornal O Pirralho, debochava dos poetas parnasianos, chegando a ser um dos grandes inspiradores do movimento modernista. Gianni Ratto, artista completo, é o homenageado da seção Perfil. Amante do teatro e das mulheres (não necessariamente nessa ordem), Ratto buscava na sua Itália natal as referências estéticas de seu trabalho. Chegou ao fim de uma longa, fértil e atribulada vida de uma forma também singular: bebendo vinho em sua casa. Outro artista, este do canto, tem sua vida contada por nós neste número. Um dos grandes tenores italianos, Giuseppe Di Stefano, que cantou com a lendária Maria Callas, não soube, porém, preservar sua brilhante carreira. Faleceu no início deste ano, 16 anos depois de sua última apresentação pública. Federico Fellini completa a tríade dos brilhantes artistas italianos presentes nesta edição. Mestre do cinema e criador de filmes inesquecíveis, Fellini foi o diretor mais premiado da história do Oscar. E ainda teve a sorte de ter se casado com uma mulher que lhe dedicava amor incondicional e recíproco, Giulietta Masina. Salto da bota formada pelo mapa da Itália, a Puglia é a região contemplada na nossa seção de Turismo. Seus mares, suas catedrais e suas construções inusitadas são descritas com primor, deixando-nos uma grande vontade de percorrer a região. Vontade que só aumenta quando chegamos à seção de Gastronomia, com as descrições de pratos e com receitas tentadoras da comida pugliese, indicadas pela chef Silvia Percussi. Encerrando a edição, Silvana Leporace, coordenadora do Serviço de Orientação Educacional do Colégio Dante Alighieri, conta, em artigo, o que é o bullying, e por que devemos combatê-lo com rigor. Boa leitura a todos! Fernando Homem de Montes Publisher 5 Notas 8 Visitas ilustres da Literatura, do Cinema e da Música agitaram a vida cultural no Dante Cartas 9 Entrevista 10 O ex-aluno Ennio Candotti fala de educação, divulgação científica e intercâmbio de conhecimento Capa 16 Um pouco da história de São Paulo contada por projetos de arquitetos italianos Pastifícios 24 Três famílias que produzem massas e doces muito apreciados na cidade Juó Bananére 27 Um deboche modernista na linguagem das ruas Literatura 30 A vida descrita em curvas de estrada no mais recente livro de Alessandro Baricco Música 34 Giuseppe di Stefano: o auge e o fim da carreira de um grande tenor Cinema 36 Contar a vida divinamente fez de Federico Fellini o diretor mais premiado da história do Oscar Perfil 38 A intensa expressão artística de um dos nomes mais importantes do teatro: Gianni Ratto Espaço aberto 42 “São fios de existência em meio a tantas mortes, é a vida resistindo apesar de tudo.” Ensaio fotográfico 44 Italianos e descendentes que construíram suas vidas com muito trabalho, em família Gastronomia 48 A cozinha homogênea e detalhista da Puglia Turismo 52 Nem terremotos nem guerras tiraram da Puglia o posto de uma das regiões mais charmosas da Itália Artigo/Educação 58 A postura construtiva dos adultos é essencial para que se acabe com o bullying Memória 59 Álbum aberto 6 Capa: Arthur Fujii Arthur Fujii Walter Albertin, New York World-Telegram & Sun Collection - Library of Congress Tadeu Brunelli C4 Arquivo Pessoal Ennio Candotti C5 André Santana C6 Gianni Ratto: www.gianniratto.com C1 C3 C2 C1 C2 C3 C4 C5 C6 A Revista DanteCultural (ISSN 1980-637X) é uma publicação do Colégio Dante Alighieri José de Oliveira Messina - Presidente José Luiz Farina - Vice-presidente Renato Bernardo Fontana - Diretor Secretário Salvador Pastore Neto - 2º Diretor Secretário João Ranieri Neto - Diretor Financeiro Milena Montini - 2ª Diretora Financeira José Piovacari - Diretor Adjunto Francisco Parente Júnior - Diretor Adjunto Sérgio Famá D'Antino - Diretor Adjunto José Perotti - Diretor Adjunto Lauro Spaggiari - Diretor Geral Pedagógico DanteCultural Fernando Homem de Montes - Publisher Marcella Chartier - Editora (jornalista responsável - MTb: 50.858) Revisão: Luiz Eduardo Vicentin Projeto Gráfico: Nelson Doy Jr. Diagramação e arte: Simone Alves Machado e Joyce Buitoni (assistente) Ilustrações: Milton Costa Comercial: Vinicius Hijano Colaboradores: André Santana, André Tadao Kameda, Arthur Fujii, Daniel Lima, Edoardo Coen, Kátia Mello, Kelly Cristina Spinelli, Itamar Cardin, Julia Zanolli, Luisa Destri, Silvana Leporace, Silvia Percussi, Tadeu Brunelli Cartas Mande suas sugestões e críticas para [email protected] Tiragem: 6 mil exemplares Colégio Dante Alighieri Alameda Jaú, 1061. São Paulo-SP Fone: (011) 3179-4400 www.colegiodante.com.br Notas A nova geração do Cinema Brasileiro Quico Meirelles (que cursa Audiovisual na USP, à esquerda na foto) e Pedro Morelli (estudante de Cinema da mesma universidade, à direita) vieram ao Dante a convite do Departamento de Língua Portuguesa, no dia 26 de março, para falar aos alunos das 3as séries do Ensino Médio sobre o filme Ensaio sobre a cegueira (Blindness), apresentado na abertura do Festival de Cannes deste ano e com estréia prevista no Brasil para setembro. A obra, uma co-produção do cinema nacional com o Canadá, o Reino Unido e o Japão, é baseada no livro homônimo (adotado na Escola para os terceiranistas), do escritor português José Saramago. A direção é de Fernando Meirelles, pai de Quico e um dos sócios da O2 Filmes (responsável pela produção brasileira). O pai de Pedro, o diretor Paulo Morelli, também é sócio da produtora. Pedro participou das filmagens como estagiário da figuração (foram mais de mil figurantes para representar a população de uma cidade em que todos ficam cegos), e Quico estagiou na assistência da direção. No Dante, os dois exibiram, pela primeira vez, o documentário Um dia no escuro, que realizaram como laboratório para o filme Ensaio sobre a cegueira. Nele, a dupla passa 24 horas em uma casa com mais quatro pessoas, todos vendados. O curta divertido provocou risos na platéia, mas também uma reflexão sobre os efeitos da cegueira coletiva na casa. Após a apresentação do documentário, os alunos saciaram suas dúvidas sobre o trabalho no cinema, os cursos de Quico e Pedro na faculdade, e discutiram também um pouco sobre o livro de as Saramago. As 3 séries do Ensino Médio estavam, naquela semana, finalizando um documentário sobre a mesma obra. "Foi muito rica a visita ao Dante porque discutimos com o público, pela primeira vez, as questões do nosso filme", diz Quico. "E ainda demos idéias para os documentários deles", conclui Pedro. Cores e boa música da Itália no Dante Enquanto os músicos Enzo Favata e Marcello Peghin executavam os arranjos de música italiana em seus instrumentos (saxofone, clarinete, violões acústicos, e outros étnicos de sopro livre), o artista visual Mariano Chelo desenhava, de improviso, de acordo com a inspiração que os sons lhe traziam. As imagens, de cores e traços que acompanhavam a cadência das músicas, eram projetadas em uma tela atrás dos músicos, em um auditório apenas parcialmente iluminado. "O público se hipnotizou com a união das cores e dos sons, foi um momento para nos abandonarmos à visão e à audição", comenta Luigina Peddi, diretora do Istituto Italiano 8 Sandro Mitter João Florêncio di Cultura de São Paulo. O órgão foi responsável pela promoção da bela apresentação Música: Colore & Spirito, que aconteceu no Dante no dia 6 de junho. O repertório incluiu música popular da Sardenha (ilha italiana), jazz e uma homenagem à música brasileira, com a interpretação de uma canção do compositor e arranjador Egberto Gismonti."Achei fantástico, um espetáculo de grande gabarito, com músicas muito bem executadas e uma composição visual incrível", opina Marco Marsilli, cônsul da Itália em São Paulo, que esteve presente. “Apagar as luzes e aceitar o escuro” "Antes que vocês me façam perguntas sobre minha obra, preciso dizer que me esqueço de meus livros depois que os escrevo. Senão os personagens tomam conta de mim. Então perdoem se eu não me lembrar de algo, sinto vergonha". Foram as primeiras palavras do escritor moçambicano Mia Couto na palestra ministrada no Dante no dia 26 de março (e promovida pelo Departamento de Língua as Portuguesa) aos alunos das 3 séries do Ensino Médio - mas que também foi assistida por professores e funcionários, o que resultou em um auditório Miro Noschese lotado por um público atento às palavras do autor africano. A declaração de Mia Couto no início da palestra retrata a necessidade do autor de expurgar a amplidão que cada livro seu guarda, para conseguir se afastar, e então se preparar para o envolvimento com novos personagens e histórias. Não é à toa que ele tenha essa necessidade: em seus livros, a linguagem fácil de acompanhar e até mesmo o humor convivem com elementos fantásticos da cultura africana, crenças daquele povo, apontamentos sobre o preconceito racial e a formação de estereótipos, e referências constantes à guerra que matou mais de um milhão de pessoas e culminou na independência de Moçambique, em 1975. "A literatura ajuda a recobrar a ferida e a transformar a dor da guerra em história", disse Couto. Para tratar das memórias dolorosas de modo a permitir que elas cicatrizem, o autor revelou o segredo: "Temos que fazer da tristeza nossa amiga, não fugir dela. E apagar as luzes dentro de nós, aceitando o escuro sem medo, para podermos enxergar as estrelas". O Colégio adota dois títulos de Mia Couto para os alunos do Ensino Médio: O outro pé da sereia e O último vôo do flamingo. O autor soube disso apenas durante a viagem ao Brasil. "Fiquei muito feliz, para mim foi uma surpresa. Fiquei aflito com isso no começo porque achei que poderia ser a morte do livro, se tivesse havido uma relação fria desses jovens com a literatura. Mas hoje vi aqui que foi muito mais que isso, os alunos perceberam muito dos meus livros e refletiram de verdade", comentou Couto. João Florêncio João Florêncio Cartas Em meu nome e em nome de toda a equipe do Ca'd'Oro, gostaria de agradecer a linda e generosa matéria alusiva à nossa empresa, publicada na edição nº 8 da excelente revista Dante Cultural. Como ex-aluno dessa gloriosa escola, à qual muito devo pela minha formação, fiquei duplamente feliz e emocionado. Aurelio Guzzoni Diretor-presidente Indústria de Hotéis Guzzoni S/A Gostaria de parabenizar a equipe pela excelente qualidade de suas matérias. Durval Paupério Sério Bela, como sempre, a Dante Cultural. Apreciei a matéria "A Mérica da Colheita" e os tristes e heróicos acontecimentos da história do Palestra Itália. Lino Pretto 9 Entrevista Divulgação 10 Conhecimentos múltiplos para entender o mundo Grande nome da divulgação científica no Brasil, Ennio Candotti está sempre de mudança. Mantém o olhar atento às peculiaridades e à história de cada lugar, atitude essencial para a compreensão de realidades e para o cultivo das diferenças Por Marcella Chartier Imagens: Arquivo pessoal Ennio Candotti A pesar de o entrevistado desta edição da DanteCultural ser reconhecido como físico de carreira dedicada à ciência, o que se nota, depois de se conhecer sua trajetória, é a multiplicidade. Ennio Candotti foi aluno do Dante de 1953 a 1960 e, depois de graduado em Física pela USP, passou dez anos na Europa (principalmente entre Itália e Alemanha), estudando outras áreas, como Ciências Sociais, Geografia e História. De volta ao Brasil em 1974, envolveu-se com a organização do Instituto de Física do Rio de Janeiro, no qual edificou uma de suas principais bandeiras: o desenvolvimento e a divulgação da ciência no país. Para se concentrar nesses objetivos, não prescindiu do olhar abrangente, atento também à totalidade e às nuances dos fenômenos que vão além dos físicos. Tal amplitude de foco é resultado de seu passeio interdisciplinar pelo conhecimento, que marcou todos os projetos dos quais participa até hoje. De lá pra cá, Candotti reconhece uma evolução satisfatória, tanto na área de desenvolvimento e divulgação, quanto na de infra-estrutura da produção científica. "Em 1980, as pessoas que se dedicavam a isso por aqui cabiam numa Kombi. Hoje, já precisamos de um avião para colocar todos", comemora. Mas o otimismo em relação ao tema, para ele, depende diretamente de um progresso na educação. "Nosso ensino ainda é muito teórico, pouco prático, os laboratórios não ocupam espaço maior que os das salas de aula expositiva", afirma. Para ele, a variedade de talentos deve ser respeitada, e cada habilidade, depois de detectada, aperfeiçoada. "Tem pessoas que não sabem resolver uma questão algébrica, mas sabem pensar em maneiras de se mover no espaço, dançando. Por que não dar a elas a chance de se manifestarem e se comunicarem por meio dessa capacidade?", questiona. Aos 66 anos, o ex-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) - hoje presidente de honra da mesma instituição -, está se mudando de Vitória, onde era professor da Universidade Federal do Espírito Santo, para Manaus, no Amazonas, para conduzir o que chama de sua mais recente paixão: a fundação do Museu de Ciências Naturais do Estado Amazônico. "O projeto promove um modo de olhar para a floresta amazônica, atento às peculiaridades daquele lugar. É essencial que se procure entender a Amazônia sem fixar parâmetros rígidos", afirma. Antes da partida, concedeu esta entrevista à DanteCultural, na qual falou sobre ciência, educação, intercâmbio de intelectuais entre os países da América Latina, e também lembrou os tempos de aluno do Dante. O senhor nasceu na Itália e se mudou ainda criança para cá. Como foi a viagem ao Brasil e a adaptação no novo país? Nasci em Roma, em fevereiro de 1942, e cerca de dois anos depois, meu pai - que era diretor de um banco - foi transferido para Veneza. Em 1945, foi transferido novamente, desta vez para Trieste. Lá que eu fui alfabetizado. Depois nos mudamos para San Remo, onde meu pai ficou desempregado. Vivíamos em plena crise do pós-guerra e ele era um alto funcionário sem perspectiva de trabalho em uma cidade pequena. Decidiu, então, emigrar para o Brasil. Veio no início de 1952, e logo em seguida viemos eu, minha mãe e meu irmão mais novo. Viajamos em um navio de emigrantes de 17 mil toneladas. Hoje, quando vejo esses navios pequenos atravessarem o oceano, me dá até medo. Era quase uma caravela, cheia de gente, e me lembro bem das noites de mar muito agitado. Chegamos no fim de 1952 ao porto de Santos, e a primeira lembrança que tenho do Brasil é de quando me ofereceram guaraná, quente, e não gostei. Viemos morar em São Paulo, e dois meses depois eu já estava no Dante. Morava pertinho, então ia todos os dias a pé para a escola. Como eu ainda tinha dez anos no momento da matrícula, em fevereiro, tive que cursar de novo o último ano do primário. Mas foi bom para que eu pudesse aprender a língua portuguesa com mais calma. Quais são suas lembranças dos tempos de Dante? Lembro de jogar bola no campo de futebol, de comer sanduíche de mortadela da cantina no recreio, do sr. Marino (Marino Serafino, porteiro do Colégio na época) tocando o sino, das filas que se formavam para descer ao pátio e para subir à sala de aula. Lembro também que era muito comportado, talvez até demais, e era muito bom aluno de História, Geografia e Desenho, não de Física. Talvez eu devesse ter me dedicado mais à História do que à Física. Tive professores atentos e generosos, uma professora em especial foi muito importante, lecionava italiano, chamava-se Camerini. Era mãe 11 de um físico que tinha sido colega do Cesar Lattes (um dos maiores físicos brasileiros, também exaluno do Dante). E foi ela que me fez encontrar o Lattes para fazer uma entrevista, que foi publicada no jornal de que eu fazia parte na escola, em 1959. Eu cismava em estudar Física, um pouco por teimosia, mas também por influência de uma leitura que fiz quando pequeno. Meu avô era advogado e diretor de uma escola secundária, e lia bastante, tinha uma biblioteca fabulosa em casa. E me deu de presente, antes de eu sair da Itália para vir ao Brasil, um livro chamado Este mundo grande e terrível, da Ginestra Amaldi. Era um livro de divulgação científica, de física, zoologia, astronomia, que eu lia durante a viagem, deixava embaixo do travesseiro. E a entrevista e o livro motivaram o senhor a estudar Física... É. Mas acabei fazendo, por um tempo, Física durante o dia e Economia à noite, neste prédio da [rua] Maria Antonia em que estamos (a entrevista foi concedida na sede da SBPC). Depois, passei dez anos na Europa estudando outras áreas que não a Física. Me envolvi com atividades culturais, interdisciplinares, me aproximei da Geografia, das Ciências Sociais, da Antropologia, da História. Um pouco das dúvidas que tive no momento da escolha da minha profissão se explicitaram e acabaram se tornando objetos de atividade permanente. Esta foi a minha grande sorte: encontrar um caminho pelo qual eu pude conviver com profissionais de diferentes áreas e aprender muito com eles, estudar, me interessar por Depois de passar caminhos cruzados. o início da infância E como foi o retorno ao Brasil? na Itália, Candotti Foi em 1974, quando comecei a morar no Rio de emigrou para Janeiro e participei da organização do Instituto de o Brasil. Na foto Física de lá, que acabou me envolvendo com a à esquerda, está com SBPC. Voltei ao Brasil justamente para tratar da o avô, que lhe divulgação científica por aqui. Em 1980, participei presenteou com um da criação de uma revista que tinha esse objetivo, livro de divulgação chamada Ciência Hoje - que ainda circula -, e mais científica, primeiro tarde, em 1986, elaboramos a Ciência Hoje das estímulo que recebeu, Crianças, que foi inspirada pelo Corriere dei Piccoli, ainda garoto, para um jornalão italiano para crianças que exerceu entender e descobrir grande influência na minha formação. Tinha muito os fenômenos da desenho, com histórias para crianças escritas por ciência. Na foto cientistas. à direita, Ennio e sua mãe, na Itália Foi difícil escrever para crianças? Menos do que se imagina. Se você tem alguma coisa para dizer, encontra a fórmula. Tem pessoas mais habilidosas que podem ajudar também, e o segredo dessas revistas é que sejam feitas a seis mãos: o autor escreve, o redator ajuda a esclarecer, o desenhista, diagramador ou profissional da arte dá conta das ilustrações e das imagens - o que, no caso das publicações infantis, é extremamente importante, chega a ocupar 60% do espaço. Por que o senhor quis escrever para crianças? Por duas razões: uma é que a curiosidade delas é muito grande - e eu também sempre fui muito curioso, desde pequenininho desmontava relógios em casa, para desespero dos meus pais. E essa curiosidade tinha pouca ressonância, pouca resposta, publicações infantis tratavam sempre dos mesmos temas envolvendo a fantasia livre, mas sem abrir as caixas para ver por dentro o que acontece nos seres, nos objetos, no mundo. Achei que seria importante incorporar a curiosidade científica, em relação ao que não se vê a olho nu, com o olhar desarmado. Estimular a educação do olhar para enxergar as mesmas coisas que todos vêem, mas com aspectos curiosos, diferentes, estabelecer conexões. Além disso, naquela época tinha nascido meu filho (Fábio, que nasceu do casamento com Maria Elisa da Costa Magalhães), e como dedicava pouco tempo a ele, pensei: pelo menos faço uma revista para ver se ele lê. Mas como bom cientista social, nunca deu muita bola para a Ciência das Crianças. Quando o senhor foi à Europa, tinha o objetivo de estudar e acabou permanecendo por muito tempo lá. Teve vontade de não voltar ao Brasil? Fui com uma bolsa da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para fazer graduação, mas também tinha sido convidado pelo governo da Itália como aluno italiano no Brasil. Era um curso de dez meses. Aí conheci, pelo Instituto de Física da Universidade de Pisa, um professor que trabalhava com o Lattes, e fui para Pisa. Quando cheguei lá, vi que dez meses eram só o começo, então pedi que a bolsa da FAPESP me fosse concedida por mais tempo, e consegui. Passei dois anos em Munique, na Alemanha, depois fui para Nápoles por mais dois anos. Quis voltar ao Brasil em 1969, mas muitos colegas de faculdade estavam fugindo daqui porque a situação política era lamentável. As pessoas que chegavam na Europa me aconselhavam a não voltar. Fiquei muito abalado, tive amigos que foram mortos pela repressão. A indignação com aquilo que estava acontecendo me fez procurar entender as questões políticas, o mundo, e fiquei mais cerca de quatro anos na Europa estudando. Quando recebi o convite para me estabelecer no Rio de Janeiro, voltei. Sempre gostei de cidades com mar e não foi difícil aceitar. E quando assumiu seu primeiro cargo na SBPC? Eu fui secretário regional no Rio de Janeiro de 1977 a 1981. Depois fui conselheiro, vice-presidente, e quatro vezes presidente. Hoje sou presidente de honra e membro do conselho, quase parte dos móveis da SBPC (risos). 10 Também pelo vínculo com a SBPC pude conviver com profissionais de muitas áreas, escrever, promover e continuar a divulgar a ciência. Encontrei meio propício para contribuir com a educação no país, e para criar instituições capazes de promover o desenvolvimento científico. Tenho muita satisfação em ver que muitas idéias, projetos e propostas têm sido realizados pelo país todo, o que acompanho de perto viajando. Então tenho um razoável conhecimento do que acontece em diferentes estados em que realizamos esses eventos. Hoje estou empenhado em criar um museu de Antropologia e História em Manaus. Mais uma vez, deixarei meu apartamento de Vitória, no Espírito Santo, perto do mar... Vai ficar mais perto de um rio... É, no meio da floresta. Já mudei de casa umas 25 vezes nesses anos todos... (risos) Só de carregar livros para cima e para baixo já tenho uma certa experiência. Ao longo dos seus diferentes mandatos na SBPC, como notou as mudanças no desenvolvimento e na divulgação da ciência no Brasil? Em 1980, as pessoas que se dedicavam à divulgação científica em nosso país cabiam numa Kombi. Hoje, já precisamos de um avião para colocar todos. Há um número grande de jornalistas, escritores e pesquisadores universitários que se dedicam com atenção à responsabilidade de contar tudo o que se sabe, explicar, e não apenas a escrever, mas também a criar museus, centros de pesquisa, laboratórios, a participar da renovação até mesmo da educação, que ainda hoje é um pouco antiquada. Atualizar a educação é tarefa complexa, mas muito importante. Nosso ensino é ainda muito teórico, muito pouco prático, os laboratórios não ocupam espaço maior que o das salas de aula expositiva. E a tendência, daqui a 20, 30 anos, é que o espaço dedicado a exercício e prática, ao movimento, à música, à arte, seja maior que o da exposição oral e de orelhas grandes e atentas ao que diz o professor. Fazer junto com os professores é um desafio que aos poucos a educação vai entendendo. Vamos falar um pouco sobre a atuação do governo em relação à ciência. O senhor acha que ela está sendo tratada com a devida atenção? Acompanho isso há 30 anos, e a luta pela criação de instituições científicas no país é bemsucedida. Temos uma infra-estrutura de produção científica muito superior à que tínhamos 50 anos atrás. Formamos hoje muito mais gente de alto nível de especialização. Estamos em condições de enfrentar de igual para igual o desenvolvimento científico e as exigências do conhecimento no mundo moderno, e também de executar sua aplicação em um mundo produtivo. Não estamos muito longe de poder competir com centros mais avançados. Aqui se fazem aviões, se extrai petróleo em condições muito complexas, e isso é produto de nossas universidades. Claro que se usam Formamos hoje muito mais gente de alto nível de especialização e estamos em condições de enfrentar de igual para igual o desenvolvimento científico e as exigências do conhecimento no mundo moderno, e também de executar sua aplicação em um mundo produtivo. conhecimentos internacionais, mas eles estão à disposição de quem sabe lê-los, e saber ler é saber fazer igual. O país mudou completamente: de importador e fascinado pelo que os países do Norte faziam, para um país que tem capacidade de pensar com a própria cabeça, infra-estrutura para isso. A USP é hoje muito diferente do que era 30, 40 anos atrás. Eu lamento apenas que institutos como o da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) não tenham sobrevivido como eram, centros de interdisciplinaridade, com atividades intelectuais muito intensas. Quando estudante, eu chegava aqui às 8 horas da manhã, assistia às aulas de graduação em Física, à tarde dava algumas aulas ou estudava, e voltava para assistir às aulas de Filosofia, de Ciências Sociais, de Literatura, Arte, que me marcaram muito. Essa interdisciplinaridade sempre foi seu interesse e se mantém até hoje. Sem dúvida. E cada vez mais se nota que a educação fora da sala de aula estimula isso... Exato. A educação precisa se diversificar, incorporando as dimensões artísticas, nossas faculdades que vão além do somar e subtrair, do ler e escrever, mas usando as artes: a música, o desenho, a criação, a poesia. Isso tudo educa e é importante que conviva com uma educação mais formal, que sozinha acaba sempre pendendo para a disciplina e a organização, o que tolhe, muitas vezes, o que há de mais rico na formação dos jovens. O senhor morou em muitos lugares. Por isso pôde perceber, pessoalmente, a importância de cada ambiente ser observado no que diz respeito às suas peculiaridades e necessidades, o que é uma de suas principais bandeiras... Sim, aos poucos fui aprendendo a distinguir os pontos de vista e a sempre procurar me colocar em algum ângulo que possibilitasse a revelação das riquezas, não do emaranhamento de cada lugar. Se você vai à Amazônia e a olha com nossos olhos de asfalto, não vai entender nada. Se você olhar pensando no movimento das águas, nas possíveis formas de conviver com ele e aproveitar o que ele pode lhe oferecer, você encontra as chaves do transporte, do movimento, da compreensão da vida que nos cerca. E isso vale para a cidade grande e para a pequena. Há sempre uma maneira de se aproximar. Precisamos ver as comunidades ribeirinhas, as indígenas, ou até mesmo as universitárias do interior de São Paulo com 13 Sala de aula em Trieste, cidade do nordeste italiano, onde Candotti foi alfabetizado Precisamos ver as comunidades ribeirinhas, as indígenas, ou até mesmo as universitárias do interior de São Paulo com olhos atentos à sua história, às suas peculiaridades, ao modo como cresceram, como se formaram, e procurar entender como elas são sem tentar olhar com parâmetros fixos e rígidos. olhos atentos à sua história, às suas peculiaridades, ao modo como cresceram, como se formaram, e procurar entender como elas são sem tentar olhar com parâmetros fixos e rígidos. Isso permite colher o que de melhor cada lugar e cada pessoa podem oferecer, como cada comunidade pode contribuir para a vida em comum, com participação social no país. Quando você desenha um objeto, faz isso segundo um ponto de vista. Se você sai desse ponto, vê outra coisa, não quer dizer que seja melhor nem pior, mas é diferente. Aprendi isso, sem saber, com os mestres da arte toscana quando eu estava em Pisa. O mundo precisa ser olhado com ponderação e critérios para ser compreendido. O projeto do museu amazônico de que eu falava é um pouco isso, um modo de olhar para a floresta. O olhar que uma pessoa de cultura indígena brasileira tem para com a floresta é completamente diferente do que o de um norte-americano ou o de um brasileiro de Brasília. A curiosidade infantil característica peculiar também de Candotti, que desmontava relógios em casa quando menino - serviu de motivação para que ele participasse da criação de uma revista de divulgação científica para crianças, a Ciência das Crianças Fale um pouco sobre esse projeto do Museu de Ciências Naturais do Estado Amazônico. É a última paixão que tem me envolvido. Nesses últimos quatro, cinco anos de participação na SBPC, fui muitas vezes à Amazônia discutir os desastres, a audiências no Congresso Nacional, discussões na TV ou privadas, e com isso tomei um bom conhecimento do que se passa lá, dos desafios que se encontram em toda a Amazônia. Isso me levou a sugerir que se criasse um museu de sociodiversidade, antropologia, das culturas tradicionais e também da diversidade biológica, incorporando a floresta com diferentes olhares e usando também a tecnologia (como censores de radiação infra-vermelha e ultravioleta, que nos permitem ouvir sons que não conseguimos, sentir cheiros que não percebemos). Estar numa floresta e poder acompanhar cheiros, cores e estímulos com amplificadores é maravilhoso. Fiz essa proposta a amigos que têm capacidade de decisão em Manaus e eles aceitaram, desde que eu fosse dirigir a orquestra. Então, como bom maestro, aceitei o desafio e estou me mudando para lá. M as estamos ainda comprando os instrumentos, treinando as flautas, os oboés, os violinos... O senhor está sempre de mudança... É, mas fiquei bastante tempo em alguns lugares: 20 anos no Rio, 13 em São Paulo, 12 em Vitória..., mas já estava impaciente, chegando ao limite da minha capacidade de permanência. Queria que o senhor falasse um pouco sobre sua proposta de intercambiar estudantes entre os países da América Latina. Esqueci de contar que passei dois anos em Buenos Aires, de 1987 a 1989, trabalhando na criação da Ciencia Hoy, que é a versão argentina da Ciência Hoje. A partir dessa experiência, eu percebi a importância de se intensificar a cooperação entre os países latinos para a educação ser dada em múltiplas dimensões. Não há nada mais triste do que ver um jovem se formar de uma forma monocromática, incapaz de ver as nuances, a multiplicidade de cores e de tons, o que ocorre muitas vezes quando a educação se fecha em suas poucas verdades, certezas e normas. E as normas se sobrepõem à capacidade de renovação delas mesmas - muitas vezes porque o pensamento conservador é temeroso, educa no temor, e isso também acontece na Argentina. A soma de um mais um sempre dá mais do que dois, porque cada um descobre não apenas o que o outro pensa, mas como é limitado o seu próprio modo de pensar. Tenho a impressão de que a necessidade de reescrever a história da América Latina é fundamental para que esses países tenham respeito, níveis de consciência melhores e uma boa auto-estima para a realização de seus projetos à altura de sua gente, que é magnífica, mas é tolhida, aprisionada por uma história mal escrita, uma memória mal contada, uma impossibilidade de alcançar os melhores ideais. É um mundo que precisa ainda se libertar de muitas restrições que sofreu por vários anos. Na Europa, os países superaram tudo isso porque eles lá tiveram Idade Média. Ao contrário de nós, eles tiveram tempo para entender e incorporar as culturas antecessoras. Aqui ainda existe, hoje, uma dificuldade imensa de aceitar as comunidades tradicionais indígenas. Não se fez aquela enorme purgação que os europeus fizeram. A Idade Média permitiu repensar as próprias culturas locais, assentá-las, mostrar as diferenças. Dificilmente, sem Idade Média, teríamos hoje uma Europa unida. Eles passaram por profundas diferenças, conflitos, tiraram isso a limpo e agora conseguem, de vez em quando, convergir. Não conseguimos ainda nos entender muito bem na América Latina - apesar de estarmos próximos disso - porque as razões de nossas diferenças ainda não foram explicitadas. As histórias foram sempre escritas por diferentes pontos de vista, não cruzados, com olhares muito pouco atentos a isso e a entender a essência dos conflitos e das convergências. Por isso acho essencial a cooperação científica americana, o intercâmbio cultural, dentro dos limites que a política permite. Nesse momento é muito favorável a possibilidade de um maior acercamiento, de um confronto genuíno de interesses. Pensando nas necessidades específicas de cada lugar, qual a principal que o senhor enxerga no campo científico no Brasil e na América Latina? Conhecer o país é muito importante. A biologia, biodiversidade, a cultura, a própria história, que está sendo revelada aos poucos. Temos uma porção de clichês, de uma história muito marcada por acontecimentos do exterior. E as instituições de educação e de ciência são muito frágeis. Ainda é preciso se demonstrar a necessidade de fazer ciência, e que determinados sacrifícios devem ser feitos. Tem programas de apenas dez, 15 anos, que são prazos muito curtos, e isso não é porque os governos mudam, é porque as sociedades não conseguem sustentar esses programas com ou sem governo e levá-los adiante. A discussão sobre as células-tronco, por exemplo: ninguém se dá conta de que, não só para saber que as células-tronco são importantes, mas também para saber que no processo é necessário sacrificar aquele óvulo fecundado (o embrião de onde são extraídas as células), foi preciso sacrifício. Foi necessário saber romper os limites de nossa ignorância, e interferir naquele mundo. A toda hora fazemos escolhas, sacrificamos pessoas em sua dignidade, em sua vida cotidiana. Esse tráfego mata quantas pessoas por dia? Por isso vamos proibir os automóveis de circular? Temos que continuar as pesquisas. Até aquilo que os mais radicais sabem foi graças ao sacrifício de algumas pessoas. Precisamos ainda fazer com que a educação seja um instrumento de vida coletiva, construção, tolerância, entendimento entre as pessoas, e estamos muito longe disso. Não basta ter educação, é necessário que ela seja boa. Ter uma má educação pode prejudicar ainda mais, porque um conhecimento mal utilizado é uma arma que causa danos. Arquivo Dante Ainda falando de educação, o senhor também defende a intensificação das relações entre o ensino médio e as universidades... Sim, eu acredito que a falta de canais de comunicação não é uma falta de livros e de leitura, mas de práticas. No sistema de educação que temos hoje em dia, ensinar a resolver uma equação matemática de primeiro grau vale mais do que ensinar a fazer um bom arroz. Pois eu afirmo que saber fazer o arroz é muito mais difícil. Claro que é preciso ter uma certa abstração para resolver uma regra de três, por exemplo, mas é uma tarefa que tem uma seqüência de normas a serem obedecidas. Fazer o arroz, não. Precisa fazer muito arroz, apanhar muito, queimar, errar na dose da água, do sal, na qualidade do arroz, compreende? São muitas coisas para entender. E nós continuamos a ver com desconfiança ou admiração desmedida - que é uma forma de distância - quem sabe fazer um bom arroz. Não há nada mais triste do que ver um jovem se formar de uma forma monocromática, incapaz de ver as nuances, a multiplicidade de cores e de tons, o que ocorre muitas vezes quando a educação se fecha em suas poucas verdades, certezas e normas. E isso vale para um bom marceneiro, para um bom pedreiro, para uma pessoa que saiba construir uma TV, um computador. Então, a prática da oficina é a capacidade de realizar e de pensar. O espaço desenhado sobre uma folha de papel tem duas dimensões, mas na realidade tem três, e na escola o volume do espaço em que nos movemos é transformado em uma folha. Isso tolhe, reprime, inibe, reduz a capacidade de expressão. Tem pessoas que não sabem resolver uma questão algébrica, mas sabem pensar em maneiras de se mover no espaço. Por que não dar a elas a chance de se manifestarem e se comunicarem por meio dessa capacidade? Eles aprenderão também, da mesma forma que as pessoas que sabem lidar com as equações. Não podemos obrigar todos a seguirem um padrão. Essa padronização d a e d u c a ç ã o é empobrecedora, esteriliza a criatividade do jovem. Se não respeitarmos as diferentes simpatias e vocações de cada um, ficaremos em uma sociedade de conflitos que está mais preocupada em frustrar do que em cultivar. Candotti guarda ainda cadernetas escolares e outras lembranças dos tempos de Dante, como boletins e exemplares de um jornal produzido com outros ex-alunos quando cursavam o último ano na Escola, o Gazzettino Capa Uma cidade erguida por italianos Bairros inteiros - e alguns dos prédios mais famosos de São Paulo - surgiram por causa da imigração italiana no final do século XIX Por Kelly Cristina Spinelli I Fotos: Arthur Fujii magine uma pequena cidade silenciosa, com casinhas de taipa, alguns edifícios de repartições públicas, poucas lojas, ruas sem calçamento, e grandes chácaras, afastadas do centro. Essa era a cidade de São Paulo até, aproximadamente, 1870. Os paulistanos eram então herdeiros diretos dos portugueses, e a arquitetura da cidade na época (o pouco que se conhece dela) seguia padrões coloniais. As chácaras eram chalés de um andar, com janelas e portas grandes para amenizar o calor. Os maiores palacetes do centro tinham de dois a três andares, pequenas sacadas sobressalentes, telhados salientes e fachadas revestidas de azulejos de diferentes cores. Ninguém ali acreditaria se dissessem que, em pouco tempo, a pacata São Paulo estaria completamente transfigurada na maior e mais importante cidade do país. As casinhas de operários A Itália havia passado por décadas de guerra em busca de sua unificação, que aconteceu em 1871. A densidade demográfica era grande na região, uma das mais populosas de Europa, e as condições 14 Museu do Ipiranga (hoje Museu Paulista da USP) Logo depois da proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, surgiu a proposta de se levantar um monumento comemorativo no próprio local onde a data histórica aconteceu, às margens do rio Ipiranga. Porém, por falta de verbas e de entendimento sobre o projeto, só depois de 68 anos o edifício foi inaugurado, em 1890. O engenheiro-arquiteto italiano contratado para projetá-lo foi Tommaso Gaudenzio Bezzi. Nascido em Turim em 1844, Bezzi foi oficial do exército, além de voluntário nas campanhas de Giuseppe Garibaldi pela unificação italiana. Em 1875, veio para o Brasil e começou a trabalhar com arquitetura, sua profissão de formação. A construção ficou a cargo de Luigi Pucci, italiano nascido em Grassina, província de Florença, que seguiu o projeto fiel e rapidamente. O monumento à independência, em seu projeto original, tinha a forma de um E, mas duas alas laterais foram abandonadas por razões de economia. Ele é repleto de elementos decorativos e inspirados no estilo neoclássico italiano. Era o maior prédio da cidade na época de seu lançamento. Mais tarde, entre 1908 e 1909, o paisagista belga Arsenius Puttemans projetou os jardins em torno do edifício, inspirados no paisagismo barroco francês, como o do Palácio de Versailles. econômicas, difíceis. Faltava emprego e os impostos eram altos. Sete milhões de italianos emigraram entre 1860 e 1920, segundo o IBGE. Cerca de 1,4 milhão deles vieram para o Brasil entre 1870 e 1920, muitos atraídos pela imigração subvencionada (os fazendeiros queriam imigrantes para substituir como trabalhadores livres os escravos abolidos pela Lei do Ventre Livre, de 1871, e o governo financiava passagens e alojamentos para lhes incentivar a vinda). O estado de São Paulo recebeu boa parte dos imigrantes, e muitos se instalaram na capital. Para se ter uma idéia, em 1900 havia 50 mil trabalhadores em fábricas paulistas, dos quais 90% eram italianos. Foi uma revolução cultural, econômica, social e, além disso, arquitetônica na cidade, que já em 1900 era conhecida como a “cidade italiana” do país. Com o pouco dinheiro que conseguiam juntar, os italianos se ajudavam na construção das primeiras casas operárias da cidade. Ruas e bairros inteiros se formaram pelas mãos dos imigrantes. Eles usavam práticas de construção trazidas de seu país de origem para erguer casinhas parecidas com as que lembravam ter na Itália e das quais sentiam falta. A São Paulo fim-de-século surgiu assim, e pesquisadores como Anita Salmoni e Emma Debenedetti, autoras do livro Arquitetura italiana em São Paulo, classificam a capital da época como "a cidade da saudade". As casas dos trabalhadores italianos eram, em sua Teatro Municipal Uma das mais importantes criações do escritório de Ramos de Azevedo, o Teatro Municipal foi projetado e erguido por dois italianos, que, apesar de terem o mesmo sobrenome, não eram parentes: Cláudio Rossi e Domiziano Rossi. O autor do projeto monumental foi o primeiro, que tinha um gosto particular pelos materiais nobres e por uma decoração suntuosa. O prédio foi inaugurado em 12 de setembro de 1911, depois de nove anos de trabalho consecutivos. Em 1922, serviu de palco para a Semana de Arte Moderna, marco inicial do modernismo no Brasil. Alguns arquitetos o criticavam pela má utilização de espaços internos e problemas de acústica. Ainda assim, se tornou cartão postal da cidade e foi tombado como patrimônio histórico. Desde a sua inauguração, três reformas aconteceram para restaurá-lo e modernizá-lo. maioria, geminadas, ou seja, separadas uma da outra por muros finos. Sua planta era muito parecida: uma entrada lateral, quartos enfileirados, sala, cozinha e quintal. Deram à cidade uma estética padronizada. Vila Buarque, Higienópolis, Campos Elíseos, Bom Retiro e Brás se tornaram bairros parecidos. 17 Viaduto Santa Efigênia Em 1910, depois de quase duas décadas de impasses burocráticos, o viaduto que liga os largos São Bento e Santa Efigênia começou a ser planejado. Os sócios italianos Giulio Micheli e Giuseppe Chiappori ganharam o projeto entre 20 propostas. O viaduto foi esteticamente concebido em estilo art nouveau, com belos arcos de ferro fundido incrementados de detalhes artísticos, como rosáceas. A estrutura foi totalmente fabricada na Bélgica. O viaduto foi inaugurado em 1913 pelo prefeito Raymundo Duprat. Depois, em 1978, passou por reformas que mudaram e descaracterizaram boa parte do projeto original. Uma cidade italiana Os bairros, que surgiam no lugar das enormes chácaras ao redor da cidade, eram ocupados aos milhares. Um exemplo é a Chácara das Palmeiras, que, leiloada em 1874, tornou-se as ruas Baronesa de Itu, Martim Francisco, Barão de Tatuí, Albuquerque Lins, a Avenida Angélica e a Alameda Barros. Os italianos ergueram quilômetros de ruas em poucos anos (muitas ganharam nomes como Rua Veneza, Rua Príncipe de Nápoles, ou Rua dos Italianos). Começaram a aparecer pequenos profissionais que se autodenominavam mestres-deobras, engenheiros e arquitetos, especializados nessas construções. Alguns imigrantes, os que enriqueciam, contratavam compatriotas para erguer seus palacetes. Famílias brasileiras também passaram a usar a mão-de-obra dos imigrantes. A cidade mudou tanto e tão rápido pelo 18 empreendimento coletivo, que houve quem, em 1900, se espantasse. Salmoni e Debenedetti citam em seu livro o texto de Alfredo Moreira Pinto, um advogado que havia deixado a cidade em 1870 e voltou para uma visita, 30 anos depois. "Era então S. Paulo uma cidade puramente paulista; hoje é uma cidade italiana!", escreveu, e foi além: "Tinhas então as tuas ruas sem calçamentos, iluminadas pela luz baça e amortecida de uns lampeões de azeite, suspensos a postes de madeira; tuas casas quasi todas térreas (...) O Braz, a Mooca e o Pary eram então insignificantes povoados com algumas casas de sapê (...) Não posso mais dar-te o tratamento de tu; fidalga como és, mereces hoje o tratamento de excellencia. Está V. Excia. completamente transformada, com proporções agigantadas, possuindo opulentos e lindíssimos prédios, praças vastas e arborizadas, ruas todas calçadas, belas avenidas (...)" Os grandes projetos Ao lado dos operários, vieram também a São Paulo, mas em menor quantidade, arquitetos já formados e muitas vezes reconhecidos em seus países. Eles importaram para São Paulo estilos que, embora muitas vezes já fora de moda na Itália, eram porém muito apreciados por aqui, como representações do neoclássico, tendência até as primeiras décadas de 1900, e, mais tarde, manifestações do estilo barroco, do gótico e do floreal, além de traços da arquitetura moderna. Enquanto nos bairros habitacionais os mestres-deobras construíam uma imensidão de casinhas, esses outros arquitetos foram necessários para erguer bancos, lojas, escritórios, edifícios, hospitais e universidades. A cidade crescia e ganhava novas necessidades. O primeiro grande trabalho que São Paulo encomendou a italianos foi a construção do monumento em homenagem à Independência. O Museu do Ipiranga (Museu Paulista da USP) foi projetado por Tomaso Gausenzio Bezzi e executado por Luigi Pucci entre 1884 e 1890. Na década seguinte, a arquitetura italiana em São Paulo ganhou mais fôlego e importância por causa de um brasileiro, Francisco de Paula Ramos de Azevedo. Arquiteto paulistano, ele fundou a companhia que levava o seu sobrenome e que foi responsável pela construção de muitos edifícios históricos da cidade, como o Teatro Municipal, o Mercado Municipal, o Palácio das Indústrias e o Palácio da Justiça. Ramos de Azevedo também reformulou o Liceu de Artes e Ofícios, até então uma escola genérica de cultura, transformando-a em um centro eficiente de criação de mão-de-obra prática. Muitos alunos do Liceu foram posteriormente seus colaboradores. Para completar, Ramos de Azevedo tinha um gosto particular pelo trabalho dos italianos. Eles eram contratados como pedreiros, mestres-de-obras, auxiliares, projetistas ou arquitetos das obras do escritório. "Entre eles e seus descendentes tenho encontrado os meus melhores auxiliares de todos os misteres; e seria injusto se não salientasse a sua notável colaboração no desenvolvimento e aperfeiçoamento dos processos e artes da construção", disse em discurso, em 1921. Um italiano que foi particularmente importante para o escritório foi Domiziano Rossi, que havia chegado a São Paulo em 1895. Ele foi inspetor do Curso de Artes do Liceu e se associou a Ramos de Azevedo em diversos projetos, como o Palácio das Indústrias e o Teatro Municipal (este assinado também por Cláudio Rossi). Entre 1900 e 1920, outro escritório foi importante para a arquitetura da cidade, mudando de nome de à medida que se sucediam os arquitetos que o representavam: Pucci e Micheli (depois denominado Micheli e Chiappori e, mais tarde, Chiappori e Lanza). No início, foi criado pela associação de Luigi Pucci (que executou o Museu do Ipiranga) com Giulio Micheli. A seguir, Micheli se associou a Giuseppe Chiappori e este, por fim, a Aldo Lanza. Entre outros trabalhos, o escritório foi responsável por refazer a Ladeira Porto Geral, próxima à Rua 25 de março, construir o Viaduto Santa Ifigênia, a Santa Casa de Misericórdia, além de muitos edifícios de habitação e escritórios, fábricas e, por fim mansões na Avenida Paulista e na Avenida Brasil. Edifício Conde Matarazzo (Banespinha) O Edifício Conde Matarazzo foi encomendado em 1938 por Ermelino Matarazzo ao italiano Marcello Piacentini, arquiteto oficial do regime fascista de Mussolini. Matarazzo o usou por anos para abrigar a sede de suas indústrias. O edifício, localizado ao lado do Viaduto do Chá, na Praça Patriarca, é repleto de linhas sóbrias e pilares altos, que lembram um pouco construções medievais. No topo, há um belo jardim, pelo qual ficou conhecido. Em 1947, o prédio passou para o Banespa (Banco do Estado de São Paulo) e, por isso, ganhou o apelido de Banespinha. Em 2004, o Banespinha passou a ser a sede da prefeitura de São Paulo. 17 Edifício Martinelli Com 30 pavimentos, o Edifício Martinelli foi o primeiro arranha-céu de São Paulo, inaugurado em 1929 (com 12 andares), mas finalizado apenas em 1934. O projeto, que não tem grande valor estético, é de seu proprietário, o italiano Giuseppe Martinelli. Martinelli havia chegado a São Paulo em 1893, diplomado pela Escola Popular de Belas Artes. Na cidade, fez fortuna e quis construir o prédio para que seu nome ficasse na história. Na época, ele era tão alto que assustava. Martinelli morou na cobertura do edifício para provar que era seguro. O edifício passou por épocas de maior e menor importância e chegou até a ser abandonado, em 1950. Reformado e tombado como patrimônio histórico, hoje ele abriga muitos estabelecimentos comerciais e algumas secretarias municipais. Do neoclássico ao moderno Quando o estilo neoclássico, uma revisão da arquitetura clássica que surgiu na Europa no fim do século XVIII (e que usava elementos como abóbadas, cúpulas monumentais, formas simétricas e materiais nobres), chegou ao Brasil com os imigrantes, o estilo entrava em decadência na Itália. Por aqui, perdurou ainda alguns anos. A partir de 1920, porém, começou a ser deixado de lado. Surgia então o estilo floreal, ou a art nouveau. Foi quando o cimento e o uso de estruturas metálicas começaram a ganhar o mundo - e os arquitetos quiseram usá-los de forma decorativa, inspirandose na natureza, em flores e animais para decorar seus projetos. O Viaduto Santa Efigênia foi concebido com base nesse estilo. Teve influência na cidade, também, Marcello Piancentini, o arquiteto oficial do fascismo italiano. Ele criou uma espécie de neoclassicismo simplificado, usado na Itália de Mussolini e também em São Paulo, pela classe dirigente que se identificava com o regime. Piacentini projetou, por exemplo, o Edifício Matarazzo, atual sede da prefeitura. Dali em diante, com o concreto, as casinhas de São Paulo do começo do século foram, aos poucos, dando lugar aos edifícios comerciais, às largas avenidas - sendo que o primeiro arranha-céu da cidade, o Edifício Martinelli, foi também levantado por italianos em 1929. A partir de então, as obras não tinham elementos que as fizessem "tipicamente italianas", como as casinhas dos mestres-de-obras. No mundo mais cosmopolitano, a arquitetura passa a ser uma linguagem comum a todos os países, mais eclética e destacada pelo talento individual. 20 MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateubriand) Inaugurado em 1968 por Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários e Emissoras Associados, e pelo professor Pietro Maria Bardi, jornalista e crítico de arte italiano, o atual prédio do MASP é uma obra arquitetônica ousada. Lina Bo Bardi, casada com Pietro e arquiteta modernista formada em Roma, foi responsável pelo projeto. A construção, porém, teve de respeitar uma condição da prefeitura: a de que mantivesse desobstruída a vista da avenida Paulista até o centro da cidade. Assim, ela idealizou um edifício sustentado por quatro pilares, com um vão livre que o tornou famoso: o espaço entre eles (74 metros), na época, era o maior do mundo. O museu tem hoje sete mil peças em seu acervo, avaliado em 1 bilhão de dólares, mas tem sofrido com problemas financeiros. Obelisco do Parque Ibirapuera (Monumento do Soldado Constitucionalista) Erguido em homenagem aos heróis da Revolução Constitucionalista de 1932, o obelisco não se define como projeto de um arquiteto, mas sim de um escultor: o italiano Galileo Emendabili, que chegou ao Brasil em 1923, fugindo do regime fascista de Mussolini. O monumento, localizado em frente ao Parque Ibirapuera, foi feito em mármore travertino e tem 72 metros de altura. Faz parte da arquitetura moderna da cidade, tendo sido inaugurado em 1955. É decorado com mosaicos de cenas bíblicas e da história da cidade. Dentro dele, um mausoléu guarda as cinzas de quatro estudantes mortos durante um protesto contra o primeiro governo de Getúlio Vargas (Martins, Miragaia, Drausio e Camargo, nomes cujas iniciais foram o símbolo da revolução constitucionalista) e de mais 713 excombatentes. 19 Nesse período, chegava no Brasil a arte moderna. Gregori Warchavchik - que era russo, mas havia estudado na Itália - foi quem primeiro construiu, em São Paulo, uma casa moderna, na Rua Santa Cruz. Entre os italianos, Giuseppe Battista Bianchi foi quem mais defendeu a implantação da nova arquitetura, que valorizava a funcionalidade e as estruturas metálicas, em detrimento da decoração. A novidade perturbou muitos críticos da época. Mesmo assim, a arquitetura moderna, em suas fases seguintes, desenvolvida principalmente no Rio de Janeiro, conseguiu triunfar no país. Em São Paulo, italianos ou brasileiros que estudaram na Itália se destacaram bastante a partir de então como Lina Bo Bardi. Em poucos anos, a intensa imigração italiana mudou a cara de São Paulo. Difícil saber que cidade teríamos hoje, que vida seria a paulistana, não fosse a influência dos italianos. Por um lado, o crescimento desordenado poderia ter sido diferente. Por outro, a arquitetura da cidade poderia não ter chegado ao grau de desenvolvimento e respeitabilidade que atingiu. A descoberta da arquitetura de interiores Telesforo Cristofani é italiano só de nascença. Passou apenas os primeiros dois anos de vida em sua cidade natal, Viareggio, comuna da região da Toscana. Logo em seguida, em 1931, veio para o Brasil e fez sua vida e carreira em São Paulo e região. Desde pequeno, estudou pintura com artistas plásticos italianos que moravam no Brasil, o que lhe deu boa noção de estética. Estudou no Dante, onde passou sua infância e adolescência, e depois graduou-se em Arquitetura no Mackenzie, onde voltou para lecionar. Edifício Giselle, no Itaim Bibi 22 Dar aulas, aliás, foi uma das grandes paixões de Cristofani. Foram mais de 25 anos dedicados a faculdades como a FAU-USP, a FAU-Santos e o Mackenzie. "Nunca vi ele preparar uma única aula, mas ensinava de uma maneira muito leve", diz a viúva Myrna Corsi Cristofani, com quem ele foi casado por 49 anos. O professor lecionou até cerca de 15 dias antes de falecer, em 2002, aos 73 anos. Segundo Myrna, tanto era o grau de admiração dos alunos por ele, que uma turma do Mackenzie pediu que a sala de aula fosse transferida do primeiro andar para o térreo, de modo que Cristofani, já de idade avançada, não precisasse subir escadas. Pertencente à segunda fase dos modernistas em São Paulo, Cristofani ficou conhecido na cidade por projetar prédios como o restaurante vertical do Fasano, no centro, de 1965, o edifício Giselle, no Itaim Bibi, de 1968, e a sede da Telesp, no Paraíso, de 1970. "Uma pena que eles todos tenham passado por reformas que mudaram o projeto original", diz Myrna. De suas obras, o Fasano é o que mais chamava a atenção pela criatividade. O restaurante era vertical e foi a solução encontrada para um prédio de pouco espaço, mas que tinha cinco lajes. No térreo, ficava a confeitaria, no mezanino, a sala de espera, no primeiro pavimento, o bar, no segundo e no terceiro, o salão de chá e o restaurante, e, no quarto e quinto pavimentos, ficava a cozinha. Talvez por causa de seu apurado senso estético, Cristofani acabou sendo um dos pioneiros da arquitetura de interiores em São Paulo. "Ele não se conformava como eram horríveis e de mau gosto os móveis que colocavam dentro de suas construções", conta Myrna. "Fazia edifícios modernos que não podiam ser decorados daquele jeito". Foi assim que, então, Cristofani, além de projetar, começou a se envolver com a escolha do piso e do forro, o planejamento da iluminação, e até com o desenho dos móveis internos. A arquitetura italiana no Dante Além de ter sido um dos responsáveis pelo famoso projeto do Viaduto Santa Efigênia, o florentino Giulio Micheli, que chegou ao Brasil em 1888, aos 26 anos, foi autor do projeto do Dante. O Colégio nasceu do desejo dos italianos que se estabeleciam em São Paulo, logo depois da imigração, de ter onde difundir e fortalecer sua identidade cultural. O Istituto Medio Italo-Brasiliano Dante Alighieri se tornou possível depois de 1911, quando o conde Rodolfo Crespi decidiu angariar fundos para a construção. O edifício Leonardo da Vinci, na Alameda Jaú, ficou pronto em 17 de fevereiro de 1913. Em sua inauguração, o Dante contava com apenas 60 alunos. Antes de vir para o país, Micheli tinha viajado bastante pela Europa, e se diplomado em Paris, seguindo o conselho do pai, Vincenzo, que fora diretor da Academia de Belas Artes de Florença. Em São Paulo, montou um escritório com Luigi Pucci, que lhe confiou o projeto da Santa Casa. Mais tarde, quando Pucci se aposentou, levou o escritório em frente com outro italiano, Giuseppe Chiappori. O Viaduto Santa Efigênia foi construído por eles um ano antes do primeiro projeto do Dante, em 1910. 21 Pastifícios Por Marcella Chartier Em um primeiro contato, o sotaque ao telefone até As massas artesanais da Pissani, em sabores mais tradicionais ou inovadores se assemelha ao italiano. Mas basta um pouco mais de atenção para que se note a diferença: a língua que se oculta no português mais cantado do que o dos paulistanos é a espanhola. Cristina, de 29 anos, é a dona da voz, esposa e sócia de Carlos Pissani, de 46. O casal uruguaio é proprietário do Pastifício Pissani, inaugurado no final de 2007 nos Jardins, em São Paulo. A loja, sofisticada e moderna, contraria o estereótipo das tradicionais casas de massa italianas. Não se vê aquela grande quantidade de comida em exposição, nem aqueles fregueses já amigos dos donos escolhendo seus pratos de sempre para levar à família toda. Ali, o princípio é diferente. Logo na entrada, à esquerda, partes de manequins de mulher têm como adorno colares feitos por anéis de massa fresca. À direita, um balcão com os produtos parece mais uma vitrine: massas coloridas em caixas de presente com laços de fita, e vidros estilizados guardando molhos. Ao lado, uma gôndola com vinhos italianos, argentinos, chilenos e franceses. Nas paredes, quadros com alguns dos mais de 20 tipos de formas (que, combinadas com os diferentes recheios, geram mais de 30 tipos de massas) identificados com os nomes. "Fazemos uma massa premium, fina mesmo, que não precisa de muito molho para ter sabor", explica Carlos. "É extremamente artesanal, nunca uma peça fica idêntica à outra. As nossas são montadas uma por uma, por uma equipe de oito pessoas, e eu que crio e faço os recheios". Carlos conhece as origens de cada forma de massa, e é evidente o apreço que tem por esclarecer aos mais curiosos os motivos de suas denominações, principalmente durante as degustações promovidas na loja nos fins de semana e, abertas aos clientes mais fiéis, que se interessam não só em conhecer as combinações da Pissani, mas também em dar seus palpites. Sabores mais conhecidos, como espinafre com nozes (massa que sai por 38 reais o quilo, opção mais barata da casa) convivem com surpreendentes misturas como a de maçã, mel e shimeji, ou tipos requintados como o recheio de lagostim (o mais caro, que custa 89 reais o quilo). "Brincamos muito com a farinha também, colocando sementes, corantes, tudo natural. Temos uma horta aqui no quintal, onde plantamos as ervas e recolhemos vários dos ingredientes que utilizamos", conta Carlos. A escolha de São Paulo como cidade em que o casal instalaria a Pissani se justifica por dois fatores. "Além de ser a capital gastronômica da América, com uma variedade enorme de restaurantes, São Paulo tem uma colônia italiana muito importante. É um lugar onde contamos com os clientes de paladares mais tradicionais, mas também temos interessados em novidades. Não só em Montevidéu, mas em todo o Uruguai, há um público muito pequeno para inovações", explica Carlos. Quando se mudou para o Brasil, antes de assumir totalmente a profissão de chef de cozinha, Carlos era consultor internacional. Formara-se engenheiro civil e trabalhara como executivo em vários países. "Vivíamos em hotéis, e em 2006 trabalhei para uma empresa aqui em São Paulo. Estava muito estressado e resolvi, com minha mulher, largar tudo e investir no pastifício", conta. Mas, em casa, Divulgação - Pissani 24 Cinema e sfogliatelle Na família Macellaro di Perna, as delícias feitas pela cozinheira de mão cheia também foram, um dia, complemento do orçamento familiar. Antes de assumir o negócio de venda de doces caseiros como base da renda, Amedeo trabalhou como garçom e operador de cinema, enquanto sua esposa, Elide, passava dias e noites entre panelões de creme de baunilha, açúcar e muita farinha. "Às vezes eu ajudava minha mãe a fazer os canolis (canudos de massa folhada recheados com creme de baunilha) passando a clara ou a gema do ovo na massinha para grudá-la depois, e assim colar os canudinhos antes de ela fritar. Aquele cheiro era tão gostoso, eu rezava para que quebrasse o canudinho para eu poder comer", lembra Ana (filha de Elide), que na época era criança e acabava no canto da cozinha com um potinho cheio de creme de confeiteiro, ainda quente. Hoje, tem 52 anos e administra, com o marido e a mãe (agora com 85 anos), um dos pastifícios mais tradicionais da cidade: o Il Pastaio. A história, neste caso, também começou com a partida de italianos em um navio para a América. Elide e Amedeo saíram de Salerno, perto de Nápoles, há quase 60 anos. Chegaram no dia 19 de março, dia de San Giuseppe. "Minha mãe comemora essa data como se fosse a de casamento, de tão importante que foi para ela", comenta Ana. O chamado de uma irmã de Elide garantia o emprego de garçom a Amedeo, o que daria uma vida melhor aos recém-casados e ao bebê que já estava a caminho - ela estava grávida de oito meses. Passaram um tempo vivendo no quarto de Divulgação - Il Pastaio Carlos já inventava suas receitas e as servia a amigos. Na verdade, não é de hoje que ele brinca com comida. "Minha mãe conta que eu gostava muito de ir à cozinha quando era pequeno. Uma vez, quando ainda não alcançava a mesa, virei uma lata de creme de leite aberta e fiquei com a boca aberta embaixo, enquanto o creme pingava", lembra. A lata de creme de leite aberta era, de fato, item comum na cozinha da casa de Carlos. Sua mãe era ótima cozinheira, e foi quem o ensinou a preparar massas frescas. Carlos chegou a trabalhar no pequeno restaurante que ela tem até hoje em um hotel, em Montevidéu. Mas a história culinária da família começou bem antes, em 1897, quando Teresa Pissani, bisavó de Carlos, deixou a Lombardia (região norte da Itália) para tentar uma vida melhor no Uruguai. Teresa veio acompanhada da família. Os filhos homens sustentavam a todos trabalhando como pedreiros. Ela continuou fazendo aqui o que gostava de fazer por lá: preparar a boa pasta italiana. Começou, então, a vender a iguaria, e a renda que conseguia complementava orçamento familiar. Apesar do pouco tempo em funcionamento, a Pissani já conquistou o respeito de uma clientela exigente: vende produtos para restaurantes como o Tatou, o Santo Grão e o do Hotel Intercontinental. "Mas tem lugares que não vou citar, porque sei que eles gostam de dizer que a massa é de fabricação deles", comenta Carlos, sorrindo. Acima, o sfogliatelle, doce que transformou a produção que servia apenas de complemento ao orçamento em base da renda dos Macellaro di Perna. Ao lado, Ana, Elide e Fábio: administração em família depósitos que ficava nos fundos do bar, até que Amedeo conseguiu um emprego melhor, o de operador de cinema, o que depois se tornou quase uma carreira: começou no Cine Majestic, depois trabalhou no Cine Estrela e no Cine Lins. Quando Amedeo começou a trabalhar no Cine Estrela, a família mudou-se para uma pequena casa atrás do cinema. "Era bem mixuruquinha. Mas eu gostava porque assistia à matinê quando eu queria", lembra Elide. É nessa fase que ela passou a ter um pouco mais de espaço para cozinhar e colocar em prática os dotes culinários que aprendera com seu irmão, ainda na Itália. "Ele era prisioneiro de guerra e tinha aprendido a fazer doces quando estava preso", afirma. O principal preparado de Elide era o sfogliatelle, feito de massa folhada (até hoje um dos produtos mais procurados no pastifício da família). Em 1949, Amedeo começou a vender os doces feitos pela esposa. O atendimento das encomendas ficou mais fácil quando, em 1956, o operador de cinema foi admitido como gerente no Cine Lins. "Meu marido era muito inteligente, então logo subiu de cargo e tudo melhorou muito. Depois, um dos dois donos vendeu sua parte do cinema para nós, e nos tornamos donos também. Ele até comprou um carro para fazer as entregas", explica Elide. "Era muito sfogliatelle, chegávamos a fazer mil por dia", recorda ela, que contava com a ajuda de funcionárias na cozinha de casa. Finalmente, em 1968, a família Macellaro di Perna passou a viver apenas com a renda dos doces. Amedeo largou o ramo do cinema e comprou a casa onde até hoje está instalada a Il Pastaio, no bairro do Paraíso aberta em 1970. Catorze anos depois, Amedeo fez sua última 25 viagem à Itália, e por lá faleceu, aos 62 anos. Logo a geração seguinte se envolveu com o negócio. Ana é arquiteta, mas largou a carreira para se dedicar exclusivamente ao pastifício. O marido, Fábio Vitalli, também tinha a mesma profissão e hoje comanda a cozinha do almoço executivo servido no Il Pastaio todos os dias. "Quando assumimos o negócio, meu marido e meu irmão (que participou alguns anos da administração) viajavam todo ano ao exterior para comprar máquinas. Nós queríamos crescer", afirma Ana. A fidelidade dos clientes e o equilíbrio entre tradição e modernização são os principais ingredientes da Il Pastaio. Ali, consumidores vão à procura do sfogliatelle mais famoso da cidade, do saborosíssimo rondelle (espécie de rocambole de massa recheada com queijo, espinafre, por exemplo), marca registrada da família, ou de novidades como produtos de baixas calorias. "Os clientes pedem mudanças, sugerem ingredientes, e nós criamos novidades com base nisso também", Abaixo, Donato Di Cunto afirma Ana. com sua esposa Rosalia e os filhos, e o casarão feito pelo próprio punho do imigrante. A família vivia no andar superior e, no térreo, ficava a padaria Panetone e coxinha Em uma das mais antigas casas de massas e doces da cidade, a Di Cunto, a opinião dos consumidores tem o mesmo valor. "Nosso maior termômetro aqui são os clientes, que são nossa referência. Atender no balcão é isto: se ele estiver insatisfeito, ele vai falar. E tem gente que vem aqui três vezes por dia, há anos. Imagina o respeito que temos que ter por um cliente desse!", afirma Marco Di Cunto, de 28 anos, quarta geração da família fundadora do estabelecimento e que cuida do marketing da empresa. Ele cresceu sentindo a ausência do pai, que até hoje passa m u i t o t e m p o trabalhando. "Esse sem dúvida foi um dos motivos que me fizeram vir trabalhar aqui. Além, é claro, da magia que a Di Cunto sempre teve nas nossas vidas", conta. O primeiro Di Cunto que veio ao Brasil foi Donato, aos 17 anos, em 1878. Ele saiu também de Salerno e deveria desembarcar no porto de Montevidéu, no Uruguai, onde vivia um tio que o aguardava. Foi orientado para que descesse na terceira parada (a primeira seria no Rio de Janeiro e a Arquivo pessoal família Di Cunto 26 segunda em Santos). Mas, como era comum na época, houve surto de uma doença contagiosa no navio, que precisou parar em um porto provavelmente o de Recife - para quarentena. Donato acabou desembarcando no porto de Santos e, quando percebeu o engano, já era tarde para retomar o caminho certo. Foi para a capital, onde trabalhou como carpinteiro e economizou dinheiro suficiente para abrir, com um sócio, uma padaria. Pouco depois, com o sucesso dos negócios, comprou a segunda, já no atual endereço da matriz da Di Cunto, na Mooca. A família passou a viver, posteriormente, na casa erguida pelos próprios punhos de Donato. Em 1896, em boas condições financeiras e com a vida organizada, o imigrante já podia matar as saudades de sua terra natal. Foi à Itália, apaixonouse por Rosália, e os dois se casaram. Voltaram ao Brasil, país que já tinha conquistado um grande espaço no coração do pioneiro, trazendo um irmão de Donato, José, e aqui tiveram seus dois primeiros filhos. "Mas o objetivo dele era, na verdade, trazer toda a família da Itália para viver aqui. Não conseguiu, porque um dos irmãos dele tinha problemas físicos e a locomoção não foi possível. Mudou de idéia, e voltou para a Itália de vez, onde nasceram mais oito filhos do casal", conta Marco. A paixão pelo Brasil, no entanto, foi transmitida de pai para filhos, e, logo que Donato faleceu, em 1932, a família toda mudou-se para cá. Reformaram a casa e, em 1935, reinauguraram oficialmente os fornos da padaria. Tudo feito em família, novamente. Entre os quatro sócios fundadores, um deles era avô de Marco. Hoje, à frente da Di Cunto, estão os filhos desses fundadores, incluindo o pai de Marco. No final da década de 1930, uma iguaria italiana passou a fazer parte dos produtos da Di Cunto, trazendo uma fama que seria definitiva na história da empresa: um doce saboroso que, na Itália, era consumido o ano todo, mas que no Brasil tornou-se um pão especial da época do Natal. "A Di Cunto hoje é a mais antiga fábrica de panetone em atividade. E por aqui, vendemos esse item o ano todo", afirma Marco. Agora, o carro-chefe em termos de quantidade e unidades vendidas é uma apetitosa surpresa: a coxinha. Somando os números das três lojas Di Cunto, são cerca de 500 mil coxinhas vendidas por ano. "Existe até uma comunidade no Orkut (site de relacionamentos da internet) que se chama 'eu amo a coxinha da Di Cunto'", conta Marco, achando graça. Prova de que as culturas brasileira e italiana têm, aqui, traços fortes na mesma medida. S Pissani Alameda Franca, 1413, Jardins Tel: (11) 3081-6847 S Di Cunto Unidade Mooca: Rua Borges de Figueiredo, 61/103 Tel: (11) 2081-7100 S Il Pastaio Alameda Santos, 44, Paraíso Tel: (11) 3289-8897 Juó Bananére U inginiero chi scribía nu giurnale Há 75 anos falecia Alexandre Marcondes Machado - ou Juó Bananére -, o tradutor da belle époque paulistana Por Kátia Nogueira de Mello Q Imagens: Divulgação/Editora 34 uando substituiu Annibale Scipione na seção "Cartas d´Abax´o Pigues", do semanário O Pirralho (comandado pelo modernista Oswald de Andrade), o estudante de engenharia Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (18921933) não sabia que viria a ser um dos grandes inspiradores da linguagem e da postura escrachada apresentadas pelos poetas modernistas na Semana de Arte Moderna, realizada em 1922 em São Paulo. Annibale Scipione, pseudônimo de Oswald de Andrade, falava com seus leitores em linguajar macarrônico, misturando o português e o italiano. Como Andrade tinha planos de viajar para a Europa, começou a procurar um substituto que ocupasse o seu lugar. Sob o pseudônimo de Juó Bananére - que estreou no jornal em 1911 -, o estudante natural de Pindamonhangaba, interior deSão Paulo, não só respondia às cartas dos leitores como fazia paródias de poemas famosos, como "Meus Oito Anos", do poeta romântico Casimiro de Abreu, "Canção do Exílio", do também romântico Gonçalves Dias, e "Via Láctea", do parnasiano Olavo Bilac. Bananére debochava sem medo do preciosismo métrico e poético dos parnasianos, que respeitavam estruturas fixas como os sonetos, sempre decassílabos ou dodecassílabos, e gastavam o português descrevendo vasos, estátuas e outros objetos para fugir do sentimentalismo. Segundo o ensaísta e crítico literário Otto Maria Carpeaux, "Juó Bananére pode ser considerado como precursor do modernismo, para o qual contribuiu desmoralizando os deuses parnasianos". Bananére também fazia graça do excesso de sentimentos do Romantismo, que carregava nas tintas de amores não-consumados, do sofrimento proveniente de perdas e de saudades latejantes e irremediáveis. Um dos poemas mais famosos de Bananére é "Os Meus Otto Anno" (veja box na próxima página). Para justificar a literatura macarrônica que usava, Bananére declarou, em uma edição de O Pirralho de 1912, que "a artografia muderna é una maniera de scrivê, chi a genti scrive uguali come dice". Como estudava na Escola Politécnica, então no bairro do Bom Retiro, e morava no Bexiga (que ele tratava como "Abaxo o'Pigues"), Bananére passou a tomar contato com os imigrantes italianos que trabalhavam nas fábricas da região, além de circular também pelos bairros do Brás e Barra Funda. Com isso, transformou o O Pirralho. "Bananére pode ser considerado o primeiro articulista de massas no Brasil. Ele falava diretamente com o povo, usando a linguagem das ruas", afirma Cristina Fonseca, escritora e documentarista que lançou, em 2001, o livro Juó Bananére - o abuso em blague (Editora 34), obra que traz a biografia do escritor e uma contextualização histórica de Bananére na capital paulista. Acima, Juó Bananére, “o precursor do modernismo”, como definiu Otto Maria Carpeaux. Ao lado, a primeira edição do semanário que o lançou, substituindo Oswald de Andrade, O Pirralho 27 Em 1915, Juó Bananére foi dispensado de O Pirralho por conta de críticas a Olavo Bilac O periódico, que antes era lido pelas classes mais abastadas da sociedade, passou a circular entre os operários, que procuravam o jornal por causa da coluna irreverente do escritor. Juó estabeleceu uma empatia imediata com as massas, não só pelo linguajar, mas por fazer troça da "alta literatura", confinada à burguesia, única classe social que tinha pleno acesso à alfabetização. Além disso, Bananére usava alvos populares, como o presidente Hermes da Fonseca (que governou de 1910 a 1914) e o então prefeito de São Paulo Washington Luís (1914-1919). "Ele usava seu recurso de linguagem em forma de crítica, com frases como 'o gorpo indecinti da Gademia Brasillera de Letras' (corpo docente da Academia Brasileira de Letras)", afirma Cristina. Em maio de 1915, Juó Bananére viveu o auge de sua carreira ao lançar La Divina Increnca, título que satiriza o clássico A Divina Comédia, de Dante Alighieri. O livro, que teve dez edições lançadas entre 1915 e 1966, trazia uma coletânea de poemas publicados em O Pirralho, alguns satíricos, como "Migna Terra", inspirado em "Canção do Exílio", e outros marcados por referências ao cotidiano do próprio autor, como "O Studenti du Bó Retiro (Poisia Patriótica)". "Os Meus Otto Anno" O chi sodades che io tegno D'aquillo gustoso tempigno, C'io stava o tempo intirigno Brincando c'oas mulecada. Che brutta insgugliambaçó, Che troça, che bringadêra, Imbaxo das bananêra, Na sombra dus bambuzá. Che sbornia, che pagodêra, Che pandiga, che arrelía, A genti sempre afazia No largo d'Abaxo o Pigues. Passava os dia i as notte Brincando di scondi-scondi, I atrepáno nus bondi, Bulino c'os conduttore. Deitava sempre di notte, I alivantava cidigno, Uguali d'un passarigno, Allegro i cuntento da vita. Dibia un caffé ligêro, Pigava a penna i o tintêro Iva curréno p'ra scuóla. Na scuóla io non ligava! Nunga prestava tençó, Né nunga sapia a liçó. O professore, furioso, C'oa vadiaçó ch'io faceva, Mi dava discompostura; Ma io era garadura I non ligava p'ra elli. Inveiz di afazê a liçó, Passava a aula intirigna Fazéno i giogáno boligna Ingoppa a gabeza dos ôtro. O professore gridava, Mi dava un puxó de oreglio, I mi butava di gioeglio Inzima d'un grão di milio. Di tardi xigava in gaza, Comia come un danato, Puxava u rabbo du gatto, Giudiava du gaxorigno, Dulia co'a guzignêra, Brigava c'oa migna ermá; I migna mái p'rá cabá, Mi dava una brutta sova. Na rua, na visinhança, Io era mesmo un castigo! Ninguê puteava commigo! Bulia con chi passaga, Quebrava tuttas vidraça, I giunto co Bascualino Rubava nus bottechino A aranxia pera du Rio. Viva amuntado nus muro, Trepado nas larangiêra; I sempre ista bringadéra Cabava n'un brutto tombo. Mas io éra incorrigive, I logo nu otro dia Ricominciava a relia, Gaia traveis di novo! A migna gaza vivia Xiingna di genti, assim!!... Che iva dá parti di mim. Sembrava c'un gabinetto Di quexa i regramaçó. Mei páio, pobre goitado, Vivia atrapagliado P'ra si liverá dos quexozo. I assi di relia in relia, Passê tutta infança migna, A migna infança intirigna. Che tempo mais gotuba, Che brutta insgugliambaçó, Che troça, che bringadêra, Imbaxo das bananêra, Na sombra dus bambuzá! O Studenti du Bó Retiro Poisia Patriotica (Premiata c'oa medaglia di pratina na insposiçó da Xéca-Slovaca i c'oa medaglia di brigliantina na sposiçó internazionale da Varzea du Carmo). ANTIGAMENTE a scuola era rizogna e franga; Du veglio professor a brutta barba branga Apparecia un cavagnac da relia, Che pugna rispetto inzima a saparia. O maestro éra um veglio bunitigno, I a scuóla era no Bellezigno. Di tarde inveiz, quano cavaba a scuola, Marcáno o passo i abaténo a sola, Tutto pissoalo iva saino in ligna, Uguali como un bando di pombigna. Ma assi chi a genti pigliava o portó, Incominciava a insgugliambaçó; Tuttos pissoalo intó adisparava, I iva mexeno c'oa genti chi passava. *** Oggi inveiz stá tutto mudado! O maestro é um uomo indisgraziado, Che o pissoalo stá molto chétamente E illo giá quére dá na gente. Inveiz un dí intrô na scuóla un rapazigno Co typio uguali d'un intalianigno, O perfilo inergico i o visagio bello. Come a virgia du pittore Rafaello. Stava vistido di lutto acarregado, Du páio che murreu inforgado. O maestro xamô elli un dia, I priguntô: - Vuc sabe giograffia? - Come nó!? Se molto bê si signore, Quale é o maiore distritto di Zan Baolo? - O maiore distritto di Zan Baolo, O maise bello e ch'io maise dimiro É o Bó Ritiro! O maestro furioso di indignaçó, Batte con nergia u pé nu chó, I gritta tutto virmeligno: - O migliore distritto é o Billezigno. Ma u aguia do piqueno inveiz, C'oa brutta carma dissa otraveis: - O distritto che io maise dimiro, É o Bó Ritiro! O maestro, viremglio di indignaçó, Alivantô da mesa come un furacó, I pigano un mappa du Braz Disse: Mostre o Bó Ritiro aqui si fô capaiz! Alóra o piqueno tambê si alevantô I baténo a mon inzima o goraçó, Disse: - O BÓ RITIRO STÁ AQUI! Atrevido, o anarquista não perdoava ninguém. Ainda em 1915, Marcondes Machado foi dispensado de O Pirralho por alfinetar, em duas semanas consecutivas, o poeta parnasiano Olavo Bilac. Nessa época, Oswald de Andrade havia retornado ao Brasil e retomado o comando do periódico. Apesar de já ter entrado em contato com a cultura pré-modernista na Europa, Oswald ainda não era o revolucionário contestador que viria a ser em 1922. Ligado a Bilac por motivos políticos (O Pirralho apoiava a Campanha Civilista, movimento que tinha Bilac entre os mentores), Andrade não aceitou as críticas de Bananére e o demitiu. A pesquisadora Cristina Fonseca aponta outro agravante: Bananére teria zombado da bailarina Landa Kosbach, uma adolescente que Andrade namorava na época. Em 1916, Marcondes Machado lançou o tablóide Vespa, com espírito ideológico parecido com o de O Pirralho - marcado por fortes críticas ao governo. No ano seguinte, formou-se em engenharia e abandonou o nome Juó Bananére. O pseudônimo foi, aos poucos, se apagando do cotidiano de Marcondes Machado. Em 1919 lançou o livro A arquitetura colonial no Brasil, com fotos, no qual descreve sua viagem pelas cidades históricas de Minas Gerais, e a peça "Vai dar o que falar", ambos assinados com seu nome verdadeiro. Os últimos registros escritos de Machado foram publicados no jornal O Estado de S.Paulo, entre 1926 e 1927. Em 1931 lançou dois compactos (discos de sete polegadas que armazenavam entre uma e duas canções de cada lado), com os poemas "Non Fui Ista a Inrevoluçó que Io Sugné", "O Indiscobrimento do Brazil", "O Lobo i u Gorderigno" e "U Cavagnac". Dois anos depois, produz o jornal Diário do Abaxo o'Pigues, mas teve pouco tempo para escrever: morreu em agosto de 1933. Curiosamente, Marcondes Machado não tinha raízes italianas. Conseguiu, porém, absorver e traduzir como poucos as peculiaridades da população paulistana da época, que contava com cerca de 500 mil habitantes, dos quais cerca de 25% eram imigrantes. Uma sociedade fortemente dividida entre as aristocracias cafeeira e industrial e o proletariado, formado principalmente por trabalhadores assalariados (italianos, camponeses e exescravos), que se tornaram os principais responsáveis pela tão miscigenada língua paulistana. 29 O auge do escritor foi no mesmo ano em que saiu de O Pirralho, ao lançar La Divina Increnca, uma coletânea de seus poemas publicados no semanário modernista Literatura Por Luisa Destri A precisão curvilínea da vida Romance de 2005 mescla ficção e realidade para narrar a vida de alguém que sempre esteve no lugar certo Ultimo Parri tem a sombra de ouro. Se você não nasceu no norte da Itália, é pouco provável que compreenda o que isso quer dizer. Expliquemos assim: ele é daquelas pessoas cuja presença sentimos. Não precisamos ver que está ali, simplesmente sabemos. É de tipos como o dele que dizemos especial. Tanto que, para contar a história desse seu personagem, o escritor Alessandro Baricco teve que se valer de diferentes artifícios. Em Esta história, que é a de Ultimo, alternam-se o relato jornalístico, o diário, o monólogo interior, a tradicional narrativa em terceira pessoa. Falta ao livro apenas a própria voz de seu protagonista. A obra, em sua estrutura prismática, procura dar conta de toda a vida do personagem. Mais especificamente, a partir de quando o menino descobre sua paixão e vocação. Pelas curvas, pelas estradas. Assim, Ultimo dá conta de sua própria existência em uma manhã de 1902, aos cinco anos, quando vê, saído de uma nuvem de poeira, um demônio metálico rindo por meio de seu radiador. E se torna adulto não apenas em razão de uma tragédia na família, mas porque descobre que pode tomar posse do corpo das mulheres apenas ao se imaginar como um piloto acelerando em seus aclives e curvas. O fato é que, a partir do momento em que entra em contato com o mundo dos automóveis - ainda incipiente em sua infância -, seus pensamentos passam a ser inteiramente determinados pela existência dessas máquinas. Seja pelas metáforas que constrói, seja pela visão geométrica que desenvolve do espaço e dos episódios que se sucedem. Seja, ainda, pela maneira de construir seu raciocínio e visualizar a rota até seu objetivo. Nessa mitologia que aos poucos desenvolve, há pontos de inflexão aos quais sua vida acaba sempre retornando. Um deles é a noite que passa com seu pai em Turim, aos 11 anos. Eles estavam lá porque Libero Parri havia se arriscado alguns anos antes: em uma época em que nem sua mulher acreditava na existência dos automóveis, decidira vender as 26 vacas que sustentavam a família para montar uma oficina. Preocupado com o futuro que não vinha, decidiu procurar Gardini, um dos primeiros a se arriscar nos motores, para lhe pedir conselhos. Deveria insistir na aposta ou comprar as vacas de volta? Mas essa noite marcou Ultimo não pela conversa de seu pai com o industrial, e sim por conta das onze voltas que deram em um mesmo quarteirão 30 da cidade. Com efeito, nesse percurso de cerca de 40 minutos, o menino, sem ousar qualquer alerta ao pai, teve a sensação de que os dois poderiam desaparecer (já que entendia aquilo, um "caminho às avessas", como subtração, e não soma de passos). O trajeto circular, parecendo-lhe mágico, uniu-se à paixão pelos carros. E foi a partir deles que o menino pôde entrever a direção para onde iria sua vida: sempre ao ponto de partida. "E pela primeira vez, embora de maneira confusa, intuiu que todo movimento tende à imobilidade, e que bonito é apenas o ir que leva a si mesmo." Talvez seja por isso que a parte inicial do livro, "Overture", só ganhe sentido quando chegamos ao fim da história. Ou melhor: é por isso que sentimos necessidade de voltar a ela e compreendê-la. Trata-se do relato - romanceado - da corrida ParisMadrid de 1903, em que oito pessoas, entre espectadores e motoristas, morreram, e outras tantas ficaram feridas. O percurso longo incluía regiões mais populosas, pouco preparadas para a passagem de veículos a 140 quilômetros por hora. O descontrole não só levou o governo francês a interromper o evento antes que os corredores chegassem a Paris, como também fez surgir a necessidade de o automobilismo ser praticado em circuitos fechados. "Overture" a um só tempo abre o livro, retrata o anúncio de uma nova fase da corrida de carros e contém cenas que, tal e qual o giro de um circuito, a vida de Ultimo tornará a repetir. A geometria da guerra Passadas a primeira parte, e a subseqüente "A infância de Ultimo", chegamos a "Memorial de Caporetto": mais um ponto de inflexão - desta vez, no que diz respeito a estratégias de guerra. Foi em outubro de 1917, em Caporetto, que alemães e austríacos impuseram à Itália uma grande derrota na Primeira Guerra. O episódio, novamente romanceado, tem como pano de fundo a sensação de impotência de um pai. Seu filho havia sido companheiro de guerra de Ultimo. Muitos soldados, ao se depararem na mão do inimigo, fugiram. Desistiram de lutar. Esse rapaz foi considerado desertor, e fuzilado oito dias após a batalha. O pai não compreende: na confusão, quando outros 400 mil combatentes fugiram, por que justamente seu filho foi condenado? O que houve naquele desespero? Ele de fato havia desertado? As respostas são procuradas por esse pai, um senhor fascista - e matemático. Ele entrevista Ultimo - que tem fixação pela geometria - e um antigo cirurgião da companhia. Esses três homens, de pensamento exato, formulam diversas hipóteses. Há também o depoimento de Cabiria, outro companheiro de Ultimo. O ponto comum está centrado nas trincheiras: "o que a memória coletiva guardou, depois, com genial gesto sintético, como ícone sagrado daquela guerra". O problema é que a tomada de Caporetto inverteu toda a lógica da guerra. Os italianos não compreenderam como os inimigos conseguiram entrar. Ou melhor, engessados em suas táticas, não souberam perceber os furos deixados e por onde se infiltraram alemães e austríacos. O pensamento exato e meticuloso dos homens se desestabilizou com essa imprevisão. E todos eles procuram uma forma matemática de explicar tudo o que se sucedeu na batalha e por que logo depois estourou uma segunda guerra. Cada um, na rigidez de seu pensamento, tenta esquematizar os eventos. Mas há algo ali que escapa a qualquer sistema de compreensão. Como é típico a toda guerra. Rumo inalterável Poderíamos continuar desvendando os turning points sobre os quais se desenrolam as partes seguintes: "Elizaveta", o diário escrito por uma amiga do protagonista; "1947. Sinnington, Inglaterra", o fluxo de seu irmão, que também é alguém especial; "1950. Mil linhas", o relato de outra grande corrida; "Epílogo", a narração de um episódio que ao mesmo tempo sela e reinaugura o percurso de Ultimo. Mas é justamente essa a graça do livro. Perceber, na delicada escrita de Baricco, que não se trata apenas de um garoto com perspectiva geométrica do ambiente que o cerca. Desenha-se uma outra concepção de vida e destino. O garoto não enxerga nenhuma linha do tempo. Vê curvas, aclives e depressões de uma trajetória circular. Há algo de mítico aí. Sua vida estava desde sempre desenhada, e o que narrativa nos oferece são pistas desse tal destino.Daí o título do livro, "Esta história": algo fechado, sempre a refletir em si mesmo. O narrador, se estivermos atentos, também nos dá algumas indicações de onde procurar o destino. "É importante ver como as pessoas escolhem os nomes. Morrer e dar nomes - não se faz nada mais sincero, provavelmente, por todo o tempo que se vive." Assim, recusando qualquer acaso que o tenha motivado na escolha do nome do personagem, o que Baricco nos diz, a todo momento, sem de nenhuma forma mencionar este clichê, é que Ultimo foi levado, pelas curvas do destino, a ser sempre o primeiro. Trecho da obra Ultimo olhou para o céu, para ver quanto faltava para escurecer. Quando o Baretti se ofereceu para levá-lo à cidade com sua carreta, disse Não, obrigado, vou sozinho. E foi buscar a motocicleta. Viram-no pôr os óculos de Lafontaine e enfiar uma folha de jornal por baixo do pulôver. Alguém lhe deu um tapa nas costas. Ficaram todos com o coração na mão ao vê-lo partir assim, sozinho. Mas tinha movimentos de homem, de repente, e ninguém ousou detê-lo. Seja prudente, disse uma mulher. A estrada para a cidade corria reta no meio dos campos. As sombras eram longas, e a noite estava refrescando. Ultimo pôs o motor no máximo e dobrou-se sobre a moto, porque tinha alguma coisa para lhe dizer e queria que ouvisse direito. Disse-lhe que tinha que chegar antes da morte, e conseguiria certamente, bastava que ela se comportasse bem. Disse-lhe para observar como a estrada decidira ajudá-los e se pusera toda retinha, para que pudessem chegar antes. E explicou-lhe que a beleza de uma linha reta é inalcançável, porque nela se desmanchou toda curva e insídia, em nome de uma ordem clemente e justa. É uma coisa que as estradas podem fazer, disse-lhe, e que, ao contrário, não existe na vida. Porque não corre reto o coração dos homens e não há ordem, talvez, em seu andamento. Depois, parou de falar e ficou por um bom tempo em silêncio, perguntando-se de onde lhe vinham aquelas palavras. Minúscula, no nada da noite, desfilava a motocicleta, pequeno batimento de coração na imensidão do campo. À sua passagem, erguia uma frágil crista de poeira e deixava para trás um perfume, ácido, de queimado. Depois, o perfume esvaía-se e a poeira se dissolvia na luz. Assim, tornava a fechar-se o cerco do acontecer, na quietude aparentemente imutável das coisas. (p.73) Esta história Alessandro Baricco Companhia das Letras/ 296 páginas 31 Quando nos resta nada Romance híbrido retrata as lacunas existentes em todo tipo de relacionamento Fragmentos se tornaram por excelência a forma de representar nosso pensamento e nossas relações. O acúmulo de aforismos, cenas, breves informações e pílulas de reflexão procura dar conta de um todo cindido e irrecuperável. Na literatura, há tempos um romance clássico e homogêneo já não basta para dar conta de uma existência cuja compreensão invariavelmente nos escapa. É nessa vivência fragmentada que se encontram Natalia Ginzburg e os personagens de seu Caro Michele. Das 42 partes em que se divide o livro, seis são, de fato, um episódio relatado pelo narrador. As outras são cartas trocadas entre membros e amigos de uma mesma família - todos unidos a partir de Michele, o que está distante - ou trechos em que se alternam a forma epistolar e a narrativa. Apesar de escreverem sobre si e interessados em saber um do outro, os personagens não chegam de fato a se comunicar. Isso se traduz inclusive na falta de atenção com que cada um lê a correspondência da qual é destinatário. É assim com Michele, chamado pela mãe de "avaro de cartas": ela se queixa porque o filho, distante, não cumpriu a promessa de lhe construir uma gaiola para os coelhos, o que a obrigou a contratar um carpinteiro. Na resposta, o filho reforça a promessa, ignorando o fato de que, se retornar, a gaiola já estará pronta. Quando se referem a outras pessoas, não é com pouca freqüência que os autores dessas cartas lhes dizem sentir pena. Mas apenas dizem. Pois, se de fato sentissem, haveria entre eles alguma espécie de solidariedade. Em trechos breves e superficiais, tudo o que esses personagens conseguem dizer de si é sua incapacidade de se relacionar com o outro. É a mãe de Michele quem, ao comentar o comportamento de um amigo de seu filho, acaba resumindo a postura de todos os que participam da trama: "Não me parece exato defini-lo fútil, porque não se espera nada da futilidade, e dele esperamos, ao contrário, que de repente descubra e revele aos outros a sua razão de existir". Se dessem mais atenção a si e aos outros, todos poderiam se identificar com a conclusão da mãe de Michele: "Nós nos consolamos com nada quando não temos mais nada". Caro Michele Natalia Ginzburg Editora Paz e Terra/ 110 páginas Há sempre um homem triste atrás do que ri Vencedor do Nobel de 1934 expõe em histórias curtas os desenganos da vida em sociedade A o procurar definir o humor de Luigi Pirandello, Alfredo Bosi escreveu que cabe ao humorista encarnar a consciência de nosso inevitável desajuste à vida em sociedade, "revelando cada contraste, cada dissensão entre o ser e o parecer, cada fissura do comportamento humano, para desnudar a impotência de nossa condição". A dor seria então o que move todo desejo de provocar riso, e o verdadeiro humorismo, "sentir e ressentir a agonia dos contrastes". O que o crítico observa se revela em todas as histórias de O marido de minha mulher. A temática predominante nos 12 contos é a dos enganos e desenganos da relação entre casais. 32 A breve história que dá título ao livro é narrada por Lucas Léuci, um homem doente que escreve para deixar em testamento seu rancor - embora não o assuma. Quer deixar claro à mulher que ele morre sabendo como seria a vida da família na sua ausência. Em tom sarcástico, nega crer que tenha sido traído e elogia o comportamento do futuro marido de sua mulher em relação a seu filho. A atitude do homem doente, que o tempo inteiro esconde o sofrimento da partida com sua ironia mordaz, se metaforiza em uma de suas manias: cheio de edemas, tem a mania de afundá-los com os dedos para vê-los surgir novamente. Tamanha é a importância de suas inflamações, que assim lhes confere a medida: "não peso muito (quarenta e cinco quilos, com todos os edemas)"."Superior stabat lupus" retoma o mote dos que oprimem injustificadamente os inocentes, numa referência, As histórias que contamos Pequena seleção traz pela primeira vez as narrativas de Straparola Embora seja constantemente referido como um dos momentos fundamentais da história do conto e dos contos de fada, o livro Noites agradáveis, de Giovan Straparola, não podia ser encontrado no Brasil até a publicação dessa pequena seleção. Na edição preparada por Renata Cordeiro, consta a tradução de quatro das 75 histórias originais. Assim como o Decamerão, de Boccaccio, a obra, de 1553, concentra-se em torno de um quadro e se fundamenta na narrativa oral. Naquele livro, dez jovens, isolados em razão da Peste, contavam dez histórias por dia como forma de preencher seu tempo. Neste, os personagens se articulam em torno de uma corte: divertem-se, mas não porque estão confinados. E se Boccaccio se destaca por combinar o trabalho de coleta das histórias populares ao do escritor, que interfere no registro, Straparola efetua, segundo os especialistas, poucas mudanças nos contos originais. Na segunda narrativa da seleta, "O abade scarpacífico", a estrutura é semelhante à das histórias medievais. Um padre avaro é enganado por três camponeses, que armam um ardil para desde o título, à fábula de Esopo em que o lobo, a despeito de haver se posicionado no leito rio acima, acusa o cordeiro, a sua jusante, de lhe turvar a água. Na história, um velho se casa com a filha da mulher por quem era apaixonado. O pai da garota havia fugido, apavorado, após a morte de sua mulher, vitimada em decorrência do parto. O jogo do autor consiste em constantemente brincar com as expectativas do leitor. Quem é o inocente atacado pelo lobo? É a própria garota, que, sem escape, deve se sujeitar ao casamento com aquele que pensava ser seu velho tio? E quem oprime o cordeiro? Será o velho homem? Tendemos a crer que não, pois a história não se encerra sem o aparecimento de outra figura central. O mesmo se dá em "Como se fossem gêmeas", em que o homem deve se dividir entre o parto da mulher, que ocorre em sua casa, e o da amante. lhe tomar o burro recém-comprado. Quando se dá conta da armadilha de que foi vítima, o abade decide se vingar. A partir de então, a trama se desenrola em uma sucessão de enganos, em que digladiam duas formas de elaborar trapaças. "Doralice" é um exemplo de como se transformou nossa maneira de contar histórias para as crianças. Hoje seria inconcebível narrar aos pequenos, por exemplo, as dificuldades por que a protagonista do conto passa no momento em que seu pai, não conseguindo superar a morte da mulher, decide se casar com ela própria. Filha do rei, Doralice foge com a ajuda da criada. Mas, em sua nova vida, continuará a sofrer a maldição que a atitude de seu pai lhe infligiu. Os contos selecionados não são, como nos faz deduzir o prefácio de Renata Cordeiro, os principais de Noites agradáveis - tanto que a autora recorre com freqüência a outras histórias, tomando-lhes como exemplo de elementos não centrais à seleção. Mas, ainda que a amostra seja bastante modesta, há que se dar importância à possibilidade de termos acesso, de alguma forma, a essa obra. Noites agradáveis Giovan Francesco Straparola Landy Editora/ 144 páginas Ao contrário do que se imagina, o título diz menos sobre as crianças nascidas no mesmo momento do que sobre outras relações implicadas no conto. A leitura exige até mesmo um esforço de reconhecimento. Sempre por meio do humor, nos são dadas as marcas mais profundas de todos os personagens: um gesto estabanado, uma frase atravessada, um segredo - pequenos detalhes pelos quais se entrevê o todo. O processo por que nos conduzem os contos de Pirandello talvez tenha como resultado uma percepção semelhante à de Lucas Léuci: estaremos prontos para identificar nossas fissuras quando soubermos que nossa medida inclui o peso dos edemas que insistimos em afundar. O marido de minha mulher Luigi Pirandello Odisséia Editorial/ 187 páginas 33 Música O tenor interrompido Ídolo de Pavarotti e parceiro de Maria Callas, Giuseppe Di Stefano levou a emoção e a simplicidade à ópera em uma carreira curta e acidentada, mas intensa e influente Por Daniel Lima Imagens: www.giuseppedistefano.it Giuseppe di Stefano e a esposa saíam de casa, numa vila em Diani, próximo de Mumbasa, no Quênia, quando um grupo não identificado de assaltantes atacou o casal e atingiu a cabeça de Di Stefano, deixando-o gravemente ferido. Era dezembro de 2004. Por dias, um dos mais aclamados tenores da história esteve à beira da morte, em coma. O cantor finalmente acordou, após duas cirurgias no Quênia e uma transferência para Milão, na Itália, mas nunca se recuperou do incidente. Seria a reclusão definitiva para um tenor de carreira curta, cujo auge chegou tão rápido quanto se foi, mas que deixou marca indelével no ouvido e no coração de fãs de diversas gerações. Nascido na vila de Motta Santa Anastasia, na Sicília, em 24 de julho de 1921, Giuseppe di Stefano mudou-se ainda criança para Milão. Apesar de cantar em corais na infância, iniciou treinamento vocal apenas aos 18 anos, O tenor, que era ídolo de Luciano Pavarotti, não tinha a disciplina peculiar dos cantores de ópera: antes de suas apresentações, abusava de bebidas alcoólicas e fumava 34 estudando com os tenores Luigi Montesanto e Mariano Stabile. Os estudos foram logo interrompidos pela 2ª Guerra Mundial. Convocado para servir na enfermaria do exército no front russo, passava o tempo cantando para os companheiros de batalhão. Ironicamente, foi a música que o tirou da batalha: o médico Giovanni Tartaglioni, entusiasta da ópera, reconheceu no rapaz um talento nato e julgou que ele teria mais serventia cantando, longe do exército, e o dispensou. "A maioria do regimento nunca retornou da guerra, incluindo o médico", relembraria Di Stefano, que guardou uma fotografia de seu salvador pelo resto da vida. De volta à Itália, trabalhou como cantor popular, apresentando-se em cinemas (antes do início dos filmes) até 1943, quando se mudou para a Suíça, onde finalmente iniciou sua carreira operística no rádio. Já demonstrava suas qualidades mais notáveis: a dicção impecável e cristalina, e a interpretação expressiva. Prezava, antes de tudo, a emoção e a simplicidade. "O ideal é que as pessoas não notem sequer que estou cantando", dizia. "Quero que a música de meu personagem soe natural, quase como a fala." Di Stefano estreou em abril de 1946 na Itália, no Teatro Municipale, em Reggio Emilia, como Des Grieux na ópera "Manon", do francês Jules Massenet. Apresentou-se tão bem que logo repetiria o papel no Teatro dell'Opera, em Roma, e no La Scala, de Milão - duas das mais prestigiadas casas de ópera do mundo. No ano seguinte, já assinava um contrato com a gravadora EMI. Logo, atravessaria o Atlântico para cantar no Metropolitan Opera, em Nova York. Zarpava em alta velocidade para a condição de ídolo do mundo da ópera. Talentoso, "Pippo", como era carinhosamente conhecido, apresentava um legítimo entusiasmo pela música - e também pelas mulheres e pelos prazeres da vida. Nem sempre soube, entretanto, conciliar essas paixões. Os sinais eram claros desde cedo: chegou a estudar num seminário, mas abandonou a carreira religiosa ao se interessar por uma jovem tricoteira. Já tenor profissional, dispensava as convenções de preparo para as desgastantes performances no palco (mais especificamente, a abstinência sexual antes de apresentações, recomendada para conservação da resistência). Além disso, fumava, bebia e se esbaldava em festas - hábito mortal para tenores. Sua vida desregrada parecia ofender alguns fanáticos pela ópera. Em suas memórias, Rudolf Bing, diretor do Metropolitan, fala sobre o talento e a ambição de Di Stefano, mas também diagnostica suas óbvias fraquezas. "Como temi, sua falta de disciplina terminou por prejudicar uma carreira que seria comparada à de Caruso [um dos tenores mais famosos da história], mas não era para ser." Antes do inevitável declínio, no entanto, Di Stefano brilhou. Sua parceria com a expressiva soprano Maria Callas talvez tenha sido sua realização mais conhecida. Alcançaram o auge na mesma época, em meados dos anos 1950, e juntos interpretaram clássicos como "Tosca" e "Lucia di Lammermoor". Apresentaram-se na Itália, na Alemanha, nos EUA, no México e até no Brasil - cantando uma elogiadíssima "La Traviata" no Teatro Municipal, em São Paulo, em 1951. O dueto rendeu muitas outras apresentações marcantes, como a da "La Traviata" no Scala, sob direção do lendário cineasta italiano Luchino Visconti. O Scala, aliás, foi terreno prolífico para Di Stefano, que lá se apresentou 185 vezes em mais de 40 produções. Com o final da década, sua carreira começava a definhar, junto com sua voz e seu comportamento irregular. Começou a cancelar apresentações sob a justificativa de que uma alergia a fibras sintéticas havia inflamado suas cordas vocais. Entre os profissionais do mundo da ópera, a desculpa era encarada com ceticismo. Para muitos, os problemas vocais seriam resultado de sua técnica limitada, castigando sua voz em tons abertos demais. Os fracassos se seguiram pela década de 1960. Em 1963, cancelou uma apresentação na Inglaterra e o substituto foi um desconhecido: Luciano Pavarotti. Um grande fã, por sinal. "Lembro que briguei uma vez com meu pai", disse Pavarotti no documentário O último tenor, "porque escutávamos no rádio os tenores cantando, e Beniamino Gigli era o principal tenor daquela época [1890-1957]. Um dia, ouvimos uma voz jovem e não era Beniamino Gigli. Era Di Stefano. Eu disse: 'Pai, ouvi alguém de quem gosto mais do que Gigli'. Acho que foi a única vez em que meu pai me estapeou o rosto." No começo dos anos 1970, convenceu Maria Callas, já afastada dos palcos, a voltar à ativa para uma turnê. As apresentações, ainda que razoavelmente bem recebidas pelo público, foram execradas pela crítica e afastaram definitivamente Callas, que morreu em 1977. Depois disso, a carreira de Di Stefano praticamente terminou. Apresentava-se raramente. Enquanto isso, vozes como a de Pavarotti e Plácido Domingo arrebatavam o público. O tenor não se abalava. "Nunca tive inveja de ninguém", dizia. "Nunca precisei sair por aí dizendo que tive uma grande voz. Felizmente, fiz gravações em número suficiente para que as pessoas tirem suas próprias conclusões a esse respeito." Sua última performance foi em Roma, em 1992. Morreu em Milão, no dia 3 de março de 2008, aos 86 anos. 35 Foi em parceria com Maria Callas que Di Stefano alcançou o auge de seu sucesso, apresentando-se com a cantora em uma turnê que incluiu, em 1951, o Teatro Municipal de São Paulo Cinema Doce, mas dura Sonhos e perturbações formam o rico contraponto da vida de Federico Fellini, que morreu há 15 anos Por Itamar Cardin Milhares de pessoas estavam presentes no Walter Albertin, New York World-Telegram & Sun Collection - Library of Congress Para o diretor mais premiado da história do Oscar, o cinema era um “modo divino de contar a vida” Estúdio 5 da Cinecittá, em Roma, para dar o último adeus a Federico Fellini. Na multidão, amigos, políticos, parentes, companheiros de profissão e admiradores de todo o mundo. Faltava, no entanto, alguém. Debilitada por um câncer no pulmão, sua companheira Giulietta Masina permaneceu em casa e acompanhou a despedida ao marido pela televisão. E apesar de seu amor não estar mais presente, ele era então de ouro: Fellini morreu no dia 31 de outubro de 1993, um dia após completar 50 anos de casado com Giulietta, em decorrência de uma parada cárdio-respiratória, e após ter suportado o coma por duas semanas. Foi amparado pela mulher que o diretor deixou seu legado ao cinema. Na profícua geração italiana de Rossellini, Antonioni, Visconti e De Sica, ele talvez tenha sido o maior. A sutil mistura de fantasia, humor e humanismo, tornouo o diretor mais premiado da história do Oscar (estatuetas por "A Estrada", "Noites de Cabíria", "Fellini 8 e ½", "Amarcord" e pelo conjunto da obra, em 1993). Também levou a Palma de Ouro de Cannes, por "A Doce Vida", e o Leão de Ouro de Veneza, pela carreira cinematográfica. Os 24 filmes da obra de Fellini, gravados entre 1950 e 1990, nascem quase que de um paradoxo. Mesmo tendo criado um cinema fortemente autoral, de características inovadoras e inconfundíveis, ele sempre lutou para ser um antiintelectual. Fã de 007, o Gordo e o Magro, Buster Keaton, e desconhecedor assumido de grandes clássicos, Fellini afirmava que "o cinema é um modo divino de contar a vida" e fazer as pessoas sorrirem. Seus filmes, intrincados e nem sempre de fácil digestão, eram uma passarela dos mais diversos aspectos humanos. Certa vez, questionado sobre o que mais o emocionava, respondeu de pronto: "A inocência". E é notável que, em cinco de seus primeiros filmes, há sempre uma frágil mulher a perguntar: "Você gosta de mim?". Questão simples. Além de colocar em xeque a superioridade segura dos homens, desconstruía a sensação de dependência e carência que depreendia dessas mulheres. Dois desses filmes, "A Estrada" (1954) e "Noites de Cabíria" (1957), têm Giulietta no papel principal. Com um sutil arquear de sobrancelhas, um sorriso quase torto e um divertido esgueirar de olhos, ela materializa na tela a inocência desejada pelo marido e personifica a ternura das frágeis personagens - uma atrapalhada ajudante de circo e uma bondosa prostituta. É uma doçura alheia à aspereza que as cercam. A perfeita sintonia entre Fellini e Giulietta é a marca da primeira década do cineasta. Alegria que também poderia servir como redenção: dois anos após o casamento, celebrado em 1943, o casal perdeu o único filho com apenas quinze dias de vida, por insuficiência respiratória. Uma brusca mudança ocorre no cinema do diretor após o lançamento de "A Doce Vida" (1960): os personagens populares desaparecem, os gestos de sutileza diminuem, os traços oníricos se intensificam e as criaturas incomuns passam a ser dominantes. O filme gira em torno de um jornalista de origem humilde, interpretado por Marcelo Mastroianni, que passa a se envolver em um mundo repleto de festas surreais e personalidades quase grotescas - como artistas, nobres e outros profissionais da imprensa. Embora Giulietta seja a atriz principal de um outro longa, "Julieta dos Espíritos" (1965), filme que a homenageia e que faz perfeita contraposição de cores e imagens para separar o real do onírico, Marcelo Mastroianni é o ator mais marcante da nova fase. Fellini dizia que gostava de trabalhar com ele porque não questionava como os americanos. Marcelo preferia aceitar o trabalho, não ler o roteiro e definir o personagem conforme o filme transcorria. Como é notável nas brilhantes interpretações em "A Doce Vida" e "Fellini 8 e ½" (1963), quando a derrocada moral dos personagens encontra perfeita simetria nos gestos e olhares do ator. Sobre "Fellini 8 e ½" conta-se uma história fantástica. O diretor escrevia uma carta sobre a desistência em fazer o filme - mesmo com set alocado, máquinas e câmeras posicionadas, atores contratados - quando foi convidado por um maquinista, que participava das filmagens e aniversariava, a tomar champanhe. "Este será um grande filme, doutor. Viva!". Foi um baque. Envergonhado, voltou para o escritório, olhou para a carta e teve a idéia: "um filme sobre a história de um diretor que não sabia qual o filme que iria fazer". "8 e ½" nada mais era do que o número de rolos de filme utilizado até o momento. Ou, mais do que isso a abertura de um outro universo felliniano: o memorialista. Nascido em Rimini, pequena cidade do nordeste da Itália, Fellini se orgulhava de sua infância livre - só se mudaria para Florença em 1938, aos 18 anos, para trabalhar como ilustrador de uma revista. E a partir de "8 e ½", esse orgulho se torna inspiração: as personagens passam a conviver com o passado do diretor. O exemplo mais precioso desse período é "Amarcord" (1973), que narra a vida escolar e familiar de um jovem na década de 30, sempre com um olhar temeroso ante o fascismo. Os mínimos detalhes de conhecidos do cineasta, desde os amigos mais íntimos até os trabalhadores, prostitutas, aristocratas, fotógrafos e religiosos que ele apenas observava, tornaram-se matéria-prima para seus filmes. "O cinema é um modo de fazer concorrência ao Pai Eterno", dizia, a respeito da criação dos personagens. Também não deixava de lado a paixão pelo circo, que com sua cadência leve e grandiosa conduz boa parte dos filmes. Até as experiências do próprio diretor já foram inspiração para a dosada loucura de seus personagens. Na época em que aumentavam as convocações para a Segunda Guerra, Fellini obteve um atestado de um médico amigo, amarrou uma toalha na cabeça e brandiu uma espada imaginária em um hospício por três dias. Tamanha fonte criativa e experimental influenciou uma série de cineastas que vieram na seqüência. Almodóvar, Woody Allen, Cronemberg e David Lynch são alguns dos que carregam herança felliniana. A força dos traços distintos de Fellini, Divulgação Versátil somada à obsessão pelo cinema autoral, gerou, no entanto, uma crítica padrão nos últimos quinze anos de sua carreira: ele estava preso ao seu modelo e, sem força criativa, apenas se repetia. Tornara-se quase uma grife. Entre os últimos filmes, talvez o que mais fuja à regra seja "Ginger e Fred" (1987). Com Giulietta e Mastroianni, ele narra o contraponto entre a gravação de um programa de televisão e a estranheza de dois ex-dublês idosos. Ambos os personagens, vertentes mais verossímeis da realidade concreta, têm as esperanças e expectativas esfaceladas quando confrontados com aquele bizarro mundo da TV - como a trupe de anões dançarinos e os travestis sósias de grandes escritores e pensadores. Esse contraponto, aliás, parece ser o grande tema de Fellini. O fantástico, o onírico e o incomum nada mais são do que a faceta de uma existência distorcida, mas real, que sempre conturba seus personagens mais humanos. É em "A Doce Vida", filme que cunhou o termo "paparazzi" para o mundo, que o conflito parece mais bem desenhado. Se à primeira vista o clima festivo, a música alegre e a ausência de preocupações embriagam o jornalista humilde vivido por Mastroianni - poucas cenas são tão célebres no cinema como o banho na Fontana di Trevi entre ele e Anita Ekberg -, essas são ambientações que apenas dão mais vazão ao desespero existencial e aniquilam a força intelectual do personagem. Pode-se imaginar Fellini em sua casa natal, em Rimini, a sorrir e soletrar o singelo clichê que une vida e rapadura: "doce, mas dura". Toda essa ambigüidade só pode ser mais bem entendida mediante a relação de Fellini e Nino Rota - responsável pela música de "O Poderoso Chefão". Falecido em 1979, ano em que foi homenageado pelo diretor em "Ensaio de Orquestra", Rota fez a trilha sonora de todos os filmes do cineasta produzidos até aquela data. De tão específica e livre, sua música quase atua na obra. Era comum Rota esbravejar depois de Fellini detalhar o filme a ele e a música já estar pronta: "Mas será que vou ser sempre o último a saber de certos personagens?" E nessa combinação de genialidades independentes, a tensão se tornava leveza, o grotesco, palpável, e a rispidez, amor. Nada mais condizente com a obra, a vida e o grande final de Fellini e da esposa. Sem abandonar a inocência, Giuletta se renderia ao câncer apenas cinco meses depois da morte do marido. O jogo de fantasia e humanismo em seus filmes faz o espectador sorrir e se comover Perfil Um homem de todas as artes Gianni Ratto exerceu todos os seus talentos até o final da vida, deixando marcas bem pessoais em sua produção profissional Imagens: www.gianniratto.com (cenas do documentário "A mochila do mascate") "Gianni Ratto, diretor, cenógrafo, figurinista, Gianni Ratto ficava feliz em ver uma mulher bonita, em beber um bom vinho e, sobretudo, em ouvir música clássica. Ele regia de olhos fechados iluminador, escritor e ocasionalmente ator. Um longo e acidentado percurso teatral feito de reencontros, redescobertas e gratificantes decepções". Era assim que o próprio artista se definia. Um dos grandes nomes da cenografia na Itália e do teatro no Brasil, Ratto transitou também pela música, pela literatura e pelo cinema, em uma trajetória que revolucionou a arte nos dois lados do Atlântico. Ratto viveu até os 89 anos, produziu mais de 300 trabalhos, teve três filhos e se casou com sete mulheres. "Oficialmente foram sete, sem contar as namoradas", conta, sorrindo, sua última esposa, Vaner Ratto, com quem passou 18 anos. "Engana-se quem pensa que ele era um conquistador. Gianni tinha um grande respeito e admiração pela figura feminina", garante ela. Certa vez, já com cabelos brancos e hospitalizado, Ratto foi transferido da maca para a cama. A enfermeira desequilibrou-se e disse: "Quase que eu caio em cima do senhor". Ele respondeu, com muita elegância: "Teria sido maravilhoso!". Na Itália, sua terra natal, Ratto fundou o Piccolo Teatro de Milão, em 1947, com o designer e fotógrafo Paolo Grassi e com o diretor Giorgio Strehler. Também foi vice-diretor artístico e cenógrafo no Scala de Milão, famoso teatro de óperas, onde trabalhou ao lado de artistas como a cantora lírica Maria Callas e o maestro Igor Stravinsky. "Certa vez fui convidado para um jantar com o maestro. Eu disse: 'Estou com medo' Stravinsky deu um sorriso e respondeu: 'Eu também!'. Isso me deixou um pouco mais à vontade. Sentei ao lado dele e abri meu embrulho. mostrando, um a um, meus desenhos, que foram examinados demorada e detalhadamente". Arquivo Pessoal Por Julia Zanolli Em 1954, Ratto veio para o Brasil em busca de novas possibilidades expressivas do teatro. Aqui, tornou-se diretor e fundou o Teatro dos Sete, companhia formada com os atores Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sergio Britto e Ítalo Rossi (os três últimos também diretores). Foi a primeira companhia capaz de se manter no Rio de Janeiro com um projeto próprio, que privilegiava não a individualidade do ator, mas a potencialidade das peças encenadas. No Brasil, atuou ainda em áreas como iluminação, figurino,cenografia e direção. Há quem diga que, no Brasil, Gianni Ratto se tornou "um homem de teatro completo", mas na Itália é que estavam todas as suas referências estéticas e sua formação artística em arquitetura e cinema, evidente em seus croquis para os cenários, tanto pela beleza dos desenhos quanto pela concepção do palco como um espaço a ser construído. Ratto se considerava um artesão do teatro. Sua visão da cenografia revolucionou a concepção teatral italiana: "A melhor cenografia é aquela que não se percebe", dizia ele. Se o teatro não é basicamente um ato de amor, um ato de fé, não sei mais o que é teatro Gianni Ratto Pioneirismo e amor pela arte Gianni Ratto nasceu em Milão, em 1916, e cresceu em Gênova com sua mãe, professora de canto e pianista, que lhe ofereceu um contato direto com a música. Ainda jovem, participou de um concurso de cenário. O pioneirismo desse artista não se restringe apenas ao campo técnico. Ele inovou ao conceber a cenografia como um organismo polivalente e ao revolucionar a integração da arte com o palco, construindo uma espécie de poesia visual. Segundo Ratto "a cenografia é resultante de um ato interpretativo que envolve, além dos conhecimentos técnicos indispensáveis, toda uma postura de vida dirigida para um conhecimento amplo e humanista do homem". Para ele, não havia diferença entre vida e teatro. O valor das coisas, para Gianni Ratto, não estava nelas mesmas, e sim no que elas poderiam gerar. Talvez por esse motivo sua vida toda tenha sido uma busca pelo ato singular da criação, da descoberta do inexplorado e dos efeitos disso. Ainda nessa procura, a partir dos 70 anos, Ratto se aventurou na literatura e publicou cinco livros: Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema (Senac, 1999); Crônicas improváveis (Codex, 2002); Noturnos (Codex, 2005). Seu livro A mochila do mascate (Hucitec,1996), uma coletânea de escritos e fragmentos de memória, deu origem a um documentário homônimo e poético dirigido por Gabriela Greeb, convidada pela filha de Gianni, Antônia Ratto. O documentário, feito em 2003, fala muito mais sobre a alma e o pensamento de Gianni Ratto do que sobre sua vida. "O filme é o Gianni, busquei ele próprio ao filmar as imagens", diz a diretora. O título, que já está disponível nas locadoras e pode ser comprado desde abril, refaz a história de Ratto, começando em sua infância, e visita lugares que marcaram sua trajetória profissional, como o Piccolo Teatro de Milão e o Scala. "Foi a primeira vez que ele visitou esses lugares como espectador, por isso foi muito emocionante para ele e para as pessoas com quem ele já trabalhou", diz a viúva. Ratto já tinha 87 anos quando fez a viagem à Itália e sabia que seria a 39 Parte da biblioteca do cenógrafo que fará parte do Instituto Gianni Ratto última vez que veria todos aqueles lugares. "Foi ao mesmo tempo uma despedida para o Gianni e um encontro para a Antônia, que queria conhecer melhor as raízes e a história de seu pai", relembra Vaner. O documentário é um elogio aos sentidos, tanto pela textura e riqueza poética de suas imagens, quanto pela qualidade de sua música. A expressividade de Ratto é transferida para a estética do filme, e o ritmo das imagens, a construção dos planos e a trilha sonora foram concebidos para representá-lo. Ratto disse à diretora durante as filmagens: "Não se preocupe em falar tudo, não tenha medo de um filme de silêncios e repetições, pois assim sou eu". A ordem da narrativa não é cronológica, mas De volta à Itália já no fim de sua vida, Ratto revê parte de seu passado em cartas, documentos e fotografias segue um fluxo de pensamento e, talvez por isso, o filme seja tão fluido, entremeado de pausas e reflexões. Além disso, o documentário não tende ao tom nostálgico (esperado em uma biografia de alguém em idade avançada), já que a diretora procurou registrar as impressões do presente sobre o que Ratto produziu. Por ser reservado, Ratto não gostava muito de estréias e só comparecia quando a sua presença era realmente necessária. Mas quando "A mochila do mascate" foi exibido na 29ª Mostra Internacional de Cinema, Gianni Ratto foi aplaudido em pé durante 15 minutos. Gabriela conta que, ao final do filme, Gianni lhe deu os parabéns e disse que o documentário era transparente como a sua cabeça. Segundo Vaner, "foi muito gratificante O que não foi pertence a tempo nenhum e o que foi - se algum valor já teve - hoje só vale se o amanhã for um começo e não uma continuação, um prolongamento, uma cadeira de balanço Gianni Ratto Croqui para a peça 'A tempestade', de William Shakespeare, no Jardim de Boboli, em Florença. Abaixo, Ratto, sempre muito crítico com sua obra, analisa seus desenhos para ele trabalhar com tanta gente jovem no final da vida. Gianni era uma pessoa muito ativa, sempre pensando para frente, tanto é que os trabalhos perdiam o sentido para ele depois que eram feitos". Em 30 de dezembro de 2005, Gianni Ratto morreu em sua casa, bebendo um bom vinho. Trabalhou até o final. Os amigos se reuniram em um teatro para recitar trechos de sua obra e celebrar sua vida, que marcou de forma definitiva tantas outras vidas e palcos mundo afora. Um espaço disponível Depois da morte de Gianni, Vaner Ratto deparouse com uma enorme quantidade de desenhos, gravuras, partituras e livros. Por sua postura muito crítica em relação a seu próprio trabalho, e por sua crença no fato de que o que já foi feito é passado, o artista chegou a queimar uma parte de sua obra. "Mas eu não poderia fazer isso", diz Vaner. Para Gianni, o valor era a idéia, e toda parte plástica era apenas um instrumento. A família chegou a considerar a doação do acervo para alguma instituição, mas decidiu entrar em um edital da Petrobras para memória, conservação e restauro daquelas obras. O projeto do Instituto Gianni Ratto foi contemplado com esse incentivo e deve ficar pronto até o final do ano. "A idéia é que seja um espaço aberto para leituras, debates. Como diria o Gianni, os espaços têm que ser disponíveis", esclarece Vaner. Eu procuro o que une as coisas, não o que separa 41 Espaço Aberto Por André Tadao Kameda Sobre vida na cidade grande ... e são tantos os desencontros, os desentendidos, o dito pelo não dito, que às vezes penso por mais quanto tempo vai ser possível viver nesta metrópole desvairada. Penso especialmente na megalomania, no gigantismo, no modo de levar a vida: tudo leva a crer que as coisas estão estruturadas de modo a não ser possível uma convivência saudável entre os co-habitantes da dita cidade grande. Então vão se criando a desconfiança e o medo do próximo, cultiva-se a intolerância, e não dá nem para parar e pensar se isso está mesmo correto; vai-se vivendo. Não falo somente do senhor mal-ajambrado do lotação que senta sempre no mesmo banco e com quem você nunca trocou palavra; nem da mulher que passa correndo na rua todos os dias, talvez atrasada para o trabalho; também não me refiro ao homem-estátua, parado todos os dias no viaduto do Chá, a quem você sempre teve vontade de perguntar se ganha a vida só com as gorjetas de seu exótico ofício. Falo principalmente da vida em comunidade, das pessoas com quem se escolhe conviver. Vou tentar resumir o que penso: seus amigos têm outros amigos, a quem eles também precisam ver de vez em quando. Somem-se a isso o trabalho, a família, a namorada, o futebol da semana, os 42 projetos (esta cidade vive de projetos; não sei se isso é bom ou ruim - é apenas uma constatação). Até daria pra fazer tudo isso, não fosse o trânsito, o precário transporte público, e mesmo o gigantismo da metrópole. Tempo e espaço são variantes que definitivamente não se equacionam em São Paulo. Mas é em meio a esse cenário de terra arrasada que a humanidade deve se afirmar. Não aceitar tudo isso e nadar contra a corrente. Já que as utopias morreram e o que se vislumbra é somente um horizonte nebuloso, temos de procurar viver o dia-a-dia baseados em princípios que parecem estar sumindo: a compreensão, o afeto, a preocupação com o outro. Reatar os laços que a cidade desamarra; fazer os remendos no grande tecido tramado entre as pessoas, que se esgarça todo dia, e a cada dia mais. Isso me faz lembrar um episódio, que devo ter lido em algum livro. Aconteceu na ilha italiana da Sicília, onde o sol bate forte o ano inteiro e a pobreza sempre foi muito presente. Corria o ano de 1282 e os sicilianos, há séculos vivendo sob a opressão de estrangeiros, ficaram sabendo que um soldado francês violentara a filha de uma camponesa. A notícia correu as vielas e todo francês encontrado na rua era morto pelo povo ilhéu. A mãe da menina saiu correndo às ruas gritando angustiadamente: ma fia, ma fia. Dizem os historiadores locais que daí se originou a palavra máfia. O fato é que o povo se cansou da exploração e resolveu se unir contra o jugo estrangeiro. Os franceses foram expulsos da ilha e formou-se uma ética interna de união. A partir de então, os sicilianos passaram a se ajudar uns aos outros, e os grupos que se formaram foram o embrião do que hoje chamamos de organizações mafiosas. Não digo que grupos de amigos devam formar a sua própria máfia e sair por aí afrontando os poderes constituídos, sejam eles justos ou não; nem quero fazer a apologia do crime. Mas podemos olhar para dentro dessas organizações e observar alguns - repito, alguns - aspectos que as fizeram sobreviver em meio a uma sociedade nem sempre justa. O apoio a cada membro do grupo, a ajuda mútua e a honra são valores que esses grupos cultivavam e para os quais podemos prestar mais atenção nesses tempos em que vivemos. Por falar em valores que surgem em meio a crises, há um livro do cronista Rubem Braga em que ele conta a sua saga de correspondente na Itália, onde foi cobrir a 2ª Guerra Mundial ao lado dos pracinhas brasileiros. Nesse livro, chamado Crônicas da guerra: com a FEB na Itália, o maior cronista brasileiro reproduz as histórias dos pracinhas que foram lutar com os Aliados, muitos dos quais sem saber direito o que estavam fazendo lá. São histórias comoventes, que mostram a guerra pelo ponto de vista de quem esteve nos campos de batalha. Na leitura, não vemos número de mortes, quantidade de armamentos, capacidade logística dos exércitos ou estratégias de combate; pelo contrário, vamos conhecendo a história de cada um daqueles soldados, como viviam nos acampamentos, as atividades nas horas vagas, as saudades dos familiares, o que faziam antes de ir para a guerra. São fios de existência em meio a tantas mortes, é a vida resistindo apesar de tudo. O certo é que esses momentos de crise - e a guerra é a crise levada às últimas conseqüências - nos obrigam a parar e refletir sobre as coisas. O primeiro passo para que a mudança comece. 43 Ensaio fotográfico Trabalho e família. Conceitos que, para boa parte dos italianos e descendentes, se entrelaçam facilmente. E mesmo na São Paulo de 2008, onde o estilo de empreendimento familiar é cada vez mais escasso, essa herança italiana se mantém viva em pequenas, médias e grandes empresas, dividindo os cargos e as funções entre trabalhadores do mesmo sangue. O Ensaio desta edição traz exemplos de pessoas que construíram suas vidas no Brasil com muito esforço, e em família. Todos vieram para a grande São Paulo na infância, aprenderam sobre seus respectivos ofícios ainda jovens, trabalhando manualmente e crescendo em suas atividades. Hoje, são donos de seus próprios negócios e desejam que as gerações seguintes levem adiante o que construíram. Os fotografados têm, no entanto, mais do que características comuns, como o empenho e o trabalho em família, em suas trajetórias. Todos eles, a partir de uma simples conversa, transformam, em poucos minutos, as formalidades e discrições de um primeiro contato em um tratamento tão próximo que faz o interlocutor se sentir uma agradável companhia. Comendador Alberto Trofa, de 74 anos - Diretor do Grupo Industrial Trofa "Se der a palavra, não volte atrás." Com a estrutura financeira da família destruída pela guerra, Trofa veio para o Brasil, a convite do irmão (Antonio), somente com a roupa do corpo. Em seguida, mais um irmão chegou (Vincenzo), e os três fundaram a empresa. 6 Pietro Cemino, de 84 anos - Diretor da Mepre - Mecânica de Precisão e Com. Ltda. "São Paulo é minha segunda mãe." Ex-combatente da Segunda Guerra, veio ao Brasil para reconstruir sua vida. Trabalhou como operário até 1964 e economizou dinheiro para montar sozinho sua própria empresa. 45 Antônio de Caprio, de 70 anos - Diretor da Sapataria Barone "Para ficar atrás do balcão, deve-se entender da profissão." Ainda na Itália, aos 13 anos, descobriu que sua vocação era consertar artigos de couro e sapatos. Arranjou um emprego no navio que o trouxe para o Brasil e, quando chegou a São Paulo, aperfeiçou-se em uma fábrica de bolsas, até juntar dinheiro para alugar sua primeira sapataria. 46 6 Francesco Coscarelli, de 31 anos - Empresário, engenheiro da tecnologia da informação e músico "Se você não almeja grandes objetivos, não conseguirá nem os pequenos." Aos 8 anos, ainda na Itália, aprendeu a cantar e a tocar piano sozinho. Já adulto, se apresentava em bares e restaurantes. Formou-se engenheiro e veio para o Brasil a fim de aprender mais sobre samba e bossa nova. Hoje, é músico e cantor profissional e administra sua própria empresa. 47 Gastronomia Por Silvia Percussi Fotos: Tadeu Brunelli Misturas marcantes e muita pasta A massa, o azeite e o vinho constituem a base gastronômica da Puglia, região que, por estar localizada no Sudoeste da Itália, tem sua alimentação reconhecida como tipicamente mediterrânea. Ali, peixes e verduras também são ingredientes com os quais mais se preparam refeições típicas, famosas em toda a Itália pela generosidade de seus sabores. Os pugliesi, naturais da região, têm na cozinha uma preferência: gostam de criar pratos compostos, misturando ingredientes que, à primeira vista, podem ser considerados incompatíveis. Mas digamos que sua cozinha apresenta-se geograficamente de forma muito homogênea: nos quatro cantos da região podem ser degustados os mesmos pratos, com pequenas variações na preparação. As entradas são freqüentemente constituídas de embutidos. Entre eles, os mais famosos são o capocollo, a sopressata e as lingüiças feitas com sementes de erva doce conhecidas também como sanguinaceo. A massa, como sucede em todas as regiões do Centro-Sul italiano, é a rainha da mesa pugliese. As orecchiette são as mais famosas, e têm o formato de uma pequena concha que abriga o molho de maneira excelente. São muitas as receitas de molho à base de peixe ou carne para acompanhá-las. Na cidade de Bari, por exemplo, foi criado o ragu apuliano, chamado ciambotto, que é obtido com diferentes pescados do mar Adriático e acabou se tornando um dos molhos mais apreciados e conhecidos. Mas os pugliesi também utilizam o ragu de carne, que pode ser feito com vitela, castrato, carne suína, ou ainda com uma combinação dos três. A massa vem sempre acompanhada de uma salada feita de pimentões, tomates, salsinha, alho e cebola, chamada scattiata tarantina (veja receita na página 50). Outra pasta substanciosa e preparada em ocasiões especiais é o maccheroni al forno, que consiste em massa de grano duro cozida e temperada com molho de tomate. Colocado em uma forma forrada com uma massa de torta adocicada, recebe, antes de ser levado ao forno, pequenas almôndegas de carne, ovos cozidos picadinhos, fatias de salame, e lascas de queijos pecorino e scamorza. O sabor diferenciado dos produtos oferecidos pelo solo pugliese, em especial o trigo para preparar a 48 massa, faz da pizza um prato excepcional, de sabor muito intenso e difundido em toda a região. São bem conhecidas as pizzas de verdura e a pudicca, que consiste em dois discos de massa sobrepostos que se fecham sobre um recheio de cebolas, tomates, azeitonas pretas e anchovas. O povo ali se considera o inventor do calzone, que aparece com um recheio rico em azeitonas, cebolas e queijo pecorino. Entre os pratos principais, não podemos deixar de fora as sopas de peixe, de favas e chicória, ou ainda a maritata, uma sopa feita de chicória, escarola e pecorino. Já nos segundos pratos, os peixes são ingredientes considerados nobres. As receitas são sempre muito simples para não alterar o sabor natural dos pescados. Um método muito usado é o escabeche, palavra de origem espanhola que indica o método de fritar o peixe ou a verdura e depois deixá-los marinar em vinagre. A carne na Puglia é menos importante que o peixe, mas também ocupa um lugar de destaque no seu receituário. Há muito consumo de carne de cordeiro assada no forno e temperada com alecrim e alho, acompanhada de pedaços de queijo pecorino, novamente, mas aqui cortado em cubinhos. As verduras têm um sabor marcante, muitas das quais com nomes ainda desconhecidos da maioria dos italianos. Um exemplo são os lampascioni, que, pelo formato, lembram a cebola e possuem sabor levemente amargo, porém agradável. Ficam ótimos cozidos e consumidos com salada, mas também podem ser reduzidos a uma geléia e espalmados sobre uma fatia de pão tostado. Entre os queijos, destacam-se a mantecata, que contém um suave coração de manteiga, e a burrata, um laticínio com uma consistência similar à da mozarela de búfala, que tem no interior um recheio de creme de leite fresco. Nas sobremesas, são muito usadas as frutas frescas ou desidratadas, e as amêndoas. Entre os doces mais conhecidos, merecem destaque as carteddate, feitas com massa folhada, temperadas com mel e aromatizadas com canela (veja receita na página 50). A sobremesa mais original é o sorvete ao forno: duas fatias de pão-de-ló recheadas com sorvete e frutas secas, assadas rapidamente no forno. Orecchiette al pomodoro e ricotta dura Ingredientes: 400 g de orecchiette 250 g de molho de tomate fresco 3 colheres de sopa de ricota dura ou defumada picante Sal a gosto Modo de Preparo: Cozinhe a massa em abundante água fervente e salgada. Aqueça o molho de tomate e, quando a massa estiver “al dente”, escorra-a e tempere com o molho. Depois, adicione a ricota ralada. Misture bem e sirva. Scattiata tarantina Ingredientes: 4 pimentões vermelhos e/ou amarelos 1 cebola em rodelas 5 tomates frescos picados, sem pele e sem semente 1 dente de alho socado Salsinha a gosto Azeite a gosto Modo de Preparo: Tire a pele dos pimentões e deixe-os sobre o bico do fogão aceso até que fiquem completamente pretos. Retire-os e, sob a torneira com água corrente, remova a pele queimada. Corte-os em tiras e reserve. Em uma frigideira coloque azeite. Em seguida, adicione as cebolas e refogue. Acrescente o alho, depois os tomates e os pimentões, e tempere com sal. Deixe um pouco no fogo até que se reduza o líquido dos tomates. Coloque mais sal se necessário, e tempere com salsinha. Deixe esfriar e sirva. Carteddate Ingredientes: 500 g de farinha de trigo 20 g de fermento biológico 1 cálice de marsala ou vinho do porto Açúcar Mel Canela Óleo de canola Sal a gosto Modo de Preparo: Misture a farinha e o fermento dissolvido em um pouco de água morna e salgada. Adicione 100 g de óleo e o licor, até obter uma massa como a do pão. Deixe fermentar durante duas horas. Quando a massa tiver crescido, abra uma folha bem fina e corte tiras de 50 cm de comprimento por 2,5 cm de largura. Forme rodelas em formato de rosas e frite-as em óleo quente, deixando escorrer em papel toalha. Em outra panela, coloque bastante mel e deixe ferver até formar bolhas. Adicione com cuidado as rosas de massa, deixando-as absorver o mel por poucos minutos e virando-as de lado. Coloque-as em formato de pirâmide em uma travessa e pulverize-as com canela e açúcar. Podem ser servidas ainda quentes ou frias. A chef Silvia Percussi, autora do livro"Funghi - cozinhando com cogumelos" (editora Keila & Rosenfeld), é responsável pelo cardápio do restaurante Vinheria Percussi 'desde 1988'. Rua Cônego Eugênio Leite, 523, Jardim América. De terça a domingo. Fone: 3088-4920/3064-4094 50 Turismo Taranto, fundada pelos gregos, tem até hoje uma grande importância por sediar o porto de Brindisi 52 Uma ponte para o Oriente A Puglia guarda vivas as influências da colonização grega em belas cidades admiradas por turistas do mundo todo Por Edoardo Coen Imagens: Ente Nazionale Italiano per il Turismo (Enit) A longada entre os mares Adriático e Jônio, a antiga Apúlia, hoje conhecida como Puglia, é a região localizada no extremo sul-oriental italiano. São 360 quilômetros de uma ponte natural para o Oriente. Por causa da proximidade com a Grécia, nela ainda sobrevivem ilhas lingüísticas e culturais influenciadas pelo país dos helenos. No século VIII a.C., a Puglia foi colonizada pelos gregos, que fundaram um importante centro de civilização: Taranto. Depois da conquista romana, a região tornou-se privilegiada no Império, principalmente por seu papel de ligação com o Levante, já que sediava o porto de Brindisium, hoje Brindisi, terminal da via Ápia (a mais antiga estrada romana, que por essa razão era chamada de "regina viarum", ou seja, rainha das estradas). Bari, a antiga Barium dos romanos, é a capital da região. Cidade próspera por sua condição de ponte com o Oriente, abriga moradores orgulhosos que dizem: "Se Paris tivesse mar, seria uma pequena Bari!" Mas não foi sempre assim. Segundo a lenda, essa cidade foi fundada alguns séculos antes de Roma. Além dos costumeiros terremotos, triste herança da Itália meridional, Bari sofreu, na Idade Média, incursões dos bárbaros e dos piratas sarracenos, e foi campo de luta entre bizantinos e normandos. 53 poderemos aproveitar doces, como os "taralli", preparados com mel, amêndoas e ricota. Antes de encerrar o nosso dia em Bari, precisamos conhecer o Castelo, construído na primeira metade do século XIII, por Federico II, sobre as ruínas de uma construção defensiva normanda. Hoje próspera, e de beleza que atrai turistas do mundo todo, a capital Bari já sofreu invasões bárbaras e sarracenas A menina dos olhos de Bari é a Catedral de San Nicola, que leva o nome do santo padroeiro da cidade Visitando Bari Começaremos nosso tour pela capital. Não podemos deixar de visitar o seu maior orgulho: a arquitetura românica da Catedral do patrono da cidade, San Nicola, concluída em 1139 pelo rei normando Rugero, mas que desde 1089 já conservava as relíquias trazidas da Lícia, numa cripta consagrada pelo papa Urbano II. Em seu interior, destaca-se um precioso cibório com o trono episcopal e o de Santo Elias, além de pinturas como "Cristo aparece a San Roque" de Tintoretto, "Virgem em trono", de Paris Bordone, e "Virgem em glória", de Veronese. Nos arquivos da Catedral, uma obra que deve ser contemplada: trata-se de um antigo pergaminho escrito por um calígrafo beneditino. Merece também uma visita mais demorada o Palácio da Universidade, onde está o Museu Arqueológico, contendo relíquias da Idade da Pedra e do Bronze, urnas funerárias e cerâmicas. Agora, já que estamos na cidade velha, entraremos em suas ruas estreitas e irregulares à procura de um restaurante típico onde poderemos degustar pratos de massa locais, como os "cavatelli" ou as "orecchiette", acompanhadas por um delicioso vinho: o "Primitivo", um tinto local produzido com uvas negromaro e malvasio. Para encerrar, À procura de burgos antigos Iniciaremos nossa visita aos pequenos burgos da Puglia, que conservaram no decorrer dos séculos as legítimas características e tradições locais, representando integralmente, no presente, um passado remoto. Percorreremos apenas poucos quilômetros até surgirem três cidadezinhas: Bitonto, Bitetto e Sannicandro di Bari. Bitonto é um centro agrícola de uma região famosa pelas magníficas oliveiras. Os lugares de interesse turístico se encontram em duas áreas distintas: a praça Cavour, no limiar da Porta Baresana, com a Torre Anjoina; a igreja de San Gaetano e vários palácios no estilo renascentista e barroco; e a praça da Catedral, com a sua Basílica. A Catedral é uma construção típica do estilo românico-pugliese, cujas linhas parecem imitar as da Catedral de San Nicola, em Bari. Construída em 1175, possui três naves, destacando-se pelo portal com leões de mármore, duas janelas geminadas e uma grande rosácea central. Mais próxima que poderíamos imaginar, está Bitetto, cidade que conserva um núcleo histórico enriquecido por construções populares, burguesas e camponesas. Sede de um bispado desde o século IX, revela a ausência de um projeto urbanístico, mas em seu núcleo original prevalecem construções medievais. A sua Catedral, dedicada a San Miguel, merece uma visita. Com sua bela fachada de estilo românico em pedra escura, possui três majestosas portas, uma rosácea e uma cobertura feita com telhas nas cores verde e amarela. Sannicandro di Bari, a 183 metros do nível do mar, é o ponto de entrada de alguns dos mais importantes percursos medievais da região. É um burgo rural, onde se mantêm os antigos costumes populares. O lugar era ocupado por um vilarejo chamado Mezardo, que em grego significa "terra fértil". O seu Castelo, conquistado pelos Ostrogodos e pelos Longobardos, foi fortificado pelos Bizantinos, mas em seguida completamente destruído pelo imperador Constante II. Cem anos depois, alguns religiosos basilianos se estabeleceram nessas ruínas, construindo uma igreja dedicada a San Nicandro. As casas de Sannicandro se encontram em ruas que são verdadeiras escadarias. Esse panorama agreste, genuíno, é moldura de um ambiente no qual as festas tradicionais, entre as quais a de San Giuseppe e a da Madonna di Torre, ainda constituem um acontecimento memorável. Os edifícios religiosos também são parte da simplicidade agreste do lugar: as igrejas do Espírito Santo, do Crucifixo e a Capela dedicada à Sagrada Família seguem essa linha. Altamura, província de Bari, também é um burgo agrícola, erguido ao redor de uma Catedral. Antiga cidade de um povo estabelecido na região desde a época da Idade do Ferro e do Bronze, foi destruída pelo Sarracenos, ressurgindo no século XV por desejo de Federico II. Da cidade primitiva sobram restos de um muro megalítico e uma porta chamada Áurea. A fundação da Catedral se impôs logo como elemento aglutinador e organizador. Foi-se definindo uma tipologia de moradia, copiada dos modelos gregos e em parte dos árabes. Criou-se, então, o sistema de vielas sem saída com pátios usados pela população como áreas de serviço. A Catedral, em volta da qual a cidade cresceu, é caracterizada por duas torres com sinos, e deu origem a uma praça muito freqüentada pela população local, além de ser o ponto de confluência de várias estradas radiais. As casas foram construídas com um vão no térreo, outro na parte superior, com acesso por meio de uma escada externa. Um lugar conhecido Chegamos agora a Polignano a Mare, cidade que deu origem ao nome de uma rua paulistana onde, todos os anos, ocorre a tradicional festa de São Vito, organizada pela comunidade pugliese em São Paulo. Polignano a Mare é um lugar encantador, com casas de cor cândida localizadas à beira de um penhasco que emerge das águas esmeraldinas do mar Adriático. Suas origens são desconhecidas, mas parece que a cidade surgiu onde havia um povoado grego. Na base do penhasco, batido pelas ondas, a erosão formou numerosas grutas, onde os raios do Sol criam jogos coloridos de luz na água límpida. Assim são as grutas do Palazzone, da Foca e das Rondini, que oferecem um espetáculo maravilhoso. As vielas da cidade, calçadas com lajes de pedra, são estreitas e tortuosas, e as casas se acumulam com a mesma vivaz confusão das casas orientais. A vida da população gira em torno das duas praças centrais, que podem se comunicar por meio do Arco della Pace. Na praça Garibaldi, encontra-se o palácio Marchesale, e na outra, a Vittorio Emanuele II, está a Casa Parrocchiale, do século XVI. Seu estilo românico-gótico original sofreu várias alterações. A construção conserva, porém, uma imponente torre de sinos e valiosas obras de arte em seu interior, como um belo púlpito lígneo do século XVI, uma pia batismal de 1776, com cobertura piramidal em mármore policromo e esculturas de Stefano di Putigliano. Os "trulli" di Alberobello O termo "trullo" deriva do grego antigo tholos, que no grego mais novo se transformou em trullos, com o significado de "túmulo". Os "trulli" são as construções de arquitetura popular conhecidas no mundo todo seja por sua beleza formal, seja por sua unicidade. Apesar de sua construção ser relativamente recente, a concepção é uma O Castelo Del Monte, construído no século XIII, fica na cidade de Andria Os famosos Trulli de Alberobello: ao todo, são 1.070 na cidade das mais antigas da área do Mediterrâneo. Trata-se de um local de planta quadrada, geralmente baixo, com a cobertura construída com circunferências concêntricas de pedra, sempre estreitas. A base é caiada, enquanto a cobertura é preta. Os gregos, já na guerra de Tróia, conforme Homero descreve em sua Ilíada, usaram essa técnica para levantar o túmulo de Agamenon. Ela foi se repetindo e, mais de 2.000 anos depois, ainda é aplicada nas costas opostas do mar Adriático. Alberobello é particularmente famosa por essas construções. A visita à cidade deve ser feita a pé, já que a paisagem surpreende continuamente, com belos enquadramentos disponíveis aos amantes das fotografias. A área mais interessante do ponto de vista turístico compreende os bairros Monti e Aia Piccola, inteiramente construídos com "trulli": no total são 1.070, unidos ao longo de ruelas tortuosas. Cada "trullo" tem o portal em forma de arco, com a cúspide de pedra trabalhada, enquanto nas coberturas são desenhados com cal símbolos religiosos. Convém visitar o "Trullo Sovrano", único de dois andares de toda a cidade, construído depois de 1797, quando Alberobello foi declarada livre. A simpatia e a gentileza dos moradores são tradicionais. Acostumados à visita dos turistas, chegam a convidá-los a entrar em suas casas, para conhecer seu interior. Losciale, Garrappa, Speziale Piccola: as masserie A alguns quilômetros de Alberobello encontramos Losciale, Garrappa e Speziale Piccola, as três masserie. Masseria é uma construção que surgiu da elaboração total ou parcial de um castelo ou de uma torre de defesa. Na época das invasões sarracenas, os habitantes dessa área enfrentavam várias dificuldades, como 56 as contínuas guerras entre cidades rivais, os salteadores que devastavam o campo, a grande distância dos centros nos quais se podia adquirir o necessário para a subsistência, além de péssimas estradas. Surgiu então a masseria, uma espécie de aglomerado auto-suficiente, onde a produção agrícola devia levar em conta todas essas dificuldades, pondo-se a salvo de qualquer contratempo. Os agricultores da região organizaram então sua produção, usando estruturas defensivas como torres e pequenos castelos com muralhas de proteção. As componentes essenciais desse tipo de estrutura eram substancialmente três: a "curtis", a "domus" e o "casilinum". A "curtis", a moderna corte, era o fulcro de um espaço delimitado pelas construções, e onde se criavam principalmente galinhas e suínos; a "domus" era a residência permanente do "massaro" (o gerente) e de seus auxiliares; e o "casilinum" servia de depósito para instrumentos de trabalho e para sementes. Com o passar dos séculos, e com o aumento das necessidades, a esses três elementos se acrescentaram: o "jazzo", ou seja, o redil; a adega; o "trappeto", lugar destinado ao cultivo das oliveiras; e a "cafoneria", onde residiam os trabalhadores temporários. Losciale, a primeira masseria, que surge no território entre as cidades de Monopoli, Fasano e Ostuni, é uma masseria a torre, já que o seu núcleo inicial é constituído por uma casa-torre. Estamos chegando ao fim de nossa viagem pela ensolarada Puglia. Uma viagem que nos permitiu conhecer aspectos que nos deram uma sensação quase concreta da alma da Puglia. Tivemos ainda a oportunidade de respirar uma atmosfera mágica, perfumada por antigas lendas e lembranças mitológicas que as várias civilizações que se sucederam nesta terra deixaram como legado. E ainda existem muitos outros lugares encantadores como Brindisi, Lecce, Taranto, Foggia e pequenos povoados, encravados nas encostas dos montes ou ao longo de trilhas seculares. Puglia FOGGIA BARI BRINDISI TARANTO LECCE Unidade Jardins Rua Manuel da Nóbrega, 498 Jardins Tel.: 3051-7828 JARDINS Elevador Discovery Discoteca Completa Cama Elástica Barco Vicking Super Parede de Alpinismo Games (Jogos em Rede) Trem Bala Super Brinquedão com área baby Lanchonete Infantil Palco c/ Camarim Casinha do Macaco Dardo Eletrônico Carrossel Air Boy Máquina de Dança área Zooopa Painel Temático com sons de bichos Super Tombo Street ball e muito mais... MOEMA Cama Elástica Roda Palhaço Camarim de Fantasias Elevador Discovery Casinha de Boneca Máquina de Dança Carrossel Super Brinquedão com área baby Parede de Alpinismo Eletrônica Lanchonete Infantil Dardo Eletrônico Lan House Super Tombo Street ball e muito mais... Unidade Moema Av. Moema, 414 Moema Tel.: 5051-1818 Cardápios diferenciados Menu Kacher Menu Japonês Criamos Menu Árabe lembrancinhas e outros... personalizadas Unidade Higienópolis Rua Bahia, 764 Higienópolis Tel.: 3661-7640 HIGIENÓPOLIS Barco Vicking Games / Air Boy Super Brinquedão com área baby Máquina de Dança Mono Rail Cama Elástica Área Teens Lanchonete Infantil Casinha do Macaco Parede de Alpinismo Carrossel Dardo Eletrônico Games (jogos em rede) Super Tombo Espelho Mágico Street ball Snow Board e muito mais… Estacionamento com Manobrista ITAIM Boliche Eletrônico Cama Elástica Barco Vicking Parede de Alpinismo Games / Air Boy Super Brinquedão com área baby Lanchonete Infantil Casinha de Boneca Máquina de Dança Vitrine Animada Carrossel Super Tombo Street ball e muito mais... Unidade Itaim Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 174 Itaim Bibi Tel.: 3845-3006 Arquivo Artigo Bullying: Por Silvana Leporace o diálogo é a melhor solução O "bullying", conjunto de atividades agressivas, intencionais e repetitivas que causam sofrimento aos indivíduos, sempre existiu. Mas, felizmente, agora tem se falado de forma mais aberta a respeito do assunto, em especial na escola. Não podemos considerar o bullying uma brincadeira própria de uma idade, inocente, sem intenção de ferir. Ele é intencional, não pode ser subestimado, e a preocupação com as conseqüências deve existir. Pode ser encontrado em qualquer faixa etária e nível de escolaridade. Hoje, existe também a forma virtual de bullying, o "ciberbullying", em que se utilizam ferramentas da internet e de outras tecnologias de informação para maltratar, humilhar e constranger. Em qualquer tipo de bullying, porém, existe sempre o agressor, a vítima e os observadores. O agressor, com o passar do tempo e sem a intervenção do adulto, fortalece seu comportamento e compromete a própria aquisição de valores humanos como cooperação, respeito às diferenças e solidariedade. Todos nós nos preocupamos, e com razão, para que os nossos filhos não sejam alvo de "bullies" (nome dado aos que praticam o bullying). Mas precisamos refletir a respeito do que nós, adultos, estamos fazendo para que nossos filhos não sejam os autores dessa prática. É sabido que a convivência com as diferenças promove conflitos variados, e somente utilizando estratégias respeitosas é que podemos chegar a uma solução. Muitas famílias ensinam seus filhos a trabalharem com os conflitos e confrontos de modo pacífico, educado, e sempre por meio de um diálogo conciliador. É preciso, cada vez mais, atentarmos para essa postura construtiva, pois a presença educativa e apaziguadora dos adultos é essencial. A prática da tolerância é um aprendizado que se realiza no cotidiano do processo educativo. Nunca podemos nos esquecer de que é na escola que iremos conviver, conhecer as diferenças e aprender a lidar com elas. E se não tivermos clareza sobre a importância do respeito ao outro, o comportamento agressivo irá gradualmente se instalar nas diferentes esferas da sociedade. É preciso, cada vez mais, atentarmos para esta postura construtiva, pois a presença educativa e apaziguadora dos adultos é essencial. A prática da tolerância é um aprendizado que se realiza no cotidiano do processo educativo 58 Silvana Leporace é coordenadora do Serviço de Orientação Educacional do Colégio Dante Alighieri Memória Arquivo Centro de Memória - Colégio Dante Alighieri Acima, a fachada do Colégio Dante Alighieri quando ele ainda se chamava Istituto Medio Italo-Brasiliano Dante Alighieri, nome que durou até 1942. Ao lado, a fachada atual New Face Photos 59