[Unlocked] Microsoft Word - PRÉ-TEXTO - RI UFBA

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[Unlocked] Microsoft Word - PRÉ-TEXTO - RI UFBA
JOICE AGLAE BRONDANI
VARDA CHE BAUCCO! TRANSCURSOS FLUVIAIS DE UMA
PESQUISATRIZ:
Bufão, Commedia Dell’arte e Manifestações Espetaculares Populares
Brasileiras
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Artes Cênicas, da Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial para obtenção do
título de Doutora em Artes Cênicas.
Orientadora: Profª Drª Antônia Pereira.
Salvador
2010
Escola de Teatro - UFBA
Brondani, Joice Aglae.
Varda che baucco!transcursos fluviais de uma peaquisatriz: bufão,
commedia dell’arte e manifestações espetaculares populares brasileiras /
Joice Aglae Brondani. - 2010.
314 f.: il.
Orientadora: Profª. Drª. Antônia Pereira.
Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro,
2010.
1. Imagem. 2. Imaginário. I. Universidade Federal da Bahia. Escola
de Teatro. II. Pereira, Antônia. III. Título.
CDD 153. 32
Dedico a Pedro José Brondani e Zenita Stefanello
Brondani, meus pais e totens, por me ensinarem a
viver, a sonhar e a amar.
A Vanderlei Brondani, pela mão que sempre
encontro estendida em sua forte presença e a Sidnei
Brondani, pela força que me empresta - meus
irmãos e heróis – cavaleiros da armadura brilhante.
AGRADECIMENTOS
A Érico José, pelo amor que transpassa nossas vidas e almas. Pela presença e ausência, pelas
discussões e silêncios, pela força e delicadeza, pelas lágrimas e sorrisos, pelas alegrias e
tristezas, enfim, por aquilo que vale a pena.
A Antônia Pereira Bezerra, pela amizade e pacienciosa orientação.
A Sônia Lúcia Rangel, pela poesia.
A Maria de Lourdes Rabetti, pela atenção, força e amizade.
A Daniel Marques da Silva, pelas inquietantes e enriquecedoras anotações.
A Raimundo Matos de Leão, pela disponibilidade.
Ao CNPQ, pela subvenção destinada ao desenvolvimento desta pesquisa, sem o qual a mesma
não teria acontecido.
Ao PPGAC-UFBA, por acolher esta pesquisa.
A Léo Azevedo, pelo afeto que comove o olhar atento atrás da lente fotográfica. Pelo tempo
dedicado (fotografias e filmagens), embarcando e acreditando no trabalho.
A Giuliano Campo, pela confiança em apresentar meu projeto aos orientadores da Università
di Roma Tre - Nicola Savarese e Raimundo Guarino.
A Savarese, por me aceitar e a Guarino, por me receber como orientanda.
A Claudia Contin, pelo tempo desprendido, flores e folhas, risadas e trabalho.
A Ferruccio Merisi, pelas oportunidades.
A Verônica Risatti, pelo belo encontro, pela amizade, fotografias, revisões de tradução e
prossecchi.
A Alice Mosanghini, pela crença e desenhos.
A Lucia Zaghet, pela atenção e disponibilidade.
A Alessio Prosser, pela compreensão e acolhida.
A Dr. Davide Porporato, pelo interesse em dialogar com a alteridade.
Ao Mestre Alabama, pelos muitos anos de apoio a esta pesquisa, pela generosidade e
capoeiragem.
A Peri Stefanello pelas ídas ao consulado.
A Selvino e Inês Stefanello Rolon, por serem tios e amigos.
A Cristina e Lorena Zani, pela companhia.
Ao Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá (RS).
Ao Ilê Axé Iyá Nassô Oka Terreiro da Casa Branca (BA).
A Ekedy Sinha (Gersonice Azevedo Brandão).
A Renato Wilians Carneiro, pela gentileza.
Ao Ilê Axé Pony Solayo (BA).
A Pai Carlos de Xangô (BA) e a Mãe Cutu (PR), pelo Axé.
A Sérge e Cristina Pechiné, pelo Axé, apoio e traduções.
Ao professor “Marquinho” e membros da Associação ACACI – Sacile, pela calorosa recepção
e capoeira nos dias do inverno italiano.
A “família Rabello”, em especial a Andréa Rabello, pelos dias de refúgio e amistosas
companhias.
A Diana Ramos, Fabiana Monçalu, Fernando Lopes, Flavia Gaudêncio, Jorge Baia,
Maryvonne Coutrôt e Simone Araújo, pelas horas de ensaios, momentos de amizades e
companheirismo.
A Samuel André, pelos dias de luz.
A Rosana Alves Brondani, Nica Alves e Enzo Alves Brondani, pelas alegres presenças.
A Paulo e Cristina Rodrigues, pela força sem mesura.
A Diego Nicolini, pelas imagens editadas.
A Nair D’Agostini, pela maestria e amizade.
A Inês Marocco, por me apresentar a Commedia dell’Arte.
A Paulo Marcio Pereira, por andar em caminhos alternativos e me apresentar o teatro.
A Beatriz Pippi, Gisela Biancalana e Adriana Dal Forno, pelos anos de ensinamentos e
estudos.
RESUMO
A presente tese vem apresentar uma pesquisa que possui como ponto de partida as teorias
sobre imagem e imaginário, em Bachelard, apoiando-se, também, na ideia bachelardiana de
um Fundo Comum dos Sonhos que se perpetua e se renova através de um DNA imaginal que
punge a realidade por meio dos impulsos criativos e atitudes lúdicas, agindo no corpo do
pesquisator, através de um processo de imaginação e de, segundo Lecoq, um Fundo Poético
Comum. Tais processos de pungências, na realidade objetiva, alastram-se rizomaticamente
por toda a história da humanidade, não tendo limites de tempo, cultura, espaço e território.
Advindo de uma esfera imaterial, mas sensível, o DNA imaginal conecta-se aos Bufões, às
manifestações espetaculares populares brasileiras e às máscaras dell’arte e é, principalmente,
através dele e da formação de circuitos musculares e energéticos, que é possível acessar as
máscaras da commedia dell’arte, fazendo um transcurso pelas técnicas do Bufão, de
translocação e transdução caleidoscópicas.
Palavras-chaves: Imagem. Imaginário. Bufão. Commedia dell’Arte. Práticas Espetaculares
Populares Brasileiras. Translocação Caleidoscópia. Transdução Caleidoscópia.
RÉSUMÉ
Cette thèse fait état d’une recherche qui repose sur les théories de Bachelard sur l’image et
l’imaginaire. Elle s’appuie aussi sur son idée de Fond Commun des Rêves qui se perpétue et
se rénove au travers d’un DNA imaginal qui aiguillonne la réalité au moyen des impulsions
créatives et des atitudes ludiques et agissant dans le corps du chercheur par un processus
d’imagination et d’un Fonds Poétique Commun developpé par Lecoq. De tels processus
d’inspiration sur la réalité objective se répande de façon “rhizomorphe” durant toute l’histoire
de l’humanité, sans limites de temps, de culture, d’espace et de territoire. Venant d’une sphère
immatérielle mais sensible, le DNA imaginal atteint les Bouffons, les manisfestations
spectaculaires populaires brésiliennes et les masques dell’arte. C’est principalement par ce
DNA et la formation de circuits musculaires et énergétiques qu’il est possible d’accéder aux
masques de la commedia dell’arte en faisant un passage par les techniques du Bouffon de
translocation et de transduction kaléidoscopique.
Mots-clès: Image. Imaginaire . Bouffons. Commedia dell’Arte. Manisfestations
Spectaculaires Populaires Brésiliennes . Translocation Kaléidoscopique. Transduction
Kaléidoscopique.
SINTESI
La presente tesi espone una ricerca che ha come punto di partenza le teorie relative
all’immagine e all’immaginario, di Bacherland, sostenuta, inoltre, dall’idea bachelardiana di
un Fond commum des rêves1 che si perpetua e si rinnova attraverso un DNA immaginifico che
punzecchia la realtà per mezzo di impulsi creativi e attitudini ludiche, agendo nel corpo del
ricercattore, attraverso un processo di immaginazione e di, secondo Lecoq, una Fondo
Poetico Comune. Tali processi di punzecchiatura della realtà oggettiva, si propagano di modo
“rizomatico” in tutta la storia dell’umanità, senza limiti di tempo, cultura, spazio, territorio.
Provenendo da una sfera immateriale, però sensibile, il DNA immaginifico si connette ai
Buffoni, alle manifestazioni spettacolari popolari brasiliane e alle Maschere dell’Arte ed è,
principalmente attraverso questo e dalla formazione di fasce muscolari e circuiti energetici,
che è possibile accedere le maschere della commedia dell’arte attraverso un percorso nella
tecnica del Buffone, della traslocazione e della trasduzione caleidoscopica.
Parole-chiave: Immagine. Immaginário. Buffoni. Commedia dell’Arte. Manifestazioni
Spettacolari Popolari Brasilian. Traslocazione caleidoscopica. Trasduzione caleidoscopica
1
A expressão encontrada na língua italiana para designar o que, em português, foi traduzido como Fundo
Comum dos Sonhos é “primato superiore dei sogni”, mas preferiu-se deixar a expressão na língua na qual foi
escrita.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................10
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13
2. (UM) UNIVERSO (E UM) IMAGINÁRIO ..................................................................... 22
2.1. IMAGEM / IMAGINÁRIO: O MAR EM QUE SE MERGULHA .................................. 22
2.2. MANIFESTAÇÕES ESPETACULARES POPULARES: PERPÉTUO IMAGINÁRIO 37
2.3. CONEXÕES INUNDADAS: MÁSCARAS, CARNAVAIS E BUFÕES........................ 63
2.3.1. O bufão e algumas conexões ........................................................................................ 67
3. ATITUDES LÚDICAS....................................................................................................... 88
3. 1. O BUFÃO: CORPO-MÁSCARA – UMA DESCOBERTA............................................ 88
3. 2. O BUFÃO: UM ESPETÁCULO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS ................................. 104
3. 2. 1. Fato(s) do Brasil – um espetáculo satírico............................................................. 105
3. 2. 2. “A Prece”, “A Oração” e “Arlecchino e la Valle dell’Omo” ................................ 113
3.3. UNIVERSOS CONECTIVOS: O BUFÃO; O ZANNI E .. ............................................ 119
4. FESTATOLAS DE TRANSDUÇÕES – TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA
DELL´ARTE ......................................................................................................................... 140
4.1. TRANSLOCAÇÃO: TÉCNICA MOTRIZ PARA A TRANSDUÇÃO ......................... 145
4.2. DE FESTAROLAS A TRANSDUÇÕES: ZANN PIEDINNI ........................................ 170
5. IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS.............................................. 189
5.1. SERVETTA “PAPAIETTA”, A CORTIGIANA ENAMORADA: MÁSCARAS
FEMININAS DA COMMEDIA DELL’ARTE........................................................................ 192
5.1.1. “Né Serva, né Padrona” .............................................................................................. 205
5.1.2. Preparação do espetáculo para Papaietta ................................................................ 208
5.2. PANTALONE, IL VECCHIETO PICANTIN / O VELHINHO PICANTEZINHO ......... 209
5.3. THE HOLY FOOL: CAPITANO E BRIGHELLA ......................................................... 216
5.3.1. Brighella, o zanni trabalhador .................................................................................. 218
5.3.2. Capitano: o “grande” guerreador............................................................................. 223
5.4. ARLECCHINO, O ZANNI ESPERTO........................................................................... 230
6. CONCLUSÃO................................................................................................................... 239
REFERÊNCIA .................................................................................................................... 244
APÊNDICE A - FATO(S) DO BRASIL ............................................................................. 262
APÊNDICE B - A ORAÇÃO ................................................................................................ 265
APÊNDICE C - “ALLA RICERCA DI UN ZANNI”.......................................................... 271
APÊNDICE D - RELATÓRIO DE ATIVIDADES ........................................................... 274
APÊNDICE E - SOBRE PAPAIETA E TRANSDUÇÕES .............................................. 280
ANEXO A – IMAGENS GRÁFICAS................................................................................. 298
ANEXO B - “ARLECCHINO E LA VALLE DELL’OMO”.............................................. 304
ANEXO C – PUBLICIDADE 1........................................................................................... 305
ANEXO D – PUBLICIDADE 2........................................................................................... 307
ANEXO E – PUBLICIDADE 3 ........................................................................................... 308
ANEXO F – CARTAZ ........................................................................................................ 309
ANEXO G – PROGRAMA 1............................................................................................... 310
ANEXO H – PROGRAMA 2............................................................................................... 311
ANEXO I – “L´ARLECCHINNO ERRANTE”................................................................... 312
ANEXO J - IMAGENS “ALLA RICERCA DI UN ZANNI” ............................................. 313
ANEXO L – DVD ................................................................................................................. 314
10
APRESENTAÇÃO
Esta tese intitulada “VARDA CHE BAUCCO! TRANSCURSOS FLUVIAIS DE UMA
PESQUISATRIZ:
BUFÃO,
COMMEDIA
DELL’ARTE
E
MANIFESTAÇÕES
ESPETACULARES POPULARES BRASILEIRAS” vem apresentar uma pesquisa que foi
engendrada ao longo de alguns anos. Anos estes que antecedem o período da mesma, dentro
da instituição universitária – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de
Teatro da Universidade Federal da Bahia – pois teve seu início na imaginação de uma criança.
Considerando uma imaginação que retumba e pulsa de maneira sutil e continua na sua
silenciosa equação, quando ouvia meus nonnos⁄avós e genitori⁄pais falarem em dialeto
italiano, navegava entre mundos brasileiros e italianos, num universo imaginário sem
fronteiras e passaportes. Quando fazíamos brincadeiras, atrapalhávamo-nos com alguma
ordem dada por eles, ou ainda, quando fazíamos travessuras, meu pai falava logo “Ma varda
che baucco!”. Traduzindo de modo coloquial, “Varda che baucco” é uma espécie de
advertência jocosa “Mas olha que maluco! Que coisa de louco! Mas, que loucura!” e escutá-la
me fazia rir muito.
Cresci ouvindo esta e outras expressões veneto-friulanas, como também ouvindo
minha mãe falar da “Mãe Preta”, no caso, minha bisnonna⁄bisavó por parte da mãe, uma negra
fugida dos arredores de Salvador, que encantou meu bisnono, recém-chegado das terras
estrangeiras, e partiu com ele para o sul do Brasil. A partir desta “convivência” com Salvador
e Itália, estes mundos longínquos integravam o grupo de cidades/países/lugares que visitava
diariamente em minha imaginação.
O tom jocoso da expressão advinda da região de Veneza, região na qual, segundo
Fausto Nicolini (1993), a Commedia dell’Arte fez seu grande nicho na Itália, traduz, também,
um pouco do que é esta tese: um transcurso que, no primeiro olhar, parece um emaranhado de
conceitos enredados de forma “baucca”. Pois, para se apropriar das máscaras dell’arte, faz-se
um percurso através da construção de uma técnica de bufão, depois, da edificação de uma
técnica que traz como base a assimilação da própria cultura, para então apresentar um
caminho de possível acesso e apropriação destas máscaras.
Diz-se que o caminho escolhido é, de certa forma, baucco, porque se poderia,
simplesmente, entrar em uma escola italiana de commedia dell’arte e seguir toda a sua
formação, de acordo com as metodologias que estas apresentam. Mas
investigam-se
os
processos criativos que se realizaram ao longo de um percurso e, esta atriz e pesquisadora,
11
esta pesquisatriz - cujo termo foi adotado por achar que ele dá conta desta natureza do ator de
processos criativos, um ator que não se detém à atuação e se estende às questões teóricas que
envolvem e adentram a pesquisa1 - foi comovida a estruturá-los e aqui os apresenta como tese.
Não foi somente o desejo de aprender a commedia dell’arte, mas de apreendê-la
através do próprio referencial cultural popular brasileiro. Talvez, por ter convivido, de certa
forma, com as culturas, italiana e brasileira, na minha imaginação, as duas sempre estiveram
relacionadas e faziam/fazem parte da minha convivência.
Os transcursos que tento delinear aqui fazem parte destes engendramentos que se
alimentaram na lembrança e na imaginação, aliados a movimentos de afetos que foram
acontecendo ao longo de minha formação teatral.
Todas estas afetações entre passado, presente e futuro, encontraram/encontram um
espaço de sonho e de poética para se realizar, um espaço que se transforma/metamorfoseia-se
em um corpo que atua e se realiza em impulso criativo. São impulsos que, aos poucos, vão-se
deixando desvelar, mostrando suas vertentes rizomáticas, transbordamentos e capacidades de
agregações.
Neste processo, foi difícil deixar de lado alguns dados, algumas práticas espetaculares
populares brasileiras, mas era necessário, se não limitar, ao menos, delinear uma área de
atuação, sem descartar aquelas que não foram contempladas, mas também não abraçando
todas as práticas espetaculares populares brasileiras e máscaras dell’arte italianas, pois seria
um horizonte muito vasto. Para realizar um vislumbramento dos “recortes” desta tese, foi
necessário adotar algum tipo de critério, não se desejava anular, reduzir ou negar experiências
que colaboraram para o transcurso realizado, mas buscar um modo de qualificação. Então,
todo o processo passou a ter como “norte” as profundas experiências sensíveis.
Nesta perspectiva, a técnica do Bufão que foi criada traz a percepção da parte mítica e
do universo dionisíaco que é inerente à máscara. Não seria possível viver a experiência
mitificante e mistificante nas máscaras dell’arte se não soubesse de onde advinha a força
misteriosa das mesmas.
A segunda técnica que integra o transcurso de apropriação das máscaras dell’arte
consiste em um processo de assimilação da própria cultura popular brasileira, para daí, a partir
dela, apropriar-me da cultura da alteridade.
1
O termo “pesquisator” já tinha sido utilizado pela Drª Maria de Lourdes Rabetti, no ano de 1994 (no mês de
maio). O termo consta no programa da leitura pública da peça “O dote” de Artur Azevedo (RABETTI, 1994,
p.4-5).
12
A terceira técnica, na verdade, não é de commedia dell’arte, mas uma técnica de
acesso e apropriação das máscaras da commedia dell’arte continianas, a qual, para acontecer,
apoia-se nas duas anteriores. Esta técnica constitui o nó impulsionador desta tese, pois, foi o
vislumbramento dela que deu início à busca de uma estruturação do transcurso desenvolvido
por esta pesquisatriz, um caminho que “funde” as três técnicas apresentadas nesta tese.
Nas máscaras dell’arte, a pesquisa reteve-se nas máscaras do Zanni, Servetta, Nobile,
Cortigiana, Pantalone, Capitano, Brighella e Arlecchino (todas as máscaras são
contextualizadas no Capítulo IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS) e nas
manifestações brasileiras da Capoeira, Maculelê, Maracatu, Coco, Ciranda, Xaxado,
Caboclinho, Frevo, Samba, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás2 (as práticas espetaculares
populares brasileiras são contextualizadas no Capítulo FESTAROLAS DE TRANSDUÇÕES
– TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA DELL´ARTE). Como pesquisatriz movida por
afetos, sei que certos caminhos podem ser complicados, mas também sinto que, quando
aspectos sensíveis são movidos, podem existir conexões que fogem de uma lógica racional,
agindo no campo da subjetividade.
É este aluvião subjacente do imaginário de uma pesquisatriz que tento emergir,
estruturando-o em técnicas para a cena. Nada mais que memória e imaginação, este é o
conteúdo imaterial que trabalho, transformando-o em material de cena e de estudo.
2
É necessário deixar claro que, nesta pesquisa, são enfocadas as “danças dos Orixás” e não as religiões afrobrasileiras (Candomblé, Umbanda e vertentes), das quais tais danças fazem parte. Mas é claro que serão
realizadas algumas explicações destas religiões, para contextualizar as danças, quando necessário.
13
1. INTRODUÇÃO
Ao iniciar as conjecturas que relatam o transcurso de desenvolvimento desta tese, devo
anunciar que considero como primeiro pressuposto a fala de que este processo de pesquisa
está submerso na subjetividade. Isto não significa que se trata de uma experiência sem
profundidade, uma vez que diz respeito a um estudo objetivo e concreto dentro do que se
propõe: uma possibilidade de acesso às Máscaras dell’Arte através de células de
Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras, a partir de experiências vividas
sensivelmente. Quando afirmo que esta pesquisa é submersa na subjetividade, tenho o desejo
de sublinhar que a mesma foi movida por um primeiro impulso sensível e que a busca pela
compreensão teórica dos afetos que moviam este impulso surgiu de maneira consequencial e
necessária.
Dentro destas expectativas, afirmo ainda que o mar em que esta se encontra
mergulhada está, numa primeira e/ou última instância, nesta interlocutora (entre locução),
pois foi quem inicialmente percebeu sensivelmente a ação deste imaginário. Escrevo como
alguém que experienciou a ação do imaginário no próprio corpo, em atitude lúdica e
imaginação.
Quanto às especificidades concernentes a esta explanação, alerto para o fato de que:
“Esta pesquisa flutua!”. Mais uma vez, devo chamar a atenção para uma expressão que utilizo
e destacá-la como a exclamação advinda da constatação de que ela não possui uma âncora
lançada em terra firme, ela é uma jangada flutuando em mar aberto e que, principalmente, não
terminará com esta tese, continuará flutuando em novos mares e oceanos, redescobrindo-se
em possibilidades e desdobramentos, por isso a ideia de não ancorar, mas de vaguear ou
vadiar1.
O processo criativo que apresento alimenta-se de subjetividade, movimenta-se num
imaginário, um espaço tão movediço que somente aqueles que experimentam e se co-movem
através dele podem comprovar seu furor. Um processo no qual as relações imagéticas são de
grande importância, e suas inúmeras articulações são as fontes de comoção para o acesso à
commedia dell’arte.
Antes de prosseguir com as considerações sobre esta pesquisa e as dinâmicas
1
Algumas utilizações do termo vadiar, segundo o Dicionário Virtual Houaiss 1.0: passear de um lado para outro,
vaguear; entreter-se com jogos, brincadeiras, divertir-se; jogar capoeira; nos candomblés de caboclo, dançar
segundo o rito.
14
conectivas dialógicas entre a commedia dell’arte e as manifestações espetaculares populares
brasileiras, é preciso especificar de quais manifestações espetaculares populares brasileiras,
está-se fazendo referência e de qual commedia dell’arte e Máscaras dell’arte este estudo dá
conta.
Começo destacando que a prática dentro das manifestações espetaculares populares
brasileiras que envolvem esta pesquisa estende-se ao Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo,
Caboclinho, Xaxado, Capoeira, Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás2. Tais
manifestações espetaculares populares brasileiras que integram a pesquisa não foram
escolhidas segundo preceitos ou padrões, foi o corpo, a musculatura, que as requeria como
suporte. Para cada máscara que trabalhava, o corpo foi buscar, nos circuitos musculares que já
conhecia, a força propulsora e energética que necessitava para fazer uso e apropriar-se das
máscaras dell’arte - como se procurasse um caminho conhecido para chegar ao “novo” que se
apresentava como experiência.
Por este motivo, não é possível criar um elenco de justificativas para a eleição e uso de
cada manifestação citada, como também não é possível justificar a ausência de outras.
Certamente, se a pesquisa tivesse outras experiências dentro da commedia dell’arte para
relatar e/ou se estendesse por um tempo maior, outras manifestações espetaculares populares
brasileiras seriam utilizadas e elencadas. Como já dito, é o corpo que vai buscar o circuito que
lhe serve como ponto referencial de musculatura, energia e ação. A escolha das manifestações
brasileiras e das máscaras dell’arte que integram esta pesquisa são dados flutuantes concordando com Deleuze, quando este cita Hume, que o dado é “[...] o fluxo do sensível,
uma coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções” (DELEUZE, 2008, p.
95). Com isso, não é possível fechar a pesquisa em um número fixo de manifestações, tanto
brasileiras quanto italianas. Quero dizer que a pesquisa poderia estender-se por todas as
manifestações espetaculares populares brasileiras e todas as máscaras dell’arte, mas o elenco
que a integra é, somente, uma consequência das experiências adquiridas, tanto dentro das
manifestações espetaculares populares brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo,
Caboclinho, Xaxado, Capoeira, Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás), quanto das
Máscaras dell’arte (Zanni, Brighella, Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Nobile/Innamorata,
Pantalone e Capitano). Como já mencionado, se houvesse tempo maior de experienciar,
2
Minha prática na área da dança começou na infância com a ginástica artística e o balé clássico, na adolescência
com jazz, dança moderna e cursos de danças populares brasileiras. Posteriormente, a dança acompanha toda
minha formação teatral (professora, atriz e diretora) como atividade paralela e, na Pós-Graduação, além de
continuar a formação complementar em dança, participava das festividades populares, aprendendo dentro das
próprias festas e com os populares. A capoeira já tinha tido contato com ela no Rio Grande do Sul, mas foi em
Salvador, com o Mestre Alabama, que tive a prática sistemática desta.
15
certamente as conexões alastrar-se-iam por muitos outros caminhos.
Sobre a commedia dell’arte, são muitas as escolas especializadas neste teatro que
povoam o território italiano, onde cada qual desenvolve sua estética, estilo e formação de uma
técnica. Algumas fazem a commedia dell’arte mais oitocentista, também conhecida como
commedia à francesa, outras partem para a linhagem quinhentista ou medieval e, ainda, tem
aquelas que trabalham com uma estética mais “veneziana”, que, na verdade, são as máscaras
que pertencem ao carnaval de Veneza e não, necessariamente, fazem parte da commedia
dell’arte. Esta pesquisa faz referência à commedia dell’arte da Scuola Sperimentale
dell’Attore, realizada, redesenhada, defendida e difundida por Claudia Contin e Ferruccio
Merisi, importantes pesquisadores (prático-teóricos) da área. Ambos se dedicam à commedia
dell’arte mais próxima àquela feita nas praças medievais, de 1400, 1500, 1600, para a qual
construíram um treinamento que requer muita aplicação, mas que se mostra muito eficaz para
a técnica em que se empenham. Este treinamento é altamente codificado e com máscaras
físicas totalmente engendradas do imaginário da cultura popular italiana, o qual se constitui
de: golpes de máscaras, máscara física, movimentação codificada das máscaras físicas,
improvisação com as máscaras, construção de canovacci (roteiros das peças), construção das
máscaras em papel machê e, posteriormente, em couro e trabalho de voz específica para as
máscaras.
A escolha pela commedia dell’arte continiana tem a ver com uma simpatia pessoal
pelo trabalho destes mestres3. Uma perspectiva que convocou meus afetos e conquistou-me de
maneira sensível e muito objetiva, pois, através do trabalho destes pesquisadores, tive fortes
percepções imaginativas da realização das conexões entre as máscaras da commedia dell’arte
e as células de manifestações espetaculares populares brasileiras4.
Neste momento, é necessário chamar a atenção para um ponto muito importante desta
pesquisa, não se está buscando estabelecer correspondências, traçar paralelos ou fazer
comparações entre as manifestações espetaculares populares de ambos os países que integram
esta pesquisa, pois se trata de expressões artísticas culturais diversas e de campos diferentes
(teatro, dança, luta e ritual). É justamente por se tratar de expressões artístico/culturais tão
diversificadas que é impossível, para uma só tese, dar conta do imenso manancial que se
forma.
3
Refiro-me a Contin e Merisi como mestres de Commedia dell’Arte, pelo conhecimento (“maestria”) destes
dentro deste gênero de teatro.
4
É necessário dizer que foram realizadas experiências também com outras escolas e estilos de commedia
dell’arte (Pantakin, Carlo Bosso, Lecoq) e, por fim, optou-se pela escola redesenhada por Contin e ensinada na
Scuola Sperimentale dell’Attore.
16
Por esta pesquisa tratar de um percurso muito específico de relações conectivas que
aconteceram e acontecem, primeiro, de maneira sensível, é que não se configura da urgência
desta tese procurar vínculos de similaridades e correspondências entre as culturas5 destes dois
países. Não se pretende equiparar as manifestações espetaculares populares brasileiras
concernentes (conjuntamente ou cada uma delas) e a commedia dell’arte (o fenômeno teatral
ou cada máscara), porque esta pesquisa navega e mergulha em outros tipos de mares,
correntes e oceanos. Considerando os transcursos fluviais desta pesquisa, ter como
abordagem questões aproximativas, comparativas ou de equiparações entre a commedia
dell’arte e as manifestações espetaculares populares brasileiras provocaria um desvio muito
grande do seu cerne.
Nesta tese, tenta-se dar conta de um caminho de acesso às máscaras dell’arte muito
específico, no qual esta pesquisatriz lançou mão de todo o acervo muscular e energético que
possuía para realizá-lo. Não se está negando a importância de relações dialógicas de
equiparações, aproximações e comparações, o que se percebe é que cada uma destas seria
tema para uma nova pesquisa de tese, pois são outros universos que se abrem a cada conexão
estabelecida. Aqui, as relações aconteceram e acontecem em outras vias conectivas, sendo
prioridade as conexões musculares e energéticas, o que não significa dizer que relações de
outras naturezas não serão convocadas quando há a necessidade destas para uma melhor
compreensão das conexões primordiais desta pesquisa. Tal como aconteceu com o Bufão, o
qual se tornou parte importantíssima da mesma, pois não se pode esquecer que, para
compreender muito das máscaras dell’arte, é preciso compreender, também, o universo
carnavalesco: reino do Bufão por excelência. E foi desta maneira que se percebeu a
necessidade de entrar nas águas do oceano bufonesco.
Tanto como as manifestações espetaculares populares brasileiras, as máscaras dell’arte
que integram as experiências desta pesquisa também não tiveram um “processo de seleção”.
Num primeiro momento, experimentei todas as principais máscaras dell’arte (Zanni,
Brighella, Arlecchino, Pulcinella, Pantalone, Ballanzone, Capitano, Servetta, Cortigiana e
Nobili), posteriormente, em intensos laboratórios específicos, experenciei o universo de
algumas máscaras e foi a partir desses mergulhos profundos que as conexões foram
fortalecendo-se. Como já dito, não foi possível adentrar de modo intenso em todas as dez
principais máscaras da commedia dell’arte, faltando aqui, para completar, os mergulhos nas
5
Tomando como ponto de vista parcial, a compreensão de cultura da pesquisadora Rita de Cássia Barbosa de
Araújo, a qual compreende cultura como o conjunto de crenças, valores, tradições, vivências, atitudes, visões e
compreensões de mundo, que formam um povo.
17
máscaras de Dottore/Ballanzone e Pulcinella. Para tanto, seria necessário prolongar o período
das experiências, contudo, como a pesquisa se encaminha dentro de um sistema institucional
acadêmico, o qual segue regras e datas, deixarei estas duas máscaras, como também, tantas
outras manifestações espetaculares populares brasileiras e conexões entre estas, para
vadiagens além desta tese e/ou como encaminhamentos para pesquisas posteriores.
Anterior, paralela e posteriormente, ao processo de apreensão das principais máscaras
físicas da commedia dell’arte, segundo ensinamentos de Claudia Contin e Ferruccio Merisi,
as máscaras de Zanni, Brighella, Arlecchino, Capitano, Pantalone, Servetta, Cortigiana e
Nobile foram transpassadas por células das manifestações espetaculares populares brasileiras
e, certamente, se houvesse tido tempo para executar um laboratório aprofundado de
Dottore Ballanzone e Pulcinella, encontraria também muitas conexões rizomáticas entre a
cultura popular brasileira e estas máscaras dell’arte.
Com as máscaras dell’arte, aconteceu e acontece, a cada novo experimento, a
impossibilidade de limitar a experiência a um número específico de máscaras e práticas
espetaculares populares brasileiras para a realização das conexões rizomáticas. Então, viu-se
que a solução era restringir esta tese às experiências realizadas, intentando mostrar um
transcurso mais preciso e específico.
Antes de prosseguir e adentrar as questões pertinentes ao desenvolvimento da
pesquisa, é necessário fazer observações sobre algumas expressões que serão utilizadas ao
longo das explanações. Cesare Molinare faz uma grande reflexão sobre a commedia dell’arte
e como esta deve ser considerada em relação à sua natureza:
Dado que a commedia dell’arte é um gênero teatral, talvez não seja um gênero tão forte como o nô japonês e
nem mesmo como a ópera italiana, mas um gênero considerando o modo como este termo é usado na literatura,
na qual se distingue entre romance, tragédia, épico, etc.: uma abstração e uma normativa. Uma abstração que
procura reunir em uma mesma categoria fenômenos diferentes, porém, através alguns de seus traços
assimiláveis; e uma normativa com tendência a definir estes traços pertinentes e os impor como necessários
(1985, p.15).6
Nesta pesquisa, é adotada a visão de que a commedia dell’arte pode ser vista como um
gênero teatral, então, ao longo da mesma, muitas vezes, a palavra “gênero” será empregada
para se fazer referência a ela.
Da mesma maneira, o termo mais utilizado para se reportar às máscaras da commedia
6
Tradução da autora: “Poiché la commedia dell’arte è un genere teatrale, non magari un genere forte come il nô
giapponese, forse nemmeno come l’opera italiana, ma un genere nel senso in cui questo termine si usa in
letteratura, dove si distingue fra romanzo, tragedia, epica e quant’altro: un’astrazione e una normativa.
Un’astrazione che cerca di riunire in una stessa categoria fenomeni differenti, ma per qualche loro tratto
assimilabili; e una normativa tendente a definire questi tratti pertinenti e a imporli come necessari.”
18
dell’arte será “máscara”, já que, para esta pesquisadora, tais máscaras trazem em si a ideia do
arquétipo e de um imaginário que se concretiza naquele objeto (posteriormente, adentra-se à
questão do imaginário), o qual funciona como uma espécie de ícone e “link”7 para este
universo transcendente. A palavra “link” - termo emprestado da área da informática - é
utilizada, aqui, como uma metáfora. Ela aparecerá, muitas vezes, coligada à palavra “objeto”
(objeto/link) e serve para sublinhar a potência da máscara/objeto como um portal a este
universo transcendente. Para esta pesquisa, a máscara/objeto quando acionada (portada,
nominada ou na sua compreensão) funciona (em ideia) como um link, abrindo outro
“hiperdocumento” - o universo (arquétipo) do/no qual ela foi engendrada e representa. A
palavra link, fazendo-se valer das considerações de Bachelard8 sobre o uso cuidadoso de
analogias e metáforas e reforçando este uso da última com o olhar de Maffesoli9, ela
“empresta” sua capacidade de sintaxe e dinâmica auxiliando a compreensão do
funcionamento da máscara dentro da commedia dell’arte. Contudo, sublinha-se que, para esta
pesquisa, a Máscara constitui um grau de excelência tal que constitui uma categoria, não
estando no mesmo grau dos personagens ou tipos.
Ainda sobre a máscara, este estudo tentará dar conta das máscaras da commedia
dell’arte intrincadas nas experiências que formam os transcursos desta pesquisatriz, pois são
muitos os estudos sobre “Máscara”- olhares que a mostram de forma mais geral e abrangente
ou que enfocam, somente, a relação entre máscara e ritual; ou ainda que se dedicam,
exclusivamente, à máscara como fenômeno estético e teatral; ou os que se aprofundam nas
relações exclusivas da máscara com o teatro oriental ou com festas populares da América
Latina e do Ocidente. Alguns destes estudos servem como base de conhecimento na área,
outros se dirigem sobre casos específicos e outros ainda, são considerados referenciais da
commedia dell’arte, mas todos serão convocados na medida em que o discurso avançar e se
fizer necessário introduzir a compreensão do universo que se apresenta diante das máscaras
dell’arte que integram este estudo10.
7
Do dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0: substantivo masculino. Rubrica: informática elemento de hipermídia formado por um trecho de texto em destaque ou por um elemento gráfico que, ao ser
acionado (ger. mediante um clique de mouse), provoca a exibição de novo hiperdocumento.
8
Para saber mais ler: “A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento” de
Gaston Bachelard (1996).
9
Para saber mais ler: “Elogio da Razão Sensível” de Michel Maffesoli (2008).
10
Podem-se citar, aqui, alguns estudos sobre a máscara, com visões generalizadas, específicas de rituais,
carnavalescas ou teatrais: “L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo” de
Daniele Vianello; “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra” de Roberto Tessari; “La maschera e il
viaggio. Sull’origine dello Zanni” de Alessandra Mignatti; “Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte” de
Claudia Contin; “Commedia dell’arte: Le Jeu Masqué” de Michele Clavilier e Danielle Duchefdelaville; “Les
jeux et les hommes – Le masque et le vertige” de Roger Caillois ; Tracce di teatro sciamanico tra Africa e
19
Embrenhar-se em uma busca exclusiva sobre a máscara ao longo da história seria, para
esta tese, uma confrontação não justa, dado que se trata de um campo muito abrangente.
Ainda se dirigisse o campo investigativo para o que a máscara representa em cada uma das
duas culturas, o discurso não se tornaria menor. Quando se fala de máscara, nas duas culturas,
formam-se inúmeras encruzilhadas e, neste caminho, acaba-se por abrir muitas outras janelas,
o que continuaria afastando o discurso do objetivo central desta tese, que é o caminho de
acesso às máscaras da commedia dell’arte através de células (movimentos, golpes, passos) de
manifestações espetaculares populares brasileiras.
A relação das duas culturas não se dá de modo comparativo ou por equivalências,
busca-se detalhar um modo de acesso a um gênero teatral de uma cultura diferente, “através
da própria cultura”. Como dito, não se trata de uma aproximação entre as manifestações
espetaculares populares de ambos os países, trata-se de um modo muito particular de
apropriação das máscaras da commedia dell’arte, diria até mesmo “antropofágico” - pois foi o
meu corpo que, metabolizando as máscaras da commedia dell’arte após “ingeri-las”, fez-me
perceber, através de mecanismos/metabolismos muito próprios, que era possível realizar
aquelas máscaras tendo como referências musculares e energéticas as experiências que já
eram inerentes ao meu corpo.
Outro ponto importante que deve ser destacado é que, tanto as máscaras da commedia
dell’arte quanto as danças, a capoeira e o maculelê, estas são vistas como manifestações
espetaculares populares, certamente, que cada qual advinda da cultura de um país diferente e
de áreas diversas (dança, teatro, luta, ritual). É preciso explicar, todavia, que não se trata de
colocá-las na mesma condição, mas de considerá-las vindouras da mesma força criativa e é,
nesta instância, que elas cruzam-se e conectam-se.
Além disso, é preciso dizer que muitos são os teóricos que não consideram a
commedia dell’arte como uma manifestação espetacular popular, uma vez que ela integraria o
grupo das artes maiores ou superiores, também consideradas “eruditas”11. Segundo Guarino
Mediterraneo. Le maschere e la danza come contatto con stati di coscienza “diversi” de Giovanni Azzaroni;
“La maschera di Bertoldo. Le metamorfosi dell villano mostruoso e sapiente. Aspetti e forme del Carnevale ai
tempi di Giulio Cesare Croce” de Piero Camporesi; “Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale” de
Carmine Coppola; “L’Uomo e la Maschera” de Alfonso Renzo Degano; “Mistero buffo. Giullarata popolare” de
Dario Fo; “Le Maschere Veneziane” de Danilo Reato; “I Mamuthones. Testimonianza diretta dalle tradizioni di
Mamujada (Sardegna)” de Franco Sale; “Arte della Maschera nella Commedia dell’Arte” organização de
Donato Sartori e Bruno Lanata; “As máscaras de Deus – Mitologias Primitivas” de Joseph Campbel; “ Festas:
Máscaras do Tempo. Entrudo, Mascarada e Frevo no Carnaval do Recife” de Rita de Cássia Barbosa Araújo;
“No Pulso do Ator: Treinamento e Criação de Máscara na Bahia” (tese Doutorado UFBA) de Isa Maria Faria
Trigo; “Dal rito al teatro” de . Victor Turner; “Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni
e dei giullari” de William Willeford.
11
Como exemplo, pode-se citar Raimundo Guarino, o qual foi meu orientador na Univercità di Roma Tre e que,
20
(2005), a commedia dell’arte estaria neste grupo por apresentar uma grande complexidade,
enquanto que dentre as artes menores estariam aquelas consideradas mais “simples”, como o
circo. Nesta pesquisa, além de não se considerar a hierarquia de “arte superior ou maior” e
“arte inferior ou menor”, também existe a posição pessoal contrária a tal hierarquia, pois, para
esta pesquisadora, o popular não é visto como menor ou inferior e, muito menos, simples. O
que é “da qualidade do popular” revela-se, cada vez mais, como uma estrutura de natureza
muito complexa, como se pode ler no estudo do pesquisador Erico José Souza de Oliveira
(2007). Para esta pesquisa, sem adentrar em questões sociológicas ou antropológicas e
discussões sobre o que abarca o “popular”, o termo é adotado como advindo de um povo.
O transcurso realizado, ocupando células de algumas manifestações espetaculares
populares brasileiras para se apropriar das máscaras da commedia dell’arte, é repetido com
novas combinações, a cada novo acesso às máscaras. São níveis e subníveis de conexões
dialógicas que fazem parte de outras sutilezas, como energias e corporeidades que me
permitem chegar à linguagem codificada de cada máscara da commedia dell’arte. É com este
transcurso que as máscaras dell’arte ganham vida, através de um teor muscular, energético e
qualidades de tensões e movimentos que estão dentro das possibilidades de cada máscara.
O primeiro capítulo tenta dar conta das teorias que permeiam este mecanismo
imaginativo, buscando conceitos e usando a metáfora como elemento importante para a
compreensão de tais mecanismos.
O segundo capítulo tenta colocar em evidência a cena, a técnica para a cena e a teoria
da cena. Ele adentra o universo mítico do bufão, relata a construção da técnica para esta
máscara e desvenda o pensamento que está por traz deste universo, conectando-se com o
carnaval e as festividades populares brasileiras.
O terceiro capítulo conecta o bufão à Máscara dell’arte e traz um panorama das
manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa, sinalizando
possíveis caminhos de conexões entre tais práticas e as máscaras dell’arte.
O quarto capítulo traz o universo das máscaras dell’arte, principalmente das
continianas, e intenta mostrar os encaminhamentos de acesso e apropriação das máscaras como estas podem ganhar vida através de códigos das manifestações espetaculares populares
brasileiras. Este capítulo se relaciona diretamente com o APÊNDICE E, no qual estão
em conversa de orientação, chamou minha atenção para o fato que a commedia dell’arte não é uma manifestação
espetacular popular, pois se trata de uma arte complexa e requintada. Esta divisão entre “artes maiores” e “artes
menores” é ideia muito difusa na Europa e Camporesi, no seu livro “Rustici e buffoni. Cultura popolare e
cultura d’élite fra Medioevo ed età moderna.”, faz uma discussão detalhada sobre esta divisão, aconselha-se,
para aqueles que se interessam pelo assunto, fazer a leitura da obra de Piero Camporesi, acima citada.
21
contidos os roteiros do espetáculo realizados na Scuola Sperimentale dell’Attore, cuja direção
é de Claudia Cotin e Ferruccio Merisi “Papaietta Poliglota” e da Aula-Espetáculo
“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações: Máscaras dell’Arte e Cultura Popular
Brasileira”, cuja direção é de minha autoria.
Ainda, através de documentos e relatórios, os ANEXOS buscam ilustrar, comprovar,
enfim, complementar algumas das conjecturas realizadas ao longo da tese que traz, ainda,
como apoio à explicação e compreensão dos transcursos realizados, um DVD, o qual contém
imagens que tentam mostrar um pouco dos processos e resultantes da prática desta pesquisa.
Não resta senão começar as implicações que dizem respeito a este mar aberto em que
me coloco. Não resta senão lançar-se e intentar desvelar os transcursos realizados.
22
2. (UM) UNIVERSO (E UM) IMAGINÁRIO
2.1. IMAGEM/IMAGINÁRIO: O MAR EM QUE SE MERGULHA
Fruto de um devaneio1, esta pesquisa vem legitimada na ideia de imagem/imaginário,
em Gaston Bachelard2, cuja exposição se dará ao longo do desenvolvimento da mesma.
Este estudo tem como principal objetivo justificar um acesso às máscaras da
commedia dell’arte, por meio de um trajeto particular realizado através do estudo das mesmas
e de algumas manifestações espetaculares populares brasileiras.
A intenção é de investigar este gênero teatral, o qual tem como elemento representante
a máscara, ou melhor, a meia-máscara e, através de uma prática das danças do CavaloMarinho, do Coco, da Ciranda, do Samba, das danças dos Orixás, do Xaxado, do Caboclinho,
do Frevo, do Maculelê, do Maracatu e da Capoeira, pinçar movimentos que sirvam como
motor e propulsor das máscaras dell’arte – Zanni, Servetta, Cortigiana, Pantalone, Capitano,
Brighella, Arlecchino e Nóbile - dando vida a estas.
Para esta pesquisa, as máscaras da commedia dell’arte são vistas como ícones, são
verdadeiros portais de acesso a todo um universo imaginário, o qual se concretiza no
objeto/link “máscara” e se reafirma em uma máscara física muito específica. Cada máscara
dell’arte é constituída do objeto/link e da máscara física, onde esta última se torna a
complementação e o suporte para o primeiro se movimentar e ganhar vida. Cada máscara
possui codificações de posturas, movimentos, relacionamentos e exigem do ator que deseja
portá-las uma preparação específica e detalhada.
O estudo e prática das máscaras dell’arte e das manifestações espetaculares populares
brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Frevo, Capoeira, Samba, Xaxado, Maculelê, Cavalo
Marinho, Dança dos Orixás e Caboclinho) que integram esta pesquisa permitirão a realização
de um caminho de acesso à commedia dell’arte ímpar, através de células e micropartículas de
ações, movimentos e composições pinçados das manifestações supracitadas.
Este outro caminho percorrido pelo pesquisator é, na verdade, uma possibilidade de
apropriar-se das máscaras dell’arte a partir de outras experiências já incorporadas por ele.
Portanto, é muito importante que, antes de tentar realizar o tipo de conexão que se apresenta
1
Do dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0: verbo transitivo direto – 1 conceber na imaginação;
sonhar. Gaston Bachelard utiliza o devaneio como a capacidade que o ser humano tem de “sonhar acordado”, ou
seja, de conceber na imaginação, agir dentro de outra instância que não a realidade objetiva - Viola Spolin chama
de “realidade objetiva”, a realidade compartilhada em sociedade. Para saber mais, ler: A terra e os devaneios do
repouso, de Gaston Bachelard e O Jogo Teatral no Livro do Diretor, de Viola Spolin.
2
Para saber mais sobre a imagem e imaginário em Bachelard, ler: O direito de sonhar, de Gaston Bachelard.
23
nesta tese, o ator que se aventurar por este caminho realize a prática (danças, golpes) das
manifestações espetaculares populares brasileiras a que se faz referência.
Esta experiência de encontrar outro caminho de acesso às máscaras à italiana se
concretizou através da generosa atenção de alguns mestres e colaboradores, como Mestre
Alabama (Capoeira Regional e Angola - Salvador – BA); Mestre Biu Alexandre (CavaloMarinho de Condado – PE); Ekedy Sinha (Terreiro da Casa Branca – Salvador – BA); e
outros anônimos das brincadeiras carnavalescas brasileiras e dos pesquisadores Arlecchino
Claudia Contin e Ferruccio Merisi – idealizadores da Scuola Sperimentle dell’Attore3
(Pordenone-Itália).
É preciso dizer que não foi a partir do contato com Claudia Contin e Ferruccio Merisi
que esta pesquisa nasceu, ela já estava encaminhada e estes dois pesquisadores se tornaram a
certeza de que estava fazendo um caminho seguro e consistente. Meu primeiro contato com
um treinamento de commedia dell’arte foi ao estilo de 1800, muito mais próximo da forma
francesa de fazer este gênero de teatro, um modo mais refinado. Este caminho inicial foi por
volta de 1998 e o encaminhamento daquele treinamento, muitas vezes, fugia dos domínios de
meu corpo, pois eram indicações estrangeiras ao meu conhecimento físico. Para tentar realizar
os movimentos que me eram pedidos, utilizava alguns conhecimentos que já faziam parte de
meu corpo4 e, dessa forma, conseguia dar vida às máscaras dell’arte - através de um “acervo”
que já fazia parte de minhas vivências físicas e sensíveis, trazidos por lembranças imagéticas,
se tratava de posturas e movimentos que fazem parte de algumas manifestações espetaculares
populares brasileiras.
Antes de continuar com as relações que formam a base desta pesquisa, é necessário
esclarecer que esta se empenhará em relatar as conexões que se realizaram entre as máscaras
da commedia dell’arte (Zanni, Arlecchino, Brighella, Capitano, Pantalone, Servetta,
Cortigiana e Nobile) e as manifestações espetaculares populares brasileiras integrantes da
mesma (Coco, Ciranda, Maracatu, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Maculelê, Samba, dança dos
Orixás, danças do Cavalo Marinho e Capoeira), sem se ater à historicidade destas, mas
recorrendo a estes dados sempre que se fizer necessário.
As experiências vividas corporalmente, seja nas manifestações espetaculares populares
brasileiras, seja nas máscaras dell’arte, foram intensificadas no estágio realizado na Itália, na
Scuola Sperimentale dell’Attore (PN). Acredito que somente partindo da experiência vivida é
3
A Scuola Sperimentale dell’Attore realiza todos os anos um festival chamado “L’Arlecchino Errante”, o qual
busca, a cada edição, a realização de diálogos entre a commedia dell’arte e uma outra cultura.
4
Como já mencionado, me dediquei à dança durante muito tempo, tanto popular, quanto clássica, passando
depois, à prática e experiência teatral.
24
possível mostrar com maior nitidez e eficiência o caminho realizado por mim de apropriação
das máscaras dell’arte. Os mecanismos físicos das manifestações espetaculares populares
brasileiras, os quais eram muito mais próximos à minha vivência, trabalhavam em meu corpo
e as lembranças/imagens os auxiliavam a encontrar aquilo que a máscara italiana exigia como
suporte corporal e energético para portá-las.
Com base em tal observação, as buscas pela compreensão da ação daquelas
lembranças/imagens tornaram-se fortes impulsos para a pesquisa, chegando à conclusiva de
que a instrumentalização do comico dell’arte através do treinamento da escola italiana é
válida e necessária, e que o ator pode utilizar instrumentos mais próximos da própria vivência
para acessar as Máscaras que compõem a commedia dell’arte. O treinamento criado pelas
escolas italianas traz a corporatura das Máscaras, as quais, por sua vez, comportam traços da
cultura, seja concreta ou do imaginário, em que foram engendradas. A utilização de recursos
de experiências intrínsecas daquele que deseja “apropriar-se” e “se deixar apropriar” das
máscaras deste gênero teatral, auxilia o corpo, tanto na fisicidade5, quanto na corporeidade6, a
realizar tais apropriações, ou seja, o ator utiliza-se de recursos/mecanismos inerentes ao seu
conhecimento/vivência para chegar a uma “nova” experiência – as máscaras da commedia
dell’arte.
Após a constatação da possibilidade de acessar as máscaras da commedia dell’arte
através de movimentos pinçados das manifestações espetaculares populares brasileiras já
citadas, surgiu a inquietação de saber como acontece tal conexão. O que intrigou e instigou,
numa primeira instância, foi a reverberação entre as imagens/lembranças e as máscaras da
commedia dell’arte.
As Máscaras dell’Arte foram engendradas num tempo espaço longínquo e muito além
das fronteiras territoriais e, nesta pesquisadora, encontraram eco no acervo imaginal e
muscular vindouros de manifestações espetaculares populares brasileiras - tão populares e
com ramificações tão carnavalescas e ritualísticas quanto as das máscaras italianas.
A ideia de um pensamento rizomático, para dar conta desta natureza de conectividade
em que a raiz principal se destrói nas extremidades e “vem se enxertar nela uma
multiplicidade imediata” (DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 14), contempla esta pesquisa de
modo muito satisfatório e coerente, pois esta se situa numa estrutura de pensamento que
trabalha com a conjunção “e”, a qual alia forças para chegar a um resultado, que também não
5
“A fisicidade é o aspecto puramente físico e mecânico da ação física [...] a forma dada ao corpo, o puro
itinerário da ação.” (BURNIER, 2001. p.55).
6
“A corporeidade, é a maneira como as energias potenciais se corporeificam [...] é mais do que pura fisicidade
de uma ação [...] é a forma do corpo habitada pela pessoa” (BURNIER, 2001. p.55).
25
é considerado “o resultado”, pois é uma coligação que se encontra no meio da rede.
As máscaras dell’arte que ganham vida através do processo de apropriação abordado
nesta tese estão entre uma dinâmica conectiva das próprias máscaras all’italiana7 e das
manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa. Estas máscaras,
que ganham vida através das supracitadas manifestações, estão no meio de uma rede que se
conecta por muitos lados, elas fazem parte de uma teia que não se sabe onde é o início,
possuindo alianças, de um lado muito concretas e, de outro, totalmente subjetivas. Um
exemplo deste tipo de conectividade é a máscara do Arlecchino e sua conexão com o frevo:
ambas possuem ligações com o carnaval. Esta máscara possui, dentro de suas codificações de
máscara física, posturas com os mesmos circuitos musculares de alguns passos de frevo –
tornando-se uma conexão muito concreta. Por outro lado, possui também a conexão realizada
na atmosfera festiva carnavalesca e no circuito energético – ao adentrarmos à máscara de
Arlecchino, estas conectividades serão tratadas mais a fundo, mantém-se aqui o caráter de
exemplificação.
Foi nesta natureza conjuntiva que a ideia desta pesquisa foi se desenvolvendo e, nestes
pensamentos/caminhos gramíneos, o devaneio ganhou potência e propiciou a atuação dos
princípios da conexão e da heterogeneidade, da multiplicidade, da ruptura a-significante, da
cartografia e da decalcomania - definidos por Deleuze e Guatarri como preceitos do
“pensamento rizoma”8. Estes pensamentos gramíneos proporcionaram a constituição da teia
formadora desta pesquisa – “ervas daninhas” que se alastram em dimensões e/ou direções
movediças e transbordam em imagens.
Desta inquietação, surgiu a necessidade de adentrar as questões que envolvem as
reverberações entre tais manifestações espetaculares populares9. Porém, é necessário dizer
que, ao optar pela compreensão de tais reverberações, se escolhe também um caminho
movediço e escorregadio, no qual a coesão acontece na multiplicidade e subjetivação - esta é
uma característica típica do pensamento rizoma10. Foi esta natureza de pensamento que
executou as conexões realizadoras e motivadoras desta pesquisa, sublinhando, mais uma vez,
7
Utilizarei, neste momento, a expressão “máscaras all’italiana” para me referir as máscaras físicas sem a
interferência propulsora das manifestações espetaculares populares brasileiras, somente com o treinamento
italiano, advindo da cultura popular italiana.
8
Para saber mais sobre os Princípios do Pensamento Rizoma de Deleuze e Guatarri, ler “Mil Platôs. Capitalismo
e Esquizofrenia” Vol. 1.
9
Como dito anteriormente, alguns teóricos afirmam que a Commedia dell’Arte não é uma manifestação popular,
pois é altamente requintada e complexa. É necessário dizer que não vejo as Manifestações Espetaculares
Populares como um resultado simplório ou menor, mas sim donas de uma espécie de complexidade que podem
até aparentar uma falsa simplicidade - a commedia dell’arte é um bom exemplo dessa visão.
10
“A noção de unidade aparece unicamente quando se produz na multiplicidade uma tomada de poder pelo
significante ou um processo correspondente de subjetivação” (DELEUZE; GUATARRI, 2000. p.17).
26
que:
Ele [o rizoma] não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções
movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce
e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem
objeto [...], linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas
também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a
qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza
(DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 14).
É nessa definição de conexões de naturezas em movimento e metamorfose e de um
“[...] sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória
organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados”
(Ibidem, 2000, p.33), que esta pesquisa foi se encaminhando e que Bachelard, Deleuze e
Guatarri se engendram, se liquidificam, se liquefazem e se ramificam no pensamento
formador da mesma.
Mas esse pensamento abarcador e ramificado não implica em falta de profundidade,
ele é tão abrangente que pode conectar-se com uma forma de estruturação mais incisiva, sem
perder a propriedade horizontal. O pensamento rizoma de Deleuze e Guatarri, aos olhos dessa
pesquisadora, pode se conectar com o pensamento raiz de Bachelard11. É certo que a
estruturação do pensamento raiz propõe uma forte unidade principal, uma espécie de pivô que
suporta as raízes secundárias. Mas, e se considerarmos que estas raízes secundárias, no
desenvolver do pensamento, evoluíram tanto que se tornaram tão fortes quanto o era a raiz
central e esta, então, passou a ser mais uma das ramificações, fazendo parte de uma
estruturação de pensamento que se alastra, também, horizontalmente.
Deste modo, este arraigamento não pode ser pensado como única raiz/direção que
irrompe e bifurca, criando, até mesmo, uma espécie de hierarquização ou unificação. Esta raiz
deve ser pensada como gramínia, a qual se alastra de modo vertical e horizontal
simultaneamente.
Seguindo a forma do pensamento raiz de Bachelard, a verticalidade chega a níveis do
inconsciente e este, por sua vez, está conectado com o devaneio, com o sonho, com a alma e
com a realidade – formando uma espécie de rede, sem hierarquias. Por outro lado, com tantas
conexões, é impossível pensá-las como uma imagem puramente vertical, pois, desta forma,
estaria se colocando uma ordem hierárquica. A partir das várias conexões que se estabelecem
com o inconsciente, devaneio, sonho, alma e realidade, começa-se a pensar numa forma
imagética radiculada horizontalmente e, esta natureza de coligação de pensamentos, os quais
podemos dizer, subjetivos, só pode ser visualizada como um rizoma, pois “[...] o rizoma é esta
11
Para saber mais sobre o pensamento raiz de Bachelard, ler: A terra e os devaneios do Repouso.
27
produção de inconsciente [...]”(DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 28).
Todas as imagens trazidas por Bachelard que envolvem a raiz/árvore não são expostas
numa escala de valores hierárquicos, mas sim como modos de validação de um pensamento e
destes elementos (copa-galhos-folhas-caule-raiz), como importantes células que fazem parte
de uma série de conexões que o fortificam. Para conectar o pensamento raiz de Bachelard e o
pensamento Rizoma de Deleuze e Guatarri, tem-se que transformar a imagem vertical da raiz
em uma imagem horizontal. Para tanto, deve-se lembrar que, quando Bachelard utiliza a
imagem da raiz/árvore, é para falar da profundidade dos atos/pensamentos que aparentam
serem superficiais, como também, da imagem que auxilia a compreensão da dinâmica entre
sótão/porão, ou copa/raiz, ou fantasias/segredos/lembranças, como um espaço de movimento
e troca de intensidades entre experiências e imaginação, sem dar uma valorização hierárquica.
Ao utilizar uma imagem vertical, como a árvore/raiz, Bachelard não a utiliza como forma de
hierarquização, mas como metáfora ou analogia para a compreensão de um funcionamento da
dinâmica entre realidade e fantasia – como também o fazem Deleuze e Guatarri quando
utilizam a imagem do rizoma.
Por outro lado, Deleuze e Guatarri não negam ou se opõem de modo incisivo ao
pensamento raiz/árvore, ao contrário, eles apontam a possibilidade da conexão da raiz ao
rizoma. Num primeiro caso, eles vêm a raiz como uno e, para incluí-lo na multiplicidade,
devem subtraí-la desta. Para esta pesquisadora, o caso não é de exclusão total, mas de um
deslocamento da posição de uno para codividir uma conectividade múltipla, abortando o
vértice e fazendo brotar novas ramificações, as quais se espalharão de modo gramíneo –
insisto nessa coligação em que a raiz una se abre para dar espaços a novas conexões porque
foi dessa forma que esta pesquisa se desenvolveu – ou, quem sabe, foi assim que ela foi
percebida, primeiro era somente uma raiz e, na medida em que se adentrava ao campo prático,
a mesma desabrochou em ramificações, tão amplamente que dar conta destas florescências se
tornou muito difícil.
Em outro momento, Guatarri e Deleuze (2000, p.31) afirmam que mesmo aquilo que é
subjetivo possui, em algum momento, uma ligação mais profunda e essa profundidade pode
ser ligada à imagem de uma raiz – a qual não precisa ser “uno”:
O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem: um age como
modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas;
o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça o mapa, mesmo
que constitua suas próprias hierarquias e suscite um canal despótico.
28
Com isso, parece muito oportuna a opção em conectar o pensamento rizoma e o
pensamento raiz, pois da mesma forma que Bachelard utiliza a imagem da raiz/árvore como
uma analogia para a compreensão das dinâmicas entre realidade e fantasia, pode-se utilizá-la
como imagem metáfora que irá servir para a compreensão de uma ligação mais profunda com
esse campo da não realidade ou do inconsciente.
Ainda, é muito significativo para a compreensão da coligação raiz/rizoma o modo
como Bachelard pensa a imagem e as conexões que utiliza para requerer seu “direito de
sonhar”, constituindo mecanismos rizomáticos. O próprio se utiliza do transbordamento
assinalado por Deleuze e Guatarri para mostrar a poética de seu pensamento em relação à
imagem/imaginário - a própria escritura de Bachelard provoca, no leitor, o transbordamento
suscitado pelo rizoma.
Desse modo líquido e transbordante, Bachelard valida o inconsciente como material
para o artista e nada transborda mais que este, nada é mais movediço e aquoso que o sonho,
que o devaneio, enfim, que a imagem/imaginário. Este mecanismo “imagem/imaginário e
rizoma” é o que comove o processo desta pesquisa, o qual se constitui de “tubérculos”, como
uma teia sem centro, na qual “Todas as entradas desembocam na mesma altura da malha
simbólica. Tudo é nó e conexão no tecido imaginal. Cada link, feito um porto, é ponto de
chegada e de partida” (SILVA, 2003, p.11), constituindo conexões variadas que se formam,
até mesmo, num grau de “partículas submoleculares”, ou seja, de pequenos ou mínimos
fragmentos.
Neste mecanismo “imagem/imaginário e rizoma”, a imagem acontece e o imaginário
inunda, ambos agem e transformam a subjetividade deste universo em um corpo concreto: o
corpo do pesquisator/pesquisatriz.
No processo de pesquisator, a imagem poética funciona como motor que impulsiona a
ação. Uma imagem desencadeia uma série de relações cíclicas e, de certa forma, espiraladas
que, na busca de compreensão, não é possível saber onde é o começo ou o fim, pois as
conexões,
de
alguma
maneira,
se
repetem
e
se
transformam-
imagem/imaginário/imaginação/transformação/ação/imagem/imaginário/imaginação/transformação/ação. A imagem age no imaginário que transforma o corpo, o qual transformado age,
provocando outra imagem, que por sua vez repete o ciclo; então, não se sabe mais o que é real
e o que é imaginação – mas, se ambos se realizam num corpo, pode-se considerar a ambos
reais. Contudo, para o artista que gera processos criativos, a mescla entre real e imaginário é
uma condição natural, pois ele sabe que o segundo “[...] emana do real, estrutura-se como
ideal e retorna ao real como elemento propulsor” (SILVA, 2003, p.12) da ação, da
29
imaginação, novamente da ação e mais uma vez da imaginação e assim sucessivamente...
É neste abscôndito, obscuro, ondulatório, imaterial e enigmático mundo do imaginário
(em Bachelard) que este meu devaneio/pesquisa ganha força, num pensamento guiado muito
mais pelo intuitivo que pelo raciocínio – isso quer dizer que o aspecto sensível guia os
caminhos, realiza os engendramentos e a razão o auxilia na transformação deste instinto em
explicação da ação, em palavras e conceitos – em tese.
Apesar de o imaginário ser caracterizado como “(...) ao mesmo tempo, uma fonte
racional e não racional de impulsos para a ação” (SILVA, 2003, p.13) ele ainda é considerado,
pelas ciências, uma fonte subjetiva e “flutuante”, portanto, não tão “confiável” para fins que
necessitam de resultados exatos - como uma tese. Mas a insegurança aparece no momento em
que o sujeito que está neste lugar movediço, não se vê banhado nestas águas, encontrando-se
trêmulo, com medo de ser levado por esse mar e frágil em suas certezas. Neste momento,
percebe-se enfim que o “[...] ser humano é movido pelos imaginários que engendra.
[confirmando que] O homem só existe no imaginário” (SILVA, 2003, p.7) – e permanecer na
turbulência de ser resultado de um imaginário, de certa forma, amedronta. Por outro lado, o
medo ensina a ser cauteloso e pode servir como um incentivo a olhar com mais atenção e
mais além.
Como consequência, esta pesquisa teve encaminhamentos que não foram
vislumbrados através das certezas e, sim, das dúvidas, das turbulências e tempestades. Ela é
composta por pensamentos que se movem ou derivam nas várias proporções do imaginário e
totalmente engendrados pela memória e pela imaginação - partes de um complexo que não se
dissociam.
Num processo criativo, tanto a imaginação, quanto a memória se validam como
verdades transformadoras. É ainda válido reafirmar que a memória com a qual se trabalha não
está ligada somente à história de vida ou a um curto prazo temporal, mas sim a toda história
que permeia a existência do ser humano e, quiçá além dela, já que por ter uma natureza
líquida o imaginário inunda e trasborda facilmente. A memória a que nos referimos é muito
mais do que lembranças: são adicionadas a estas, os sonhos e a poesia, gerando um fundo
poético que contém a memória, abriga o devaneio e protege o sonhador e cuja potência é uma
das mais fortes formas de integração para pensamentos, lembranças e sonhos do ser humano.
Neste processo de pesquisatriz, trabalha-se com a força da memória junto à
imaginação, uma espécie de reservatório/motor. Este reservatório/motor conta com a força
propulsora desta memória enquanto portadora de partículas e submoléculas da história,
tornando possível a atualização entre passado e presente através do imaginário e, assim,
30
“Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova” (BACHELARD,1989, p. 25).
O corpo é despertado e alimentado por imagens que encontram eco no seu próprio
interior, pois ele mesmo, o corpo, é resultado de um tempo que passou e traz consigo a
memória de uma história numa espécie de DNA imaginal. Este funciona, nesta pesquisa,
como elemento fundante e age como princípio, mais que como um conceito12, ele ganha a
importância de uma analogia e imagem explicativa e ativa dentro da pesquisa, é um “cordão”
de genes imaginários que percorrem toda a existência e que aqui, neste processo, se utiliza do
corpo para mostrar sua ação concreta. Através da aceitação, concepção e entendimento de um
DNA imaginal, o qual ultrapassa o espaço/tempo, torna-se possível atinar para um corpo que
traz em si a história, em memória e imaginação:
Tanto nossa alma como nosso corpo são compostos de elementos que já existiam na
linhagem dos antepassados. O “novo” na alma individual é uma recombinação,
variável ao infinito, de componentes extremamente antigos. Nosso corpo e nossa
alma têm um caráter eminentemente histórico e não encontram no “realmente-novo
que acaba de aparecer” um lugar conveniente, isto é, os traços ancestrais só se
encontram parcialmente realizados. Estamos longe de ter liquidado a Idade Média, a
Antiguidade, o primitivismo e de ter respondido às exigências de nossa psique a
respeito deles (BACHELARD, 1989, p.25).
O que se procura fazer, através do imaginário, é dinamizar e se comover com as
lembranças de nossa alma. Porém, não somente as lembranças de nossa infância, também as
remotas, os componentes antigos de nossa alma, os genes imaginais da história entremeados
pela imaginação. Dessa forma, a história serve de alimento e de aliada da imaginação, é a base
de trabalho para o pesquisator. Portanto, a partir desta compreensão de dinâmicas entre
lembrança-memória–imaginação, é possível entender mais detalhadamente e a fundo a
premissa de Bachelard em relação ao artista, quando ele afirma que para este “O fato não
basta, o devaneio trabalha [...]” (1989, p.37).
A imaginação valida a história, até mesmo aquela que não se conhece
conscientemente, uma vez que é nestes espaços fugidios em que a lembrança falha, que ela
completa/trabalha, confirmando outra premissa de Bachelard, a de que “[...] a imaginação
aumenta os valores da realidade” (1989, p.23). O que nos proporciona muito mais liberdade
para a criação artística.
Mas são nestas extensões, em que a memória falha e a imaginação trabalha, que a ação
dos genes imaginais é “sentida”. O DNA imaginal traz consigo fragmentos de memória de
uma realidade passada e a imaginação dá conta daquilo que não se sabe racionalmente, ela
12
Não se está entrando no campo das neurociências, o “DNA”, aqui, funciona como analogia e/ou metáfora.
31
trabalha a partir das sensações desta memória, arrematando a imagem que se forma e
fendendo a percepção sensível. O reservatório/motor comove o pesquisator através de
sentimentos, lembranças e visões que se realizam, em alguma instância, no seu corpo.
Para se realizar, a força que a imaginação possui é bem maior que a da razão e é desta
força imaginal que o pesquisator se utiliza. O acesso à commedia dell’arte que proponho vem
legitimado em uma realidade (física, corpo da pesquisatriz) e em uma virtualidade
(imaginação). O reservatório/motor funciona como válvula de impulso, dessa maneira, a
valorização da realidade através da imaginação faz com que a experiência vivida ganhe um
expoente maior, que atravessa a história (no DNA imaginal – num imaginário) e se manifesta
no corpo da pesquisatriz.
O vislumbre do possível acesso às máscaras da commedia dell’arte, através deste
caminho, aconteceu num momento em que a memória e a imaginação encontraram eco na
alma desta que escreve (pesquisatriz) – foi fazendo tais máscaras físicas que meu corpo
buscou, no seu acervo muscular conhecido, o suporte para dar a vida às mesmas, e estes
movimentos que as vivificam são de danças pertencentes a manifestações espetaculares
populares brasileiras. Claro que, num primeiro momento, as conexões não eram tão
complexas, mas quando os universos se conectaram, percebi: apesar de se tratarem de duas
culturas diferentes, de momentos históricos diferentes, de áreas artísticas diferentes – teatro,
festa, dança, luta – havia uma conexão cognitiva entre elas e eu precisava descobrir como ela
se realizava.
Quando estava fazendo as máscaras dell’arte pela primeira vez, o corpo procurava a
energia, a qualidade da ação e a vibração correspondente ou análoga àquela que me pediam,
dentro das experiências musculares que já possuía. O movimento codificado da máscara
all’italiana encontrava o seu eco naqueles pinçados das danças pertencentes às manifestações
espetaculares populares brasileiras, como se uma imagem (codificação da máscara) se
colocasse sobre a outra, e estas imagens vindouras de manifestações espetaculares populares
diversas se encaixavam em muitos pontos, mostrando que possuíam circuitos musculares
muito símiles.
Entretanto, como é possível uma imagem encontrar eco na alma de alguém? Esta é
uma resposta simples e, ao mesmo tempo, complexa: através do imaginário. Michel Maffesoli
(2001, p.75) fala do imaginário como uma aura, para ele “O imaginário é uma força social de
ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não
qualificável”, é uma força, um catalisador, uma energia, uma atmosfera, ou seja, não é
possível vê-lo, mas se pode senti-lo, ele é da ordem do sensível e é também um espaço de
32
convivência e contato com o outro, fazendo parte do coletivo, aliás, o imaginário faz parte de
um indivíduo e de um grupo, ele identifica o indivíduo ao grupo e vice-versa. É esta
identificação plural e singular que faz com que a imagem/imaginário encontre eco naquele
que se permite “comover-se” através dele.
No devaneio, o pesquisator produz poeticamente nuanças que dinamizam, através de
imagens comuns retidas em algum lugar do inconsciente (ou do cosmos, da atmosfera),
identificações sensíveis que também entram em contato com a alma de seu receptor. A
imagem promove o processo criativo tornando-se material concreto - ela agita a percepção
sensível e comove o corpo.
A dinâmica entre imagem/imaginação e memória constrói seus valores ativamente, os
quais também são inconscientes e integram “elementos arcaicos de nossa alma”, utilizando
mais um conceito de Bachelard (1990, p.88), de um Fundo Comum dos Sonhos.
Mas o que são estes “elementos arcaicos da alma”, os quais fazem parte do Fundo
Comum dos Sonhos? A meu ver - subjetividade pura, o que não significa dizer que esteja no
campo do incompreensível, ininteligível e não conceitual, mas sim no das experiências
sensíveis - é na combinação dos elementos arcaicos da alma que “as imagens se formam no
espírito”, utilizando a expressão de Ítalo Calvino (1999, p.97) quando este escreve sobre a
formação das visões de Dante.
Pode-se dizer, também, que os elementos arcaicos da alma são genes que estão
presente na constituição do DNA imaginal e que fazem parte do que Bachelard chama de “a
priori onírico”. O “a priori onírico” é uma condição que acompanha o ser humano e é parte
fundante de um Fundo Comum dos Sonhos.
O que é, então, este Fundo Comum dos Sonhos o qual é constituído pelo “a priori
onírico”, que é inerente à condição humana, que traz em si “elementos arcaicos da alma”, os
quais auxiliam na formação das imagens no espírito e comportam o DNA imaginal? Segundo
Bachelard, o Fundo Comum dos Sonhos é um espaço imaterial no qual passado, presente,
fantasia, história, realidade e imaginação comungam. Ainda mais interessante é a natureza
deste Fundo Comum dos Sonhos, além de estar presente em cada ser humano, ele está
também fora dele.
O ser humano tem em si este “a priori onírico”, traz consigo a recombinação de
elementos antepassados, chamado por Jung de “caráter eminentemente histórico”13; ele aporta
nas suas ações, de modo subjetivo, as pulsões mais antigas da alma, assinalado por Gilbert
13
Para saber mais, ler: Memórias, Sonhos, Reflexões, de Jung.
33
Durand como “trajeto antropológico”14, ou ainda ele faz parte e comporta a “aura”, este
espaço singular e plural a que Maffesoli se refere - estas manifestações subjetivas de um
passado além vida fazem parte da condição humana. Seja qual for o nome dado aos elementos
que integram esta condição, foi a partir deste espaço imaterial que esta pesquisa se comoveu e
se ramificou nas várias direções: Dionisio, Satiros, Charivari, Bufão, Carnaval, Manifestações
Espetaculares Populares Brasileiras e Máscaras dell’arte.
Reafirmando, esta tese baseia-se no pressuposto de que: o ser humano tem em si um a
priori onírico; que em nossa alma se encontram elementos arcaicos que agem em nós como
força a partir da ação da imagem; que tais elementos recombinam-se ao infinito e apoderamse de nós, nos dando a possibilidade de habitarmos a imagem que nos comove.
Não é fácil, contudo, para o pesquisator permanecer nesta dinâmica, é preciso apreciar
a beleza de mergulhar num mar sem saber a direção exata a seguir e, muitas vezes, ao invés
de mergulhar, simplesmente “flutuar”, deixar-se levar pelas circunferências ondulatórias que
se formam na água ou pelas ondas e redemoinhos de um mar de imagens.
Para o auxílio prático da ação do imaginário no corpo, alia-se ao Fundo Comum dos
Sonhos de Bachelard, uma ideia desenvolvida por Jacques Lecoq, a do Fundo Poético
Comum.
Esta instância chamada por Lecoq de Fundo Poético Comum é um espaço tão
imaterial quanto o Fundo Comum dos Sonhos, mas ele se torna concreto por se manifestar,
agir, no corpo do ator, passando do imaterial ao concreto.
Lecoq não chega a desenvolver profundamente o conceito do Fundo Poético Comum,
ele afirma a sua existência e fala de sua natureza:
Trata-se de uma dimensão abstrata, feita de espaços, luzes, cores, matérias e estão
presentes em cada um de nós. Os elementos se sedimentam em nós através das
nossas experiências e sensações de tudo aquilo que olhamos, escutamos, tocamos,
degustamos. Tudo se imprime em nosso corpo e constitui o fundo comum do qual
surgem ímpetos e desejos de criação (LECOQ, 1997, p.57).15
Ao lermos a citação acima, pode-se perceber a semelhança conceitual do Fundo
Poético Comum de Lecoq com o Fundo Comum dos Sonhos de Bachelard. A união de tais
ideias é, à primeira vista, muito oportuna, pois ambos se firmam na existência de um espaço
14
Para saber mais, ler de: A Imaginação Simbólica, de Gilbert Durand.
Tradução da autora: “Il s’agit d’une dimension abstraite, fait d’espaces, de lumières, de couleurs, de matières,
de sons, qui se retrouvent en chacun de nous. Ces éléments sont déposés en nous, à partir de nos diverses
expériences, de nos sensations, de tout ce que nous avons regardé, écouté, touché, goûté. Tout cela reste dans
notre corpos et constitue le fonds commun à partir duquel vont surgir des élans, des désirs de création”.
15
34
imaterial onde tudo se encontra. Bachelard indica a imaginação como grande ponto de
conexão deste espaço com a realidade, já em Lecoq, para o trabalho do ator, tal conexão se dá
na ação deste espaço sobre o corpo e na ação realizada por este corpo – os pensamentos estão
de acordo, o espaço imaterial se manifesta no corpo e, para tanto, utiliza-se da imaginação
(imagem em ação).
A semelhança da natureza, compreensão, extensão e capacidade de atuação entre o
Fundo Poético Comum e o Fundo Comum dos Sonhos, para esta pesquisa, é muito propícia.
A dimensão abstrata presente em cada um de nós a que Lecoq se refere é muito análoga ao
imaginário – este espaço coletivo e individual – e quando ele fala de “elementos que se
sedimentam em nós”, entende-se como os elementos arcaicos da alma. A similaridade entre
“dimensão abstrata” (Lecoq) e “imaginário” (Bachelard), como este espaço imaterial que
funciona como reservatório/motor da ação/imaginação/ação, é mais uma das condições bases
para esta pesquisa, visto que é neste espaço de conexões imateriais que as manifestações
espetaculares populares, ou podendo ser chamadas também de expressões artísticas culturais,
ou práticas espetaculares populares de países diversos, se realizam. Como já dito, não se trata
de relações comparativas ou paralelas, mas de conexões entre diferentes manifestações
espetaculares populares de países distintos e com naturezas artísticas diversas (teatro, dança,
luta
e
ritual).
É
justamente
por
se
tratar
de
expressões/práticas/manifestações
artísticas/culturais/espetaculares tão diversificadas que este espaço imaterial se torna o
principal suporte de conexão, pois é a partir dele que as outras vias de conectividades foram
vislumbradas.
Retornando a afirmação de Lecoq de que o Fundo Poético Comum é um “fundo
comum do qual surgem ímpetos de criação”, é inevitável associá-lo ao Fundo Comum dos
Sonhos e à função que o imaginário exerce como reservatório/motor para o ato criativo.
Para Bachelard, o Fundo Comum dos Sonhos é um espaço impalpável, imaterial,
porém, sensível - imagem/imaginário/imaginação – o qual faz parte do ser humano, podendo
manifestar-se nele e fora dele. Para Jacques Lecoq, o Fundo Poético Comum é como uma
força ou uma energia, a qual toma o corpo do ator, habitando-o, e todos os elementos que
constituem esta força são vindouros de um espaço imaterial, onde tudo se encontra.
Existe uma forte e, ao mesmo tempo, delicada conexão entre estes dois espaços, o
Fundo Comum dos Sonhos possui uma dinâmica que aflora na imaginação e o Fundo Poético
Comum precisa da imaginação para se realizar no corpo do pesquisator. O Fundo Poético
Comum não acontece sem o Fundo Comum dos Sonhos, pois a poesis se dá no corpo do
pesquisator através da ação do imaginário. Nesse caso, pode-se dizer que o Fundo Comum
35
dos Sonhos serve de reservatório/motor para o Fundo Poético Comum realizar-se.
Neste processo, tal como numa rede rizomática, não se sabe exatamente onde é o
início das conexões, pois o que se percebe sensivelmente é que o Fundo Comum dos Sonhos e
o Fundo Poético Comum possuem uma dinâmica de correspondência recíproca, em que agem
através do devaneio e devaneiam através da ação, ou seja, ambos sonham, devaneiam e agem
recombinando os elementos da espiral imaginal, com a finalidade de transformar e “reviverse” no corpo do pesquisator. O Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum movem
as energias e os afetos16, enquanto que os sistemas nervoso e muscular auxiliam no
processamento de um material abstrato (imagens, sensações), para a transformação deste em
um corpo (sensações, ações). A evolução e a intensidade da interlocução entre ambos
acontecem da mesma forma que a dinâmica entre imagem/imaginário/transformação/ação,
isto é, de forma horizontal, numa teia de conexões rizomáticas, que se repetem numa rede
cíclica, sem entrada, sem saída, sem hierarquia e com muitas conexões, as quais se
metamorfoseiam e se multiplicam.
O Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum engendram-se
dinamicamente e comungam da mesma natureza subjetiva. Mesmo que Lecoq fale do Fundo
Poético Comum ligado ao trabalho de corpo do ator, ou seja, algo que poderia ser considerado
como “material concreto”, tal corpo é trabalhado a partir de um espaço imaterial. Então, podese dizer que o Fundo Poético Comum é tão impalpável e subjetivo em seu nascedouro
(dimensão abstrata) quanto o Fundo Comum dos Sonhos o é em sua totalidade. De outro
ponto de vista, pode-se dizer que o Fundo Comum dos Sonhos, em última instância de seus
manifestos, se transforma pela imaginação, no corpo do pesquisator, tornando-se, então, tão
concreto quando o Fundo Poético Comum.
A interlocução rizomática entre imagem/imaginário - Fundo Comum dos
Sonhos/Fundo Poético Comum - constitui a principal dinâmica de pensamento desta tese.
Com isso, chega-se à constatação de que toda esta pesquisa se desenvolve a partir de um
universo abstrato, imaterial e subjetivo, mas que tem como forma de constatação um material
muito concreto: o corpo/ação desta pesquisatriz.
Mas como foi alertado no início, não existe a preocupação de se jogar âncora no mar
do imaginário, mas sim de mergulhar/pairar, seguir estas águas incertas. Quando se fala em
não lançar âncora, entende-se que há a consciência de que esta é uma pesquisa que se
16
Emprega-se a palavra “afeto” como referência às percepções dos sentimentos/emoções causados através dos
estímulos trazidos nesta pesquisa, pois a própria palavra traz em si uma ação (afetar) e para este processo cabe
muito bem seu emprego e referência.
36
metamorfoseia a cada nova conexão, a cada nova corrente marítima que passa a
jangada/pesquisatriz se move, segue, paira, para, mergulha, volta à tona, olha em volta,
conhece, reconhece e re-conhece o mar. Lança garrafas ao mar, espera a próxima corrente e
novamente se move – nesse sentido, a âncora não é lançada.
Neste campo de incertezas e correntezas, cria-se uma tentativa de imagem das
ramificações de tais conexões. Não se trata de um esquema e, sim, como mencionado, de um
intento de vislumbre imagético - uma garrafa ao mar.
A flor e o pensamento - tentativa imagética da dinâmica rizomática desta pesquisa. A
primeira imagem é um desenho realizado, aleatoriamente, no primeiro dia de aula da
disciplina “Processos Criativos”, ministrada pela Profª. Drª. Sônia Rangel, em março de 2007.
A segunda imagem é um intento de visualização da rede formadora da pesquisa, realizado
sobre e a partir da primeira imagem, em junho do mesmo ano, na finalização do semestre:
1.
37
2.
2.2. MANIFESTAÇÕES ESPETACULARES POPULARES: PERPÉTUO IMAGINÁRIO
“A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos
gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste,
o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o
que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos
símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas
cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças
bruscamente despertadas[...]”
Antonin Artaud (1993, p.21)
Para não criar desconforto em relação a algumas expressões utilizadas ao longo deste
discurso acerca das considerações sobre as manifestações espetaculares populares e o
imaginário, é propício esclarecer que os termos “espetacular” e “popular” são vistos de um
ângulo muito simples, sem grandes questionamentos semióticos, antropológicos ou
sociológicos. Também, não se entrará em uma discussão etnocenológica do que é espetacular
38
ou teatral17. Para esta pesquisa, o espetacular é tido como um ato realizado para ser visto, o
qual extrapola a ideia de cotidiano e possui uma consciência do olhar da alteridade. Enquanto
que o popular é visto como uma manifestação advinda de um povo, não entrando na discussão
sobre as divisões entre “grandes tradições” ou artes maiores, como são consideradas as artes
eruditas e “pequenas tradições” ou artes menores, as artes populares – como já mencionado,
para esta pesquisa, esta divisão não é relevante.
A expressão “manifestação espetacular popular” foi adotada por considerar que esta
abrange as atividades cênicas de muitas áreas, seja a dança, o teatro, o canto, os rituais, a luta
ou a festa. Com isso, ela estaria abraçando todas as “atividades artísticas cênicas” que fazem
parte dessa pesquisa, a qual trata da proposta de um possível acesso às máscaras da commedia
dell’arte (aqui, faço referência em específico à de Claudia Contin e Ferruccio Merisi), através
de células (movimentos, golpes, passos - circuitos musculares/energéticos) pinçadas de
manifestações espetaculares populares brasileiras (coco, ciranda, maracatu, frevo, capoeira,
maculelê, xaxado, caboclinho, samba, cavalo marinho e dança dos Orixás).
Também já foi destacado que o interesse desta pesquisa é um transcurso muito
específico de relações conectivas e que, apesar de ser uma possibilidade instigante e muito
rica, não está entre os objetivos deste estudo, criar um vínculo de igualdade entre culturas18 de
países diversos ou de correspondências entre as manifestações espetaculares populares destes.
Certamente que, no momento em que as imagens se formavam (e se formam) e a imaginação
trabalhava (e trabalha), paralelismos, comparações e aproximações se estabelecem, porém,
compreende-se que são novos campos que se apresentam, os quais mereceriam estudos
específicos e detalhados, não cabendo dentro desta tese, pelas próprias extensões destes novos
campos abertos.
Considerando somente os transcursos conectivos entre as Máscaras da Commedia
dell’Arte e as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras que incorporam esta
pesquisa, sem adentrar profundamente em outras questões, já se tem um grande “espaço” de
estudo. Para tanto, entende-se que é preferível aprofundar-se nos objetivos a que se destina –
o trabalho desenvolvido pela pesquisatriz para acessar as máscaras dell’arte – do que fazer
observações superficiais em campos que não fazem parte das relações primárias aqui
estudadas, o que não quer dizer que as relações secundárias e terciárias sejam sem
17
“[...] podemos dizer que qualquer ato em si pode ser visto como algo pleno de teatralidade, a partir da
consciência de quem o pratica e do olhar de quem o presencia. Já a ação espetacular é aquela que provém de um
evento invulgar, que foi elaborado para ser visto e admirado.” (OLIVEIRA, 2007, p.40).
18
Entende-se como cultura o conjunto de crenças, valores, tradições, vivências, atitudes, visões e compreensões
de mundo, que formam um povo.
39
importância e que não poderão ser acionadas quando necessárias e relevantes.
Este argumento contempla ainda os dados históricos das Manifestações Espetaculares
Populares que integram esta pesquisa (coco, ciranda, maracatu, frevo, capoeira, cavalo
marinho, samba, xaxado, caboclinho e dança dos Orixás, Zanni, Servetta, Brighella, Capitano,
Arlecchino, Pantalone), eles serão acessados ao longo do discurso, conforme a necessidade de
contribuição destes aspectos para que as experiências realizadas e o “caleidoscópio” das
interconexões construídas com as máscaras da commedia dell’arte sejam compreensíveis.
A partir destas exposições, iniciam-se as considerações sobre aquilo que se deseja
falar mais atentamente – as conexões realizadas entre a Commedia dell’Arte e as
Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras que servem como ponto de partida para
esta pesquisa prática.
Este estudo investe em uma perspectiva do trabalho do ator e sempre que se faz
referência a este, se está falando do jogo do ator e, com isso, se vê a necessidade de realizar
algumas observações sobre a arte (ou necessidade) de “jogar”.
O ser humano possui a atividade lúdica intrínseca a sua natureza, ela faz parte de uma
linha evolutiva milenar que se alastra rizomaticamente pela existência humana. As
manifestações espetaculares populares também são resultantes desta atividade e estão ligadas
à busca incessante do ser humano pela sensação de sentir-se satisfeito ou de sentir prazer19. A
satisfação e o prazer têm largas conexões com o jogo, a festa, o ritual, o cômico e o riso, pois
são ações físicas e fisiológicas que resultam em sensações de prazer - também não é o
momento de adentrar aos domínios do cômico e do riso, mas tais considerações são de grande
importância e serão retomadas ao longo do discurso.
As relações entre o jogo e a vida comum em sociedade ou, utilizando uma expressão
de Viola Spolin para o cotidiano, a realidade objetiva20, são muitas. O dia a dia requer do
indivíduo certo grau de seriedade. No entanto, para o ser humano (e não somente para ele),
não é possível permanecer exposto a uma situação de tensão por longo período, é necessário
que se tenha uma espécie de respiratório21, ou seja, um momento em que é proporcionada ao
indivíduo a possibilidade de relaxamento e, até mesmo, de ter a sensação de igualdade e
19
Também não se adentrará a questão freudiana de pulsão, pois requereria uma introdução e um
desenvolvimento neste campo que se distanciaria do objetivo da pesquisa, para esta é suficiente considerar que o
ser humano busca em todas as suas relações a sensação de satisfação e prazer, em diversas graduações.
20
Para saber mais sobre a noção de “realidade objetiva” e sua relação com o jogo e o jogador ler: O jogo teatral
no livro do diretor, de Viola Spolin.
21
Utiliza-se a palavra “respiratório” como um espaço no qual a tensão do dia a dia é dissolvida, um momento em
que a pressão é afrouxada. É uma espécie de área de relaxamento das leis da realidade, sem perder o contato com
a mesma. - Do dicionário virtual Houaiss versão 1.0: adjetivo.1 relativo à respiração; 2 que torna mais fácil ou
possibilita a respiração; 3 que serve para se respirar
40
insubordinação às punições severas das leis sociais. Nesse sentido, o respiratório é, de certa
forma, um espaço libertário e propício ao “prazer”.
Esta insistente necessidade de sentir prazer pode ser satisfeita através da capacidade
imaginativa/criativa inerente ao ser humano, pois a imaginação possui, conforme caminho
mencionado anteriormente, a capacidade de trazer sensações ao corpo, entre elas a do prazer e
da satisfação. Desta maneira, o respiratório se torna um espaço onde o imaginário/imaginação
age, promovendo na realidade objetiva uma série de manifestações lúdicas, as quais
propiciam certo “distanciamento” desta, mas não um total desligamento. Os engenhos lúdicos
criados pela imaginação, os quais proporcionam tais sensações, podem ganhar tanta força que
deixam de ser uma manifestação individual e se transformam em uma manifestação de um
grupo, podendo passar ao patamar de uma manifestação espetacular popular.
Estas manifestações espetaculares populares podem ainda serem vistas e referenciadas
como “jogo”. O emprego do termo “jogo” para denominar tais práticas espetaculares
populares vem em comum acordo com Johan Huizinga. O autor afirma que a palavra jogo
para referenciar tais práticas, surge a partir de um “ato de concepção de inúmeras línguas”22 e
abrange uma enorme variedade de relações, sejam elas entre animais, crianças ou adultos,
abolindo limites territoriais, culturais ou raciais. Dessa forma, o conjunto de manifestações
espetaculares populares que integram esta tese, sejam brasileiras ou italianas, é visto dentro de
uma mesma categoria: a do “jogo”. Esta compreensão de jogo abordada por Huizinga, a qual
serve a esta pesquisa, vem suspender barreiras territoriais e culturais que possam existir entre
as manifestações espetaculares populares aqui estudadas, colocando-as no mesmo espaço
imaterial e possibilitando as conexões destas a partir de uma mesma condição.
Huizinga apresenta a justificativa de que a nomenclatura “jogo”, como inferência às
manifestações resultantes desta capacidade de engenhar, não está ligada somente às questões
de competição, mas também às de ludicidade. O autor traça um caminho oportuno e
convincente sobre a origem da expressão “jogo” e mostra que, desde os gregos, ela esteve
ligada, tanto à competição, quanto à festa. Ainda que fizessem distinção entre o jogo e a
competição, considera-se que ambas pertencem aos mesmos domínios. Segundo Huizinga
(1993, p.36):
[...] na vida dos gregos, ou a competição em qualquer outra parte do mundo, possui
todas as características formais do jogo e, quanto à sua função, pertence quase
inteiramente ao domínio da festa, isto é, ao domínio lúdico. É totalmente impossível
separar a competição, como função cultural, do complexo “jogo-festa-ritual.
22
Para outras informações sobre jogo e linguagem, consultar: Homo Ludens, de Johan Huizinga.
41
As reflexões de Huizinga sobre jogo – as quais contemplam as manifestações
espetaculares populares de interesse para esta pesquisa – suscitaram, nesta pesquisadora, o
entendimento de que, qualquer que seja a manifestação integrante do complexo “jogo-festaritual”, ela emerge de um engenho imaginativo e comporta uma complexidade de sensações,
como visto anteriormente. Este caminho foi construído a partir da certeza de que as
manifestações inclusas na tríade “jogo-festa-ritual” fazem parte dos domínios da ludicidade
que, por sua vez, integra os domínios da imaginação (imaginário).
Através da tríade de Huizinga, também se faz a conexão com o cômico e o riso, estes
dois “elementos” podem integrar qualquer um dos itens da mesma, com diversos graus de
inferência e inter-relação.
Para avançar, gradualmente, nestas relações e nos mecanismos consideráveis para esta
pesquisa, vê-se a festa como um elemento que interliga a tríade, assim também como jogo, já
que se instaura como um evento temporário e cria, em certo grau, uma “dualidade na
percepção do mundo e da vida humana” (BAKHTIN, 1999, p.5), trazendo o “princípio da
vida material e corporal”
23
enfocado por Rabelais e reafirmado por Bakhtin como a grande
força do popular. Além disso, a festa não é só um evento coletivo, ela é, também, um evento
individual, podendo se instaurar no corpo de cada indivíduo, separadamente e com
graduações diversas.
Quando Bakhtin explica os princípios do cômico popular evidenciados por Rabelais
como força e, de certa forma, como modo de viver a vida, pode-se perceber o quanto a festa é
importante para a conexão da tríade de Huizinga e, especificamente, para esta pesquisa. Ao
mesmo tempo em que ela é um elemento da tríade, nela, todos os três elementos podem estar
contidos e/ou se instaurarem. No entanto, considerando-a como jogo, Bakhtin ressalta que
nem sempre o contrário é possível, mesmo que ambos pertençam aos domínios do lúdico,
nem sempre o jogo é festa. De acordo com Bakhtin (1999, p.16), para que o jogo seja festa é
necessário que este tenha:
[...] um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do espírito e
das ideias. A sua sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições
indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto é, do
mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa.
Dessa forma, a imaginação, universo onde se forma a ideia e que engendra engenhos
23
“[...] imagens do corpo, da bebida, da satisfação de necessidades naturais e da vida sexual” (BAKHTIN, 1999,
p.8).
42
lúdicos que interferem na realidade objetiva, é quem permite a “chegança”24 do “elemento a
mais” - deste elemento que Bakhtin assinala como instaurador da festa no jogo. Este elemento
advindo dos fins superiores da existência humana instaura no corpo e na atmosfera o clima de
festa. Através deste elemento, os princípios da vida material e corporal se concretizam num
corpo, o qual traz em si uma “ancestralidade festiva” (OLIVEIRA, 2007)
25
- um corpo
prazenteiro que se emana e exala (-se em) festa. A noção de ancestralidade festiva trazida pelo
pesquisador Érico José Souza de Oliveira vem fortalecer a tríade de Huizinga, pois reafirma a
festa como ritual, compreendendo nela, não somente o carnaval, a comicidade e o riso, mas os
ritos, os jogos e os fins superiores da existência humana - levando em conta as considerações
anteriores que sublinham a potência do DNA imaginal e da imaginação em transformar o
corpo e, através deste, então, fazer parte da atmosfera: exalando (-se em) elementos arcaicos
da alma através da dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos, Fundo Poético Comum,
imagem e imaginário).
A partir destas colocações, pode-se chegar à conclusão de que o Fundo Poético
Comum interage com as atividades lúdicas que se manifestam no corpo dos jogadores
trazendo as sensações vindouras de um espaço abstrato em comum (Fundo Comum dos
Sonhos). Então, conforme conexão estabelecida na tríade de Huizinga, o Fundo Poético
Comum também se instaura e age na festa, no corpo prazenteiro daquele que exala (-se em)
festa. Através desta conexão, jogo/lúdico/imaginação/pesquisator, o ator, seja em laboratório
ou em cena, pode ser um corpo em festa que se exala e comunica-se de modo
prazenteiro/festivo, e dessa maneira, o jogo do ator pode ser jogo/festa, desde que ele permita
a chegança dos elementos vindouros de “uma outra esfera da vida”.
Através dos princípios da vida corporal e material de Rabelais, da dinâmica recíproca
do Fundo Comum dos Sonhos e do Fundo Poético Comum, o ritual, o jogo, a festa e o
carnaval se caracterizam, não somente pela imagem ou pensamento abstrato, mas também
pela imaginação - experimentação concreta no corpo deste material sensível. Melhor dizendo,
o que propicia o estado de festa não é somente a imagem criada desta, mas é a tomada do
corpo por esta – a imaginação. Quando o corpo é tomado pelo jogo/festa, ele traz em si os
24
Conforme Houaiss – Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa 1.0: subst. Fem. 1. Chegada (ação de
chegar); 2. Dança de par praticada em Portugal no século XVIII, proibida como imoral; 3. Dança dramatizada
com acompanhamento instrumental, baseada em tradições ibéricas, e cuja coreografia evoca as aventuras
marítimas portuguesas e as lutas entre cristãos e mouros; 4. auto ou representação; 5. Visitas, tradicionalmente
bem acolhidas, feitas pelos festeiros às residências por ocasião das festas de Natal e Reis. Vendo que “chegança”
traz em si um sentido de ação, acolhimento, representação e festa,vê-se que é uma boa palavra para referenciar a
instauração do elemento necessário à festa.
25
A noção de ancestralidade festiva do pesquisador Oliveira chama a atenção para um corpo que comporta a festa
e o ritual.
43
elementos sensíveis de um “elo genético” (DNA imaginal) advindo de um estágio anterior ao
da civilização humana. Conforme Bakhtin assinala, os princípios material e corporal devem
ser considerados como universais, pois fazem parte dos fins superiores da existência humana
– do Fundo Comum dos Sonhos.
As manifestações espetaculares populares que fazem parte desta pesquisa são
consideradas, por esta pesquisatriz, como festas/jogos ou jogos/festas e integram a tríade de
Huizinga, portando genes imaginais vindouros da outra esfera da vida, aquela que é universal
e que constitui o “a priori onírico” do ser humano.
Estas manifestações espetaculares populares - engendros da atividade lúdica – se
justificam na própria satisfação resultante de sua realização, em qualquer que seja o grau. O
jogo não faz parte das necessidades urgentes da vida social (como comer, vestir, morar, etc.),
mas das necessidades do ser humano que se justificam na sua gratuidade, e esta é uma das
características fundantes do jogo e da festa:
Visto que não pertence à vida “comum”, ele [o jogo] se situa fora do mecanismo de
satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário; interrompe este
mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade
autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria
realização. (...) Todavia, em sua qualidade de distensão regularmente verificada, ele
se torna um acompanhamento, um complemento e, em última análise, uma parte
integrante da vida em geral (HUIZINGA, 1993, p.11-12).
Conforme a citação de Huizinga, o jogo integra parcialmente a vida cotidiana e, assim,
tem-se outra característica fundante do mesmo: a sua natureza de evento contido na vida
cotidiana e compartilhado por aqueles que o realizam.
[...] o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas,
mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de
um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida
quotidiana” (1993, p.33).
As observações realizadas por Huizinga acerca do jogo são concernentes às
manifestações espetaculares populares integrantes desta pesquisa, todas possuem uma
finalidade lúdica e, apesar de se manifestarem na realidade objetiva, pertencem à natureza de
evento temporário. Nelas, o indivíduo suspende a vida cotidiana e adentra um universo que
move seus afetos e lhe proporciona a possibilidade da sensação de um corpo em festa prazenteiro. Neste evento temporário, o jogo estabelece-se como duplo da realidade, ainda
que esteja contido nesta. Contudo, o que é importante salientar, é que esta dualidade, mesmo
44
que tenha finalidades tão diferentes – uma lúdica e outra de ordem social - não constitui
universos opostos, mas sim complementares, o respiratório criado pela atividade lúdica
auxilia a ordem/realidade e, com isso, realidade e imaginação se alentam numa dinâmica
recíproca, mesmo mecanismo de funcionamento da lembrança/imaginação comentado
anteriormente.
Através do jogo/festa, e não só dele, o imaginário encontra um meio muito propício
para permear o cotidiano e, assim, o DNA imaginal pode se perpetuar na existência humana,
uma vez que este espaço da atividade lúdica auxilia o ser humano para que os sonhos, os
devaneios e o inconsciente possam se “realizar”, em qualquer que seja a instância. Esta
realização da capacidade imaginativa não tem como exigência ser parte do cotidiano, desta
maneira, ela pode acontecer no espaço da fantasia, na forma de um evento, um universo muito
mais propício às suas finalidades sensíveis.
Entretanto, no jogo também existem regras, cada manifestação espetacular popular
tem suas normas, embora, estas continuem a fazer parte dos domínios do lúdico, não surgem
como “leis”, e sim como partes da interação entre os indivíduos, uma espécie de acordo
temporário. Quaisquer que sejam as regras, o indivíduo compartilha-as a partir de uma livre
decisão de interação com aquele universo, simplesmente pela possibilidade de realizá-lo, ou
melhor, de sentir prazer, de se divertir/festejar.
Mas a finalidade desta pesquisa não é a de validar a importância da inserção do jogo
na ordem social. A pretensão que se tem é de constatar a inundação de um imaginário através
da insistência deste em pungir o cotidiano ao longo da existência humana. Esta constância do
imaginário leva a crer “[...] que a categoria de jogo [é] fosse suscetível de ser considerada um
dos elementos espirituais básicos da vida” (HUIZINGA, 1993, p.34), pois tem-se que levar
em conta que “A atitude lúdica já estava presente antes da existência da cultura ou da
linguagem humana, portanto, o terreno no qual se inscrevem a personificação e a imaginação
também já estava presente desde o passado mais remoto” (1993, p.156). O jogo, então, é um
engenho lúdico que aporta genes imaginais, elementos de um “nível pré-histórico da
atividade espiritual” (1993, p.154). Por estas características e observações, vê-se as
manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa como atividades lúdicas
que pungem a realidade objetiva e esta condição primária de “ser jogo” é que as une num
mesmo espaço imaterial e que permite a conexão das mesmas, extrapolando os limites
culturais, que conforme afirmação de Huizinga, na citação anterior, é uma característica
específica do jogo.
Para esta pesquisa, as asserções de Johan Huizinga em relação ao jogo, as
45
considerações de Mikhaïl Bakhtin em relação à festa e a um sistema de imagem criado por
Rabelais, as afirmações de Erico José Souza de Oliveira sobre a noção de uma ancestralidade
festiva e o corpo prazenteiro que comporta e emana a festa, vêm reafirmar a pertinência de um
espaço como o Fundo Comum dos Sonhos (Gaston Bachelard) e da dinâmica deste com o
Fundo Poético Comum (Jacques Lecoq) - formando um “sistema de imaginação”.
Esta dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum também
pode ser considerada como um “sistema de imaginação”. Claro que não se trata de um sistema
de imagem, como o sistema criado por Rabelais, pois ele criou princípios e firmou um modo
de compreender, ver e viver o mundo. Este “sistema de imaginação26” surge sem grandes
aspirações, ele vem nominar o ciclo desta dinâmica recíproca e contínua entre o Fundo
Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum.
Cada manifestação lúdica engendrada pode ser considerada fruto de um devaneio de
um imaginário que se realiza, que se efetiva na dinâmica recíproca entre memória e
imaginação. Assim, no jogo/festa, o corpo prazenteiro se instaura e exala-se em partículas
submoleculares de elementos arcaicos da alma, os quais agem dinamicamente no indivíduo
que a realiza efetivamente num corpo e desse para a atmosfera, como também naquele que,
através da observação, se predispõe a sensivelmente se comover e se afetar com as ações
destes genes imaginais, porém, partindo da atmosfera e da imagem para, em certo grau, sua
sensibilidade, percepções e o seu corpo.
Quando um corpo exala (se em) festa, a dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e
Fundo Poético Comum não acontece somente naquele que joga/festeja mas também naquele
que o observa, basta haver a predisposição do indivíduo para que ela também se instaure nele.
Porém, é certo que, em grau muito diferente daquele que acontece no sujeito que age e se
exala, o observador é muito mais passivo que o sujeito da ação. Durante o jogo, os corpos em
imaginação também provocam no espectador, através da emanação (atmosfera), o contato
com a ancestralidade festiva, é que a imaginação do corpo prazenteiro encontra, naquele que o
observa, genes imaginais, provocando nele uma retumbância, uma espécie de eco – a
emanação do sujeito em festa afeta e convoca o observador a habitar com ele as imagens, isso
26
Faço um destaque na palavra “imaginação” para utilizá-la como uma palavra-valise, a qual, segundo Deleuze,
está na qualidade das palavras exotéricas, aquelas que trazem em si uma síntese disjuntiva, “[...] que operam uma
ramificação infinita das séries coexistentes e recaem, ao meso tempo sobre as palavras e os sentidos, os
elementos silábicos e semiológicos (‘disjunção’)” ( DELEUZE, 2007, p.50). Nesta condição de palavra-valise,
para nominar o sistema estabelecido pela dinâmica recíproca entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo
Poético Comum, a imaginação traz a compreensão necessária do funcionamento das imagens, para esta pesquisa,
podendo ser uma imagem em ação, no indivíduo e na atmosfera e, também, ser a ação da imagem, no indivíduo e
na atmosfera, dando a entender uma cíclica contínua, a qual não se sabe o início ou o “provocador” – mesmo
mecanismo imaginário/imagem/transformação/ação/imagem... - citado anteriormente.
46
é possível porque o Fundo Comum dos Sonhos faz parte de todo ser humano e é neste espaço
imaterial que acontecem as emanações e vibrações.
A imagem encontra correspondência (eco, retumbo) no imaginário do observador.
Através de elementos sensíveis, mencionados anteriormente, vindos de outra esfera, de uma
dimensão abstrata, de um espaço imaterial e de um sistema de imaginação (imagem/
imaginário/
imaginação/
transformação/
ação/
imagem/
imaginário/
imaginação/
transformação/ ação/...), o espectador entra em contato com os aspectos ancestrais da sua alma
e do cosmos e também se dispõe a uma atitude lúdica, a (sua) imaginação o invoca.
O jogo/festa e, portanto, o imaginário, tocam àqueles que o realizam e o assistem,
efetuando uma comunhão com a ancestralidade festiva presente em cada indivíduo e assim a
tríade (jogo-festa-ritual) se renova e se atualiza.
Com tamanha inundação, impossível não ver o imaginário como um espaço universal,
o qual constitui um meio de relações de coletividade. Porém, como esta conexão de genes
imaginais acontece em cada indivíduo, também o coloca como um espaço de individualidade.
Com isso, o imaginário também contribui para a dialética da dualidade individuo/coletivo muito necessária ao homem, segundo Michel Maffesoli. Para o ser humano, é importante que
ele se veja como indivíduo e coletivo. Contudo, a partir das colocações sobre o imaginário,
fica claro que, na liquidez em que este se alastra e inunda, não há uma total individualidade,
somente o compartilhamento o compõe, uma vez que se entende que, nas diversas graduações
de células e partículas imaginárias que constituem um todo, o sujeito encontre a sua
“individualidade”.
As manifestações espetaculares populares, estas resultantes da atitude lúdica, são
vindouras destes espaços de compartilhamento e individualidade. É nas diferenças graduais
(células, partículas, moléculas e submoléculas) que a atualização do passado e o
compartilhamento da história adicionada à imaginação se efetiva e se valida. Nas
manifestações espetaculares populares o prazer resultante da pungência do imaginário
comove o corpo do jogador e do espectador. O corpo que emana (-se em) festa transporta o
homem a uma união cósmica, adjacência na qual o sujeito é levado pela sua cíclica vital
prazerosa27.
27
Esta “cíclica vital prazerosa” que nomino, está ligada à busca incessante do prazer e pode ser relacionada ao
que Maffesoli chama de orgiásmo e mítica erótica e Oliveira de religiosidade orgiástica e ancestralidade festiva.
Estas compreensões da presença de elementos ancestrais na atmosfera festiva e nos corpos que fazem festa se
coligam com o Fundo Comum dos Sonhos, o Fundo Poético Comum e com a tríade de Huizinga jogo-festaritual. Apesar de Maffesoli e Oliveira se dedicarem a questões culturais, antropológicas e sociais e este estudo ao
trabalho do ator, os caminhos possuem identificações, porém, mais uma vez, se deve renunciar a um
encaminhamento secundário (não menos interessante), para enfatizar questões que dizem respeito, diretamente, a
47
Esta cíclica vital prazerosa tem a ver com a busca incessante e contínua do prazer e
está ligada à tríade jogo-festa-ritual de Huizinga, pelas considerações sobre jogo e festa já
realizadas e, consequentemente, às manifestações espetaculares populares que pungem a
realidade objetiva e integram esta pesquisa. Deste modo, pode-se considerar a tríade de
Huizinga como um forte e vigoroso elo conectivo desta pesquisa, pois cada um dos três
elementos que a forma constrói múltiplos elos de conexões com elementos vindouros de outra
esfera e os três juntos ganham força ainda maior - de alastramento e de conexão. A tríade e
suas conexões com os outros elementos vêm fortalecer a constatação da dinâmica do Fundo
Comum dos Sonhos e do Fundo Poético Comum e confirmam as conexões rizomáticas desta
pesquisa.
Neste discurso em que tento explicar as conexões rizomáticas que formam o
pensamento que integra esta pesquisa, não se pode deixar de sublinhar a subjetividade, pois
ela é o agente maior deste trabalho, ela ocupa o lugar do inexplicável, preenche os silêncios
entre os conceitos e as técnicas, não porque estes faltam, mas porque ela e o empirismo estão
neste lugar do “indizível”. Segundo Deleuze, os vínculos subjetivos é que fazem o sujeito se
ultrapassar, isto é avançar. Este avanço ou ultrapassagem acontece quando o sujeito “afirma
mais do que sabe”, isto porque a subjetividade possui uma dupla potência: a de crer e a de
inventar - “Crer é inferir de uma parte da natureza uma outra parte que não está dada. E
inventar é distinguir poderes, é constituir totalidades funcionais, totalidades que tampouco
estão dadas na natureza” (DELEUZE, 2008, p. 94). Ainda sob a crença, segundo David
Hume, citado por Deleuze, esta “[...] é um sentimento, uma maneira particular de sentir a
ideia. A crença é a ideia “sentida mais do que concebida [...]” (2008, p. 95).
Com estas duas potências, a de crer e a de inventar, uma com poder de inferência e
outra com poder de criar totalidades, a subjetividade e o empirismo avançam e neste
progresso a ultrapassagem acontece, quando, através de uma sucessão de dados, nos quais o
sujeito crê, ele conclui (inventa) outros - ainda aqui é preciso dizer que, segundo o filósofo
David Hume, o dado não faz parte do plano concreto, ele é “[...] o fluxo do sensível, uma
coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções” (apud DELEUZE, 2008, p.
104).
Então, num indivíduo, o dado constitui uma espécie de reservatório ou de acervo, a
crença é a percepção deste dado e a invenção é a comoção do dado. A partir das potências do
próprio dado, da crença e da invenção, um novo dado se forma.
esta pesquisa.
48
Foi exatamente dessa maneira que a subjetividade foi impulsionando o avanço desta
pesquisa. Os dados eram e são as experiências (fisicidades e corporeidades) dentro das
manifestações espetaculares populares (coco, ciranda, maracatu, xaxado, caboclinho, samba,
capoeira, frevo, maculelê, cavalo marinho e dança dos Orixás – máscaras do Zanni,
Arlecchino, Brighella, Pantalone, Capitano, Servetta, Cortigiana e Nobile), todos eram e são
do fluxo do sensível e faziam e fazem parte das minhas crenças, a potência em crer e inventar
é que me fazia ultrapassar os dados, comunicando-os entre eles e concluindo que através de
um dado poderia chegar a outros.
Este sistema subjetivo funciona porque, segundo Deleuze, o sujeito se constitui no
próprio dado, isto é, ele se vê como parte do dado, é afetado pelo mesmo, passando a se
constituir nele. Foi o que aconteceu com esta pesquisatriz que se envolveu nas percepções
sensíveis do seu corpo, deixando que o conjunto de impressões, imagens e percepções
tomassem conta do seu organismo e inventasse a possibilidade de acessar as máscaras da
commedia dell’arte através do conhecimento prévio que sua musculatura já possuía. Nessa
pesquisa, a conexão se dá de um modo ainda mais complexo, esta pesquisatriz possuía (e
possui) dados A (manifestações espetaculares populares brasileiras) e dados B (manifestações
espetaculares populares italianas – máscaras da commedia dell’arte), sendo assim, todas as
manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa são dados, mas as conexões
destes dados conhecidos constituem outros, o caminho conectivo entre todos os dados que
constituem esta pesquisa é o “novo dado” – o resultante da dupla potência crer e inventar.
Tento explicar ainda mais, pois a conexão é muito complexa, podendo se ramificar em
direções múltiplas: cada dado A e B são constituídos de outros [cada manifestação espetacular
popular (danças, lutas, máscaras)], cada um destes outros dados são constituídos de outros
(passos, golpes, partituras) e cada um destes outros dados são constituídos de outros dados
(cada movimento que constitui o passo, o golpe ou a partitura), e assim pode-se seguir a
divisão ramificada, chegando a graus que se constituem em células e micro-células de A e B.
São conexões que acontecem dentro de uma imaterialidade, mas que estão longe de
serem superficiais, pelo contrário, a cada nova vivência no dado são novos vislumbres que se
entreveem e que colocam esta pesquisatriz em desassossego, são novas imergências neste
universo imaginário incomensurável, transbordante e rizomático, o qual inunda toda a
humanidade desde a sua concepção de mundo (e quiçá antes dela), o qual serve de
reservatório/motor para as atitudes lúdicas que pungem, acontecem e agem na realidade
objetiva, as quais comportam e se conectam com a tríade “jogo-festa-ritual” e são resultantes
da dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum.
49
Conforme visto, a tríade de Huizinga também vadia por este universo imaterial e
compõe um forte elo conectivo entre as manifestações espetaculares populares, brasileiras e
italianas, que formam o conjunto de dados desta pesquisa, pois todas se conectam diretamente
com, ao menos, um dos elementos formadores e, consequentemente, com os outros.
A tríade “jogo-festa-ritual” está presente tanto nas máscaras da commedia dell’arte
como no frevo, na capoeira, no maculelê, no maracatu, no coco, na ciranda, no caboclinho, na
dança dos Orixás, no cavalo-marinho e no samba, comunicando-se com as instâncias
pertinentes ao imaginário. Durante os eventos em que as manifestações espetaculares
populares se realizam, a tríade “jogo-festa-ritual” se revigora, o jogo/corpo/festa/ritual aporta
lembranças, memórias, pensamentos e afetos que transcendem o espaço/tempo e fazem o
DNA imaginal retumbar, ecoar nos corpos prazenteiros e no cosmos.
Na verdade, na tríade de Huizinga, tem-se outra cíclica. Conforme visto, todos os seus
elementos transcendem a cultura e o tempo/espaço e constituem categorias que pairam em
outra esfera que não a da realidade objetiva.
A festa/jogo/ritual e o jogo/festa/ritual ou a festa, o jogo e o ritual, portam e trazem
elementos arcaicos da alma. Desde os primórdios, o ser humano tem ligação com uma
instância “divina”, mítica, mística e ritualística. O ritual o acompanha desde o nascimento da
humanidade até os dias de hoje. Muitos foram os rituais inventados para explicar o
inexplicável, para celebrar ou desejar uma boa caça ou colheita, para a morte e para vida, para
lamentar ou festejar, para a passagem de uma etapa da vida à outra ou, ainda, ritos envolvidos
nas tradições orais da cultura de um povo, fazendo parte da “transmissão do patrimônio
mítico-cultural” através de representações, como nas culturas indiana, japonesa, balinesa e
chinesa, nas quais a tradição oral possui uma forte conexão com o teatro, em que é o ponto
culminante de eventos de pequeno, médio e grande porte.
Também entre os índios das Américas, a tradição oral mistura costumes, história,
saberes místicos e crenças míticas. Como, por exemplo, em algumas tribos indígenas
brasileiras ainda são realizados rituais de passagem da fase infantil para a fase adulta, de
iniciação à caça, de cura, comemorativos e outros28.
Desde a Antiga Grécia que os rituais a Dionísio ou os rituais de fertilidade misturam-
28
Para saber mais sobre alguns destes rituais indígenas, ler: “Antropologia Indígena. Uma Introdução” de
Carmen Junqueira.“Body art dei primordi: Lezioni di trucco e pittura corpórea”, “Viaggio di Arlecchino in
Mato Grosso. Comunicati dai confini di guerra tra foresta e deserto” e “Nhits’ina = insieme: per un’ecologia
dei rapporti umani. Festa teatrale conclusiva dedicata alle tribú Xavante del Mato Grosso”,in Progetto
Sciamano 2004. Teatro interetnico e teatro Sociale, Org. Claudia Contin.
50
-se com encenações29. Vem desta “tendência” humana de representar o mito, a forte conexão
do rito com o teatro e destes dois com a Máscara. O ritual, para Barthes, está coligado ao
mito, ele é a “ferramenta” que auxilia o sujeito a “incorporar” o mito. Barthes qualifica o mito
como uma fala e o rito como a ação desta fala30, ou seja, o mito é a memória, a lembrança e o
rito é a atualização, a repetição desta memória no evento imediato, realizando neste, uma
transcendência. Esta transcendência acontece porque o rito está ligado às “origens” da vida
humana, presente nas suas crenças e hábitos. O rito porta e comporta o mito que a cada
invocação se renova e se reinventa e, nesta repetição, tanto um quanto outro se fortalece.
Ligada ao ritual está a máscara, ela está presente não só nos antigos rituais à Dionísio
mas também nos de fertilidade, nos saturnais, nos carnavalescos e muito outros da Grécia e
Roma antiga. A máscara é um objeto que contém intrinsecamente o sentido de incorporação
(do mito), de transcendência, de ligação a uma instância superior - se adentrará
tranquilamente nas questões concernentes à máscara.
Esta transcendência, segundo Linn Mario Menezes de Souza31, acontece, também,
porque o ritual comporta genes de uma origem primitiva e pode ser instaurado dentro de
qualquer atividade ou ação, pois é algo que depende muito do indivíduo, podendo ser
realizado individualmente (cada um cria os seus rituais, grandes ou pequenos32) ou ser uma
manifestação de um grupo - da mesma forma que a festa, o ritual se instaura no corpo e na
atmosfera.
Para que o rito aconteça, não é preciso uma necessidade aparente ou coerência, ele em
si, a sua realização é a própria justificativa – tal como o jogo e a festa. A cada repetição do
ritual, ele se reafirma como rito e através dos genes imaginais que comporta, o ser humano
retorna ao primitivo atualizando o passado e, a cada renovação, transgredindo o
espaço/tempo.
O ritual funciona, segundo o antropólogo social Victor Turner (1986), como um
elemento de integração social e cultural, reforçando os valores comuns e superando conflitos.
Porém, mesmo que sejam valores comuns a um povo ou superação de conflitos sociais, eles
também podem ser referentes ao indivíduo (relação com o imaginário). Turner faz uma
análise do rito de uma forma ampla, dentro do tecido social e do tecido cultural, constatando
29
Para saber mais, ler: La maschera teatrale nel mondo greco e roman.( Giovanni Calendoli). In : “Arte della
Maschera nella Commedia dell’Arte”de Donato Sartori e Teatro Grego. Tragédia e Comédia, de Junito de
Souza Brandão.
30
Vê-se a fala como um discurso, um significado, podendo ser uma imagem (BARTHES, 1982).
31
Mestre indiano que acompanhava Renato Cohen, aqui no Brasil, nas suas pesquisas entre teatro e xamanismo,
o qual tive a oportunidade de conhecer e realizar pequeno estágio com ele, no Ecun 2002.
32
Afirmação de Linn, em conversa pessoal, durante um ritual de cura, realizado durante o estágio.
51
que o ritual faz parte das estruturas que o ser humano engendra para viver33, coligando-se ao
jogo e a festa, também por esta característica e tanto quanto eles, não está dentro das
necessidades básicas para a sobrevivência do ser humano, mas está entre as necessidades
sociais e culturais deste.
Para esta pesquisadora, na função “sócio-cultural” do ritual e na sua qualidade como
elo conectivo entre passado e presente, é possível sentir/perceber que a cada
realização/atualização de uma sambada de coco, de samba de roda, de samba, de cavalo
marinho, de uma roda de capoeira ou maculelê, de uma dança de Orixá executada num
terreiro ou pelos integrantes do cortejo de maracatu, de uma ciranda, de um xaxado, de uma
dança de caboclinho, de uma frevada, a cada apresentação de teatro, a cada aparição e a cada
feitura34 de uma máscara dell’arte, de uma roupa, figurino, da própria preparação do espaço
ou ainda da elaboração do que é necessário para o rito/dado/manifestação espetacular popular
se realizar o ritual se instaura. No caso, tudo pode se tornar parte do ritual – vai depender,
como afirma Linn Mario Menezes de Souza, do indivíduo e da ação deste no evento. Na
verdade, entendo o discurso do mestre indiano da seguinte forma: apesar do ritual ser
caracterizado como um evento, ele permeia as pequenas ações objetivas do ser humano, ele,
mais do que nenhum outro elemento da tríade, aparece subjetivamente dentro da realidade
objetiva - o que Gilbert Durand nominou de “trajeto antropológico”, que é a capacidade de
comportar nas ações da vida quotidiana, de modo subjetivo, as pulsões mais antigas da alma
do ser humano. Em alguma instância, dentro dessas pulsões antigas, está o retorno aos
primórdios: ao mito, a Dionísio, à religiosidade.
Segundo Tessari (1984, p.88), o ritual e o ator que trabalha com a máscara possuem
uma forte relação, pois “Na verdade, não deve ser menosprezado que, na vestição do cômico,
o elemento que confere um valor de iniciação ao ato é a máscara, a qual, mais do que o
figurino, re-invoca um gesto tão antigo cujo limiar é o extra-temporal, reconduzindo, não
somente ao teatro Grego, mas ao fascinante mundo do mito” 35.
Grotowsky sempre buscou no seu trabalho esta ação ritual, a qual comporta elementos
33
Para saber mais sobre o mito, ler: Dal rito al teatro de Victor Turner.
Do dicionário virtual Houaiss versão 1.0: substantivo feminino. 1 Ato, processo ou efeito de fazer(-se);
elaboração 2 O que se fez; obra, trabalho, produção, produto 3 Configuração física; forma, formato, feitio 4
Criatura, pessoa ensinada ou formada por outrem para seu serviço 5 Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil. 6-66 Processo de iniciação, no candomblé e em seitas afins dele derivadas ou por ele influenciadas. - Por todas estas
possibilidades de compreensão e explicação, a palavra feitura, para esta pesquisatriz, vem contemplar o discurso
sobre a ação ritualística.
35
Tradução da autora: “In vero, non va sottovalutato che, nella vestizione del comico, l’elemento che conferisce
un valore di iniziazione all’atto è la maschera, la quale più del costume rievoca un gesto talmente antico da
confinare con l’extratemporale, da ricondurci non soltanto al teatro Greco, bensì ancora nel fascinoso mondo
del mito”.
34
52
arcaicos da alma. Quando ele dizia aos atores que no teatro a ação devia ser uma “ação ritual”,
entende-se que estava se referindo a esta qualidade de ação que transgride o tempo/espaço
comportando genes imaginais. Assim, quando Grotowski (1971, p. 22) falava do ator santo e
pedia o sacrifício e a doação “[...] uma mobilização de todas as forças físicas e espirituais do
ator”, ele aludia ao corpo que emana elementos vindouros desta outra esfera, que possui
conexão com as questões primordiais da existência humana, para encontrar as ações rituais
desejadas, através de práticas como “A autopenetração, o transe, o excesso, a disciplina
formal [...]” (1971, p. 23) – todos, elementos do ritual. Ainda, quando Grotowski pedia ao
ator que expressasse “[...] através do som e do movimento, aqueles impulsos que estão no
limite do sonho e da realidade” (1971, p. 20), para esta pesquisa, ele estava pedindo que
“sonhasse acordado”, que devaneasse, que fosse buscar no limiar do sonho com a realidade
estas ações antigas que se renovam e têm esta pulsão de pungir a realidade e, então, nesse
espaço imaterial e extra-temporal, os elementos arcaicos da alma afetam o sujeito e a
imaginação acontece no sujeito.
A tríade festa-jogo-ritual se instaura no corpo e no cosmos, nas palavras do
pesquisador Erico José Souza de Oliveira (2007), no corpo prazenteiro que comporta uma
ancestralidade festiva emanando (-se).
Destas diversas formas e graduações, o ritual faz-se presente em todas as
manifestações
espetaculares
populares
que integram esta
pesquisa,
por
ligações
consequenciais da própria estrutura da tríade ou por conexões diretas e variadas que dizem
respeito à natureza de cada manifestação, italiana ou brasileira.
As considerações sobre imagem e imaginário como universos transbordantes e
perpetuantes, o sistema de imaginação gerado pela dinâmica recíproca entre o Fundo Comum
dos Sonhos e o Fundo Poético Comum e as considerações sobre jogo-festa-ritual foram
necessárias para que se compreendesse o nascedouro das conexões entre a Commedia
dell’Arte e as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras.
Por todos os vínculos conectivos e considerações levantadas, pode-se também pensar
na commedia dell’arte como uma manifestação espetacular popular resultante de uma atitude
lúdica de um povo. Conforme visto, esta colocação não é uma simplificação, pelo contrário, é
uma conclusão resultante de um complexo universo imaterial que transborda e punge a
realidade objetiva.
A Commedia dell’Arte está entre os dados que fazem parte desta pesquisa, mas este
gênero
teatral
é
formado
por
muitos
elementos
(também
dados)
–
canovacci/zibaldoni/roteiros, lazzi/números/gags, máscaras, música – e cada um contém
53
características próprias. Por este motivo, o objetivo desta pesquisa não é dar conta de todos os
elementos que constituem a commedia dell’arte, o que interessa, o qual é o elo de conexão
enfocado, são as máscaras que a integram. As máscaras se ramificam, podem ser consideradas
como parte deste imaginário popular que inunda, se atualiza e se perpetua de maneira
fracionada, individual e compartilhada.
Já foi mencionado que cada manifestação espetacular popular é um dado que contém
outros dados, que contém outros e, sucessivamente, se desdobram - a cada vivência outros
novos dados se formam. No caso do dado “commedia dell’arte”, a qual contém as máscaras
dell’arte, as quais contêm outros dados - as partituras, por sua vez, contêm movimentos, que
contêm micromovimentos e, assim, no macrouniverso do imaginário, as conexões são
realizadas, primeiro, nos micromovimentos e nas subjetividades das ações, para avançar e
realizar conexões mais largas, como em movimentos completos.
Na variedade e multiplicidade das máscaras dell’arte, estão as diferenças graduais
deste imaginário coletivo e individual, trazendo traços semelhantes e outros diversos – refirome, aqui, às várias máscaras de Arlecchini, Capitani, Pantaloni, Dottori, Brighelli, Servette,
Nobili, Cortigiani, Zanni e Pulcinelli, todas vindouras deste imaginário coletivo e individual.
A máscara é um “objeto” que interroga e suscita interrogações. Muitas vezes servindo
como um portal, ícone ou elemento de rituais religiosos, de caça, de festa, de morte, de vida
ou de cura, ela possui uma história tão antiga quanto a da aparição do ser humano na face da
terra. Segundo o pesquisador Alfonso Renzo Degano36, estudando o período Paleolítico,
encontram-se pinturas e desenhos rupestres de homens que se vestiam/mascaravam com peles
e penas de animais ou folhas para rituais xamânicos ou de caça. No que diz respeito ao rito, de
certa forma, Degano entra em acordo com Turner e afirma que, nas civilizações em que a
máscara aparece como ritual ou elemento ritualístico, ela acaba possuindo uma função moral,
ética, cultural e social insubstituível. Muito além de um objeto, em muitas culturas, as
máscaras “[...] representam as concessões do mundo sobrenatural e as relações estabelecidas
do homem com as potências superiores” (DEGANO, 2005, p.193)37.
Esta coligação da máscara com as “potências superiores”, segundo Degano, acaba
trazendo com ela uma “consciência” de uma “viagem metafísica”, estabelecendo a máscara
objeto como um “trâmite” entre dois mundos (nesta pesquisa, este “trâmite” foi chamado de
36
Dr. Alfonso Renzo Degano é colecionador de máscaras de diversas culturas do mundo, com as quais realiza
mostras e conferências “Maschere dal Mondo”. É historiador e professor nas Áreas de História e Geográfica na
UTLE – Università della Terza e delle Libere Età di Fiume Veneto – Pordenone – Itália.
37
Tradução da autora: “[...] rappresentano le concessioni del mondo soprannaturale e le relazioni stabilite
dall’uomo con le potenze superiori”.
54
“link”). Porém, tanto historiadores como Degano, quanto estudiosos do teatro como Taviani e
sociólogos como Turner afirmam que toda essa capacidade ritualística icônica, de tramitação
e link da máscara é o indivíduo que a concerne: reconhecendo-a como portal/ícone/link;
habitando as imagens que se formam no seu espírito e deixando-se transformar/habitar por
elas num sistema de imaginação.
Para Giovanni Calendoli (SARTORI; LANATA 1984, p. 13):
A máscara é, desde as suas mais remotas aparições, a refiguração de um vulto
divino, humano ou animalesco, heróico, aterrorizante ou cômico, que um indivíduo
pode impor ao próprio vulto apagando-o e assumindo os caracteres da máscara. Esta
operação de transformação exterior, mas, também, interior, tem um conteúdo
mágico e por isso se coloca originariamente no âmbito religioso, mesmo se as razões
que determinam esta transformação possam ser muitas outras. A máscara, como
objeto em si, aparece dotada de um poder mágico e religioso, porque é o instrumento
que torna possível a metamorfose de um indivíduo, tornando-o diverso dele mesmo
e concedendo-lhe outros poderes. A máscara contém a força necessária para
produzir a metamorfose: é, sim, um objeto, mas um objeto carregado de uma energia
secreta e obscura. 38
Quando Calendoli comenta que a máscara é um “objeto carregado de uma energia
secreta e obscura”, compreende-se que ele está falando sobre as suas conexões imaginais, isto
é, das conexões subjetivas, imateriais, míticas, religiosas, trata-se das forças que não possuem
uma concretude, mas que podem ser percebidas e constatadas a partir dos resultados que
provocam e pungem a realidade objetiva, como as máscaras, os jogos, os rituais, as festas, as
transformações e metamorfoses provocadas no corpo que tem contato com estas forças.
Calendoli também aponta para a relação, no caso da máscara dentro do teatro, com
Dionísio, afirmando que esta é uma coligação impossível de não ser feita, pois na Grécia e na
Roma Antiga, tanto a máscara da comédia quanto a da tragédia eram relacionadas com os
rituais a este Deus e, com isso, a máscara no teatro sempre representará este mito, pois “a
mesma duplicação da máscara em uma expressão trágica e outra cômica, corresponde, antes
de tudo, à duplicidade deste deus que governa a vida e a morte, como também, o riso e o
pranto” (SARTORI; LANATA 1984, p.13)39.
38
Tradução da autora: “La maschera é, fin dalle più remote apparizioni, la raffigurazione di un volto divino,
umano o animalesco, eroico, terrificante o comico che un individuo può imporre al proprio volto, cancellandolo
ed assumendone i caratteri. Questa operazione di trasformazione esteriore, ma anche interiore, ha un contenuto
magico e perciò si colloca originariamente nell’ambito religioso, anche se le ragioni che determinano questa
trasformazione possono essere assai varie. La maschera, considerata come oggetto in sé, appare dotata di una
valenza magica e religiosa, perché é lo strumento che rende possibile la metamorfosi di un individuo, facendolo
diverso da sé e conferendogli altri poteri. La maschera racchiude la forza necessaria a produrre la
metamorfosi: è, si, un oggetto, ma un oggetto carico di un energia segreta e oscura.”
39
Tradução da autora: “Lo stesso sdoppiarsi della maschera in un’espressione tragica ed in un’espressione
comica corrisponde anzitutto alla duplicità del dio, che governa la vita e la morte e perciò il riso e il pianto”.
55
Dionísio era um deus que se metamorfoseava e, de certo modo, deu forma à sua
existência por intermédio da máscara e “consequentemente se tornou, também, o senhor da
máscara” (SARTORI; LANATA, 1984, p.13) 40. Tendo relação com os rituais de fertilidade e
solstícios, Dionísio era comemorado, também, como o deus das estações do ano, das
metamorfoses da terra e da natureza e a máscara, elemento essencial ao culto e ritual
dionisíaco, traz esta ideia de incorporação, duplicidade, metamorfose e transformação.
Muitos são os olhares sobre a relação das máscaras e o ser humano, como também são
muitas as relações entre a máscara e o teatro, umas mais céticas, outras mais fantasiosas e
outras, ainda, religiosas.
Claudia Contin possui uma relação ritualística, respeitosa e afetuosa com as máscaras
da commedia dell’arte, relação esta que procura passar às suas alunas. Posso dizer que,
através da convivência, percebi que, para ela, a máscara tem esta função de objeto/link, um
ícone, um portal e sinônimo de metamorfose. Totalmente conectada à máscara que a escolheu,
Claudia Contin leva Arlecchino pelo mundo e a máscara a faz conhecer outras dimensões das
realidades objetiva e subjetiva. Quem vê l’Arlecchino Claudia Contin” (como se faz conhecer
no meio artístico italiano) no palco, não vê uma mulher com roupas de homem, vê e sente a
presença da máscara de Arlecchino 41.
No decorrer da convivência, percebe-se que Claudia vê a máscara dell’arte como este
objeto “mágico”. Mas, o que se percebe, também, é que, para que a mágica da metamorfose
aconteça, para que a atmosfera e o público sejam afetados, o ator deve ter um corpo
disponível e apto para servir como uma espécie de conector/canalizador deste espaço mágico
imaterial com a realidade objetiva. Apesar de Contin e Merisi colocarem a máscara dell’arte
como elemento “mágico” dentro da commedia dell’arte, eles não a colocam como objeto
principal/único, pois ela se caracteriza pelo conjunto de elementos (canto, dança, música,
lazzi: poesias, discursos eloquentes, canovacci – roteiros e improvisação).
Nesta mesma linha de pensamento cujo tema é a complexidade da commedia dell’arte,
não delegando a supremacia à máscara dell’arte, Taviani (SARTORI; LANATA, 1984,
p.105) chama a atenção para a principal característica destas, dizendo que “[...] na Commedia
dell’Arte, a máscara serve para delimitar sem definir”42. Isto é, na commedia dell’arte a
máscara possui diretrizes de ação, porém, não são diretrizes castradoras e limitantes, elas
permitem a integração de alguns traços individuais de cada ator, improvisações ou modo
40
Tradução da autora: “[...] conseguentemente divenuto anche il signhore della maschera”.
É possível saber mais sobre as mudanças físicas e conceituais que Claudia Contin atravessou, nos artigos
“Perseguindo Arlecchino” e em “Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte” .
42
Tradução da autora: “[...] nella Commedia dell’Arte, la maschera serve a delimitare senza definire”.
41
56
particular de estar dentro destas diretrizes. É uma representação de um arquétipo que faz parte
de um universo imaginário coletivo e, também, individual. Posso dar como exemplo, muito
atual, dessa “delimitação sem definição”: os Arlecchini, Marcello Moretti, Ferruccio Soleri e
Claudia Contin, três dos mais importantes e reconhecidos Arlecchini da Itália, todos
delimitados dentro do que é Arlecchino, mas sem uma definição de como deve ser,
exatamente, um mais elegante e distinto, outro mais acrobático e ágil e outro mais grotesco e
selvagem.
O principal responsável por esta delimitação sem definição é o imaginário, este espaço
imaterial coletivo e individual.
Taviani fala das tentativas falidas do teatro moderno em criar novas máscaras a partir
das antigas máscaras dell’arte, afirmando que o falimento deste mecanismo é inevitável, pois
os cômicos dell’arte não criaram as suas máscaras a partir de uma observação da vida
cotidiana para identificar os tipos que a sociedade continha e daí criar as máscaras – elas não
observavam a vida cotidiana, faziam parte daquela vida. Tudo indica que um
encaminhamento baseado na observação e criação racional não funciona para as máscaras,
pois como falado anteriormente, elas fazem parte dos engenhos lúdicos deste universo
imaterial que punge a realidade e que o fazem de maneira subjetiva - a máscara como
categoria, não se institui de modo racional.
As máscaras dell’arte não foram criações para o teatro “institucional”, elas eram, antes
de mais nada, carnavalescas, ritualísticas e festivas, tinham e têm vida antes do teatro requerêlas para a cena. No evento teatral, as máscaras dell’arte encontraram mais um nicho para se
repetirem e se fortalecerem, uma vez que o seu uso na vida cotidiana, cada vez mais, na Itália
medieval vinha sendo proibido, principalmente em Veneza43, região na qual a commedia
dell’arte e as suas máscaras tiveram interferência intensa na vida cotidiana e, quando se
institucionalizou como “teatro”, eram das principais atrações das ruas, feiras, praças e festas.
Apesar de muitos estudiosos afirmarem sobre a participação das máscaras dell’arte nos
festejos populares, é preciso dizer que Taviani chama a atenção para o fato de que pode existir
um pequeno qui-pro-quò. O Zanni, o Arlecchino e o Pulcinella possuem ligações diretas com
rituais populares44 que preexistiam à commedia dell’arte, já as outras máscaras como a do
Pantalone e Dottore não possuem uma ligação tão profunda e intensa com o ritual, se não
43
Danilo Reato, no livro “Le maschere Veneziane” (1988) traz um roteiro histórico dos decretos e leis de
proibição do uso da máscara na vida cotidiana, em Veneza, desde 1339, até 1789, posterior a esta data, o
segundo governo austríaco permitiu o uso de máscaras, somente no carnaval. Após a reintegração da região de
Friuli e Vêneto à República Italiana, as máscaras já estavam sendo usadas, somente no período carnavalesco.
44
Italo Sordi, no artigo “Commedia dell’Arte e ritualità popolare. I personaggi” (SARTORI; LANATA, 1984)
fala mais detalhadamente sobre estas ligações.
57
aquela inerente à máscara, estando mais ligadas ao evento teatral. As máscaras do Zanni,
Arlecchino e Pulcinella possuem conexões ritualísticas carnavalescas. Conforme Italo Sordi,
algumas tradições medievais carnavalescas e ritualísticas que estes faziam parte: um grupo de
Zanni, vestidos de branco, em cortejos pelas ruas de Trento, dançando e arrastando um arado
e o “incentivando” a trabalhar com pauladas; Hellequin que conduzia o cortejo dos Charivari,
carregando as almas de crianças não nascidas ou mortas após o parto – tradição presente na
França, Itália e Alemanha; em Trentino, Arlecchino era uma espécie de guardião do grupo de
mascarados, mantendo o público longe do cortejo, de modo jocoso e brincalhão; também em
Trentino, um grupo de máscaras guiado por um “Zannon” sai em cortejo carnavalesco para
“conquistar” a cidade vizinha; esta mesma tradição acontece na região sul da Itália e é
Pulcinella que comanda o pelotão das máscaras – posteriormente, serão vistas outras
conexões ritualísticas destas máscaras. Além de cortejos ritualísticos carnavalescos, Zanni,
Arlecchino e Pulcinella possueam conexões originárias, também, no teatro pré-commedia
dell’arte – na fabula atellana, existe possíveis ascendências das máscaras dell’arte.
A fabula atellana era um espetáculo farsesco da Roma Antiga, segundo Giovanni
Calendoli, se trata de uma cultura tipicamente itálica com grande influência grega e também
latina45, osca46 e etrusca47. Para Calendoli, a fabula atellana deu à máscara teatral uma nova
função e estrutura dentro do espetáculo cômico profano, pois era muito diferente da função e
estrutura que tinha dentro da tradição grega.
A fabula atellana tinha como base quatro máscaras com nomes sem variáveis: Maccus
(o faminto – o qual tende a ter conexões com Zanni e Arlecchino); Bucco (o falador, que
poderia ter conexões com o Dottore); Pappus (o velho, que tende a ter conexões com
Pantalone) e Dossennus (o corcunda malicioso, o qual tende a ter conexões com Pulcinella).
Estas quatro máscaras, hipoteticamente, teriam servido de núcleo para o desenvolvimento da
commedia dell’arte (dramaturgicamente e como estilo). Por um caminho evolutivo, a
commedia dell’arte foi-se estruturando com 1º e 2ª Zanni, Pantalone, Capittano, Dottore,
Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Pulcinella, Nobili e todas as outras máscaras que se
desenvolveram, como Matamorros, Brighella...
Nesse caminho evolutivo ao longo dos tempos, a “commedia dell’arte” foi adotando e
sendo divulgada por muitos nomes como: commedia dei Zanni, commedia all’improviso,
45
Relativo à cultura do Lácio, antigo país da Itália, que pertencia à parte central da costa ocidental do mar
Tirreno.
46
Relativo à cultura de Osca, a qual, posteriormente, passou a ser Huesca, cidade da Tarragona, antiga província
a nordeste da Espanha.
47
Relativo à cultura da Etrúria, antiga província italiana, onde atualmente é a Toscana.
58
commedia mascherata, maschere all’italiana, commedia all’italiana e, depois de muito
tempo, commedia dell’arte - cujo nome, após as companhias dell’arte se institucionalizarem,
não foi mais trocado.
Conforme comentários anteriores de Turner, Degano, Tessari e Taviani, a máscara traz
sempre uma ritualidade inerente a ela e isto, consequentemente, faz com que a própria
conecte-se com os outros dois elementos da tríade de Huizinga. A tríade tem ramificações
carnavalescas e as máscaras dell’arte, como se viu, também têm esta conectividade com o
carnaval, de um certo ponto de vista, poderia ser dito que as máscaras do Zanni, Arlecchino e
Pulcinella possuem uma coligação maior e mais potente, por fazerem parte de rituais antigos.
Contudo, não está se buscando uma hierarquia, está se procurando a constatação das
conectividades. O mais importante é que, quando as máscaras dell’arte encontraram o
carnaval, o adotaram como reinado, nicho e propulsor.
Ainda sobre os caminhos percorridos pelas máscaras dell’arte, sabe-se que estas
chegaram a uma grande fama, a partir de conhecidas companhias, como Gelosi, que se
apresentavam nas cortes e grandes teatros, com peças de Gozzi, Goldoni e Moliére. Mesmo
com grandes companhias que viajavam de um palácio a outro, de um país a outro para
apresentarem às cortes os espetáculos de commedia dell’arte, as pequenas companhias e os
giullari, buffoni, Zanni, Pulcinelli e Arlecchini solitários continuavam fazendo os cortejos
carnavalescos, as improvisações em meio ao povo, nas ruas, festas, feiras e praças, vivendo e
sobrevivendo neste universo imaginário e pungindo a realidade objetiva.
A vida inter/entre teatro e ritual das máscaras as colocam em uma categoria de ícone.
Elas são “objetos síntese”, pois a máscara objeto é uma realização concreta de um imaginário,
de certa forma, ela é uma “sintaxe” do imaginário que a engendrou – é um arquétipo que
encontra uma manifestação/representação concreta (objeto) e física (corpo do pesquisator).
A máscara está ligada ao teatro, ao imaginário, ao ritual, à Dionísio, à festa, ao
travestimento, ao jogo, à duplicidade, à incorporação ao carnaval e a muitas outras instâncias,
mas o mais importante da máscara é que, mesmo tendo uma relação de anulação do vulto do
ator ou do sujeito que a porta, ela, como diz Tessari, jamais esconde: revela. Mesmo dentro da
burla, do carnaval e do travestimento, a máscara sempre tem, em alguma instância, a intenção
de revelar.
Na história da humanidade, o carnaval sempre constituiu um evento no qual ocorrem
grandes realizações da atitude lúdica. A ação de travestir-se traz, também, o mascaramento e a
máscara, principalmente quando esta ação está ligada ao carnaval - festa que pré-existia à
commedia dell’arte, divulgada pelas companhias e estruturada como gênero de teatro. Se
59
seguirmos a coligação da commedia dell’arte com os rituais a Dionísio, então, chega-se a
conclusiva que o carnaval sempre acompanhou as máscaras dell’arte.
A commedia dell’arte, divulgada pelas companhias nas praças, teatros e cortes, levava
a público máscaras mais refinadas, menos grotescas e selvagens do que aquelas que viviam
nas ruas, montanhas e festas populares da primeira metade da Idade Média e dos rituais da
Roma Antiga. Tudo indica que a mudança foi ocorrendo num processo crescente e,
certamente, nem mesmo a commedia dell’arte feita pela companhia que serviu de base para a
sua constituição como trabalho profissional era igual àquela realizada pelos “Gelosi” e outras
companhias nas cortes reais da França, Itália e outros. Desde que a commedia dell’arte se
profissionalizou e se tornou um gênero teatral, ela foi sofrendo modificações, de um século a
outro, de uma companhia a outra, de um espetáculo a outro, de um diretor a outro, de um
dramaturgo a outro.
Para se ter uma ideia do que eram essas evoluções e variedades de estilos de
commedia dell’arte, basta dar uma rápida olhada nas companhias e escolas presentes na Itália
e França atualmente. Vendo espetáculos com direção de Strehler, Patrick Pezin, Ferruccio
Merisi, Gianfranco di Bosio, Adriano Iurissevich, Jacques Lecoq e outros, ou ainda
espetáculos com atuação e/ou direção de Franca Rame, Claudia Contin ou Dario Fo. Todos se
afirmam como profissionais de commedia dell’arte e penso que é uma questão similar à dos
grupos de manifestações espetaculares populares brasileiras: existe o Cavalo Marinho do
Mestre Biu Alexandre, do Mestre Grimário e outros; na capoeira existe, primeiro, a
subdivisão Angola e Regional, depois vem os estilos, a capoeira do Mestre Alabama, do
Mestre João Grande, do Mestre King Kong e outros; existe o Coco da Selma do Coco, de
Arco Verde e outros; existem tantos grupos de Bumba-meu-Boi (ou Boi-Bumbá) no
Maranhão, no Amazonas e em outros estados ou até mesmo dentro de um mesmo estado; ou
ainda, o exemplo das danças dos Orixás que estão vinculadas ao Candomblé, o qual tem
subdivisões (Ketu, Nagô, Cruzada, Angola) que por sua vez se subdividem em vários
terreiros, cada qual com suas regras, encaminhamentos ou festas. As danças realizadas pelos
Orixás mudam, consideravelmente, de um terreiro para outro e de um seguimento para o
outro. Outro exemplo bem abrangente deste fenômeno de “delimitação sem definição” é o
Samba, que tem em cada estado brasileiro um estilo totalmente diverso e, mesmo dentro de
um só estado como a Bahia, ele ganha diversas “ondulações”, porém, não deixa de ser samba.
As máscaras dell’arte e a própria commedia dell’arte fazem parte deste espaço com
delimitações, mas sem definições. Nem mesmo os italianos, dentro da própria cultura,
elegeram um estilo como “a commedia dell’arte”, deste modo, resta a quem pesquisar, eleger
60
entre os estilos/grupos que a Itália (e França) oferece (oferecem) aquele que mais lhe
convence e agrada. A meu ver, muitas das manifestações espetaculares populares brasileiras,
conforme exemplos citados anteriormente, estão neste mesmo espaço de delimitação sem
definição - é mar aberto, são territórios aquáticos.
Penso que, para entender um pouco dos percursos evolutivos da commedia dell’arte, é
preciso vê-la com um olhar menos focado em um só estilo e pensar que, tal como a dançados
Orixás, o Samba, a Capoeira, o Cavalo Marinho e outras manifestações espetaculares
populares brasileiras, ela também se desdobrou em várias versões de si mesma. Foi
justamente por essas versões, que se tornam repetições, que ela se firmou como gênero, como
“mito” e como tradição – é a repetição e a renovação que fortalece o mito, que ritualiza o
mito, é a repetição/renovação que dá a oportunidade da “continuidade” do DNA imaginal.
Com certeza estes impulsos de repetição do DNA imaginal nas atitudes lúdicas que
pungem a realidade objetiva é que fizeram com que as máscaras dell’arte se propagassem
pelas festas ritualísticas, carnavalescas e no teatro. Ao que tudo indica, “Todos parecem
concordar com o fato de que as máscaras pré-existiam à commedia dell’arte: os comicos as
haviam transferido para o palco, tolhendo-as do mundo diverso, colorido e multiforme do
carnaval (...)”(MOLINARI,1985, p.16)48. Esta transferência de um meio para o outro já
constituiu uma “versão” diversa daquelas máscaras que viviam nas montanhas, ruas, feiras e
festas carnavalescas. A retirada delas do meio carnavalesco e passagem destas para os palcos
fez com que fossem se modificando e perdendo algumas características da vida nas
montanhas e ruas, dentro da festa e do ritual. Mas nem todos os atores, bufões e giullari
tinham a sorte de conseguir um mecenas, patrocinador ou protetor e algumas pequenas
companhias dell’arte continuaram a fazer as máscaras ao modo mais tradicional dos mercados
públicos e pequenas cidades. Foram através destas pequenas companhias que as conexões
destas com o ritual/jogo/festa não se afastaram. Para pesquisadores, este é um fato que não
surpreende, pois muitas manifestações espetaculares populares brasileiras se mantiveram
vivificadas graças a pequenos grupos que seguiram as tradições, mesmo em condições
precárias de manutenção, ou graças a uma pessoa que a(s) manteve sozinha e o incentivo aos
mais jovens na feitura da manifestação - como é o caso do Cavalo Marinho, de alguns
terreiros, do samba de roda, do “Nêgo Fugido” (a qual não entra no grupo das manifestações
que integram esta pesquisa, mas que é um bom exemplo dessa resistência, ou melhor, da
48
Tradução da autora: “Tutti sembrano concordare sul fatto che le maschere preesistevano alla commedia
dell’arte: i comici le avrebbero trasferite sulla scena togliendole dal mondo variopinto e multiforme del
carnevale”.
61
insistência das manifestações espetaculares populares em se manterem ativas).
Este é um pouco o caso da commedia dell’arte feita pela Scuola Sperimentale
dell’Attore, cuja idealização é de Claudia Contin. Pesquisadora detalhista, para estruturar seu
trabalho prático, foi atrás das reincidências das máscaras da commedia dell’arte mais grotesca
e é neste ambiente (ritualístico festivo e carnavalesco) que Contin acredita nas máscaras
dell’arte. Da mesma forma, é através da festa e do carnaval que a conexão destas máscaras
com as manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa se
realiza, se fortalece e cria dinâmicas.
Ao adentrar mais nas questões concernentes à máscara, lembro que, desde o início dos
discursos que tentam desvelar os encaminhamentos desta pesquisa, se afirma que a máscara
constitui uma categoria, podendo ser vista como unidade e totalidade, como um objeto, ícone
e link, indo além da questão estética. Mas esta conclusão de reconhecimento da máscara como
categoria, teve haver com uma colocação de Cesare Molinari, a qual diz que as máscaras
dell’arte sempre suscitaram interesse no que diz respeito ao seu conteúdo, ao que ele
representa e a sua nomenclatura. Isso fez com que, ao longo da história da própria commedia
dell’arte, as máscaras fossem argumento para muita discussão e, segundo Molinari, tudo
indica que os estudos mais prósperos, como também, aventureiros “[...] vêm abandonando o
conceito de personagem e, ainda mais, o de “tipo”, para se referirem às máscaras muito mais
como categorias capazes de sustentar ou de reassumir as diversas realizações concretas”
(MOLINARI, 1985, p.16)49. Apesar de que, para Molinari, esta ainda não é a mais completa
concepção do que é a máscara: seu conteúdo, representação e nomenclatura.
Para esta pesquisa, ver a máscara como categoria reúne nela as qualidades necessárias
para que ela funcione como objeto/link, ícone e portal, pois essa capacidade de reassumir
realizações concretas tem a ver com a metamorfose que a máscara provoca no corpo do ator,
com a conexão deste com uma outra esfera do cosmos, com a tomada do corpo por uma
energia vindoura de uma outra dimensão, mas que também faz parte do ser humano, tem a ver
com o Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum – conforme o filósofo alemão
Immanuel Kant, a “categoria” reúne nela conceitos fundamentais do entendimento puro
(unidade, pluralidade, totalidade), ela legitima as potencialidades cognitivas da razão, é capaz
de representar formas a priori e de constituir os “objetos” do conhecimento, ela aponta
49
Tradução da autora: “[...]sono venuti abbandonando il concetto di personaggio e ancor più di “tipo” per
riferirsi alle maschere piuttosto come categorie capaci di sottenere o di riassumere le diverse realizzazioni
concrete.”.
62
condições de possibilidade apriorísticas50 do conhecimento e da legislação moral, inerentes à
constituição universal do espírito humano. Por tudo isso, a concepção da máscara como
categoria, vem ao encontro daquilo que é o “arquétipo” dentro da commedia dell’arte,
tornando-se termos que auxiliam na compreensão do que é a máscara dentro do universo em
que elas foram engendradas, do universo da commedia dell’arte e como se perpetuam dentro
de uma tradição que é sempre renovada dentro da contemporaneidade51.
Para continuar a desenvolver os transcursos conectivos entre manifestações
espetaculares populares brasileiras e manifestações espetaculares populares italianas, é
preciso conhecer um pouco da história destas máscaras antes de serem transportadas para a
cena.
Como dito, dentro do percurso de avanço na história e evolução das máscaras, o
carnaval é evento de grande importância e, conectado intimamente a ele, está uma máscara
muito integrada a esta festa/filosofia, como também ao ritual e ao jogo, a qual pode até ser
considerada como um ícone do carnaval: o bufão – uma verdadeira concretização dos
princípios material e corporal do carnaval.
Além de permear o carnaval em todas as suas contingências, o bufão possui intensa
conexão com as máscaras dell’arte, principalmente com o Zanni, Arlechinno e Pulccinela.
50
Doutrina (de tendência racionalista, criticista ou fenomenológica) que atribui um papel fundamental a
conceitos e raciocínios a priori. Pode ser vista como uma convicção intelectual a respeito da existência de
conhecimentos, princípios e ideias de natureza a priori.
51
Não convém, aqui, fazer um desvio para entrar nos aspectos estéticos da máscara no teatro, por não ser este o
enfoque escolhido para seguir as conexões rizomáticas da máscara. Toda a “estética” que envolve a máscara e o
teatro não está sendo desconsiderada, contudo, não está no centro do estudo. Certamente que, quando se fala nos
aspectos grotescos, carnavalescos e da transformação/metamorfose do pesquisator pelo objeto/link que é a
máscara, as conexões “tocam” os aspectos estéticos da máscara no teatro, mas tem-se a preferência pela
abordagem “categórica”. E, a meu ver, a categoria, em sua totalidade, engloba a questão de estética da máscara,
mas não a anuncia como instância primeira, mantendo-a presente como mais uma possibilidade de abordagem e
ramificação.
63
2.3. CONEXÕES INUNDADAS: MÁSCARAS, CARNAVAIS E BUFÕES
“Se lembrarmos que, na mitologia, Dionísio é uma divindade arbustiva, pode-se
falar, nesse sentido, de um saber dionisíaco, isto é, um saber enraizado [...] Ele põe
em jogo, de modo global, os cinco sentidos do humano, sem hierarquizá-los [...]
Saber orgânico, ou saber corporal, considerando-se que o corpo era parte integrante
do ato de conhecer e que isso era, igualmente, causa e efeito da constituição do
corpo social em seu conjunto.”
Michel Maffesoli (2008, p.162)
Se o imaginário inunda, devo chamar a atenção para a dificuldade de se encontrar terra
firme e de se obter certezas, mas como já mencionado, esta pesquisa não se move através de
certezas e sim de dúvidas.
Em certos momentos, durante o mergulho, têm-se a impressão de se encontrar
“Venezas”, “Recifes” e, num mergulho mais profundo, até mesmo “Atlântidas”. No meio do
oceano, se descobre que, neste universo líquido, nem mesmo o continente é terra firme: é
miragem, uma imagem criada e projetada, idealizada em convicções – porém, se o ser
humano só existe a partir do imaginário, então, este espaço idealizado em certezas também é
nascente líquida, transborda e escorre igualmente.
Embora remarcado tantas vezes, repete-se mais uma vez: considera-se o Fundo
Comum dos Sonhos como uma condição inerente à existência humana, uma condição que na
verdade é uma aluvião, a qual se mostra impossível a uma verificação fiel dos caminhos
traçados e percorridos. Com isso, esta pesquisa não tentará reduzir tamanha inundação em um
“caminho histórico cronológico” das máscaras à italiana ou das manifestações espetaculares
populares brasileiras (coco, ciranda, maracatu, frevo, caboclinho, xaxado, dança dos Orixás,
cavalo marinho, capoeira, maculelê e samba) e, sim, encontrar um caminho que contenha tais
cronologias ou históricos, deixando em primeiro plano as conexões rizomáticas e líquidas que
constituem a instância primeira desta pesquisa - a “personificação” e materialidade da ação
dinâmica e recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. Com isso,
seria difícil traçar um caminho cronológico histórico, pois rastrear um DNA imaginal que se
ramifica rizomaticamente, engendrando-se nas mais diversas direções e originando
incontáveis atividades lúdicas, se tornaria a construção de um labirinto inapropriado. Assim, é
preferível vislumbrar um dos possíveis traços deste DNA, sem se preocupar demasiadamente
com a cronologia histórica. É claro que as manifestações espetaculares populares, italianas e
brasileiras, foram se materializando ao longo de um caminho cronológico, mas está se dando
prioridade aos genes imaginais, os quais possuem a característica de transgredir o
64
espaço/tempo.
Neste momento, será dedicada atenção às máscaras dell’arte, e o caminho que será
realizado é de uma possibilidade de compreensão das possíveis ramificações de uma ínfima
parte da teia formadora deste imaginário que engendrou as máscaras italianas, a qual foge de
um raciocínio esquemático exato, mas deixa uma possibilidade de vínculo através de uma
“lógica da percepção”, ou seja, guiada pela subjetividade.
A busca de um caminho possível que atravesse a história desde os primórdios, como
assinala Molinari e Taviani, pode ser uma necessidade própria do ser humano em estabelecer
um caminho “mais concreto” dentro do espaço/tempo, de buscar uma “herança” ou uma
referência. A busca para situar-se dentro da imensidão temporal por meio de datas é resultado
do desconforto que representa ficar suspenso num universo sem parâmetros e tais referências
temporais servem, então, para medir a situação/momento em que o ser humano se encontrava
naquele instante da história, como também no momento contemporâneo à investigação. Os
dados históricos, hipoteticamente, marcam períodos de uma jornada, dessa forma, estudando
tais períodos, obtêm-se hipóteses de um passado longínquo e de um possível futuro - o que
ajuda a vislumbrar uma possível perpetuação. É compreensível a ansiedade e curiosidade
pelas datas, mas tentar-se-á fazer este “passeio” nos caminhos flutuantes da subjetividade e
imaginação, nos quais, as datas se tornam “notas” e não texto principal.
Antes de levantar considerações mais pontuais sobre máscaras, carnavais e bufões,
lembro que a máscara, para esta pesquisa, é uma categoria. Ainda a respeito da máscara, não
se trata de um simples objeto, é um objeto/link atuante sobre o ator através da imaginação.
Agindo dentro dessa dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, a
máscara não é um simples elemento do travestimento do ator, ele age em seu corpo inteiro–
característica que, para Taviani, Sérge Martin, Cesare Molinare, Jacques Lecoq, Meyerhold e
Pierre Louis Duchartre, é, sem dúvida, o diferencial da commedia dell’arte.
Esta ação da máscara sobre o corpo, transformando-o, faz com que ele também se
torne uma máscara, porque a máscara/objeto necessita de um corpo diferente do cotidiano
para portá-la, necessita de uma gesticulação e energia em comunhão com ela - é o que Claudia
Contin desenvolveu e trabalha para cada máscara/objeto um corpo e uma gesticulação muito
específicos. Não se trata de cristalizar o corpo em uma postura, mas de habituá-lo a uma nova
“realidade física” a qual é compatível, em termos de caráter e qualidade de movimento, com a
máscara objeto. Quando Contin trabalha a máscara do Pantalone, ela começa ensinando a
máscara física do velho avaro e libidinoso, cuja estrutura corporal apresenta uma corcunda,
com uma tensão para cima, não para trás, quadril levemente projetado para frente, joelhos
65
dobrados e direcionados para fora e pés para fora. Apesar de ser a máscara de um velho,
Pantalone não é um velho frágil e decrépito, pelo contrário, possui uma energia forte e muito
dinâmica, ele é ágil, capaz de dar um salto mortal para pegar uma moeda, antes que ela toque
o chão, mas pode desmaiar e ter um ataque do coração quando alguém lhe cobrar alguma
dívida. A partir deste comentário, mas, principalmente, da prática que tive com essa máscara,
pode-se perceber que a máscara física não impede o ator de realizar nenhum movimento ou
ação, o ator que faz Pantalone deve redescobrir as possibilidades do seu corpo dentro daquela
máscara física: como sentar, como correr, como saltar, fazer acrobacia, tendo a imagem de um
corpo elástico, com uma forma e não com uma “deficiência”, deve fazer tudo como qualquer
outro corpo, sem esquecer-se de manter a forma da máscara física, entre uma acrobacia e
outra e entre (ou durante) uma ação e outra, quando estas lhe permite. Fica muito claro que,
na máscara física, o ator deve desenvolver ainda mais as suas capacidades, não fazendo dela
uma limitação e sim uma possibilidade de exploração.
Todas as pertinências da máscara física ou de corpo todo, como chama Taviani, das
máscaras dell’arte também são concernentes ao bufão. Sérge Martin e Jacques Lecoq afirmam
que ela é uma máscara que comove todos os sistemas orgânicos do corpo. Molinare, Tavani e
Fo também concordam com a visão do bufão como máscara, por tudo o que é pertinente à
máscara, pela ligação com o ritual, com Dionísio, com o travestimento e metamorfose, com a
duplicidade, por tudo aquilo que já foi comentado e que diz respeito à máscara como
categoria e objeto/link. Na medida em que se avança nos discursos, o entendimento do
bufão/máscara será desenvolvido.
Como se deve começar de um ponto, então se investe sobre um nó da rede que se
prolifera incrivelmente – os caminhos da commedia dell’arte, através das suas máscaras,
desde as suas mais remotas procedências. As teorias mais difundidas sobre as possíveis
origens da commedia dell’arte traçam um “fio” desde a Grécia Antiga até o apogeu deste
gênero no Renascimento e daí para o que se tem conhecimento nos dias de hoje. Deve-se
dizer que estas representações trágicas e cômicas que aparecem no séc.V a.C. em Atenas,
Grécia, nas quais está a “base histórica da tradição ocidental” se tratam de formas já maduras
da representação, ou seja, é preciso ir mais além e considerar elos muito mais antigos de
conexões.
Molinari faz um estudo iconográfico embasado em documentos e imagens de vasos e
estampas, confrontando tais fontes e validando as imagens como fontes riquíssimas de
documentação – o mesmo método que posteriormente utilizará para a commedia dell’arte.
Neste estudo, Molinari mostra que, muito antes do evento teatral maduro do séc.V a.C., já
66
existia o elemento teatral (travestimento/mascaramento) nos rituais de cortejo a Dionísio dos
ditos “povos primitivos” (MOLINARI, 2007, p. 03 -18).
Desde os povos mais antigos da Grécia, existia um “personagem”, o Sátiro, que trazia
consigo o principal elemento do teatro: o travestimento. Segundo Molinari, os Sátiros são
máscaras de corpo inteiro, uma forma meio animal, meio gente, criaturas animalescas que
“representam” os antigos espíritos da natureza e faziam parte dos cortejos à Dionisio.
Segundo John Gassner, “Dionísio, criado à imagem do homem, tornou-se o protagonista de
diversas funções da mente primitiva. Era conhecido sob diversos nomes como: o Espírito da
Primavera, o Deus do Renascimento (“O Divino Rapaz” e “Brômio, Aquele do forte grito”), o
Deus Touro ou o Deus Bode e o poder intoxicador da procriação em todas as coisas. Como
deus do vinho, o mais comum de seus títulos, apenas exprimia um aspecto simbólico de sua
divindade energética” (GASSNER, 1974, p.13). O ditirambo era o rito à Dionísio, conforme
Pavis, composto por um coro cujo canto continha características líricas. Lígia Militz da Costa
e Maria Luiza Ritzel Remédios afirmam que, inicialmente, este coro era cantado, somente
com vozes (grupo de coreutas) e depois foi se desenvolvendo com a dança e a música (flauta).
Segundo Gassner, quando o ditirambo evoluiu para além do canto, a dança não era um
simples bailado, era uma espécie de “dança de abandono” ou ainda, como chama Junito de
Souza Brandão, uma “dança vertiginosa” e os realizadores da mesma chegavam ao êxtase e ao
transe. Gassner fala ainda que muitos dos coreutas se travestiam em peles de bode,
representando os Sátiros e ofereciam ao deus Dionísio o sacrifício de um animal (geralmente
o bode). Foi a partir do ditirambo que os primeiros elementos da tragédia se desenvolveram,
quando no séc.VI a.C., segundo Pavis, Simonide de Céos (556-468 a. C.) apresentou não
somente o coro mas também um solista (o corifeu) que dialogava com o coro. Mais tarde,
com Téspis, grande diretor de ditirambos e com as edições de festivais, que teve início com
Pisístrato em 535 a.C., o ditirambo evoluiu ainda mais e passou a contar, não somente sobre
Dionísio, mas também a história de outros deuses e mitos e, posteriormente, temas
“profanos”52 – era a tragédia e a comédia estruturando-se.
Como afirma Gassner, “Tal como seus companheiros no Egito e na Síria, o povo
grego primitivo estava mergulhado na magia e no ritual” (GASSNER, 1974, p.12) e aqueles
que se travestiam em pele de animais representavam outros seres, tão mitológicas quanto
Dionísio, porém, não se trata de deuses, as criaturas meio gente, meio animal, que dançavam
52
Para saber mais, ler: A Tragédia. Estrutura e História, de Lígia Militz da.Costa & Maria Luiza Ritzel
Remédios. O Teatro Grego – Origem e Evolução e Teatro Grego: Tragédia e Comédia, de Junito de Souza
Brandão. Mestres do Teatro, de John Gassner.
67
em “transe”, em contato com uma outra esfera, eram, como já dito, a “representação” dos
Sátiros. Os Sátiros possuem uma forte ligação com Dionísio, segundo uma das variantes do
mito, foram eles que, juntamente com as Ninfas, cuidaram do deua seguindo as ordens de
Zeus.
Segundo J. S. Brandão, os adeptos “[...] do deus do vinho disfarçavam-se em sátiros,
que eram concebidos pela imaginação popular como “homens-bodes” (BRANDÃO, 2007, p.
10). Estes “homens-bodes”, que faziam parte dos coreutas e representavam os Sátiros, foram
seguindo a evolução do coro, na tragédia, nos dramas satíricos, na comédia, tanto nos rituais
religiosos quanto nos teatrais, a imagem dos Sátiros foi pintada às vezes como mitológica,
outras como atores e/ou adoradores do deus do vinho travestidos (MOLINARI, 2007, p.19;
24).
Para esta pesquisa, tanto a vertente mitológica quanto a do travestimento são
possibilidades compatíveis, pois a instância ritualística, da qual as máscaras fazem parte,
comporta todas as duas versões. Tais conexões ritualísticas e miméticas não possuem o
objetivo de descobrir a “origem” de tais manifestações espetaculares, mas sim de considerar
hipóteses sobre um transcurso destas - nada exclui tudo pode ser adicionado e considerado
como possibilidade. Contudo, essa adição e tentativa de compreensão das ramificações e
coligações subjetivas do Fundo Comum dos Sonhos nas “personificações” das máscaras
dell’arte e ligação com as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras pode ser um
bom exercício para a imaginação...
2.3.1 O bufão e algumas conexões
“(...) che le anime nostre tornino in tutte le cose del mondo (...)”53
(GINZBURG, 1976, p.80)
A Grécia Antiga foi, então, a grande “mãe fecunda” da civilização ocidental e suas
engendradas atitudes lúdicas e imaginárias. William Willeford lembra, citando Thelma
Niklaus, que “Em cada probabilidade, todos os mimos, os clowns, os guitti e os comediantes
conhecidos na Europa derivam do Sátiro da antiga comédia grega, gênero que, por sua vez,
provém dos ritos fálicos e das cerimônias em honra a Dionísio” (WILLEFORD, 1998, p.58)54.
53
Tradução da autora: “(...) que as nossas retornem em todas as coisas do mundo.”
Tradução da autora: “Con ogni probalilità tutti i mimi, i clown, i guitti e i commedianti conosciuti in Europa
derivano dal Sátiro dell’antica commedia greca, genere che, a sua volta, risale ai riti fallici e alle cerimonie in
54
68
Nos antigos rituais a Dionísio estariam, então, as “sementes” de várias outras manifestações
espetaculares que fazem parte destas civilizações. Entre elas, as do bufão, uma “máscara” que
em suas vertentes pode desaguar nas máscaras dell’arte, em diversas graduações, como
também, na do clown, conforme assinala Dario Fo (198[-]. p. 15):
Posso remontar a origem do clown, encontrar referência ou reclames, em tempos
antigos na Grécia. No oitavo século antes de Cristo, descobrimos o primeiro
exemplo daquilo que, com bastante fantasia, podemos aceitar como possível
ancestral do clown. Trata-se do “bufão”, que em cima das carroças rodava pela
Grécia Antiga [...] Uma corja de cômicos errantes, cujos descendentes podem talvez
reencontrar-se em certos atores nômades da Magna Grécia e depois nos menestréis e
nos jograis Medievais e ainda nos comici dell’arte do final do Renascimento [...]55.
Com tal afirmação, pode-se considerar que Dario Fo apresenta o bufão como uma
força engendradora, a qual traz em si embriões de muitas outras manifestações e linguagens
cênicas e as quais alimenta, digere e se transforma, ao longo dos tempos.
Como é que o bufão surge, de onde ele se metamorfoseia, qual é a sua possível
“ascendência”? Com tudo o que foi falado sobre as questões que transpassam a máscara, fica
subjetivamente implícito que o bufão também tem muitas conexões com o mito do Dionísio,
com o ditirambo e com os sátiros – a imagem destes homens meio gente, meio animal que
constituíam o ditirambo, fortalece a imaginação do coro de bufões.
Dionísio, esse mito da metamorfose e transformação da terra e do tempo, da semente
em planta e alimento, da morte e da ressurreição, é intensamente conectado com o Bufão, pois
este incorpora tudo o que é pertinente ao mito do deus. O Bufão parece ser a continuidade da
ação dos homens do ditirambo que se travestiam e incorporavam o mito. Porém, conforme a
evolução e com tamanha força criativa, as transformações dentro da parte lúdica e de
travestimento do coro foi acontecendo e não mais somente “homens-bodes” faziam parte dele,
mas outros animais como o touro e o asno e, mais tarde, juntamente com a força carnavalesca,
muitos outros tipos de travestidos faziam parte do cortejo.
Para esta pesquisa, a afirmação de Fo pode ser muito pertinente, já que, o bufão é um
ser em transformação, ou melhor, em metamorfose, o qual poderia se desdobrar em tantos
outros personagens e Máscaras da história do teatro ou multiplicar-se incontavelmente – um
onore di Dioniso”.
55
Tradução da autora: “Le origini del clown possono risalire, trovare riferimento o richiamo, in tempi
lontanissimi nell’antica Grecia. Nell’ottavo secolo avanti Cristo, scopriamo il primo esempio di quello che, con
apprezzabile fantasia, possiamo accettare come possibile progenitore del clown. Si tratta del “buffone” che su
dei carri girava per l’antica Grécia. [...]Una genia di comici erranti, i cui epigioni potranno forse ritrovarsi in
certi attori nomadi della Magna Grecia e poi nei menestrelli e nei giullari del Medioevo e ancora nei comici
dell’arte dell’ultimo Rinascimento [...]”.
69
verdadeiro convite a exercícios imaginais.
Retomando a citação de Dario Fo, na Grécia Antiga, os “cômicos errantes” tinham
como palco de suas manifestações artísticas/lúdicas/ritualísticas: as ruas, feiras e campos
religiosos. Entre estas manifestações ritualísticas estavam os coros de sátiros, os quais,
conforme dito, possuem conexões largas com o bufão e, então, com a commedia dell’arte
através do banquete, do bacanal, do carnaval e do corpo em mutação.
Aqueles que “se faziam” sátiros tinham suas vestes confeccionadas de peles de
animais, chifres e outros adereços, tudo para melhor personificarem estes seres fantásticos –
com estas características, é claro que aquele que se fazia Sátiro era um ser em metamorfose ou
metamorfoseado, travestido e mascarado. Na história, mais adiante, mais especificamente nos
carnavais antigos das montanhas das regiões de Piemonte, Friule e Vêneto, existiu uma
máscara que pode ser conectada, de alguma maneira, ao Sátiro, é a do “uomo selvaggio” - o
primeiro registro desta máscara, que se tem notícia atualmente, foi em 1208, em Padova
(REATO, 1988). No artigo “Arlecchino e L’uomo Selvatico. Rapporto Uomo–Natura in
Antiche Tradizioni Carnavalesche”, Claudia Contin e Ferruccio Merisi (2002) descrevem um
suposto e possível caminho e conexão entre o Arlecchino e as tradições antigas dos carnavais,
passando pelos Sátiros, Sabba, Uomo Selvaggio, Charivari, os bufões e as lendas de
Hellequin – aquele que conduzia as almas dos mortos errantes - até desaguar na Máscara do
Arlecchino.
Lembre-se que a ligação do Sátiro ao Uomo Selvatico e daí para o Bufão e para as
máscaras dell’arte é apenas uma das tantas ramificações e desdobramentos deste universo
imaginário. Segundo a descrição e as imagens desenhadas, os carnavalescos uomini selvaggi
se desdobravam em várias versões, segundo época e região, mas sempre havia uma relação
muito forte com a natureza, às vezes tinham vestes de pele de animais, coroa de loro, bastão
de madeira, se apresentavam com um comportamento que oscilava entre ingênuo e hostil e
tocavam docemente seus instrumentos (a lira ou a flauta) pelas ruas e palcos da cidade.
A coligação entre Dionísio, o coro dos Sátiros, o ditirambo, o coro das tragédias, o
qual, evoluindo juntamente com o teatro, se tornou também parte importante da comédia.
Segundo Brandão, a Comédia Antiga é feita de dois elementos: o “kômos” e a farsa, sendo
que o kômos pode ser profano ou dionisíaco (religioso). O kômos profano deriva de um hábito
das cidades e aldeias de Hélade, em que um grupo de pessoas saía pelas ruas e casas pedindo
doações e zombando dos moradores, para não serem reconhecidos se travestiam em peles de
animais, dessa forma, eles constituíam uma imitação, paródia e sátira dos kômos religioso, o
qual era um ritual em que um falo era carregado pelas ruas em procissão – o falo significava a
70
fertilidade.
Aristóteles afirma que a Comédia Antiga continha muita improvisação e era oriunda
dos cantos fálicos, afirmação esta que não vai contra o kômos e a evolução dos coros dos
Sátiros e a Dionísio, pois os cantos fálicos faziam parte dos rituais de semeadura, de
fertilidade e fertilização da terra. Não obstante, o deus da primavera e da fertilidade é
Dionísio.
Conforme observações realizadas, pode-se perceber que o kômos profano é muito
próximo da farsa e é muito provável que o coro da comédia e, principalmente, o coro dos
bufões sejam oriundos desta via dupla do kômos.
A farsa une os dois kômos, o falo, o ritual, a zombaria, a paródia, a sátira e a
extrapolação da realidade - muito interessante notar que um dos elementos mais obscenos dos
coros da comédia (e, como conseqüência, também dos cortejos carnavalescos), o falo, advém
da parte religiosa do kômos. Esta via dupla entre religioso dionisíaco e profano, zombaria que
o Bufão porta com ele, é o que o torna tão ambivalente, inquietante, metamorfoseante,
transformador, divino e diabólico. A farsa é, sem dúvida, um bom “ambiente” para o bufão se
manifestar. Segundo Pavis, “Graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da
realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a
angústia trágica, sob a máscara e a bufonaria e a “licença poética” (PAVIS, 2005, p.164) será dada mais atenção à farsa quando se adentrar no espetáculo “FATO(S) DO BRASIL”.
Continuando na busca de uma possível estrada conectiva entre o teatro na Grécia
Antiga e o medieval, encontra-se o estudo de Sandra Chacra (1983, p.28), que sinaliza uma
possível via de coligação entre os gêneros trágicos e cômicos e suas respectivas
representações, as quais se moveram da Grécia Antiga em direção a Roma Antiga. A partir da
construção deste caminho, Chacra localiza um pouco mais o possível nicho da commedia
dell’arte, indicando as comédias mascaradas da Roma Antiga, especificamente a comédia
atellana, proveniente do coro grego, como um embrião deste gênero de teatro – esta conexão
já foi assinalada anteriormente, mas se refaz este caminho de modo a procurar mais detalhes
ou possibilidades de compreensão destas ramificações.
Molinari realiza o mesmo caminho, porém, mais detalhado, especificando inclusive a
movimentação e a caracterização dos coros satíricos, a evolução deste coro no ditirambo, na
tragédia e nas três fases da comédia: grega antiga, do meio e nova; até chegar na celebração
dos estilos populares: atellana, fescenino e o mimo. Molinari faz ainda a ligação da comédia
atellana, a qual tinha como núcleo a trama entre as máscaras de um velho (Papus) e de um
servo (Maccus), lembrando as máscaras do servo e do velho da commedia dell’arte (Zanni e
71
Pantallone) e a ligação do mimo com o estilo satírico e com o giullari, conhecido também
como buffone - bufão.
Fazendo um caminho muito interessante para esta pesquisa, Taviani apresenta uma
tradição que era dos bufões e que passou a ser usada pelos comicos dell’arte, a fixação dos
papéis. Deve-se lembrar que se fala da “fixação dos papéis” como nome adotado pelos atores
para serem reconhecidos pelo público, ou seja, eles passavam a adotar na vida quotidiana o
nome da máscara que utilizava na cena, mas, ao que tudo indica, era o próprio público que o
nomeava pelo nome de sua máscara:
A fixação do papel não caracterizava os atores dell’Arte: isso tinha caracterizado e
continuava a caracterizar os bufões, para os quais não existia outro nome, senão
aquele fictício. O nome duplo representa (como a máscara que os comicos tinham
nas mãos) o caráter do ator de profissão, a distância entre a especialização cênica e a
sua personalidade fora da cena (TAVIANI; SCHINO, 2007, p.31).56
A relação entre bufões e comicos dell’arte é bem detalhada e tratada por Tavian. Num
caminho longo, ele mostra que, no decorrer da história teatral, muitos bufões se dirigiram à
Commedia dell’Arte e passaram a endossar uma das máscaras deste teatro e até a integrar
companhias.
É muito difícil compreender e acompanhar as conexões dos coros dos Sátiros até a
Idade Média, pois se trata de uma evolução rizomática que se prolifera em dimensões
variadas. Com esforço pode-se vislumbrar um possível percurso destas atitudes lúdicas e
ritualísticas. Molinari é outro estudioso que relata alguns acontecimentos desta natureza de
relações entre Bufão e Commedia dell’Art (MOLINARI, 2007), levando o leitor através de
um caminho evolutivo das vertentes teatrais.
Tessari, Contin e Merisi, também realizam um caminho de relações e conexões entre
Sátiros, Bufões, Zanni, Charivari, Hellequin e (outras) máscaras dell’Arte. Estes
pesquisadores, porém, fazem o leitor percorrer um caminho mais místico, mágico e
ritualístico.
Certamente que todos os caminhos se conectam ao longo de um percurso, seja de
modo direto e de tradição ou subjetivo e rizomático.
Como assinalado anteriormente, se formos buscar os “antepassados” das máscaras do
Zanni (Maccus) e Pantalone (Pappus), as informações dadas por Dario Fo, Sandra Chacra e
56
Tradução da autora: La fissità del ruolo non caratterizzava gli attori dell’Arte: essa piuttosto aveva
caratterizzato e continuava a caratterizzare i buffoni, per il quale non esisteva altro nome che quello finto. Il
doppio nome rappresenta, cioè, (come la maschera che i comici tengono in mano) il carattere dell’attore di
professione, la distanza tra la sua specializzazione scenica e la sua personalità fuori scena.
72
Molinari são de que, considerando o desenvolvimento evolutivo da commedia dell’arte a
partir destas máscaras, elas seriam tão antigas quanto o próprio teatro (e, consequentemente, a
civilização ocidental), pois células de sua composição já se mostravam nas manifestações
artísticas/lúdicas/ritualísticas da Antiguidade, não somente nas máscaras de Maccus e Pappus,
Bucco e Dossennus, mas também em canovacci que continham o embrião do que seriam os
roteiros da commedia dell’arte.
É claro que, de acordo com documentos, a Commedia dell’Arte só teve registro oficial,
segundo Mário da Silva (1978), Cesare Molinari (1985/2007) e Danilo Reato(1988), no
século XVI, “na data simbólica de 1545” conforme diz Molinari - mas as companhias já
existiam muito tempo antes desta formalidade, e as máscaras já viviam nas ruas, praças e
festas populares. A data do registro é extraída de um documento oficializado em cartório, por
atores que se uniram para constituírem um contrato profissional e assim promoverem a
certeza (oficializada) da existência da primeira companhia de commedia dell’arte. Mas tal
documento é válido como modo de certificação oficializada da história, como algo necessário
para a posteridade. Porém, conforme afirma Molinari (1985, p.10) em suas análises
documentais, a commedia dell’arte possui uma grande riqueza documental que não é literária:
A commedia dell’arte é, talvez, um dos episódios melhor documentados da história
do teatro ocidental, ao contrário do que acreditavam os antigos historiadores, ligados
a um conceito literário do teatro. Para eles, a ausência dos textos escritos tinha,
como consequência inevitável, a impossibilidade de ler ou de reinvocar o fenômeno
teatral, teatro este, do qual o texto não é mais que um elemento e, frequentemente,
nem mesmo o mais importante. Possui imagens: um corpus iconográfico
excepcional, rico e extenso cujo valor documental deve ser, naturalmente,
interpretado e validado singularmente, mas não é, por isso, menos significativo57.
Realmente, o corpus iconográfico da commedia dell’arte é amplo e muito rico.
Observando quadros, vasos e estampas que retratam carnavais e representações mais antigas
que a documentação escrita, em documentos ou textos literários, principalmente da região de
Vêneto, é possível reconhecer as máscaras que integram o núcleo da commedia (Zanni e
Pantalone) e muitas outras variações e derivações destas.
Para esta pesquisa, levando em conta o caminho percorrido pelos sátiros, pode-se
considerar, com toda a certeza, que os coros satíricos, trágicos e cômicos fortaleceram a festa
57
Tradução da Autora: “La commedia dell’arte è forse uno degli episodi meglio documentati della storia del
teatro occidentale, al contrario di quanto credevano i vecchi storici, legati a un concetto letterario del teatro.
Per loro l’assenza di testi scritti comportava, come necessaria conseguenza, l’impossibilità di leggere o di
rievocare il fenomeno teatrale, di cui invece il testo non è che un elemento, spesso neppure il più importante. Ci
sono le immagini: un corpus iconografico eccezionale ricco ed esteso, il cui valore documentario va
naturalmente interpretato e valutato singolarmente, ma non è per questo meno significativo”.
73
carnavalesca e se perpetuaram nela – o mesmo coro que na tragédia acompanha, narra e até
compartilha da experiência trágica, também se oferece num banquete carnavalesco em meio a
gargalhadas e orgias. O drama satírico era apresentado logo após a tragédia, continha o caráter
farsesco e fazia a paródia dos heróis trágicos em situações ridículas e risíveis. O drama
satírico se desenvolveu do ditirambo, misturando o religioso e o profano, como comentado
anteriormente sobre a Comédia Antiga (agón e revista). O drama satírico, nos festivais de
teatro da Antiguidade grega, era a quarta parte do conjunto de peças (as outras três eram
tragédias) que um autor apresentava, onde a comédia era parte obrigatória dos festivais, rir da
tragédia através de uma versão cômica era necessário.
Segundo as narrativas de Molinari, ao descrever a evolução dos coros dos sátiros, da
tragédia e da comédia, percebe-se que os princípios carnavalescos ditados por Bakhtin, como
a grande força do popular, também eram fortes componentes do coro dos sátiros. Muitos são
os documentos iconográficos e, até mesmo, considerados oficiais, que mostram os sátiros com
características grotescas, como numa festa carnavalesca, com grandes ancas, ventres, falos ou
como personagens que se apoderavam da caricatura humana, ou seja, um sátiro que tomava o
homem como personagem a ser feito com grande teor caricatural, tudo muito próximo do coro
dos bufões.
É claro que fica mais acessível realizar a conexão entre sátiros, bufões e as máscaras
dell’arte, se considerarmos o universo da tríade de Huizinga como primeiro espaço abstrato
de conexões entre tais realidades lúdicas. A festa e o carnaval (cortejos festivos) são
ambientes que propiciam e fermentam a atividade lúdica. Na festa carnavalesca, um caldeirão
efervescente do Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, o coro satírico com a
força popular se desdobra em mimos, giullares/bufões e máscaras dell’arte.
Entretanto, para realizar estas conexões é preciso considerar, sem sombra de dúvida, a
existência de duas instâncias, sejam elas dinâmicas e “estados” que se instauram: a primeira é
a dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum; e a segunda é a
festa carnavalesca, a qual aporta a tríade de Huizinga. Somente considerando estas instâncias,
será possível vislumbrar as conexões rizomáticas entre os sátiros, os bufões e as máscaras da
commedia dell’arte.
A partir da constatação da existência destas duas instâncias, leva-se em conta que a
festa carnavalesca foi o grande “fermento” das máscaras à italiana, pode até mesmo não ter
sido o berço, se forem reputados os rituais religiosos como tal. Embora até nestes rituais,
como vimos, pode-se encontrar a festa carnavalesca, já que não se está falando do carnaval tal
como o conhecemos hoje e, sim, de uma força transformadora, um estado de festa/carnaval.
74
Esta força foi o ninho acolhedor e fértil para a propagação imaginal das manifestações lúdicas
personificadas em máscaras.
Sabe-se que, com o passar dos tempos, as estruturas sociais modificam-se, assim
aconteceu com as representações e rituais da Roma Antiga. Os coros ritualísticos dos cortejos
religiosos também se transformaram, como vimos anteriormente, e pode-se, certamente,
encontrar nos “blocos” carnavalescos de hoje uma possível herança ou resistência da
lembrança dos coros bufonescos antigos. É muito importante que fique claro que o coro
bufonesco tem como ascendente o coro satírico, aquele que pertencia ao drama satírico, que
vinha do ditirambo, onde se uniam o religioso e o profano. As características do coro do
drama satírico são as mesmas do coro de bufões, mas ao invés de sátiros, bufões – seus
descendentes.
Através destas possibilidades de conexões, veem-se mais claramente as ramificações
das máscaras dell’arte, não só como meros fenômenos deste gênero de teatro, mas como
síntese de um imaginário que transborda o palco cênico e inunda muito mais além. Durante
algum tempo:
O estudo da commedia dell’arte foi afirmado como distinto ao da máscara (Tessari
1969), e é verdade, mas, somente em se tratando, especificamente, do fenômeno
puramente teatral e, mesmo assim, tendo sempre a certeza que, de certo modo, as
máscaras que permeiam o carnaval, as quais têm seus compostamentos contados nos
livretos populares, são as mesmas da commedia dell’arte e não [somente]
personagens do folclore italiano (MOLINARI,1985, p. 20).58
O que percebo que Molinare está afirmando é que estas máscaras que viviam nos
carnavais não eram um simples folclore, e suas redes conectivas eram coligações muito
antigas, por isso é necessário considerá-las antecedentes ao fenômeno da “commedia
dell’arte” profissional e até mesmo medieval. Como resultante da atividade lúdica de um
imaginário, as máscaras dell’arte não podem ser vistas apenas como personagens do folclore
italiano, pois elas são a síntese de um imaginário, algo muito mais complexo e profundo. A
máscara, como afirma Reato (1988, p. 07), é a:
[...] mistura de verdade e mentira, de sinceridade e ilusão, das origens dificilmente
rastreadas, à sua estréia privilegiada exclusivamente ritualística e, mantém na sua
procedência histórica, o conceito transgressivo que está na base de qualquer forma
58
Tradução da autora: “Si è sostenuto lo studio della commedia dell’arte va tenuto distinto da quello delle
maschere (Tessari 1969), ed è vero, ma solo se si precisa che è del fenomeno puramente teatrale che ci si sta
occupando, e sempre tenendo presente che comunque le maschere che girano per le strade di carnevale, e di cui
si raccontano le gesta negli opuscoli popolari come quelli citati sono proprio quelle della commedia dell’arte, e
non personaggi del folclore italiano”.
75
de mascaramento [...] Ligado à máscara, está o travestimento, elemento obrigatório
da festa popular, o qual celebra nesta forma de renovação das vestes, como observa
Bakhtin, a necessidade do povo de renovar a própria imagem [...]59.
Nestas observações, quando Reato fala da união entre mentira e verdade, ilusão e
sinceridade, ele está reafirmando a função que a imaginação tem de potencializar/valorizar a
realidade - já remarcada por Bachelard. Reato também chama a atenção para o fato de que o
carnaval é um momento de renovação de um povo, uma renovação que se dá através do
travestimento, que também é uma união entre verdade e mentira, realidade/imaginação. É
através da renovação/atualização, que se percebe a necessidade de perpetuação do DNA
imaginal e este encontra, na necessidade de atitude lúdica do ser humano, um campo propício.
Nesta ação de travestir-se, de mascarar-se (dado que a máscara é um travestimento), a
qual Bakhtin aponta como necessidade de um povo de se renovar, é que as máscaras dell’arte
afirmam a sua tradição, uma tradição tão antiga que sempre se renovou e se perpetuou. Nesta
renovação/evolução/perpetuação, após os coros ritualísticos da antiguidade, encontra-se um
herdeiro tão metamorfoseado quanto o coro dos sátiros, o coro de bufões.
É importante reafirmar que a máscara a que se faz referência não se trata somente de
um objeto, mas de todo um corpo, adereços e comportamentos que a mesma suscita, isto é, ela
representa a síntese de uma compreensão de mundo e comportamento, ela aporta outro
universo, quem a veste, deve vestir, também, o seu universo.
Numa visão mais ritualística, a máscara pode ser vista como uma espécie de “portal”
para outra visão de mundo; ela seria o elo que permite a “chegança” do “elemento a mais,
vindo de uma outra esfera da vida corrente”.
Nestes domínios do mascaramento, da imaginação, o bufão é um ser em metamorfose,
em transformação e renovação. Talvez seja por este motivo que haja dificuldade em
vislumbrar o caminho percorrido por esta máscara. Porém, é muito perceptível a “herança”
que ele carrega dos sátiros e do próprio Dionísio, o deus das transformações da terra e do
tempo, da metamorfose, da fertilidade, da vida e da morte. O Bufão traz consigo todos estes
genes através de um DNA imaginal que se manifesta e atua (imaginação) no seu corpo.
A transposição do período anterior ao Medieval para a Idade Média é muito obscura.
Tem-se muito claro o que era a Idade Média, contudo, existem muitos espaços entre estes dois
períodos em que se mantêm uma mestiçagem e uma comunhão. Tanto a Idade Média quanto o
59
Tradução da autora: “[...] mélange di verità e menzogna, di sincerità ed illusione, dalle origini difficilmente
rintracciabili, ha al suo esordio prerogative esclusivamente rituali e mantiene nel suo divenire storico quel
concetto trasgressivo che sta alla base di ogni forma di mascheramento [...] Accanto alla maschera il
travestimento, elemento obbligatorio della festa popolare, celebra in questa forma di rinnovamento dei vestiti,
come osserva Bakhtin, il bisogno del popolo di rinnovare la propria immagine [...].
76
período anterior a esta são períodos muito extensos do tempo de nossa história e muito férteis
em manifestações dos seus pensamentos e modo de viver a vida. Enquanto que o período
anterior ao Medieval é visto como intensamente ligado ao ritual e ao mito, a Idade Média foi
o período em que o misticismo primitivo foi suprimido e os rituais dedicados aos mitos foram
sendo substituídos pelas festas cristãs. Como dito, não é de interesse deste estudo esboçar um
caminho cronológico, mas sim uma possível segmentação e perpetuação de um imaginário
que transborda.
Nestes espaços abscônditos à caminho da Idade Média, os coros, os coreutas e
corifeus se transformaram e se desdobraram, os mimos, os giullari, os bufões, os menestréis e
ciarlatani se desenvolveram, a história foi evoluindo, as atitudes lúdicas foram pungindo a
realidade, o imaginário se alimentando e o DNA imaginal se perpetuando nas mais variadas
formas de manifestações.
Em combinação com os sátiros, desdobrou-se numa outra especialidade, o mimo.
Segundo Molinari, enquanto o sátiro se travestia parecendo um animal, o mimo se
apresentava sem máscara, porém, os dois se utilizavam de todas as capacidades de seu corpo
para se relacionarem com o público que os cercavam. Mas o sátiro também não portava “uma
máscara”, todo o seu travestimento era a sua máscara, como o bufão. Posteriormente, na Idade
Média, todos os atores que não utilizavam máscaras eram reconhecidos como herdeiros
diretos do mimo e chamados de histrioni/histriões, embora essa fosse uma maneira
generalizada de chamar os atores da época. Nos meios mais populares onde as fronteiras
conceituais não existem, os atores que percorriam as ruas, bares e feiras fazendo suas
representações eram chamados de giullari / bufões, menestréis e trovadores, dependendo das
suas especificidades. E é neste meio efervescente e transbordante da Idade Média que é
possível reconhecer a união do mimo e do sátiro.
Segundo Molinari (2007, p.57), o modo de atuação mais difuso no período Medieval
era o giullare, que se tratava de um ator que tinha em si um complexo de funções e possuía
grande jogo com o público:
[...] o giullare não prepara o espetáculo em lugar pré-estabelecido, mas o oferece
[...] Mais ainda, ele entra nas casas, preferencialmente naquelas dos ricos, nas quais,
sobretudo, alegra os banquetes, mas simplesmente, também, a vida quotidiana, se
torna o scurra [palavra que possui a mesma raiz de scurrile: obsceno, vulgar], o
bufão; e até na vida dos burgueses e mesmo dos camponêses, nas ocasiões de
celebrações domesticas, como os matrimônios, batismos ou todos os
acontecimentos, mesmo os fúnebres.60
60
Tradução da autora:“[...]il giullare non allestisce lo spettacolo in luogo determinato, ma lo offre [...] Di più,
egli penetra nelle case, in quelle dei ricchi prevalentemente, di cui soprattutto allieta i banchetti, ma spesso
77
Nestas observações de Cesare Molinari sobre o modo como o giullare se apresentava,
é fácil de perceber que esta figura a que ele se refere tem muita similaridade com o bufão,
como ele mesmo esclarece - “ele se tornava o scurra, o bufão” - mais adiante ele fala um
pouco mais sobre o jogo do giullare (giocco del giullare):
E o ator, o giullare é aquele cuja atividade profissional consiste na distorção da
forma humana e não somente porque ele se traveste de animal ou mulher, mas
porque isso, por si só, comporta a corrupção moral, quer dizer, a hipocrisia e a
bajulação, mas, também, porque ele usa o seu corpo, exibindo-o contra as normas
naturais e sociais (2007, p.58).61
Nesta segunda observação, ficam mais claras as semelhanças do giullare com o coro
satírico e os bufões e o jogo comum dos três com a zombaria, a obscenidade e o
travestimento. A confusão do que é o giullare = jogral, é que se tem a lembrança daquele
jogral após século X, próximo aos trovadores, cujas características eram a declamação de
poesias, canções e músicas. Tal jogral após séc. X é uma das versões da evolução do giullare
= bufão, entretanto, o bufão é um corpo em metamorfose, é a procriação e a fertilidade, ele se
desdobra em muitas manifestações espetaculares populares, ele é a incorporação dos valores
de Dionísio, em todas as suas possibilidades.
Uma outra citação que diz respeito ao Bufão, mas que traz referências da conexão
deste com o Sátiro e do coro satírico, por ter uma visão do corpo máscara e do jogo com a
zombaria, a festa e o divino, é de Martin (2003, p.27):
[...] os corpos são verdadeiras máscaras, a materialização das forças que portamos
em cada um de nós, força das paixões, da violência, dos excessos aos quais somos
capazes. Seres cômicos, primitivos, de natureza divina e animal, divertidos e
fascinantes, mágicos.62
Nesta observação, Sérge Martin descreve um coro de bufões, mas, sem dúvida,
poderia ser a descrição de um coro de sátiros, pois as semelhanças entre a sua descrição e as
de Molinari em relação ao coro de sátiros são perceptíveis. São estas conexões, as quais
anche semplicemente la vita quotidiana, diventa lo scurra, il buffone; e anche in quelle dei borghesi e
addirittura dei contadini, in occasione di celebrazioni domestiche, come matrimoni, i battesimi, o tutti gli
avvenimenti comunque fausti.”
61
Tradução da autora: “E l’attore, il giullare é proprio colui la cui attività professionale consiste nello
stravolgimento della forma umana, e non solo perché esso si traveste da animale o da donna, ciò che di per sé
comporta corruzione morale, cioè ipocrisia e adulazione, ma anche perché egli usa del suo corpo, esibendolo,
contro la norma naturale e sociale.”
62
Tradução da autora: “[...] les corps sont de véritable masques de jeu devirent la matérialisation des forces
que nous portons tous en chacun de nous, des passions, de la violence, de la démesure dont nous sommes
capables. Êtres cosmiques, primitifs, de nature divine et animale, amusants fascinants, magiques.”
78
parecem frágeis e de ínfimas proporções que, ao considerar a tríade de Huizinga e a dinâmica
entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum como situações indispensáveis e
inegáveis, tornam-se intensas e com muita força propulsora, como um reservatório/motor de
uma série de atitudes lúdicas que pungem a realidade objetiva, um DNA imaginal que se
perpetua, se repete e se fortalece.
Molinari chama a atenção para uma característica, que não era uma regra geral, mas
era muito comum. Segundo documentos, era mais costumeiro o giullare fazer seu jogo
sozinho, do que em bando, raramente ele o estava. Sendo que os bufões se desdobraram dos
coros satíricos, pode ser estranho considerar que os coros se desfizeram, que “coreutas” e
“corifeus” se afastaram. Mas se pensarmos que tudo evolui, tal como o corifeu foi uma
separação/evolução dos coreutas, a separação de cada integrante do coro de bufões também
foi uma evolução necessária. Pode-se considerar ainda que esta separação não constitua uma
divisão definitiva, isto é, trata-se de uma estratégia de sobrevivência do bufão. Se parar e
analisar a situação do ponto de vista do bufão, chega-se à conclusão de que sua tática foi
muito sagaz (como é de seu costume). Vindo da classe popular e portador da “cultura da
classe popular” (CAMPORESI,1991), o Bufão sobrevivia da sua arte, ou melhor, ele dependia
de alguém que o mantivesse, uma espécie de mecenas particular, de patrocinador e protetor.
Desse modo, é muito mais difícil alguém se responsabilizar por alimentar, dar moradia e ter
cuidados políticos sobre as ações de um grupo que de uma só pessoa. Era muito difícil para
um rei, duque, conde, príncipe ou quem quer que fosse responsabilizar-se por um grupo de
bufões, os gastos e as preocupações seriam multiplicados, então se chega à conclusão de que,
quando o objetivo era “ser adotado”, a melhor estratégia era apresentar-se só. Porém, quando
o objetivo era ganhar força aliada à diversão, os bufões se juntavam e o bando se formava,
fazendo as festas de loucos, os carnavais, os cortejos macabros.
Por mais que o Bufão se apresentasse só, ele não deixava de articular com a zombaria,
a festa, o escárnio, a escatologia, o grotesco, a sexualidade, o religioso e o profano advindo do
drama satírico e todas as forças que envolvem este universo bufonesco. A solidão do Bufão
dentro da corte era o que protegia os nobres e clérigos de sua força carnavalesca e
antropofágica, certamente, uma corte não poderia arcar com um bando deles sem se
corromper e isso causava um certo desconforto e um medo cauteloso de se deixar levar e ser
alvo da força bufonesca. Por este motivo era muito estratégico da parte do Bufão andar só
para ser “adotado”, ele é o mestre da inversão, da corrupção e da loucura libertadora, quando
um bando ganha espaço, a “folie” do carnaval se estabelece, é como a peste que se instaura, é
impossível segurar ou limitar esta ação, por isso, também era muito estratégico da parte dos
79
mecenas adotar somente um Bufão.
Onde está o coro de bufões, está a festa instaurada, o carnaval acontece, como visto,
neles não se tem a máscara-objeto, pois ela está em todo o corpo, o imaginário o toma para si
e o transforma/metamorfoseia completamente e intensamente. Desta maneira, o
mascaramento do bufão é muito mais visceral e intenso, pois o corpo todo deve ser totalmente
tomado pelo Fundo Poético Comum e assim também deve ser seu contato com o público.
Segundo Molinari (2007, p.59), os giullari tinham três distintas formas de jogo com o
público:
[...] aqueles que transformam e transfiguram seus corpos com gestos e evidências
imorais, desnudando-se ou vestindo máscaras horríveis; aqueles que seguem a corte
dos grandes poderosos dizendo a desonra dos ausentes; e aqueles que cantam para
celebrar os comportamentos dos príncipes e dos santos.63
A partir daí, é possível perceber porque a história dos bufões está tão ligada à da
igreja. Considerando a sua ligação com os sátiros, é possível compreender a que tem com o
divino, com o ritual. Mas há momentos em que, na sociedade, o único refúgio do divino se
torna a religião, assim, nada mais natural que o bufão se infiltre nas instituições religiosas
para tentar manter seu vínculo com o divino. Molinari afirma que “A história dos giullari e
dos atores em geral é, aliás, por todo o medievo e mais além, a história de suas condenações”
(2007, p.56). 64
No baixo Medievo, a igreja católica conseguiu afastar da população os rituais ditos
“primitivos”, substituindo-os por celebrações católicas que, ao longo dos tempos, apagaram
qualquer lembrança de conexão com estes. Também, foi na Idade Média que a igreja se
estruturou como grande instituição e se fortaleceu como um dos pilares do poder social. Os
bufões e toda a sorte de desdobramentos dos coros dos sátiros mantinham as conexões
inerentes a eles com o religioso primitivo e o profano primitivo, mas, sobretudo, como o
bufão é corrosivo às instituições de poder, pela sátira, pela inversão, pela corrupção, ele
aportava prioritariamente o profano em relação à religião institucional. Foram exatamente
estas características que fizeram com que as instituições eclesiásticas se interessassem e se
empenhassem em dizimar estes artistas.
Todavia, para se manterem informados e tornarem a ação dos Bufões e a reação dos
63
Tradução da autora: “[...] quelli che trasformano e trasfigurano i loro corpi con gesti e salti turpi,
denudandosi o vestendo maschere orribili; quelli che seguono le corti dei grandi dicendo cose obbrobriose degli
assenti; e quelli infine che cantano per celebrare le gesta dei principi e dei santi.”
64
Tradução da autora: “La storia dei giullari e degli attori in genere è del resto, per tutto il medievo ed oltre, la
storia della loro condanna.”
80
clérigos conhecidas por toda a instituição eclesiástica e ascortes, fortalecendo a posição
clerical, foram registrados documentos, enviados de uma cidade, região ou país para o outro,
como forma de justificar e proliferar a ação católica de rejeição e dizimação destes artistas.
Dessa maneira, as próprias instituições que os condenaram produziram muitos documentos
sobre a presença de bufões em seu meio. Pode-se fazer uma comparação - muito desigual, é
verdade, mas que permite vislumbrar a preocupação e ação clerical em relação aos bufões dizendo que foi uma espécie de “inquisição” dos bufões. Contudo, mais importante que a
presença destes artistas no meio clerical e nobre, tais documentos mostram a força e o
impacto que o jogo bufonesco/grotesco tinha sobre o público. Por tudo isso, é impossível falar
nos bufões e não citar de suas condenações por parte das instituições vigentes na Idade Média.
Se tomar o seu lema de vida “Dormir, comer e deixar o mundo rodar. E isto representa
a honra do bufão” (MOLINARI, 1985, p.111) 65, já se pode ter uma breve ideia do “por que”
que os bufões eram uma ameaça para as instituições religiosas: para eles a vida era saciar seus
desejos vitais, descansar, comer em todos os sentidos, não só o alimento mas também o sexo,
o vinho, o banquete, a orgia. Para os bufões, o mundo corre como num bloco carnavalesco
que festeja a vida – posteriormente, veremos que “comer, dormir e festejar” também faz parte
do “bem viver” dos Zanni, Arlecchino, Pulccinella e outras máscaras da commedia dell’arte.
Agora é necessário dedicar mais atenção ao Bufão, esta máscara tão instigante que desperta
naqueles que o veem a repulsão, a repugna, o medo, a paixão e a compaixão, o bufão é uma
completa contraposição de sentimentos.
Consequentemente, neste seu lema de vida já encontramos muitos quesitos que
contradizem os das instituições religiosas: falta penitência, trabalho, temor a deus, moralidade
e deveres sociais para com as instituições, por outro lado, sobra prazer.
Segundo Sérge Martin, as principais características do bufão são: um “fiel servidor”,
divertido, imprevisível, malicioso, irônico, sábio, conselheiro, revelador e provocador, cujas
palavras e presença tocam a realidade como um “portal” da verdade, revelando toda e
qualquer “falsa intenção” e desvelando a frágil estrutura da sociedade. Como visto
anteriormente, Molinari assinala um estilo de bufão que se instalou nas instituições religiosas,
era aquele que cantava “para celebrar os comportamentos dos príncipes e dos santos”. Porém,
ao que tudo indica, pelos documentos e citações da presença dos bufões dentro da instituição
clerical, ele não mudou seu aspecto, seu corpo-máscara e hábitos e, assim, com suas
características, seria impossível haver a união da igreja católica e da bufonaria, uma das duas
65
Tradução da autora: “Dormire, magnare e lasciar correre il mondo. E questo rappresenta l’onore del
buffone.”
81
partes teria que sucumbir... Com certeza, não seria o bufão, pois como se sabe “[...] o bufão
nunca cai: ninguém jamais conseguirá culpá-lo ou fazer dele um bode expiatório, pois ele é o
princípio vital e corporal por excelência, um animal que se recusa a pagar pela coletividade
[...]”(PAVIS, 2005, p.35). Nem mesmo a igreja conseguiu exterminar com o Bufão, ela se
tornou, ao longo de sua estruturação, uma instituição de poder baseada no medo, na castração
do prazer e na penitência, porém, ela era conduzida por seres humanos - corruptíveis seres
humanos! Mas, apesar de tudo, a igreja ainda era e é uma forte instituição de poder, então, o
melhor para a sobrevivência de ambos foi o afastamento do Bufão do meio eclesiástico.
Se através da zombaria o bufão revela as “verdadeiras intenções” das convenções e
normas sociais, expondo a fragilidade das mesmas, para aquele que é alvo desta zombaria, o
riso provocador traz consigo a crueldade, pois desnuda o “alvo” e denuncia a verdade oculta.
No caso da igreja, não seria aconselhável para a sua reputação ter um Bufão transitando
livremente em meio aos seus interesses financeiros, vendo os tantos “pecados condenáveis”,
cometidos dentro da própria instituições e declarados como “caça às bruxas”, dízimos, temor
a deus e tantos outros modos de camuflagem dos seus verdadeiros interesses em se “proteger”
e se fortalecer como imagem do poder e de instituição. Os comentários desveladores dos
Bufões seriam “verdade em demasia” para a instituição religiosa.
Um exemplo deste desconforto causado na igreja pela presença de um Bufão é o caso
de Domenico Scandella, conhecido como Menocchio, queimado pelo Santo Ofício em 1601,
na região de Friuli, na Itália. Preciso explicar que estou me referindo a Menocchio como um
Bufão a partir de minha leitura do livro “Il formaggio e i vermo. Il cosmo di un Mugnaio del
‘500”, de Carlo Ginzburg. Ginzburg não nomina Menocchio como Bufão, a única referência a
Bufão que o autor traz está no item “10. Un mugnaio, un pittore, un buffone”. Neste item, o
autor faz referência ao contato que Domenico Scandella teve com o pintor Nicola da Porcia
que, ao que tudo indica, emprestou a Menocchio o livro “Decameron”, do qual este
aproveitou muitos pensamentos e histórias. Segundo Ginzburg, do livro que lhe foi
emprestado, Menocchio se nutriu de temas e assimilou expressões do Bufão Zanpollo,
participante das intrigas do livro, incorporando estas características em seus discursos
(GINZBURG, 1976, p.28). Para esta pesquisadora, ao se apropriar de temas e expressões
bufonescas, Menocchio coloca-se em um posto muito próximo ao do bufão. Tendo uma visão
de toda a sua história, discurso, modo de agir e de como se apropriou das ideias e palavras de
Zampollo, considero que Menocchio pode ter-se servido do jogo bufonesco e, em alguns
momentos, até mesmo, ser visto como um Bufão.
Menocchio foi acusado pela igreja de bruxaria e os populares da região o viam como
82
uma espécie de bufão - até hoje ainda é assim, pois, na região de Friuli, quando visitei a
cidade, as pessoas se referiam a ele como visionário e sábio popular.
Menocchio criou e “proliferou” toda uma visão do universo e do homem, sua alma e
sua relação com o divino. Com uma linguagem simplória, ele afirmava que o corpo do
homem é feito de terra, água, ar e fogo e que todos fazem parte de uma mesma instância
divina, a qual se apresenta em todos. Na morte, o homem retorna para sua origem e, após,
vem ao mundo novamente com outra forma66. Tal qual Menocchio, muitos bufões que
viviam, não nas grandes cidades onde, através da subversão e da sagacidade, conseguiam a
proteção de algum nobre, mas nos pequenos povoados onde ficavam à mercê de uma opressão
maior, de uma justiça que era manipulada pelos clérigos, muitos foram condenados e de
muitos deles não se tem notícias, pois tendencialmente eram propagadores de suas ideias
através da oralidade.
É difícil chegar a linhas definitivas do que foi a Idade Média, segundo Margot
Berthold (2001, p.185), o que a torna tão difícil de ser estudada é a sua dinâmica e a sua
exuberância, definindo-a com certa poesia, afirmando que foi um período que:
Dialoga com Deus e o Diabo, apóia seu paraíso sobre quatro singelos pilares e move
todo o universo com um simples molinete. Carrega a herança da Antigüidade na
bagagem como viático, tem o mimo como companheiro e traz nos pés um rebrilho
do ouro bizantino. Provocou e ignorou as proibições da Igreja e atingiu seu
esplendor sob os arcos abobadados dessa mesma Igreja. [...] Sua dinâmica desafiou a
disciplina das proporções harmoniosas e preferiu a exuberância completa.
Fazer uma moldura do período Medieval implica em um estudo detalhado e longo,
então, na medida em que se adentra o universo bufonesco e das máscaras dell’arte, vai-se
esclarecendo os meandros deste período.
O bufão, apesar de sua condenação, seja por sua aparente loucura, seja pelo esconjuro
religioso, ainda exercia o fascínio nas pessoas. Ele era visto como portador da verdade, já que
tinha a “licença” de falar tudo a todos, sem ser alvo das leis hierárquicas - seu posto de figura
incrédula permitia isto. Com sua aparência metamorfoseada e metamorfoseante, visualmente
moribunda e agonizante, entre vida e morte, o bufão provoca sentimentos de compaixão, pois
o veem como um pobre ser deformado, cujas deformações causam a repugnância. Um ser
inacabado que traz na boca palavras lascivas e provocações amorais, num corpo que
gangrena, mas que pulsa sexualmente. Um corpo deformado, aparentando estar em
66
Este tipo de pensamento em que se vislumbra um espaço onde tudo se encontra e de um retorna sempre à
realidade objetiva, porém renovado, se assemelha muito ao conceito do Fundo Comum dos Sonhos e do DNA
imaginal.
83
putrefação, ou gestação, pênis, seios e ventres inchados, um corpo que vibra sexualmente –
morte e vida, passagens de mundos diversos unidos em metamorfose. Esse é o bufão que
interessa para esta pesquisa, essa é a conexão do DNA imaginal vindouro dos sátiros e da via
dupla dos coros satíricos que se vislumbra.
O poder do discurso do bufão é perceptível, quando um bufão fala é como se o
universo virasse ao avesso, ele herdou a maestria da retórica de sua união com o mimo. Mas a
sua força não estava somente nas palavras, mas também nos afetos que ele comovia com seu
corpo e que acompanhavam, disseminavam-se com estas palavras, como era da tradição do
mimo e do sátiro, um corpo-máscara que se empenha num discurso. Para o Bufão, uma
palavra não é apenas uma palavra, mas é uma comoção de afetos e emanação destes na
atmosfera.
Segundo Molinari (2007, p.59), “[...] a narrativa giullaresca/bufonesca é uma
narrativa com fortes acentuações mímicas, ou melhor, é muito provável que o narrador se
transformasse em “verdadeiro ator” [aspas da autora] a cada vez que o texto proporcionava
isso” 67. Com tal poder de retórica, de teatro e meta-teatro, o bufão coloca o mundo ao avesso
invertendo a ordem estabelecida. Para se lembrar do poder de retórica do bufão, basta se
remeter às tantas peças teatrais que contêm troca de papéis entre bufões e reis. Se o Bufão
percebe que pode tirar proveito da situação, ele subverte a ordem e se coloca na posição do
rei, do duque, enfim, do patrão, daquele que o favorece e, assim, faz promessas de tratar
muito bem seu “empregado”. Taviani e Schino relatam alguns casos desta natureza no livro
“Il segreto della Commedia dell’Arte”, são acontecimentos que sucederam, não somente com
bufões, mas, em sua maioria, com cômicos dell’arte, fatos que não pertenciam às cenas, mas à
vida real.
A utilização perspicaz da retórica era uma grande habilidade dos bufões, dentro e fora
da cena. O uso da mímica, da ironia, da metáfora e do duplo sentido sempre convém aos
discursos dos bufões, pois, com estas estratégias, ele traz tudo aquilo que é cerebral para o
plano físico, de preferência, para o plano do “baixo ventre”, seu reino por excelência.
Os bufões são agressivos por natureza - e chamo a atenção para o fato de que não se
esta falando de uma agressividade no plano físico de combate, mas sim de uma agressividade
moral, no sentido que eles burlam todas as normas da sociedade – eles não são seres imorais,
mas amorais. Com seus grandes órgãos genitais, com seus intestinos e feridas à mostra,
palavrões e obscenidades que se misturam a discursos filosóficos, existenciais e proféticos,
67
Tradução da autora: “[...] la narrazione giullaresca è una narrazione con forti accentuazioni mimiche, ed è
anzi, probabilissimo che il narratore si trasformasse in vero attore ogni qualvolta il testo suggeriva.”
84
suscitam uma reflexão sobre as relações humanas e toda a sociedade.
Segundo Balandier (1980), o bufão zomba e ri de tudo: do poder, da guerra, da fome,
da riqueza, da pobreza, da morte, do Diabo, de Deus e do próprio Homem. Com sua
gargalhada, o bufão exorciza tudo o que lhe poderia amedrontar e assim ele sobrevive a uma
sociedade que lhe rejeita, repele e, ao mesmo tempo, se fascina com tamanha liberdade “Quem ri do inferno pode rir de tudo” (MINOIS, 2000, p. 249) 68.
Com sua gargalhada estarrecedora, com a sua língua lasciva e sua fome de vida, o
bufão não necessita de autorização ou aprovação, ele é “o provocador supremo”, o qual,
segundo Martin, não permite psicologias e mantém interditada a presença de “psicólogos e
psiquiatras”, ele traz a “impunidade da loucura suprema, da loucura universal, da rainha do
mundo” (MARTIN; PEZIN, 2003) 69. É com a força desta loucura universal que o discurso do
bufão acontece - e chama--se a atenção para o fato de que esta também vai de encontro a este
espaço abstrato que é o Fundo Comum dos Sonhos, pois se trata de um lugar onde tudo
acontece sem hierarquia ou peso.
O bufão é um complexo de dinâmicas entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo
Poético Comum, realizadas nas instâncias da tríade jogo-festa-ritual e seu discurso é
impregnado desta loucura universal vociferante e profética, intermediada pela maestria da
retórica herdada do mimo da antiguidade. Este é o bufão que interessa para esta pesquisa, uma
máscara que é a imaginação, que constitui uma grande realização da atitude lúdica. Uma
máscara que contém conexões com o primitivo e o divino, com o que o ser humano tem de
mais elevado e mais grotesco.
No discurso e comportamento do bufão, percebe-se claramente seu estilo de vida
(dormir, comer e deixar o mundo girar) e a filosofia que a festa e o carnaval comportam –
filosofia tão ressaltada por Rabelais como a grande força popular, uma força transformadora e
renovadora, que permite a sobrevivência deste “popular”.
O bufão festeja a vida no sentido mais ritualístico da festa, apesar das feridas,
deformações e “deficiências”, ele apresenta ao público o seu corpo dilacerado, aberto e
exposto para mostrar-se ao ser humano, servindo-lhe de imagem e semelhança, tal como
Dionísio. Um corpo metamorfoseado e prazenteiro que emana e exala (-se em) festa. A sua
presença invoca uma percepção da dualidade do mundo e da vida humana (vida e morte), ele
traz nas suas entranhas e entranças o “princípio da vida material e corporal”, pode-se
considerar até que o bufão foi o grande “gladiador” da força popular. Nele e através dele, a
68
69
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Qui rit de l’enfer peut rire de tout.”
Tradução de Christine Nicole Zonzon .
85
festa se fazia presente, emanava-se e exalava-se, provocando sensação similar, também,
naqueles que o assistiam e se permitiam tal comoção.
O corpo do bufão é corpo travestido e mascarado, no sentido mais ritualístico do
mascaramento, ele é, na verdade, um corpo metamorfoseado pelo Fundo Poético Comum um caminho transcorrido pelo Fundo Comum dos Sonhos para se concretizar em corpo e
perpetuar-se em imagem e energia. É natural que um ser com tamanha conexão com este
espaço abstrato da ação do imaginário, do mundo dos ideais e dos fins superiores da
existência humana, porte para aqueles que o veem algumas ínfimas partículas deste outro
universo. Sendo o bufão tão próximo deste mundo ancestral e em profunda dinâmica com
elementos arcaicos da alma, com seu corpo esfacelado e prazenteiro, ele comove a todos com
uma ancestralidade festiva, seu elo ritualístico.
É preciso dizer que, para o ator que se fizer bufão, a tríade de Huizinga “jogo-festaritual” é condição primordial, tanto quanto a imaginação. Os bufões instauram a festa,
invocam o ritual e jogam com a realidade. Através de sua força, liberam outra consciência – é
a força popular rabelaisiana. Como filosofia, o carnaval e o riso vêm ajudar a decifrar a
realidade e o bufão como instaurador do carnaval e provocador do riso é, na verdade, o grande
sábio da realidade. Com toda sua lascívia, liberdade e festa, o bufão incita todos a lhe
seguirem no seu “bloco carnavalesco”.
O bufão é um complexo de ações internas e externas, grande expoente da força
popular, o qual desenvolveu e fortificou a força cômica e do riso, que “[...] passou a ser a
característica essencial [do popular] [...] que evoluiu fora da esfera oficial, [...] e se distinguiu
pelo seu radicalismo e liberdade excepcionais e pela sua implacável lucidez” (MINOIS, 2000,
p.136)70. Este ser age com maestria também com o riso – uma manifestação que por si só já é
complexa – que é apenas uma das “armas” que o bufão utiliza para vociferar ao mundo, sua
gargalhada de gozo, prazer e loucura ataca e fere aqueles que se põem como seu inimigo ou
opressor.
O riso é uma ação física a qual provoca uma sensação sensível que atravessa a esfera
daquele momento em que acontece, ele também realiza conexões com outras dimensões
abstratas. Tantas são as culturas em que o riso faz parte de rituais de transição, sejam festivos,
fúnebres ou de passagens etárias.
Por tudo isso, na figura do bufão, encontramos uma gama de conexões com estas
70
Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] et devenu la caractéristique essentielle de la culture populaire,
qui a évolué dehors de la sphère officielle [...]e s’est distinguée par son radicalisme et sa liberté exceptionnels,
par son impitoyable lucidité’.”
86
esferas das instâncias superiores da existência humana, que não se pode contestar
radicalmente àqueles que o associam a um Trickster – uma espécie de xamã ou feiticeiro –
pois, de algum modo, ele pode ser reconhecido nesta linhagem de espécies de magos, já que
fazem estas conexões entre universos diferentes e mais uma vez se constata a sua conexão
com o ritual e o divino...71.
Foram por todas estas conexões que o bufão instigou esta pesquisa em sua direção,
impulsionada por um corpo/máscara que transborda e exala-se em jogo-festa-ritual, este
estudo escorregou pelas entranhas/entranças bufonescas e viu-se o quanto era importante para
o caminho prático desta pesquisa, o trabalho com a máscara do bufão.
A partir de tal constatação, começaram os engenhos/engendros em direção à
estruturação de uma técnica para se chegar a um corpo prazenteiro que exala (-se em) festa.
Um corpo que comporta uma ancestralidade festiva e os princípios vital e corporal do
carnaval.
A procura prática para descobrir quais seriam os passos para criar um sistema de
imaginação e “deixar-se habitar” por um bufão foi a questão norteadora deste primeiro
exercício da atitude lúdica que envolve esta pesquisa. Porque, dentro da minha compreensão e
diante da minha necessidade da experiência sensível como princípio ativador da estruturação
do processo criativo, tanto no campo teórico (literal), como na ação para a construção da cena,
percebia a necessidade de um corpo prazenteiro para as máscaras dell’arte. Muitos
espetáculos de commedia dell’arte que assisti, eram corpos que usavam máscaras, mas não
eram corpos travestidos/incorporados pela máscara/mito, e, na minha imaginação, as máscaras
dell’arte necessitavam/necessitam deste lado mítico. Porém, as escolas de commedia dell’arte
não passavam esta “técnica” ritualística, porque, na verdade, o mito se instaura através do rito,
não da técnica. Para o mito se instaurar, ele precisa do rito e da crença, entretanto, a minha
crença cênica necessitava de uma experiência sensível e, como não encontrei isso nas escolas
de commedia dell’arte, fui buscar nas vertentes ritualísticas de minha cultura/convivência. Foi
nas manifestações espetaculares populares que encontrei este corpo prazenteiro, foi na
ritualidade brasileira que encontrei a ancestralidade festiva, e necessitava entender, na
musculatura, como levar isso para as máscaras dell'arte. O bufão era a resposta, sabendo que
ele é um trickster e que tinha conexões diretas com as máscaras dell’arte e vendo os Exús e
71
Aqui, sente-se a necessidade de colocar algumas questões que não serão respondidas nesta tese, pois se trata
de outro desdobramento, mas que serve para alimentar especulações e outras possíveis conexões: Quanto à
ligação com o ritual, o divino, a ancestralidade festiva, não seria esta, também, a função do “ator santo”?
Emanar-se em jogo-festa-ritual até alcançar o público, porém, com muito mais ritual que festa? Não seria esta a
grande questão do “teatro peste”? Provocar no público a febre festiva do transe carnavalesco?
87
Pombogiras como tricksters72, precisava, para alcançar o que queria nas máscaras dell’arte,
passar pelo caminho das pedrinhas miudinhas traçadas pelo bufão. A partir desta constatação
e da consciência de que nas escolas de commedia dell’arte, estas características não eram
trabalhadas, pois é um caminho individual de cada ator, cheguei à conclusão de que eu
deveria acessar as máscaras dell’arte, já com esta carga, pois elas herdam isso do uomo
selvático, dos rituais de fertilidade, dos cortejos macábros, dos Sabba, conforme afirma
Contin (1999) quando fala destas características dentro das máscaras dell’arte. Assim, fez-se
necessário percorrer tal caminho, deixar-se habitar pelo Bufão, para portar sua “aura”
ritualística, xamânica, telúrica e de trickster às máscaras dell’arte. A partir desta constatação,
o transcurso para a técnica do Bufão foi sendo construído, ou melhor, foi sendo descoberto e
deixando-se descobrir.
72
Monique Augras é doutora em psicologia pela Sourbone e professora da PUC-Rio. Autora do livro
“Imaginário da Magia. Magia do Imaginário” (2009), cujo tema interessa a esta pesquisa, nas páginas 45 e 46
chega a conclusiva de que os Exus e Pombogiras, entre os Orixás ou Entidades, assumem, claramente, os papéis
de Tricksters. O Trickster é marginal, possui característias xamânicas, divinas, mas também, festivas,
brincalhonas, enganativas e vingativas. No seu estudo sobre o bufão, Sergè Martin (2003) chega à constatação de
que Bufões e Tricksters são sinônimos, adicionando nesta mesma categoria o Xamã.
88
3. ATITUDES LÚDICAS
“A imaginação constitui um reino autônomo, irredutível a outros modos de
conhecimento. Mais ainda: Ao abrir a via imaginal de percepção do mundo e de nós
mesmos, o reino das imagens nos cria.”
Monique Augras (2009, p. 218)
Após ter realizado o caminho teórico, apresentado as razões pelas quais se considera o
Bufão, não como um personagem, mas como máscara (no seu sentido ritualístico e de
possessão), e porque este se apresenta como parte importantíssima desta tese (pela sua relação
com o ritual dionisíaco e com a commedia dell’arte, que será visto posteriormente) inicia-se o
relato da experiência vivificada em relação à “possessão” do ator pelo Bufão – fazendo
alegoria ao grande teor ritualístico e místico desta Máscara.
Posteriormente, adentrar-se-á nos labirintos traçados pelo Bufão até chegar à
commedia dell’arte, pois tal percurso faz parte do caminho realizado. Porém, primeiro
daremos conta dos encaminhamentos realizados para a construção de um processo de
descoberta, fixação e desenvolvimento do Bufão.
3. 1. O BUFÃO: CORPO-MÁSCARA – UMA DESCOBERTA
“A partir do movimento de um bufão o mundo fica ao inverso. A partir de sua fala,
começa uma grande reflexão. Desde que ele vive, clama pelo riso ou pelo silêncio.
Um bufão come, dorme, respira, simplesmente pulsa, denuncia, transgride, solta
flatos flamejantes, rápidos e certeiros. [...] Seus corpos deformados, estufados de
conhecimentos instintivos nos impõem a lucidez. Talvez a revelação de um mundo
sem deus nem diabo.”
Serge Martin (2003, p. 27)
Sobre a máscara do bufão, num primeiro momento, devo dizer que esta me seduziu,
pois o Bufão não estabelecia nenhum diálogo sensível comigo, isto é, não me atraía como
linguagem, como Máscara ou como poética. Ao longo do tempo em que fui tendo contato
com esta máscara: através do estudo e da prática de outra máscara, a do clown, o Bufão
começou a trabalhar em mim, movendo meus afetos e instigando-me, cada vez mais, a andar
em sua direção e, neste trânsito, me mostrou o caminho para as Máscaras dell’Arte.
89
O bufão agiu em mim da mesma maneira como age naquele espectador que arrisca um
olhar sobre ele, com toda a maestria, fascínio e malícia, revelando sua liberdade, amoralidade
e gama de conexões.
As imagens que se formavam em meus pensamentos, devaneios a partir das leituras
sobre o bufão, o grotesco, o carnaval e todo o complexo cognitivo e conectivo que
compreende o universo bufonesco me comoveram a uma tentativa de descoberta de acesso a
esta máscara.
O imaginário que se constituiu em conexões me incitava a ir de encontro a esta
máscara capaz de suscitar percepções tão dialéticas. Primeiro, vieram as tentativas de
“abocanhar” as imagens, simplesmente pegá-las e colocá-las no meu corpo, uma experiência
que resultou num bufão vazio, ou melhor, não era um bufão, era um corpo carregado de
acessórios, sem força e pleno de pudores – verdadeiramente, não se tratava de um bufão.
A partir das minhas dificuldades, comecei a construir minhas incertezas acerca de uma
técnica e possível acesso ao bufão. De acordo com minhas primeiras tentativas fracassadas,
tinha a certeza de que não conseguiria acessar esta máscara através de um corpo com
enchimentos e falas plenas de palavrões gritados ao vento. Precisava de um impulso interno,
de uma vivência mais marcante e não apenas de uma proposta estética vazia. Necessitava de
uma experiência física, as imagens que se formavam em minha mente deveriam se tornar
imaginação, agindo em meu corpo. E, para tanto, primeiro, eu teria que “habitar” tais
imagens, sentir-me totalmente integrada a elas e depois fazer com que viessem a “habitar”
meu corpo, transformando-o, travestindo-o e metamorfoseando-o, deveria tomar posse e
deixar-me apossar destas imagens.
Com base nestas constatações, a busca pela Máscara do Bufão teve início e uma
prática foi sendo encaminhada. Num primeiro momento, este percurso prático ou
“treinamento” fez parte de uma busca solitária, todo o processo foi experimentado em mim,
em dias e dias de prática individual e isolada e, apesar de ter sido um trabalho difícil, permitiu
uma observação detalhada de mim mesma, fazendo-me compreender que a percepção física é
uma necessidade para meu processo criativo. É como se as energias colocadas em movimento
através dos sistemas muscular, respiratório e nervoso, auxiliassem meu cérebro a processar o
material teórico absorvido através das leituras, como também, a seguir um caminho intuitivo e
sensível.
A imaginação fazia-me devanear e o Fundo Poético Comum fazia a conexão entre
corpo e Fundo Comum dos Sonhos. Esse caminho percorrido solitariamente possibilitou a
90
compreensão das vias sensíveis que poderiam ser utilizadas com maior eficácia num trabalho
posterior, com outros atores.
Neste processo de descoberta da máscara do bufão, o impulso para a transformação e
metamorfose do corpo se dá através da dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e
o Fundo Poético Comum, da mesma forma circular, espiralada e ramificada mencionada
anteriormente. É preciso dizer que tal dinâmica, num processo de descoberta do bufão, é
muito intensa, pois somos um conjunto de “coisas” (órgãos e fluídos), as quais também fazem
parte deste Fundo Poético Comum.
Partindo da dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, para
construir o corpo imaginativo do ator e sabendo que o Bufão também faz uso do
travestimento, utiliza-se, como apoio para este se tornar o corpo do pesquisator, um método
de Jacques Lecoq (1997, p.55), o:
Méthode des transferts, que consiste em se apoiar nas dinâmicas da natureza, nos
gestos de ações dos animais, da matéria, para atingir uma finalidade expressiva, a
fim de jogar melhor com a natureza humana. O objetivo é tocar um nível de
transposição teatral, fora do jogo realista1.
Para Lecoq, o Méthode des transferts possui duas possibilidades de encaminhamentos:
a primeira é através de um caminho direcionado a uma “humanização das coisas”, isto é,
humanizar animais, objetos, árvores, água, enfim, tudo que for da natureza, o ator deve chegar
ao ponto de descobrir na dinâmica do fogo, a voz que vem dele, os sons e as palavras; a
segunda, ao contrário, é deixar “entrar as coisas” no corpo, seja de natureza animal (chifres,
patas, peles, etc), vegetal (galhos, folhas, etc), objetos (cadeiras, panelas...) ou formas
abstratas (enchimentos). A primeira opção parece a descoberta dos elementos e da natureza,
bem como suas dinâmicas, no corpo do pesquisator. Enquanto que a segunda opção é a
integração de “acessórios” (chifres, patas, peles, galhos, folhas, cadeiras, panelas, etc e
enchimentos) ao corpo. Entretanto, para esta pesquisa, a associação ao corpo de seios, falos,
orelhas de burro, asas, barrigas, corcundas e outras deformidades, é realizada de maneira
sensível, na verdade, são acessórios que vêm sublinhar as deformidades realizadas pelo Fundo
Poético Comum, extrapolando a realidade. Tais disformias não são simples materiais e
enchimentos acrescentados ao corpo, são exageros das deformidades já transformadas pela
dinâmica Fundo Comum dos Sonhos/Fundo Poético Comum que, em um processo de
1
Tradução da autora: Méthode des transferts, qui consiste à prendre appui sur les dynamiques de la nature, des
gestes d’action, des animaux, des matières, pour s’en servir à des fins expressives afin de mieux jouer la nature
humaine. L’objective est d’atteindre un niveau de transposition théâtrale, hors du jeu realiste.
91
transformação/metamorfose do corpo, todo o material adicionado ao corpo real torna-se parte
do corpo imaginativo do pesquisator.
Os dois encaminhamentos do Méthode des transferts são eficientes para a criação de
figuras fantásticas, alegóricas e carnavalescas - categoria na qual a máscara do bufão, no
aspecto visual, pode ser identificada.
Para Lecoq, este impulso vindouro da transferência das “coisas” para o corpo traz
consigo uma “emoção dinâmica” e esta, por sua vez, promove percepções sensíveis, as quais
possibilitam a transformação do corpo do pesquisator de um modo não racional. Lecoq (1997,
p.57) chama toda esta dinamização de impressões sensoriais de “emoções dinâmicas” e
explica:
Mas existem coisas que não se movem e, no entanto, podemos, da mesma forma,
reconhecer suas dinâmicas. São as cores, as palavras, as arquiteturas. Nós não
podemos ver a forma ou movimento de uma cor, mas a emoção que nos causa pode
nos colocar em movimento, em movimentação, em comoção [...]. A demanda
mimodinâmica coloca em jogo os ritmos, os espaços e as forças dos objetos imóveis
[...]. Mais que uma tradução, é uma emoção. O termo emoção etimologicamente
significa “colocar em movimento” 2.
Com certeza, o sentido de emoção sublinhado por Lecoq é o mesmo levado em conta
para o trabalho desenvolvido nesta pesquisa, não se tratando de sentimentalismo ou
psicologismo e sim de afetos que movem um corpo, deixando claro que a emoção é da
atmosfera do sensível, chegando a agir de modo subjetivo.
Todo este trabalho de comoção de afetos e transformação do corpo permite a
constituição de alguns circuitos de sistemas de sensações, os quais imprimem seus traços
característicos no próprio corpo transformado. Estes circuitos que se formam na (e com) a
musculatura criam uma espécie de musculatura afetiva, a qual, segundo Artaud, é a
correspondência física dos sentimentos3, carregando nas suas fibras os afetos e comoções que
as transformaram. No caso desta pesquisa, a possibilidade da imagem de formação de
circuitos traz a possibilidade de trabalhar com “correntes de energia”, com ponto de produção,
sustentação e distribuição de energia pelo corpo. Também, uma corrente de energia pode ter
seu percurso modificado - fator importante para a transformação e a composição física do
2
Tradução da autora : Mais il existe des choses qui ne bougent pas e dont nous pouvons cependent reconnâitre
également les dynamiques. Ce sont des couleurs, les mots, les architectures. Nous ne pouvons voir ni la forme, ni
le mouvement d’une couleur, cependent l’emotion qu’elle nous procure peut nous mettre en mouvement, en
mouvance, voire en émouvance! [...] La démarche mimodynamique met em jeu les rythmes, les espaces et les
forces des objets immobiles. [...] Plus que une traduction, c’est une émotion. Le terme émotion signifie
étymologiquement: “mettre em mouvement.
3
Para saber mais sobre musculatura afetiva, ler: O teatro e seu duplo, de Antonin Artaud.
92
corpo do bufão e, posteriormente, para a modificação de células de Manifestações
Espetaculares Populares Brasileiras em máscara física da commedia dell’arte.
Por haver esta possibilidade de deslocamento de pontos de tensão, o princípio de
formação de circuitos também se tornou um dos pressupostos desta pesquisa. Tal processo
auxilia o corpo a encontrar as conexões físicas e energéticas entre as diversas imagens/ações
que se utiliza, sobrepondo circuitos e deslocando alguns pontos específicos, para que seja
realizada a transformação do corpo do pesquisator, mantendo, circulando e misturando a
energia descoberta em cada circuito. A técnica criada para a descoberta da Máscara do Bufão
utiliza a formação e sobreposição de circuitos, para, posteriormente, através das
transformações dos mesmos, o corpo do pesquisator vá se metamorfoseando no corpomáscara do Bufão.
Mas como é a descoberta do corpo do bufão? Como é realizada a construção de
circuitos e como fazer a sobreposições dos mesmos? A descrição a seguir é um relato do
encaminhamento e da técnica construída, não se trata de um diário da prática realizada ou de
ensaios datados, mas sim dos encaminhamentos e avanços em direção à estruturação da
técnica.
Antes de realizar o relato da técnica, é necessário fazer uma observação sobre as
expressões xamã e xamânico, as quais utilizo para fazer referências ao Bufão. Já foram
realizadas reflexões e comentários sobre a ligação do Bufão com o ritual, com a máscara e
com Dionísio e como, através destas conexões, acontece a transferência de características
entre eles. É importante explicar que não se está fazendo alusão ao xamanismo como religião,
as expressões xamã e xamânico são utilizadas para sublinhar a ligação com os fenômenos e
formas da natureza de maneira mítica e mística. Para esta pesquisa, o xamânico é referenciado
como manifestações, ritos e práticas ligadas à natureza e ao plano espiritual, sobrenatural,
energético e místico; e o xamã é o intermediário entre a realidade objetiva e toda esta
dimensão abstrata4. Tomando esta compreensão do xamânico e do xamã, é possível ver os
rituais dionisíacos - com o transe, os travestimentos em animais, as festas rituais relacionadas
às transformações da terra e do tempo - como rituais xamânicos, onde, através destas
conexões, o bufão se torna um Trickster5, um Exu e aquele que o incorpora, como um Xamã
4
Para saber mais sobre a conexão dos xamãs com a natureza e realidades, ler: Passes Mágicos. A sabedoria dos
xamãs do antigo México, de Carlos Castañeda. ; A travessia das Feiticeiras. A jornada iniciática de uma
mulher, de Taisha Abelar; Manual de Antropologia Cultural, de Angel-B Barrio.
5
Estudos específicos sobre Trickster (xamãs das aldeias indígenas da América do Norte e da África) e outros
Xamãs (em Serge Martin e George Balandier com os Pajés, indígenas das aldeias da América do Sul) e a
conexão destes com o Bufão, podem ser encontrados nas obras de Serge Martin em Le Fou Roi des théâtres
93
ou um Pajé. São muitos os estudos sobre o Bufão, nos quais este é referenciado como
demônio, xamã/feiticeiro e/ou trickster6. Como esta tese, de modo subjetivo, tem referências
sensíveis e compreensíveis nas manifestações espetaculares populares brasileiras, para
mergulhar mais profundamente no universo de Dionísio, nas ligações e “personificação” deste
mito na “representação” dos sátiros no ditirambo e nos coros da tragédia, comédia, sátira e,
por fim, nos bufões, esta pesquisatriz buscou, ou melhor, foi levada pelas águas subterrâneas
de Exu - um orixá tão múltiplo e polissêmico quanto o próprio deus Dionísio.
O mergulho desta pesquisatriz nas leituras do universo dionisíaco e a convivência com
os rituais de Candomblé7 e Umbanda8 fez com que os mitos de Dionísio e Exu se
conectassem. Todos estes dados tiveram, ainda, como adicional a este impulso conectivo
imagético, a prática sensível da técnica do Bufão - o que, pelos encaminhamentos escolhidos,
geravam uma conectividade entre os universos de Dionísio, do Bufão e do Exu muito
dinâmica.
Na crença do Candomblé e da Umbanda, o mito do Orixá se faz presente pela
incorporação e o “filho de santo” que o incorpora se torna, naquele momento ritualístico,
parte integrante desta divindade, mas também a própria divindade. Uma relação muito
(2003), Georges Balandier em Le pouvoir sur scènes (2006) e de William Willeford em Il Fool e il suo scettro.
Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e dei giullari (2005).
6
Alguns destes estudos específicos ou com temas relacionados: Le Fou Roi des théâtre, de Serge Martin ; Le
pouvoir sur scènes de George Balandier ; Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e
dei giullari, de William Willeford; Il formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del’500, de Carlo Ginzburg;
La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; Arlecchino e l’uomo selvatico:
rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesche, de Claudia Contin e Ferruccio Merisi; Rustici e
buffoni. Cultura popolare e cultura d’élite fra Medioevo ed età moderna, de Piero Camporesi; La maschera di
Bertoldo. Le metamorfosi dell villano mostruoso e sapiente. Aspetti e forme del Carnevale ai tempi di Giulio
Cesare Croce. La performance dei Mamuthones: tra rito e teatro. Ricerche e documentazione su una delle più
misteriosa tradizione sarde, de Paola Pala; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel
XVI secolo de Daniele Vianello; Il Mondo Secondo Fo. Conversazione con Giuseppina Manin,de Dario Fo;
Il MonDologo di Arlecchino. Spetaccolo comico grotesco per anime perse. Materiali e Riti per la
preparazione e l’uso delle Maschere. Storie tra Commedia dell’Arte e Maschere dell mondo de Claudia
Contin; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico, de Eugenia Casini Ropa; I nomi del mondo. Santi demoni,
folletti e le parole perdute, de Gian Luigi Beccaria.
7
O Candomblé, segundo o pesquisador Dr. José Carlos Pereira, é uma religião afro-brasileira que cultua
deuses/orixás, os quais possuem sentimentos humanos (raiva, ciúme, vaidade, orgulho...) [características também
dos deuses gregos e romanos] e tem seu ritual embalado por tambores (atabaques) e canções em língua africana
(nagô, ioruba). O candomblé chegou ao Brasil junto com os escravos africanos e sofreu muita represália dos
colonizadores portugueses, que os impediam de praticar sua crença, o que os forçou a desenvolver uma
associação entre os santos católicos e os orixás – e foi desse movimento que surgiu o sincretismo religioso
brasileiro.
8
A Umbanda, segundo o Dr. José Carlos Pereira, é uma crença brasileira nascida no Rio de Janeiro em 1920,
resultado da mistura entre os rituais africanos e o espiritismo europeu. Para esta crença, o universo é povoado
por entidades espirituais, as quais se comunicam com os homens através dos médiuns: “iniciados” no ritual
umbandista, que incorporam estas entidades. Na umbanda de Candomblé, as entidades seguem três linhas: Preto
Velho; Caboclo e Exu/Pombajira e a realização dos rituais destas entidades é semanal, já o “batuque”, festa aos
orixás africanos, no qual o ritual segue os encaminhamentos do candomblé, são mais esporádicos e, na Umbanda
espírita, o Caboclo é a entidade que coordena e impera nos rituais.
94
próxima da incorporação do mito nos rituais de Dionísio. Nestes, o mito de Dionísio era
incorporado pelos Sátiros que se tornavam representantes do mito, mas também parte dele,
incorporados por ele.
Dionísio, através desse modo integrativo/interativo/geminativo entre deus e ser
humano, estabelece uma comunicação, ele não é apenas um mensageiro, é o próprio elo
comunicativo destes universos. Segundo a pesquisadora de História e Antiguidade, Maria
Christina de Caldas Freire Rocha (UFRJ e UGF), Dionísio sempre fora um Deus estranho ao
mundo dos deuses olímpicos tradicionais, ele fazia parte dos deuses populares, do campo, da
agricultura e seu culto era praticado fora da cidade, somente mais tarde fora incorporado aos
ritos praticados em Atenas9.
Nos rituais a Dionísio, através da ingestão do vinho, os adeptos chegavam ao estado de
entusiasmo e êxtase e, neste estado, entravam em comunhão com o deus e, consequentemente,
também com sua imortalidade. Segundo Brandão, o homo dionysiacus (integrado em Dioniso)
acreditava, através do processo de ékstasis/êxtase, “sair de si”, o que significa uma superação
da condição humana e implica num mergulho em Dionísio e este no seu adorador: “O homem
simples mortal, [...] “ánthropos”, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade
[...]” (BRANDÃO, 2007, p. 11).
É nesta comunhão de imortalidade/mortalidade que está a principal comunicação
estabelecida por Dionísio entre os seres humanos e os deuses. Trata-se de uma comunicação
entre a esfera do mortal com a esfera do divino, do imortal.
Conforme assinala o antropólogo Jean-Marie Gibbal, Dionísio, deus da videira, do
êxtase,
da
embriaguês,
da
alegria
e
da
comunhão
fusional,
permitia
a
aproximação/comunicação entre deuses e homens e um conhecimento do divino pela
participação. Essa fusão e conhecimento/comunicação aconteciam porque, durante o transe
“báquico” (êxtase e entusiasmo), o possuído se identifica com a personalidade mítica do deus
(GIBBAL apud FÉLIX; GOETTEMS, 1989). Mas, acredita-se que o movimento contrário
também acontece; não sei se seria um conhecimento pela participação, mas sim, um prazer na
ação, pois tanto Gibbal quanto Torrano, Brandão e Rocha sublinham a preferência de Dionísio
pelos prazeres mortais: a festa, o sexo, a comida e o carnaval.
Segundo Jaa Torrano, estudioso da Língua e Literatura Grega (USP) Dionísio sempre
esteve situado nesta zona de “transmutação da forma sensível”, faz parte de sua natureza, pois
se trata de um deus que nasceu duas vezes e teve sua gestação, tanto no ventre da mãe mortal
9
Para saber mais, ler: O Discurso Político no Édipo-Rei de Sófocles, de Maria Christina de Caldas Rocha In
Cultura Grega Clássica.
95
[Sêmele: (segundo nascimento)] como na coxa de seu pai imortal (Zeus). Para o autor, nos
rituais dionisíacos, a imagem sensível da dança “báquica” é a forma fundante e fundada do
deus como unidade do ser divino e do ser humano (TORRANO apud FÉLIX; GOETTEMS,
1989).
Segundo Lígia Militz da Costa e Maria Luiza Ritzel Remédios, Dionísio, nos seus
rituais, é deus, como objeto de sacrifício é homem, sujeito do sacrifício (1988) e, neste ato de
comunhão e comunicação entre deuses e mortais possibilitado por ele, está também o
princípio do carnaval. No ritual dionisíaco, “[...] o homem se sente como deus ao rejeitar
qualquer barreira e inverter os valores tradicionais” (PAVIS, 2005, p.22).
É certo que entre os Orixás, não é somente Exu que possui este tipo de comunicação
com o ser humano fazendo com que este participe da esfera do divino (e vice-versa), porém, é
Exu quem incorpora os prazeres tão caros a Dionísio.
Tanto quanto Dionísio é o deus da ritualidade festiva e do transe, Exu é o Orixá
inebrioso da festa. Dionísio e Exu são vinho e cachaça em ritualidades festivas. Evoé10 e
Laroiê11, saudações de evocações poderosas dentro das mitologias das quais fazem parte,
deuses/orixás da fertilidade e da procriação, ambos possuem o falo como ícone de seu poder e
personificação. Deuses/orixás/divindades próximas, semelhantes aos homens, em alguns de
seus rituais pedem o sacrifício animal, na maioria das vezes, de um bode, figura na qual
ambos possuem muitas representações no imaginário popular que punge a realidade. Tanto
quanto Dionísio, Exu é o “deus” da ambiguidade, ele pode ser vingativo, apaziguador,
sedutor, sensual, sexual, festivo e guerreiro, sombrio e solar, extremamente sério, mas
também brincalhão, irônico e mentiroso.
Como Orixá festivo, pode-se, sem adentrar profundamente às questões das conexões
entre Dionísio e Exu, o que mereceria um estudo à parte, perceber que o Exu possui, até
mesmo por extensão da festa, relações estreitas com o carnaval e, através dos domínios
carnavalescos, uma conectividade ativa e dinâmica com a inversão da ordem e do poder. Isto
o colocaria em conexão direta com o Bufão, tanto quanto com Dionísio, e esta conexão corre
pelos lençóis subterrâneos que interessam à presente pesquisa.
Nos ritos iniciais das festas de Candomblé, na ordem das oferendas, Exu é o primeiro.
Como também, na ordem dos cantos de saudação aos orixás, a música do Exu é a primeira a
ser tocada. Nos rituais festivos dos outros orixás, no candomblé Nagô, o Exu dificilmente
participa, ou melhor, é incorporado. Porém, no terreiro, ele tem a sua representação, o seu
10
11
Saudação a Baco – deus da mitologia Romana, correspondente a Dionísio na mitologia grega.
Saudação ao Orixá Exu.
96
“altar” e todos os filhos de Santo devem saudar o tambor e fazer reverência a ele, isto porque
Exu é o orixá responsável pela comunicação entre os deuses e os homens, tal qual Dionísio,
na mitologia grega. Exu é o “deus” que abre e fecha os caminhos do homem e as ruas,
encruzilhadas e cemitérios fazem parte de seus domínios12. Como dito anteriormente, as
relações entre Dionísio, Sátiro e Exu Orixá e Exu dos terreiros é muito semelhante. Os Sátiros
que faziam parte do ditirambo eram os “herdeiros” diretos e, ao mesmo tempo, representantes
de Dionísio, eram seres travestidos com o mito. Assim, os Exus que “descem” nos terreiros
são os representantes de Exu, seres travestidos com o orixá/mito; por conseguinte, tanto os
sátiros do ditirambo quanto os Exus dos terreiros possuem a conexão intensa com a tríade de
Huizinga jogo-festa-ritual e muitos ainda trazem elementos imagéticos (quando representados
em imagens desenhadas ou em esculturas) em imaginação do mundo animal, carnavalesco e
festivo.
É importante dizer que não se trata de uma correspondência entre Dionísio e Exu. O
que aconteceu é que, para compreender melhor o mundo de Dionísio (representações,
incorporações, mito e as heranças em um DNA imaginal), adentrei em uma experiência mais
próxima da minha vivência - um ritual vivaz que continua a se desenvolver. Certamente que o
universo do Candomblé e do Exu são estudos à parte e as considerações levantadas aqui são
bastante resumidas, embora isso não queira dizer que sejam superficiais. Aqui estão expostas
apenas as conexões mais rápidas de se estabelecer, mas pode-se perceber que há outras
extensas e penetrantes, as quais fazem parte de uma imensa rede conectiva que se alastra em
muitas direções. Como dito anteriormente, este é um modo de mostrar um vislumbre de uma
das ramificações do imenso rizoma formador desta pesquisa, o qual se conecta através de
dados subjetivos e de um sistema de imaginação. No momento, por tudo o que já foi
comentado sobre o deslocamento do foco central desta pesquisa, deixa-se aberturas para
outros novos e intensos estudos e relatam-se apenas as conexões primordiais, aquelas que, em
uma primeira instância, comoveram esta pesquisatriz, como dado e imaginação.
Foi muito importante para a compreensão das ambiguidades que fazem parte de
Dionísio e que descendem ao Bufão através dos Sátiros, a observação e a frequência nos
terreiros de Candomblé e Umbanda, nas festas dos Orixás, inclusive as de Exu. Através da
12
Para saber mais sobre Candomblé, ler: Irê Ayó. Mitos Afro-brasileiros, de Carlos Petrovich e Vanda
Machado; Òrun Àiyé. O encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yoruba entre o céu e
a terra, de José Beniste; Sincretismo Religioso & Ritos Sacrificiais. Influências das religiões afro no
catolicismo popular brasileiro, de José Carlos Pereira.
97
leitura de estudos sobre o universo dionisíaco, bufonesco e das religiões afro-brasileiras e,
principalmente, da prática do Bufão através da técnica criada, da frequência nestes rituais e
visitas a médiuns, filhos e pais de santo, bem como a visita a “curandeiros” ou xamãs, é que
foi possível perceber, mais profundamente e sensivelmente, as transformações do corpo a
partir das relações com os elementos da natureza e com a atmosfera espiritual e transcendente
do ser humano.
O conjunto informativo da prática, da teoria e da frequência nos rituais de candomblé
e umbanda propiciou a percepção sensorial e teórica das conectividades entre Dionísio e Exu,
seus respectivos rituais e relações com aqueles que os incorporam, um de maneira imaginária
e outro de modo vivencial – experiências que, nesta pesquisatriz, mantêm um diálogo
recíproco e dinâmico.
O Bufão conecta-se ao Exu (sob o olhar desta pesquisatriz) através dos mesmos
sistemas que o ligam a Dionísio – são conectividades que extrapolam o espaço/tempo, as
relações culturais e as barreiras territoriais. Além disso, são conexões, incorporações
realizadas através de um DNA imaginal, onde a conectividade incorporativa acontece de
maneira singular e plural, ele é o mito incorporado e faz parte do mito que incorpora – o
indivíduo é ele mesmo, é ele no mito e é ele com o mito (ambiguidade inerente, também, à
máscara). O mergulho nos universos de ambos os mitos, deus e orixá, serviu não só para a
compreensão dos universos conectados, mas para melhorar os encaminhamentos da prática da
técnica criada, pois a experiência de vivenciar, presenciar e compreender sensivelmente as
transformações do corpo quando este entra em contato com a esfera espiritual, energética ou
elementar, agiu de forma adicional e complementar.
Devo dizer, ainda, que a maioria das considerações desenvolvidas até agora dizem
respeito à questão “espiritual”, no sentido ritualístico e xamânico e se debruça sobre o lado
mítico e místico da máscara bufonesca, zanesca e outras máscaras dell’arte. Mas, ainda assim,
buscando a compreensão através da dinâmica entre a tríade de Huizinga, DNA imaginal e
sistema de imaginação entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. Com isso,
convém dizer que não se está fazendo afirmação de um caminho desenvolvido pelo ator
profissional, aqui se está buscando entender como um imaginário, insistentemente, punge a
realidade objetiva e vai-se perpetuando, mesmo se modificado, ou melhor, renovado. Esta
insistência rizomática das atitudes lúdicas em pungir a realidade fez com que alguns de seus
tubérculos fossem para o ritual, outros para os jogos, outros para um caminho mercadológico.
O caminho das máscaras que povoavam os rituais de fertilidade ou bacanais pela Antiguidade
e Idade Média e que, posteriormente, continuaram a viver nas montanhas, nas festas e danças
98
macabras13, nos carnavais, também se desdobraram em um caminho “mercadológico”.
Segundo Testaverde (2003), o caminho das máscaras dell’arte é nebuloso e se subdivide em
profissional e ritualístico. Em alguns momentos, o profissional e o ritualístico chegam a se
cruzar, em outros, figuram tão longe um do outro que parecem compreender caminhos
totalmente diversos. Mas esta dificuldade em descobrir como estes caminhos se encontram e
codividem um mesmo contexto, faz parte do grande fascínio da commedia dell’arte.
Pode-se tentar entender como uma estratégia da atitude lúdica, na qual o DNA
imaginal insistentemente punge a realidade com uma necessidade de perpetuar-se e tornar-se
representante deste imaginário. Num primeiro momento como imaginário e depois se
fortalecendo e tornando-se mito, como artigo mercadológico, mais uma vez citando
Testaverde, o Zanni arquétipo mostrou-se um grande empresário de si mesmo. Com o tempo,
o ator começou a profissionalizar-se e tornou-se comico de profissão, posteriormente, não
permaneceu somente como profissional da cena, mas, também, como profissionalizante - as
companhias se formaram dando continuidade às máscaras, ensinando o ofício cômico e as
máscaras dell’arte. Considero a hipótese de que a máscara dell’arte inseriu-se no mercado e
este se aproveitou desta manifestação da atitude lúdica, a qual agradava e divertia e criou as
suas estratégias de desenvolvimento e sobrevivência (modo como tantos outros mercados e
manifestações da atitude lúdica se relacionam/funcionam). A organização pelo viés
mercadológico não renuncia ao lado mítico e místico da máscara, mas também não o coloca à
frente de tudo. Certamente que, depois que subiram aos palcos, as máscaras não eram (e nem
são) mais as mesmas. Porém, o que se está tentando entender é como esta máscara feita por
um comico profissional pode trazer consigo uma forte emanação energética festiva-ritualística
através de uma compreensão de suas conexões com este universo imaterial e sensorial e da
busca desta através de circuitos musculares. Para este estudo, a profissionalização do ator faz
parte do caminho realizado pela máscara e pelo DNA imaginal para perpetuar-se e será
desenvolvida na medida em que avançarmos no discurso.
Dadas as observações e explicações realizadas, retorno aos encaminhamentos da
técnica desenvolvida para a Máscara do Bufão.
13
Nas iconografias estudadas e pesquisas sobre commedia dell’arte, as danças macabras não possuem nomes
diferenciais, elas são intituladas “danze macabre”. Algumas dessas iconografias e seus respectivos títulos podem
ser vistos em: La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; Zanni Mercenario
della Piazza Europe, de Anna Maria Testaverde; La Commedia dell’Arte au XVI siècle, en 1601... et en 1981.
Le Recueil Fossard. Compositions de Rhétorique , de Pierre-Louis Duchartre.
99
A atenção ao trabalho sensível de descoberta do Bufão começa durante o aquecimento,
o qual é direcionado para a autopercepção e produção de imagens internas a partir desta
percepção. O alongamento não possui nenhum exercício diferente daqueles que se fazem
habitualmente para alongar a musculatura: uma série de movimentos cujo objetivo é preparar
o corpo, deixando-o pronto para exercícios mais dinâmicos ou que requeiram maior
desenvoltura e empenho da musculatura. O que constitui a diferença significativa deste
momento da prática é o modo como este alongamento é realizado.
A necessidade de concentração é indiscutível, aproveitando o momento para trazer a
percepção para o corpo, especificamente para os ossos e para a musculatura. Cada movimento
deve conter uma compreensão imagética da sua organização enquanto esqueleto e enquanto
musculatura, sentindo a união do osso com o músculo, cartilagens, fluídos, o esforço
empenhado e o movimento. Porém, neste momento, a percepção ainda é técnica, busca a
execução correta dos movimentos, pois é importante que o corpo seja bem preparado.
Em seguida, passa-se à execução de movimentos mais livres, isto é, sem a atenção
específica ao alongamento, mas aos ossos, cartilagens e fibras musculares, percebendo como
se contraem e distendem-se na realização do movimento. Como se o ator adentrasse no
universo/imagem de sua musculatura e estrutura óssea - neste momento, o corpo deve ser
explorado, buscando sempre novas constatações de dinâmicas intramusculares. A partir daí, o
corpo atinge uma dinâmica corporal de movimentos sem racionalizar, o corpo comove-se com
a percepção e a imagem desta musculatura e estrutura em movimento.
Tendo como base a movimentação da “estrutura” corporal, inicia-se a exploração e o
adentrar das imagens/dinâmicas dos quatro elementos: terra, água, ar e fogo - trazendo as
imagens/força/energia destes para habitar a musculatura e estrutura do corpo do pesquisator.
Essa etapa é muito importante, pois como os bufões têm forte elo com a ritualidade, esta
interação e integração com os quatro elementos são de extrema importância para,
posteriormente, após passar por todas as outras etapas, retornar a esta força ritualística
elementar e xamânica.
Após a etapa do alongamento e a movimentação da “estrutura” corporal, exploração e
“habitação” das imagens/dinâmicas da terra, água, ar e fogo, é imprescindível que o
pesquisator traga para seu corpo os quatro elementos, com todas as suas dinâmicas, força,
sons e densidades. Após passar pelos quatro elementos, sempre partindo da estrutura corporal
e pensando fisicamente, a partir da dinâmica recíproca dos fatores, começa-se a exploração
conjunta das imagens dos sistemas que constituem o corpo. Num primeiro momento, são
explorados somente os sistemas respiratório e sanguíneo. O pesquisator explora as imagens
100
de um corpo muscular cujas fibras são permeadas por tais sistemas e eles, por si só, já
possuem uma movimentação própria. Este processo de imagem, percepção e ação acontece de
maneira dinâmica e recíproca, em que tais fatores se alimentam e se desenvolvem comovendo
e transformando o corpo de modo sensível, físico e energético.
Após a exploração sensível da musculatura com os sistemas respiratório e sanguíneo,
passa-se à adição dos sistemas digestivo e intestinal. Como o corpo já passou pela dinâmica
intramuscular anterior, agora a percepção volta-se para os volumes internos do corpo e
metabolismo. É a percepção/imagem deste conjunto de órgãos, tecidos, “massas” e “fluídos”
em movimento, que, nesta etapa, comovem o corpo.
A percepção destes volumes internos em movimento adiciona uma nova dinâmica ao
corpo e, também nesta fase, este continua a transformar-se.
O que me levou para este caminho de observação e percepção sensível destes
movimentos e volumes internos foi uma tentativa de entender o “baixo ventre”, tão citado por
Backthin como valor pertencente à “filosofia carnavalesca”, através de uma compreensão
física, de uma percepção dilatada desta parte do corpo e buscando a imagem e ação desta
sobre o corpo, como impulso de transformação deste, bem como, da impulsão da ação deste
no espaço e, posteriormente, em relação com o outro.
A imagem e percepção de minhas vísceras - dos sistemas sanguíneo, respiratório,
nervoso e todo o metabolismo digestivo - forneceram um bom material para o início do
processo. Mas é necessário dizer que não basta somente a imagem destes volumes internos e
sistemas como se vê nos livros, ou seja, como fotografias, sem movimentos, é preciso que a
imaginação trabalhe a partir das sensações, percepções e da imagem destes sistemas em pleno
funcionamento – também aqui o corpo é transformado e a musculatura começa descobrir a
constituição dos circuitos.
Passando por todas estas dinâmicas de constituição do corpo, vamos à etapa de
incorporação de mais dinâmicas, buscando outros apoios imagéticos, físicos e energéticos
para a transformação do corpo. Passa-se a uma metamorfose do corpo através de imagens de
animais, dos mais belos e delicados aos mais grosseiros, asquerosos e nojentos. É preciso
experenciar uma gama de imagens e transformações do corpo de modo que este seja inundado
pelo mundo animal e seus instintos – o pesquisator trabalha transformando o seu corpo em
vários animais: mamífero, ave, anfíbio, roedor, réptil, inseto e verme – os animais são
escolhidos no ato do laboratório, sem pré-concepção. É importante dizer que, nesta pesquisa,
não se tem o intuito de fazer a mímesis perfeita dos animais, o que interessa é a capacidade do
pesquisator de se deixar habitar pelo instinto, energia, corpo e voz do animal. Para tanto, nos
101
laboratórios, se explora todas as situações de sobrevivência como a fome, a caça, a
proliferação, o medo, ele como predador, ele como presa, passando pelas experiências físicas
instintivas sem se preocupar com a mímesis, mas sim com a veracidade das ações, energias e
situações. Também é muito importante que o pesquisator tenha consciência do circuito
muscular/energético que se forma a cada transformação do seu corpo em um novo animal.
Posterior à etapa dos circuitos corporais individuais dos animais, começa-se, então, a
sobreposição de circuitos, buscando realizar a combinação de partes diversas dos circuitos dos
animais e das dinâmicas dos sistemas. Este processo é demorado, pois é o próprio corpo que,
num processo que busca não racionalizar, realiza várias combinações até que, através das
inúmeras tentativas e encontros, compõe um único corpo e um único grande circuito, feito da
conjunção e das transformações de pontos de tensões para aquele eleito.
Esta descoberta-composição se dá de maneira crescente. Inicia-se com a sobreposição
de apenas dois circuitos animais e a cada dia se adiciona outro, até que todos estejam no
corpo, é a dinâmica de combinações, alternâncias e sobreposições, através da repetição casual
das mesmas combinações de circuitos, que compõem, assim, o corpo do Bufão. Quando este
corpo já está firmemente transformado, passa-se outra vez pelas dinâmicas dos elementos e
sistemas, para sentir, com este novo corpo, as sensações dos sistemas em funcionamento, os
fluídos e movimentos das vísceras e órgãos/hormônios/instintos sexuais e as dinâmicas do
fogo, do ar, da água e da terra.
O resultado do reencontro com este novo corpo latente é de uma intensidade grotesca
e vital, infinitamente maior daquela encontrada antes, pois vem acrescido dos instintos, da
dinâmica de movimentação dos sistemas que permitem a nutrição, digestão, deglutição e
sobrevivência do ser humano e está somada à ligação com o mundo animal. Com tudo isso, a
conexão com os quatro elementos ganha a força e dimensão destes.
Com este corpo e energia, passa-se ao trabalho com o Carnaval, a festa e o ritual.
Fazendo com que o corpo grotesco seja portador das partículas grotescas-festivas-ritualísticas
de um Carnaval além tempo e espaço atuais. É através da vivência carnavalesca que os
“princípios moral e vital” intensificam-se e disseminam-se, não só no corpo e voz do bufão,
mas também através destes, pelo espaço, como a ancestralidade festiva.
Após a construção corpórea energética do bufão, começa-se, então, a intensificação
das deformidades físicas que surgiram durante a descoberta. Através do Méthode des
transferts, adiciona-se ao corpo do pesquisator alguns apoios concretos para intensificar os
aspectos grotescos que já foram adquiridos no processo de metamorfose anterior. Trata-se da
adição de “aparelhos cênicos” que possam auxiliar no travestimento, como corcundas,
102
barrigas, falos, patas, peles, cascas de árvore, peitos, maquiagens, trapos e roupas. Tudo deve
ter sido sugerido pelo próprio corpo metamorfoseado, nada pode ser colocado por simples
função estética, para que não se torne uma espécie de prótese, um acessório acoplado ao corpo
do ator e não uma parte do corpo bufonesco do ator. O corpo bufonesco, apesar de ter
acessórios como falos, seios, intestinos, elementos animais e vegetais, deve ter uma unidade,
isto é, tudo forma um só conjunto, nada pode parecer um objeto colocado na roupa. O
pesquisator deve saber movimentar-se como se tudo fosse seu corpo e manipular qualquer
acessório como parte dele, como faz com seus braços, pernas, dedos, cabeça, seios, etc.
Após a transformação, o resultado obtido com esta técnica são bufões que se
assemelham aos personagens pintados por Hieronymus Bosh, uma mescla entre humano,
animal e vegetal.
A indumentária completa do bufão cobre quase todo o corpo do pesquisator, é
composta de acessórios, vestimentas e maquiagem que jamais exploram a sensualidade, mas o
obsceno, a sexualidade, o instinto, a sátira e o farsesco. Com sua aparência grotesca, o bufão
incita no público instintos contraditórios, tanto sexuais, por invadir o espaço com sua própria
energia sexual, quanto de piedade, temor, medo, alegria e asco.
Deve-se sublinhar que todo o trabalho de “metamorfose” do corpo traz consigo a voz,
pois há um encaminhamento conjunto, de maneira uníssona. Da mesma forma que a
percepção e a movimentação dos afetos internos (imagens, sensações e dinâmicas destas)
transformam o externo (corpo), a voz também sofre alteração, sendo ela também um reflexo e
resultado da ação da comoção destes fatores.
O impulso trazido pelo Fundo Poético Comum concede um grande poder à palavra,
pois esta vem carregada de uma potência concreta. A palavra não é somente a ação de falar,
mas uma reação e extensão de toda a movimentação e comoção interna. A palavra, tal qual o
corpo, emerge da ação da dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético
Comum, portando consigo ondas propagadoras dessa dinâmica que, carregada de sentimentos
afetados, causa assim uma afetação ao chegar ao ouvinte/espectador.
Depois da descoberta e da prática para uma “fixação” na musculatura das dinâmicas
do Bufão, é iniciado o trabalho com o manejo das linguagens que se fundem a esta Máscara paródia, derrisão, crueldade, injúria, loucura, desmedida, escárnio, simulacro, sátira,
gratuidade, deboche, chiste, carnaval, banquete, escatologia, sexualidade e a relação com o
poder, tudo isto através do jogo cômico e do riso. Sérge Martin afirma que, para o
desenvolvimento do manuseio de tais linguagens, é preciso considerar como ponto de partida
103
uma complexa rede de conexões que se baseiam na ideia de que o jogo do bufão traz uma
equivalência entre Jogo e Sagrado.
Para melhor compreensão do universo bufonesco, Martin criou uma série de imagens
gráficas, em que mostra os diversos vetores que dinamizam tal universo, partindo da premissa
de que existem duas instâncias de primeiro grau em sua complexidade: o Jogo e o Sagrado14.
A partir do Jogo e do Sagrado, Martin desenvolve reflexões sobre tal complexidade de
conexões. Mostrando que estas duas instâncias superiores desenvolvem-se como se fossem
opostas e equivalentes. Como se caminhassem de modo unificado e, ao mesmo tempo,
independente, onde cada qual tem seu conjunto de valores e fatores, que convive como
“oposto complementar de equivalência”.
Também, a partir do Jogo e do Sagrado, outras linguagens se desdobram: “O Jogo se
divide em duas capacidades: capacidade de imitação e capacidade de gratuidade - numa
relação horizontal. Com o Sagrado é a mesma coisa: capacidade de violência e capacidade de
seriedade – numa relação vertical, em direção ao céu ou às profundezas da terra”15. Estes
vetores conectam- se e desdobram- se em outros vetores - Jogo: Imitação; Gratuidade; Paródia
e Metáfora; Sagrado: Violência; Seriedade (a Seriedade pode ser compreendida como Razão);
Desmedida e Sabedoria.
Cada fator trabalha com sua oposição horizontal e em espelho à correspondência
vertical de sua própria natureza. Para melhor compreensão, ver imagens gráficas em ANEXO
A16.
Desta experiência solitária de construção da técnica de descoberta do bufão e de
desenvolvimento das dinâmicas sensíveis e das linguagens deste “universo”, surgiram
algumas cenas, das quais se falará mais adiante, pois não se concretizaram em um espetáculo,
14
Vale grifar que estas duas instâncias instituídas por Martin estão intimamente ligadas à tríade de Huizinga.
Também vale lembrar que o Jogo, no caso do Bufão, faz parte da realidade em que ele vive, não da realidade
como compartilhamento social e o Sagrado é, na verdade, o ritualístico, o Divino em Dionísio, não é o sagrado
em relação a igreja. Para esta pesquisatriz, o Sagrado chama um contrário, que é o Profano, colocando-se assim
num âmbito de religião, enquanto que o Divino, não trazendo uma oposição direta, pode ser carregado de uma
ligação com o ritual ou com a religiosidade, não com uma religião. Mas isto é uma questão de nomenclatura, não
interfere no funcionamento do mecanismo imagético criado por Martin.
15
Texto contido nas imagens gráficas do ANEXO A - tradução da autora (MARTIN; PEZIN, 2003, p. 59).
16
As imagens gráficas criadas por Martin, as quais estão contidas no “ANEXO A” desta tese, podem ser
compreendidas em suas dinâmicas, para tanto, pode-se utilizar a imaginação e entender o Bufão como um ponto
de encontro de vários vértices de linguagens, sendo que estas correm em sua direção estabelecendo uma
dinâmica de oposição, espelho e correspondência e equivalência. Ainda, pode-se imaginar um Bufão que
equilibra na sua cabeça uma enorme pirâmide, de cabeça para baixo. Para fazer a pirâmide em 3D é necessário
transformar a imagem do mapa (ANEXO A), fazendo as dobraduras necessárias para transformá-la em uma
pirâmide – mas os fatores devem permanecer no interior da pirâmide, não no exterior, porque senão não acontece
o jogo de espelhos entre os vetores. Fazendo tais dobras e sempre levando em consideração as movimentações
de intercâmbio das forças internas, é possível descobrir um pouco da complexidade da dinâmica que envolve as
linguagens do universo bufonesco.
104
porque a necessidade de uma nova tentativa de apropriação definitiva desta técnica apareceu
de forma desafiadora e intensa – a de aplicá-la a outros atores.
3. 2. O BUFÃO: UM ESPETÁCULO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS
“A eterna questão sempre sem resposta: Quem somos nós? De onde viemos? Para
onde vamos? Eu respondo: Ao que me diz respeito, eu sou eu mesmo, venho de
minha casa e retornarei a ela!” 17
Les bouffons – Texto e Direção de Sérge Martin (1983).
A partir da vontade de enfrentar o desafio que irrompeu da curiosidade de saber como
esta técnica agiria quando empregada em outrem, iniciou-se uma nova experiência e a técnica
foi aplicada num grupo de nove atores18.
Os laboratórios com o grupo de atores seguiram os mesmos encaminhamentos da
construção da técnica relatada anteriormente.
Levando em conta que estava trabalhando com um grupo e não mais com uma
experiência solitária e por se tratar de um universo muito livre, no qual os instintos afloram –
o que é censurado no convívio social – foi necessário que o grupo tivesse uma espécie de
confiança cega, um pacto e uma licença entre todos, para poder se livrar das castrações e
pudores cotidianos. No grupo, todos se conheciam e a maioria tinha trabalhado na minha
pesquisa de mestrado (BRONDANI, 2006) e nos espetáculos que faziam parte desta, sendo
assim, as pessoas já tinham entrosamento e confiança entre si e o pacto foi facilmente
estabelecido, o que facilitou no encaminhamento do processo.
A prática do acesso à máscara do Bufão com um grupo requer um desnudamento
maior, um despojamento das fraquezas, temores, vaidades e outras barreiras psicológicas,
geralmente relacionadas ao baixo ventre, à fome, em todos os seus expoentes. Livrar-se destas
barreiras em laboratórios individuais, muitas vezes, é mais fácil que com outros agentes.
Quando se trabalha o bufão em grupo, significa não só ultrapassar os próprios limites de
castrações e barreiras de ação sobre si mesmo, mas também ultrapassar as concessões sociais
17
Tradução da autora : A l’eternele question toujours demeurée sans réponse: “Qui sommes-nous? D’où venonsnous? Où Allons-nous?” Je reponds: “En ce qui me concerne personnnellement, je suis moi, je viens de chez
moi et j’y retourne! In (MARTIN, 2003, p.24)
18
Atores da Cia. Buffa de Teatro (Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fernando Lopes,
Jorge Baia e Simone Araújo) e alunos da Escola de Teatro da UFBA que participaram do processo (Fabiana
Monçalu, Flávia Gaudêncio e Maryvonne Coutrot).
105
de contato com o outro, isto é, quebrar as barreiras de reação/proteção ao instinto do outro. É
muito importante os atores trabalharem dentro de um espaço amoral19.
No processo com o grupo, as etapas se tornaram mais lentas, pois as interligações
entre os imaginários e imaginações de cada ator sobre si mesmo e com os outros se tornaram,
ao mesmo tempo, mais complexas e muito mais Belas e, novamente, o Bufão me seduzia e me
envolvia em seu universo.
Ao longo dos laboratórios e vivências com este corpo deformado/transformado e em
metamorfose, o pesquisator passa a gerir o turbilhão de forças e comoções que circulam em si
de maneira muito consciente, como um atleta, ele está pronto para enfrentar o público num
espetáculo e esta nova experiência resultou em um espetáculo: “Fato(s) do Brasil”.
3. 2. 1. Fato(s) do Brasil – um espetáculo satírico
“Fato(s) do Brasil” foi o espetáculo resultante da aplicação da técnica de Bufão
construída em um grupo. Para a criação do espetáculo, após o trabalho desenvolvido com a
técnica, jogos e improvisações serviam como base para a construção das cenas, nas quais
texto e ação foram inventados e construídos em conjunto.
No palco, um coro de sete bufões20 surge em meio a gargalhadas e, valendo-se de sua
arte, narram e vivem a saga do povo brasileiro, apresentando uma versão resumida desta
história plena de castrações e orgias.
A história do “descobrimento” do Brasil e a invasão deste pelos povos ditos
“civilizados” serviram de enredo para os Bufões mostrarem a sua versão e visão desta
“fábula”, explorando nuances e graduações do jogo cômico através do grotesco, do escárnio,
do deboche, do sarcasmo, da ironia, da sátira, da burla, do chiste, do jogo de frases com duplo
sentido, da carnavalização, do banquete, da escatologia e da sexualidade, originando um
discurso insultuoso que subverte a própria cena. A dramaturgia, tanto do espetáculo quanto do
texto, apresenta em seu conteúdo uma mistura de agressividade satírica, liberdade
imaginativa, amoralidade, absurdo e licenciosidade.
19
É necessário sublinhar que o bufão age num contexto amoral, ou seja, moralmente neutro, que se mantém
exterior ao julgamento ou qualificação moral, o que é diferente do caráter consciente daquele que é imoral.
20
No espetáculo, somente sete atores trabalharam: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira,
Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot.
106
.
Foto: Felipe Botelho
Espetáculo “Fato(s) do Brasil”.
Dir. Joice Aglae
Cena:
Estabelecimento
do
Im/pacto com o público.
Atores: Andréa Rabello, Diana
Ramos, Érico José Souza de
Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia
Gaudêncio,
Jorge
Baia
e
Maryvonne Coutrot.
Data: setembro/2006
Em meio a orgias e escatologias, os bufões “discutem” os valores éticos e morais
daqueles que chegaram ao Brasil para colonizar, “explorar... deflorar... estuprar” - citando a
fala dos próprios bufões no momento em que narram e vivem a chegada das naus portuguesas
em território brasileiro.
Logo no início do espetáculo, os bufões estabelecem um pacto com o público. No
primeiro contato entre estes, o coro, de costas para o público, emite sons e grunhidos não
humanos, depois, virando-se repentinamente gargalham de uma maneira desinibida,
estabelecendo assim, num primeiro momento, um impacto, então, um pacto com o público,
que ao ver tais figuras disformes e grotescas gargalhando, também se entregam ao riso. Este
riso coletivo e sem motivo aparente colocava o público em uma predisposição para a proposta
estética do espetáculo - totalmente fantasiosa – e criava a atmosfera necessária para este se
desenvolver. A partir deste primeiro impacto, os bufões estabeleciam seus parâmetros e o
público começava a compreender e compartilhar destes referenciais. Deste modo, os bufões
podiam debochar dos “vícios sociais” sabendo que a platéia condizia com seus impulsos e
também se permitia a fantasiar.
107
Foto: Léo Azevedo.
Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae
Cena: Os portugueses avistam terra firme.
Elenco: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu,
Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot.
Data: setembro/2006.
Em muitos momentos, os bufões utilizavam mecanismos conhecidos do jogo cômico e
da sátira: o “transporte de termos da área semântica físico-corporal para designar atividades
intelectuais”21; a “inversão tradicional dos termos”22 e o “deslocamento da palavra” –
mecanismo este que, segundo Cleise Mendes, consiste na utilização da palavra, não em seu
sentido metafórico [ou “moral” p/ Bergson(1980)], mas sim, em seu sentido literal ou físico –
para Mendes o deslocamento da palavra passa a representar um espaço no qual é representada
como “coisa concreta”. Essa característica constitui o contraponto lúdico da sátira, o que é
muito importante, pois a ludicidade impede que a sátira se reduza a puro xingamento ou lição
moral, porque trabalha com um imaginário fantasioso e relativo23.
21
Como, por exemplo: digerir uma ideia, ruminar um pensamento, mastigar um discurso, engolir a palavra,
mascar a resposta, etc.
22
Como, por exemplo: usando um remédio que mata, um veneno que cura, trabalhar para repousar, descansar
trabalhando, etc.
23
Para outras informações, ler “A Gargalhada de Ulysses. Um Estudo da Catarse na Comédia”, de Cleise
Mendes, Doutora, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.
108
Foto 3: Felipe Botelho.
Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae
Cena: Dom Pedro I
Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu e
Maryvonne Coutrot.
Data: setembro/2006.
Todas estas convenções, para Mendes, acabam por estabelecer uma “grande
convenção satírica”, a qual abarca um repertório de temas, motivos e procedimentos que
expõem ao ridículo certos comportamentos para atacar personagens da vida pública e privada.
Nesta grande convenção, todo o prazer vem submetido às regras do jogo cômico, do qual
participam a fantasia, o exagero, o paradoxo, a incongruência e o contraste, além de que, o
espectador passa a aceitar o vocabulário obsceno, os intuitos agressivos, o furor do escárnio, o
deleite no baixo ventre e no grotesco e as formas de burlas e de chacotas, como elementos de
uma criação artística.
Em “Fato(s) do Brasil”, a utilização de tais recursos satíricos era muito recorrente24, os
bufões se apoderaram de uma história conhecida por qualquer público e assim, ganhavam a
cumplicidade dos espectadores rapidamente.
Durante o espetáculo, os Bufões se revezavam na “incorporação” dos personagens e
executavam uma ação e uma narração plena de ambiguidades e chacotas, propiciando no
espectador a possibilidade do riso.
24
Pode-se citar o momento em que os bufões simulam um ato sexual em grupo e falam sobre as invasões dos
franceses, espanhóis, holandeses, portugueses e a vinda dos africanos para o território brasileiro.
109
Foto 4: Léo Azevedo
Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae
Cena: Chegada do Bispo Sardinha
Atores: Andréa Rabello, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot
Data: setembro/2006.
Os bufões reviviam os acontecimentos delatando comportamentos que o espectador,
inconsciente ou conscientemente, julga censurável no plano moral. Este ato de rir daquilo que
é censurável pode ser considerado uma espécie de “vingança-social”, porém, para Mendes, a
catarse cômica, em especial a do tipo satírico, não acontece somente pela explicação da
“vingança-social” ou da interpretação psicológica do prazer inconsciente, ela acontece,
também, pela necessidade de liberar e desbloquear - função própria da catarse. Para a catarse
cômica acontecer, o espectador deve se envolver com o espetáculo e este envolvimento
dependerá, segundo Mendes, em grande parte, das estratégias lúdicas da manipulação do
discurso insultuoso, domínio do Bufão, por excelência.
“Fato(s) do Brasil” tem um texto dramatúrgico totalmente firmado num vocabulário
obsceno, agressivo e sarcástico e, na cena, as figuras dos bufões aguçavam o imaginário do
espectador, o qual passava a perceber as burlas, ímpetos sexuais e críticas, num conjunto que
ocasionava o deleite, o riso e o “gozo”.
Numa sátira, como em “Fato(s) do Brasil”, o alvo é o “poder”, em qualquer grau que
seja - utilizando o conflito crítico-social dos valores e das estruturas governamentais e
institucionais como argumento e motivo do riso - o bufão é totalmente livre, ele não tem
medo de deus, nem do diabo, quanto menos dos homens. Mestre irônico, o bufão arranca risos
do público utilizando todos os recursos físicos e linguísticos. Como afirma Cesare Molinare
(2007), ele herdou tais qualidades dos sátiros e mimos.
110
Foto 5: Felipe Botelho.
Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae
Cena: Bispo Sardinha é cercado pelos índios Canibais.
Atores: Andréa Rabello, Jorge Baia, Fabiana Monçalu e
Maryvonne Coutrot
Data: setembro/2006.
A técnica de deslocamento da palavra ou “representação indireta pelo oposto” (como
denomina Freud25) é muito utilizada pelo Bufão e obriga o ouvinte a aguçar sua percepção e a
manter ágil seu raciocínio, pois, para o Bufão, é interessante que o público mantenha sua
atenção e energia voltadas para a sua ação. Apesar de estar presente, quando chamado para
participar da ação dramática, o espectador jamais deve tentar colocar o Bufão em má situação,
pois se tentar zombar dele, acabará sendo a vítima do próprio chiste – transformando-se em
“desvio cômico” - como Bergson (1980) nomina este mecanismo de retorno do chiste para
aquele que o lançou.
Foto: Léo Azevedo
Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae
Cena: Dom Pedro II narra as mudanças que aconteceram no seu mandato.
Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio e
Maryvonne Coutrot.
Data: setembro/2006.
25
Para saber mais sobre o chiste e o cômico em Freud, ler: Os motivos dos chistes: os chistes como processo
social. In Obras Completas: Os chistes e sua relação com o inconsciente.
111
O bufão é mestre no jogo da inversão do poder e o espectador não tem a percepção
da própria situação, de seu discurso e de sua vulnerabilidade, ele mesmo fornece o material
para o desvio da zombaria. Quando alguém tenta zombar do bufão, a ironia, arrogância e
pedantismo retornam com mais força ainda para essa pessoa. Quando um locutor faz um
chiste, cria-se uma expectativa em direção ao alvo e quando não o alcança, porque sofre o
desvio cômico, o bufão consegue inverter o sentido do chiste, a expectativa do público retorna
ao primeiro locutor com força zombeteira redobrada.
Em Mistero Buffo, Dario Fo conta uma história cujo personagem é o Papa Bonifácio
III. Uma vez ele mandou pregar, pela língua, na porta da igreja, sete bufões, como símbolo e
lembrança para os demais, do que pode acontecer com quem caçoa da “santa madre igreja”
(FO, 1997). Mas nem mesmo esta fábula foi capaz de calar os bufões ao longo da história. O
bufão sempre teve e tem a “língua solta”, ele utiliza todas as “vertentes” do cômico e do riso,
mas a sátira faz parte das mais elaboradas fontes de expressão desta Máscara.
Foto 7: Felipe Botelho.
Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae
Cena: encerramento com o público
Atores: Andréa Rabello, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu e
Flávia Gaudêncio.
Data: setembro/2006.
A história do Brasil, seus momentos e personagens históricos, serviram como base de
compartilhamento para as anedotas, ironias e deboches.
[...] é muito revelador constatar que: desde o início, a tentação cômica está presente;
percebe-se que basta pouquíssima coisa para que uma face nobre vire ridícula; a
112
máscara da dignidade de cada homem é extremamente fina e; atrás, sempre
perceptível ao olhar especialista, transparece a face grotesca. Ninguém escapa disso:
cada um de nós tem seu aspecto ridículo e todo homem sério tem seu revés cômico
(MINOIS, 2000, p. 271). 26
Mas o pacto entre os bufões e o público começava sutilmente, no próprio título da
peça. A palavra “fato” tem muitos significados27, ela pode ser compreendida como: “roupa”,
“vísceras de gado”, “pequeno rebanho, especialmente de cabras”, “coisa ou ação feita”,
“acontecimento, sucesso”, “aquilo de que se trata” ou “o que é real” na situação – e todas
estas possibilidades de compreensão se encaixavam na proposta satírica da história do Brasil
contada pelos Bufões
Foto 8: Felipe Botelho
Espetáculo “Fato(s) do Brasil. Dir. Joice Aglae
Cena: encerramento com o público
Atores: Érico José Souza de Oliveira e Fabiana Monçalu
Data: setembro/2006.
No espetáculo, os acontecimentos enfocados davam uma noção dos períodos
evolutivos da história brasileira, dando saltos cronológicos e chegando até a atualidade
(considerando a data da estréia e permanência do espetáculo – setembro e outubro 2006). O
propósito do espetáculo era de utilizar-se de uma história comum a todos para fazer valer os
princípios da comédia, do carnaval, do banquete, do riso, da bufonaria e, principalmente,
validar a técnica criada. Pela assiduidade do público e reações durante o espetáculo, parece
26
Tradução da autora : [...] il est très révélateur de constater que, dès le départ, la tentation comique est
présente; on s’aperçoit qu’il suffit de très peu de chose pour faire basculer un visage noble dans le ridicule, que
le masque de dignité de chaque homme est d’une extrême minceur et que derrière, toujours perceptible à l’œil
exercé, transparaît le visage grotesque. Personne n’y échappe: chacun de nous a son aspect ridicule, et tout
homme sérieux a un envers comique.
27
Significados extraídos do “Moderno Dicionário da Língua Portuguesa – Michaelis, 109ª Edição” e
compreensões populares do termo.
113
que “Fato(s) do Brasil”28, aos olhos do grupo que fazia parte do mesmo e desta pesquisatriz,
cumpriu com seus objetivos, sendo um espetáculo satírico e validando uma experiência de
desenvolvimento de uma técnica.
3. 2. 2. “A Prece”, “A Oração” e “Arlecchino e la Valle dell’Omo”
“[...] haja feiticeiras em nosso sangue ou não, o encanto permanece”
Monique Augras (2009, p.14)
O bufão faz valer o princípio do riso relativo. Se Bérgson coloca o riso como uma
ação que pode intimidar e até humilhar, o bufão só o utiliza, nesses termos, se provocado.
Como já mencionado, muitas vezes a ironia faz com que o comentário risível se volte contra o
próprio locutor, porém, no caso do Bufão isso não acontece, pois a ironia só se volta contra o
autor quando este compartilha dos mesmos valores, da moral, da índole ou atos de quem
critica. O bufão não compartilha da índole humana e isso lhe dá a permissão para caçoar de
todos sem ser alvo do retorno da zombaria. Reforçando sua maestria em inverter situações, se
alguém tentar atingi-lo com deboches, certamente se tornará um alvo a ser destruído, um bode
expiatório apedrejado por sarcasmos cuspidos que, segundo Balandier (2006), somente um
Bufão, especialista do desvelamento das complexas relações sociais e cuja ação é a
regulamentação dos processos da coletividade, pode ser capaz de realizar.
A figura de um Bufão suscita reações orgânicas, diante de um estamos sempre em
expectativa, têm-se calafrios na alma e um turbilhão de emoções percorre o corpo: “Um
suspiro quando ele passa. Um arrepio se ele nos olha. Ele [o Bufão] zomba. E, geralmente,
sem que a gente saiba o porquê. Ele parece ser mestre da sátira. E manuseia muito bem a
ironia, conforme sinaliza a definição de bufão” (MARTIN, 2003, p.32).29
O bufão utiliza todos os tipos de riso, não é somente mestre no manuseio da ironia,
mas também grande sábio em utilizar o terror e o humor pueril. O Bufão, com seus contrastes
de comoção de afetos, chega até a despertar sentimentos de piedade, para logo após despertar
o horror. O Bufão sabe envolver o público e, se necessário for, faz uso também do humor
pueril (do absurdo, de jogos de palavras inocentes – como faziam os Bobos da Corte), como
28
Ver fragmentos do texto em APÊNDICE A e o clipe do espetáculo no DVD que acompanha a Tese. MENU:
1. BUFÃO: 1.1 - BUFÕES: FATO(S) DO BRASIL – Clipe.
29
Tradução da autora : «Un souffle passe dês qu’il bouge. Um frisson s’il nous regarde. Il raille. Et bien souvent
sans qu’on puisse déterminer comment. Il semble être mâitre de la satire. Mais il manie tout aussi bien l’ironie
comme le dit la definition de bouffon».
114
contraponto da ironia e de sua imagem horrenda. Dessa forma, ele passeia pelas afetividades
do espectador, o Bufão é capaz de apedrejar e acariciar o seu alvo em uma só fala.
Outro contraponto que faz parte do Bufão é o do divino, do sacro e do profano,
advindos do ditirambo e acentuados no drama satírico, como falado anteriormente, a tríade
jogo-festa-ritual, no Bufão, é intensa e sem fronteiras. Esta zona sem limites foi muito
explorada na experiência solo, intitulada “A Oração”. Esta experiência foi apresentada para
um seleto grupo, no segundo semestre de 200630. Posteriormente, em 2008 e 2009 este
esquete foi apresentado em ensaios abertos no Brasil e Itália31 e em festivais da Europa32.
Foto 9: Léo Azevedo
Espetáculo: A Oração
Direção/Atuação: Joice Aglae
Data: Agosto/2009
A cena “A Oração” apresenta um grande teor ritualístico e certo grau de ironia,
sarcasmo e “humor”. O humor faz parte de um bem-estar psicológico e o bufão sabe disso. O
riso produz a capacidade saudável de rirmos de nós mesmos, uma ação necessária ao ser
humano e que, segundo Freud33, faz parte do mais importante processo defensivo da vida
psíquica. Numa situação de dor e aflição, se desviarmos e pouparmos a energia afetiva da
autocomiseração para um comentário humorístico, o riso se torna possível e nos beneficia.
Para o bufão, não há autocomiseração e por isso ele sempre se serve de tal benefício, pois ele
ri de si próprio e dos outros. Ele ri de si mesmo porque sabe que não se deve ver como figura
30
Na disciplina “DAN 508 - Processos de Encenação”, com a professora Dr.ª Sônia Lúcia Rangel, “Uma prece”
foi apresentada no final do semestre para a turma que cumpria a disciplina, como parte resultante do meu
processo criativo.
31
Na Escola de Teatro da UFBA (BR) e Scuola Sperimentale dell’Attore – Pordenone (IT).
32
“Luxembourg street festival « clown streeta(rt)nimation” e “Clown in the House Festival”, ambos em
Luxembourg/ 2009.
33
Para saber mais sobre o cômico em Freud, ler: O Humor (1927) In Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud - Vol.XXI; Os motivos dos chistes: os chistes como processo social
In Obras Completas: Os chistes e sua relação com o inconsciente..
115
séria, pois aquele que se vê dessa forma, torna-se frágil, um alvo muito fácil de ser
desmontado. Ele ri dos outros e não tem medo do riso.
Enquanto os seres humanos se levam a sério e se afastam daquilo que é
verdadeiramente importante nas suas vidas, o Bufão ri e retorna às suas ligações com o divino
(Dionísio), com o ritual, com o mito. Mas o Bufão sabe que o Jogo e o Sacro são partes de um
todo. No seu Jogo, invoca o ritual, retoma seu lado xamânico e, através de profecias,
verdades, falsidades e invenções, ele amedronta e até acha engraçado os Homens apavorados
ao ver aquele ser grotesco escarrar possibilidades de um futuro obscuro ou decodificar um
passado e/ou presente.
Em “A Oração”, Murcia - meu Bufão34 - entra em uma espécie de círculo ritual feito
com velas e faz um discurso carregado de imagens, ironias sutis e leves obscenidades. O texto
foi escrito a partir de poemas de Antonin Artaud, encontrados após sua morte35, e de Augusto
dos Anjos, tendo, ainda, como inspiração os rituais indígenas e de candomblé. A cena tem
como argumento um apelo ao ser humano, a sua inteligência e a sua fraqueza diante de um ser
como o Bufão36.
Foto 10: Léo Azevedo
Espetáculo: A Oração
Direção/Atuação: Joice Aglae
Data: agosto/2009.
“A Oração” serviu como base para que eu desenvolvesse outra experiência. Durante
meu estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore, precisamente no final do mês de maio/2008,
34
Por tudo o que foi falado sobre o Fundo Comum dos Sonhos, o imaginário, as atitudes lúdicas e a imaginação espaços coletivos, mas também individuais, espaços delimitados, mas sem definições – posso me referir ao
Bufão como “meu”, pois estou falando deste lugar que me permite falar como plural e como singular, prefiro até
usar “meu Bufão” para poder falar de características que podem não ser plurais e estarem dentro daquilo que é
somente “meu”, sendo assim, não coloco como geral uma característica que é pessoal.
35
A maioria destes cadernos de Antonin Artaud se encontra na Bibliothèque Nationale de France. Segundo
Serge Malausséna (revista Licences 2002/2003, nº2), estes cadernos (ao todo 406) tinham desaparecidos do
quarto de Artaud no dia 06 de março de 1948, dia da sua morte, aos poucos foram sendo encontrados e
catalogados.
36
Ver o texto em APÊNDICE B e clip do scketch no DVD que acompanha a Tese. MENU: 1. BUFÃO: 1.3 –
BUFÃO: A PRECE\Murcia – clip.
116
o diretor Ferruccio Merisi convidou-me para fazer parte de um espetáculo e pediu que eu
fizesse uma cena sobre o argumento “Valle”, o trabalho entraria no espetáculo “Arlecchino e
la Valle dell’Omo”37, um espetáculo cujo argumento seria os caminhos da Humanidade.
Fazendo a pesquisa sobre as várias possibilidades de interpretação da palavra “vale”,
encontrei muitas expressões religiosas: vale de lágrimas, vale de ossos, vale da morte, vale de
sangue, vale de almas, vale de espinhos, etc. Vendo estas interpretações de passagens bíblicas
e frases proféticas, pensei que seria um bom tema para ser desenvolvido por um Bufão e
comecei a trabalhar, em laboratórios individuais, na construção do texto e da cena, a partir de
“A Oração”. A cada ensaio a cena crescia e intensificava o jogo ritualístico do Bufão,
fortificando sua união com o Divino, com o Uomo Selvaggio e com Dionísio, retornando as
suas ligações com o lado mítico e místico do universo e retomando seu posto de trickster.
Quando a cena foi mostrada a Merisi, ele aprovou e pediu que eu inserisse uma dança
na cena e alargasse os círculos que fazia com velas, sal e ervas, pois o ritual tinha que
envolver o público, que deveria ficar fora do círculo das velas e dentro dos círculos de sal e do
de ervas. Pediu, também, uma canção de despedida e que eu dominasse totalmente a cena,
pois ela seria entrecortada por várias outras e não poderia perder-se ou diluir-se dentro delas.
Os ensaios do espetáculo começaram e o espetáculo foi sendo estruturado: Arlecchino
(sem a máscara de couro) e o Bufão tinham cenas que serviam como base evolutiva do
espetáculo, enquanto que os outros personagens intervinham contando e vivendo passagens da
História.
O Bufão estava em cena desde o início do espetáculo, dormindo com um maço de
ervas em uma das mãos (alecrim, arruda e louro) e na outra uma vela. Na peça, ele era um
personagem que transcendia ao tempo real, vendo toda a evolução do Homem e tentando,
através de rituais, protegê-lo dos próprios atos e ensinando-o a ser mais “humano” – uma
espécie de sábio viajante dos tempos, perdido na loucura da humanidade.
O espetáculo começava com o “filósofo” arlecchinesco, em meio a crânios, ossos de
animais, carcaças, pedaços de antenas, balanças de ferro e um barril. O filósofo comentava e
refletia sobre os caminhos da Humanidade. Em um determinado momento, o Bufão acordavase com uma oração e depois uma canção, dava um “passe/benção” com ervas no
palco/mundo. Então, fazia um brinde à divisão das trevas da luz e, usando a vela, cuspia fogo.
Colocava a vela no centro do palco, acendia outras velas [uma para cada espécie da evolução
do homem (Australopitecos, Parantropos, Neandertal, Homo Sapiens)] e as distribuía pelo
37
Ver fragmentos do texto do Bufão Murcia no espetáculo “Arlecchino e la Valle dell’Omo”, em ANEXO B e
publicidade do espetáculo em ANEXO G – evento do dia 26 de junho/2008.
117
palco, desenhando um círculo que passava diante dos pés do público, chegando até quase o
fundo do palco, sem abranger Arlecchino e os dois Zanni.
Toda a ação era acompanhada por um texto, com muitas pausas para que
acontecessem as outras cenas. Após o círculo de velas pronto, o Bufão retornava a ação
urinando sal em um vaso. Ele utilizava este sal para fazer um círculo ao redor da vela central
e, depois, um círculo maior que passava pelo lado de fora do círculo feito com as velas e por
trás do público, mas sem abranger Arlecchino e os Zanni.
Posterior a uma série de intervenções, com uma vasilha cheia de água, pegava as
ervas, tirava algumas folhas, jogava na água, mexia como se visse imagens do passado e do
futuro ali dentro. Permanecia vendo as imagens, enquanto aconteciam outras cenas, até que
reiniciava a ação com uma dança “xamânica” das ervas, ao redor do público, seguindo o
círculo de sal e falando em italiano macarrônico38.
Em seguida ao ritual com as ervas, o Bufão se dirigia ao fundo da sala e como se
olhasse a Terra de longe, cantava a imagem que via (trechos da música Asa Branca, de Luiz
Gonzaga, traduzida para uma linguagem bufonesca macarrônica, misturando português,
italiano e dialetos itálicos). Depois, fazia um discurso e, num gesto de despedida, mas também
de condenação, fazia o número de “engolir fogo” com a vela do centro do círculo e se dirigia
até onde estava Arlecchino, que não o via.
Arlecchino filosofava sobre as pulsões Humanas e os caminhos escolhidos pelos
homens, terminando por dormir. O Bufão acompanhava as reflexões olhando para o
firmamento e, quando Arlecchino dormia, ele se virava para o público começava a bailar e a
pedir aos espectadores os seus cérebros (texto de “Uma Prece” transformado). Após, percebia
que não havia mais nada a fazer naquele resto de mundo, que não adiantaria tentar novamente
e decidia voltar para seu universo – que não se sabia qual – num salto no espaço, desaparecia
(caía num fosso).
Após o desaparecimento do Bufão, o filósofo acordava e recomeçava sua reflexão,
chegando à conclusão de que não havia mais nenhum Homo Sapiens no mundo e, em meio a
38
O modo de falar macarrônico (ou do italiano - maccheronico) é um modo particular de se fazer entender sem
falar corretamente a língua na qual se está exprimindo e era uma técnica muito usada pelos cômicos dell’arte
que percorriam cidades e países com língua e dialetos diversos. Ainda no teatro, segundo Tinhorão, tornou-se
uma linguagem que busca um efeito burlesco, extravagante, cômico, muitas vezes falado ou escrito de forma
errada e imprópria, com uma mistura de palavras vulgares, dialetais ou “pseudolatinas”, isto é, flexionadas à
maneira do latim. No Brasil, a linguagem macarrônica teve uma versão, segundo Tinhorão, na imprensa
carnavalesca de 1880. Para saber mais, ler: “A Imprensa carnavalesca no Brasil. Um panorama da linguagem
cômica”, de José Ramos Tinhorão.
118
uma movimentação giratória, entoando uma espécie de “mantra” feito com jogos de palavras
“rovescio, rovesciar / inverso, reverso”, transformava-se em Arlecchino (Claudia Contin),
colocando máscara, chapéu e retirando a capa que escondia a casaca de Arlecchino.
Transformado, Arlecchino se refugiava dentro do barril e pedia para que as almas ali
presentes voltassem às suas tumbas, porque o espetáculo da humanidade havia terminado.
Durante o espetáculo, as atrizes e professoras da Scuola Sperimentale dell’Attore,
Veronica Risatti e Lucia Zaghet tinham cenas em que representavam e viviam muitos trechos
da evolução da humanidade, muitos como Zanni.
“Arlecchino e la Valle dell’Omo” foi uma bonita experiência, a direção de Ferruccio
Merisi havia criado um caminho do nascimento até a destruição total da humanidade, de
forma poética e intensa – Bufão, Zanni, macacos, Homo Sapiens, poetas, filósofos e
Arlecchino – todos envolvidos na “contação da fábula Humana”.
Foto 11: Verônica Risatti
Laboratório individual
Atuação: Joice Aglae
Data: fevereiro/2009.
Além deste percurso reflexivo sobre a Humanidade, Merisi propiciou a mim,
especialmente, um vislumbre de como Bufão e Máscaras dell’Arte conviviam como
companheiros de palco e, além disso, proporcionou-me a compreensão de como o DNA
Imaginal presente no Bufão proliferou-se e propagou-se nas Máscaras da commedia dell’arte
Italiana. Vendo e vivendo as Máscaras dell’Arte e o Bufão no mesmo espaço físico e artístico
(palco e cena), foi possível compreender e identificar características que se repetiam nas
máscaras do Bufão, Zanni e Arlecchino, como uma repetição/renovação.
119
3.3. UNIVERSOS CONECTIVOS: O BUFÃO; O ZANNI E ...
“Os bufões dominam incontestavelmente os territórios da licença, da obscenidade,
da contravenção, do travestimento físico bestial. Quem é, então, esta figura
diferente, portador de uma bagagem técnica específica, que goza de uma especial
imunidade da terra dos confins? Quem são estes personagens ambíguos ao limite
entre a desordem e a norma, entre o sacro e o profano, entre o inferno e o paraíso?
Trata-se do progenitor do cômico profissional, ou de uma figura autônoma que
continua presente paralelamente aos comicos profissionais?” (VIANELLO, 2005,
p.49) 39
A ligação entre os bufões e os comicos dell’arte aconteceram de várias maneiras e os
instintos que regem os bufões passaram a fazer parte e a reger, também, as Máscaras dos
servos da commedia dell’arte.
Em “I Fratelli Buffoni”, Molinari faz observações sobre a ligação de alguns bufões e a
Máscara de Arlecchino, mostrando que o desdobramento do Bufão em Zanni e, daí, para os
outros servos da commedia dell’arte, não se deu somente pelas vias ritualísticas e
carnavalescas, aconteceu, ainda, através dos próprios atores, de uma via, também,
mercadológica. Muitos dos melhores atores que adotaram a máscara de Arlecchino e Capitano
faziam, anteriormente ou paralelamente, o Bufão ou adotavam o Jogo Buffonesco como
estratégia para viver.
Tristano Martinelli fazia, certamente, o bufão, pois aproveitava de todas as ocasiões
para fazer o próximo rir, sobretudo se este próximo fosse rei e duques. Não esperava
subir em cena - mas não sei até que ponto houve confusão nos papéis: as suas cartas
bufonescas não eram sempre arlequinescas, no sentido que nem sempre continham
quiprocó, grandes piadas ou espirituosidades e, sobretudo, aquela demonstração de
estupidez que deveria ser própria do segundo Zanni. Além de tudo, devia se tratar de
um estranho Arlecchino, irônico, agressivo, capaz de temperar o espírito com
qualquer absurdo vagamente metafísico. De qualquer maneira, se fazia o bufão, não
estava, certamente, disposto a renunciar a ser homem: a máscara do Arlecchino
servia para continuar a interpretação fora de cena, mas, antes de tudo, para dar a
medida exata para não correr muitos riscos a sua arrogância natural. Em suma, fazer
o bufão não é uma humilhação, mas uma defesa, ou melhor, uma arma, um truque
que lhe permite tratar de igual para igual com os príncipes da terra e, também, um
pouco com o rei do céu [...] (MOLINARI, 1985, p.110).40
39
Tradução da autora: I buffoni dominano incontrastati i territori della licenza, dell’oscenità, della
contraffazione, del travestimento físico e bestiale. Chi è, dunque questa figura diversa, depositaria di uno
specifico bagaglio tecnico, che gode di una speciale immunità da terra di confine? Chi sono questi personaggi
ambigui al limite tra il disordine e la norma, tra il sacro e il profano, tra l’inferno e il paradiso? Si tratta del
progenitore del comico professionista, oppure di una figura autonoma che continua ad essere presente
parallelamente ai comici di mestiere?
40
Tradução da autora: Tristano Martinelli certamente faceva il buffone poiché approfittava di tutte le ocasioni
per far ridere il prossimo, soprattutto se questo prossimo era costituito da re e duchi. Non aspettava di salire in
scena, ma non so fino a che punto ci fosse confusione di ruoli: le sue lettere buffonesche non sono sempre
arlecchinesche, nel senso che non sempre contengono quiproquo, battute grosse o grossolane e soprattutto
quell’esibizione di stupidità che dovrebbe essere propria del secondo Zanni. Altrimenti doveva trattarsi di uno
strano Arlecchino, ironico e aggressivo, capace di condire il suo spirito con qualche assurdo vagamente
metafisico. Comunque, se faceva il buffone non era certamente disposto a rinunciare a essere uomo: la
120
Chamo a atenção para o fato que, quando Molinari afirma que Tristano Martinelli
“fazia, certamente, o bufão, pois aproveitava de todas as ocasiões para fazer o próximo rir,
sobretudo se este próximo fosse rei e duques”, ele está referindo-se a uma técnica que era
própria do bufão e que requeria uma sagacidade muito grande, a qual somente um bufão
poderia ter. Dessa forma, ele não está afirmando que Tristano Martinelli, conhecido como
Arlecchino, era um bufão, quando ele diz “fazia o Bufão”, entende-se que Molinari está
fazendo referência ao Jogo Bufonesco.
Segundo Molinari, fazer o jogo bufonesco possibilitava ao ator um jogo muito mais
ágil e astuto em relação ao poder e, certamente, era este jogo que possibilitava a sobrevivência
das companhias e dos atores. O Bufão sempre inverte o poder, ele toma conta da ação, pois
pode “tratar de igual para igual com os príncipes da terra”, agindo num espaço e no outro,
transgredindo aquele que o observa e nunca se colocando como alvo do jogo. Ele até pode
fazer um discurso dirigindo-se a si próprio, levantando questionamentos sobre a própria
conduta e se “autopunindo” por alguma ação, mas na verdade as sua palavras são direcionadas
a segundos e terceiros. Ele coloca-se como um espelho e faz questões sobre si mesmo, para
que estas cheguem aos verdadeiros receptores. Esta sagacidade e subversão, própria do Jogo
do Bufão, em certo grau, se propagou pelas Máscaras da commedia dell’arte.
Inicialmente, nos cortejos dionisíacos, na comédia atellana e na commedia dell’arte
feita nas praças e ruas da Idade Média, todos os servos, zanni e bufões eram esfomeados e
subversivos. Quando o Bufão e o Zanni saíram dos rituais e misturaram-
-se aos
carnavalescos, eles sofreram adaptações (ou desterritorialização) de comportamento, de
linguagem e características físicas. Posteriormente, no decorrer do movimento teatral,
desenvolvimento e refinamento das máscaras, as máscaras dos servos foram desenvolvendo
características individuais, uns mais gentis, outros mais estúpidos, uns trabalhadores, outros
nem tanto e assim outros imaginários concretizaram-se em Máscaras, mas a fome continuou
como uma das características principal desta classe servil, mesmo de modo refinado.
A herança passada do Bufão para os servos da commedia dell’arte, pode ter
acontecido, como observa Molinari e Tessari, através dos próprios atores e do jogo bufonesco,
mas também aconteceu através da intrínseca ligação xamânica destas máscaras41. Como
maschera di Arlecchino gli serviva per continuare la recita fuori scena, ma prima di tutto per velare di quel
tanto che bastava, per non correre troppi rischi, la sua naturale arroganza. Fare il buffone insomma non é
un’umiliazione, ma una difesa, o addirittura un’arma, un trucco che gli permette di fatto di trattare da pari a
pari con i principi della terra, e un poco anche con il re del cielo [...].
41
Para saber mais, ler: Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte, de Allardyce Nicoll;
Storia del Teatro, de Cesare Molinari; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra
Mignatti; LO SCAFFALE RACOLTA DE TEATRO. Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte.”;
121
comentado anteriormente, as Máscaras possuem estreita ligação com o ritual, com o divino e
com a natureza e relacionam-se com deuses do céu ou da terra. Este vínculo é muito
perceptível no Bufão e estende-se às Máscaras da commedia dell’arte, principalmente na do
Zanni, pois é uma das primeiras máscaras dell’arte da categoria dos servos e, justamente por
estar em suas origens, herdou muito do Jogo do Bufão.
A Máscara do Zanni foi o primeiro imaginário e atitude lúdica que se concretizou em
forma de máscara objeto e máscara física e, também, durante muito tempo, foi a máscara mais
divulgada e conhecida.
Das muitas expressões usadas entre o fim de quinhentos e o final de seiscentos para
designar aquilo que hoje chamamos de commedia dell’arte, a mais próxima à
comédia das máscaras e talvez a mais antiga, é “commedia degli Zanni”. Zanni,
como veremos, era uma das máscaras da commedia, cujo nome passou a designar
toda uma classe de personagens. (MOLINARI, 1985, p.13).42
É importante ressaltar que Molinari usa “para designar aquilo que hoje chamamos de
commedia dell’arte”, cooperando para a compreensão de que a commedia dell’arte não é um
estilo cristalizado, uma vez que foi sofrendo modificações e já foi conhecida por muitos
nomes, inclusive, com o nome de sua principal máscara - na época em que esta era assim
considerada. Posterior ao Zanni, veio Arlecchino, Brighella, Pulcinella e todos os outros
servos da commedia dell’arte:
Certamente, hoje o Zanni não é muito conhecido do grande público, porque não
entrou no folclore dos nossos carnavais, mas é muito importante, porque é uma das
máscaras mais antigas da commedia dell’arte, juntamente com a do Capitano. É a
figura base quinhentista do “carregador”, do “trabalhador-braçal”, da qual, mais
tarde, derivam servos mais famosos como Arlecchino e Brighella (CONTIN, 1999,
p.44).43
O Zanni é o “[...] carro de frente de um arquétipo-popular-sertanejo que cada um de
nós, no fundo, sabe ainda distinguir” (CONTIN, 1999, p.44) 44. Ele herdou muito do bufão,
porém, é menos selvático em sua imagem e, até mesmo, menos grotesco. Também, é menos
“Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale, de Carmine Coppola; Arlecchino e l’uomo selvatico:
rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesch, de Claudia e Ferruccio Merisi.7
42
Tradução da autora: Tra le tante espressioni usate fra la fine del Cinquecento e la fine del Seicento per
designare ciò che noi oggi usiamo chiamare la commedia dell’arte, la più vicina a commedia delle maschere, e
forse la più antica, é “commedia degli Zanni”. Zanni era, come vedremo, una delle maschere della commedia, il
cui nome passa poi a designare un’intera categoria di personaggi.
43
Tradução da autora: Certo oggi lo Zanni non è molto conosciuto al grande pubblico, perché non è entrato nel
folclore dei nostri carnevali, ma è molto importante perché è una delle maschere più antiche assieme ai
Capitani della Commedia dell'Arte. E' la figura base cinquecentesca del "servitore-facchino", dell’"uomo-difatica", da cui più tardi deriveranno servitori più famosi, come Arlecchino e Brighella.
44
Tradução da autora: [...] fa capo ad un archetipo-popolare-contadino che ognuno di noi - in fondo - sa ancora
individuare.
122
agressivo ou lascivo em direção ao público, seu principal “foco” é saciar sua fome
descomunal e se livrar das bastonadas dos patrões. Quando sobe ao palco, o seu alvo está na
trama e na cena. Trabalhador braçal, com grande afinidade com os trabalhos ligados a terra,
ele está sempre envolvido em tramas para saciar sua fome milenar. Segundo Claudia Contin
(1999, p.45):
Zanni é uma máscara de origem bergamasca [...] A ocupação típica do Zanni é
aquela dos roceiros, habituados a trabalhos pesados: cortar lenha, cavar e colher
nabos da terra [...] Zanni tem as mãos cheias de calos enormes, grandes e duros [...]
Sendo um tipo do interior, certamente Zanni não é um estúpido, mas também não é
muito culto [...]Uma outra característica do Zanni é a sua pobreza crônica: ele é o
ponto mais baixo da escala social proposta aos Caracteres da Commedia dell’Arte.
Esta pobreza se manifesta, não somente nas roupas modestas e rasgadas, mas,
sobretudo, no apetite do Zanni. A voracidade do Zanni é famosa: ele possui uma
enorme fome, que não é somente uma fome biológica, mas uma fome atávica,
profunda, de “gerações”, uma fome que provém da carência alimentar dos seus
antepassados, uma fome que (pode-se dizer) lhe foi passada com o leite materno,
uma fome “cromossômica”... e, consequentemente, insaciável.45
O Zanni não tem uma fome somente biológica é, também, cromossônica e instintiva,
passada através do DNA imaginal e potencializada nos banquetes carnavalescos. Mas
certamente toda essa carga, cromossômica e imaginal, passa pelo biológico, pois se reaviva
em um corpo. Quando este DNA imaginal se dinamiza em imaginação, os músculos revivem
esta fome e o corpo a sente biologicamente, instintivamente, sensivelmente.
Para esta tese, a questão biológica dos sistemas formadores do corpo humano e a
comoção dos afetos através da musculatura e dos fluidos, como foi visto na preparação da
técnica do Bufão, é muito importante, uma vez que é, a partir da dinamização deste corpo e
espaço abstrato, do sistema de imaginação, que o Bufão se constrói. Assim, para entender o
universo carnavalesco (rabelaisiano, pantagruelano, bertoldiano) é preciso que o ator tenha
muita consciência da parte biológica de seu corpo, para que possa controlá-lo e explorá-lo.
As Máscaras são originárias de um imaginário, vindouras de um Fundo Comum dos
Sonhos, portadoras de genes de um a priori onírico inerente à condição humana. Este lugar
impalpável, mas sensível e, daí então, concreto, é também um elo xamânico entre Bufão,
Zanni e as outras máscaras dell’arte. Este espaço sem fronteiras temporais ou espaciais, este
45
Tradução da autora: “Zanni è una maschera di origine bergamasca [...] Il mestiere originario di Zanni è
quello del contadino, abituato a lavori pesanti: a spaccare la legna, a scavare e a zappare, a cavare le rape
dalla terra. [...] Zanni ha le mani piene di calli esagerati, grossi e duri [...] Nel mostrare questi calli da lavoro,
Zanni è molto orgoglioso [...] Essendo un tipo campagnolo, Zanni non è certamente uno stupido, ma non è
neppure molto colto: [...] Un'altra caratteristica dello Zanni è la sua povertà cronica: egli è al punto più basso
della scala sociale proposta dai Caratteri della Commedia dell'Arte. Questa povertà si manifesta non solo nel
vestiario dimesso e stracciato, ma anche e soprattutto nell'appetito dello Zanni. La voracità di Zanni è famosa:
egli possiede una fame enorme, che non è solo una fame biologica, bensì una fame atavica, profonda,
"generazionale", una fame che gli arriva dalle carenze alimentari dei suoi stessi antenati, una fame che potremmo dire - gli è stata trasmessa col latte materno, una fame "cromosomica"... e dunque insaziabile”.
123
lugar onde tudo se encontra, somente alguém que possui em si as mesmas características,
alguns genes em comum com este espaço e, consequentemente, em constante dinâmica com o
mesmo, é capaz de compreender e inteirar-se com o funcionamento dele, da terra, dele com a
terra, com o universo, com o cosmos, com o Homem e com tudo aquilo que faz parte do
Homem, com o seu lado místico, mítico e selvagem e sua conexão com os animais, a
vegetação, o sol e a lua.
Nas mais variadas tradições, as feiticeiras, bruxos, pajés, curandeiros, tricksters e
filhos de santos possuem uma relação com o tempo muito especial, viajam pelo passado,
presente e futuro como se não houvesse barreiras temporais e são sempre ligados à natureza e
a este espaço chamado, pela maioria das crenças religiosas, de “espiritual”. Como já
mencionado, não interessa a esta pesquisa entrar em questões que dizem respeito à religião, o
importante é a relação que estes “xamãs” possuem com os universos concreto e sensível. O
xamã é o elo entre o mundo da realidade e o espaço sensível, imaterial e energético. Estes dois
mundos também são tocados pelo ator cada vez que ele se deixa habitar pelos dados sensíveis
que fazem parte de sua arte/profissão. No ator que faz uso da máscara, esta integração de
dinâmicas é ainda maior, por tudo o que a máscara significa dentro do teatro46, toda esta
conexão é potencializada ainda mais quando o ator que encarna as máscaras do Bufão, do
Zanni, Pulcinella, Capitano, Arlecchino e outras máscaras dell’arte invoca delas este lado
xamânico, abrindo os espaços conectivos entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético
Comum.
O Bufão e o Zanni, pela própria trajetória destas máscaras, as quais já foram
comentadas, fazem parte desta categoria de máscaras xamãs, desta integração dos mundos e
46
Para saber mais, ler: Tracce di teatro sciamanico tra Africa e Mediterraneo. Le maschere e la danza come
contatto con stati di coscienza ‘divers’ In Progetto Sciamano 2005, de Giovanni Azzaroni; Pulcinella, de
Anton Giulio Bragalia; O Teatro Grego – Origem e Evolução, de Junito de Souza Brandão; Les jeux et les
hommes – Le masque et le vertige , de Roger Callois ; As máscaras de Deus – Mitologias Primitivas, de
Joseph Campbell; Materiali e Riti per la preparazione e l’uso delle Maschere. Storie tra Commedia dell’Arte e
Maschere dell mondo In Progetto Sciamano 2005, de Claudia Contin; Pulcinella. La maschera nella tradizione
teatrale, de Carmine Coppola. L’Uomo e la Maschera. In Progetto Sciamano 2005!, de Alfonso Renzo
Degano; La maschera più piccola del mondo. Aspetti psicologici della clownerie, de Alessandra Farneti; .Le
corps Poétique, de Jacques Lecoq; LO SCAFFALE RACOLTA DE TEATRO. Il Paese di Pulcinella. Miti,
Magie, Misteri e Morte. “L’ombre de Dionysos. Contribution a une sociologie de l’orgie , de Michel
Maffesoli; Pulcinella. Il filosofo che fu chiamato pazzo, de Romeo de Maio; La maschera e il viaggio.
Sull’origine dello Zanni’, de Alessandra Mignatti; Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia
Dell’Arte, de Allardyce Niccol; La performance dei Mamuthones: tra rito e teatro. Ricerche e documentazione
su una delle più misteriosa tradizione sarde In Progetto Sciamano 2005, de Paola Pala; La danza e l’estasi: il
corpo sciamanico In Progetto Sciamano 20, de Eugenia Casini Ropa; Arte della Maschera nella Commedia
dell’Art, de Donato Sartori e BrunoLanata (org); Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra, de Roberto
Tessari; Zani Mercenario della Piazza Europe, Anna Maria Testaverde (org.); Dal rito al teatro, de Victor
Turner; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo, de Daniele Vianello.
124
compreensão das transformações da Terra, do cosmos e do Homem, de modo intenso. Muitos
foram os Bufões e os Zanni perseguidos pela igreja e acusados pela inquisição. Um exemplo
muito conhecido, e já comentado anteriormente, cujo destino foi a fogueira da inquisição, é
Domenico Scandella, o Menocchio - imortalizado por Carlo Ginzburg no livro “Il formaggio
e i vermi”. Ao longo do livro, Ginzburg refere-se a Menocchio como uma espécie de Bufão,
por toda sua história, modo de enfrentar a Igreja, de falar a verdade através de metáforas e de
expor sua visão de mundo sem receio. Menocchio era um simplório morador do interior da
região de Friuli, norte da Itália, contudo, um visionário, alguém com uma sabedoria telúrica,
com uma compreensão enorme e profunda das metamorfoses do mundo, por viver ligado às
transformações da terra, das plantações, da “química” realizada na cozinha para preparar
alimentos e por saber conhecer o ser Humano. Para Ginzburg, Domenico Scandella era um
sertanejo que possuía uma inteligência instintiva e emocional, própria de um Bufão.
Mas há também quem o coloca na categoria de Zanni, como Ambrosio Artoni no seu
artigo “Le radici medievale e folcloriche della maschera zannesca. Percorsi testuali e
iconografici” integrante do livro “Zanni Mercenario della Piazza Europea”, de organização
de Testaverde. O mesmo aconte no livro “La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni”,
no qual Alessandra Mignatti cita Menocchio usando-o como exemplo da relação que o Zanni
tem com a terra, com a lua, com a natureza do subsolo, com os vermes e toda a variação de
vegetação que cresce sob a terra. Para Mignatti, Menocchio era um Zanni, um homem
sertanejo curioso da vida e do mundo, não tinha uma aparência grotesca, nem era lascivo no
discurso como o Bufão, nas suas palavras, percebia-se mais uma curiosidade que um
enfrentamento, uma simplicidade, não necessariamente agressiva no tratamento com as
pessoas - um padre, um médico e uma pessoa comum, eram tratados da mesma forma - e,
principalmente, Menocchio não se travestia, e essa ausência do travestimento bestial, penso
que possa ser a principal razão pela qual Mignatti o vê como Zanni e não como Bufão. O que
esta pesquisatriz acredita, a partir das leituras e reflexões, é que Menocchio foi, então, um
Zanni da realidade objetiva que ajuda a fixar o arquétipo e o mito da “máscara zannesca”.
Verdadeiramente, para esta tese, tendo em vista a questão do travestimento bestial,
Menocchio é considerado um Zanni, mas a sua inteligência e ação de enfrentar a igreja –
poder institucional maior na época em que viveu - é típica de um Bufão, tanto é, que esta o
condenou à fogueira da inquisição. A única resolução a que se pode chegar é que talvez a
observação de Molinari sobre Tristano Martinelli sirva, também, para o caso de Menocchio:
quem sabe ele também seria “um Bufão que não queria abrir mão da forma humana, da
125
aparência do homem” e, para tanto, permaneceu como humano, mas da forma mais próxima
possível da sua natureza, como um verdadeiro Zanni.
Para esta tese, o Zanni é como se fosse uma metamorfose a mais do Sátiro em direção
à forma humana: de Dionísio ao Sátiro, ao Bufão, ao Uomo Selvático, ao Zanni e daí para as
outras máscaras dell’arte. Talvez este pensamento seja reflexo de uma compreensão do
comentário de Molinari - aquele em que afirma que Tristano Martinelle “se fazia o bufão,
certamente não estava disposto a renunciar de ser homem” – o qual acabou sendo de grande
importância para os encaminhamentos desta tese, pois reafirma a concepção imaginativa de
que os bufões eram seres deformados, animalescos e bestiais e que os Zanni eram grotescos,
das máscaras dell’arte, a mais próxima dos bufões, mas mantinham a forma humana, mesmo
que com algumas deformações. A aproximação de Menocchio, tanto do Bufão como do
Zanni, fez com que a imagem trabalhasse em um caminho estético evolutivo. Mesmo que se
possam encontrar iconografias de Zanni deformados e grotescos47, ainda assim, eles estão
muito mais próximos da forma humana que as iconografias de Bufões48. Apesar de terem a
forma humana, os Zanni continuam tendo a relação com o divino, com o mítico, com o
místico e com todo este universo trazido pelo Bufão das suas ancestralidades, fazendo dos
aspectos xamânico, grotesco e carnavalesco seus principais pontos conectivos.
São muitas as relações e os caminhos de interligação entre o Bufão e o Zanni. Um
deles é a exploração do próprio nome da máscara “Zanni”, pois esse nome traz consigo uma
série de ritos sagrados e profanos e do submundo da terra que se conectam íntima e
intensamente ao universo do Bufão.
Alessandra Mignatti, em La Maschera e il viaggio, faz um estudo aprofundado e
detalhado das várias nascentes do nome Zanni, o qual encontra eco em muitas manifestações
populares da Itália, antes mesmo da antiguidade pré Idade Média. Sabe- -se que o Zanni,
como Máscara e imaginário, é nato em Bergamo. Esta máscara é um arquétipo dos
interioranos bergamascos, que desciam das montanhas para trabalharem nas cidades como
carregadores, e este êxodo é um fato verídico, pois existem muitos documentos que
confirmam a informação migratória daquela região. Mas o Zanni, como Máscara, é muito
mais complexo que uma sátira de uma situação econômica. Segundo Anna Maria Testaverde
47
Pode-se citar como exemplo as iconografias de Jacques Callot, na Bibliothèque National de Paris. Algumas
delas podem ser vistas nos livros: La Commedia dell’Arte au XVI siècle, en 1601... et en 1981. Le Recueil
Fossard. Compositions de Rhétorique (1981) com apresentação de Pierre-Louis Duchartre; La maschera e il
viaggio. Sull’origine dello Zanni (2007) de Alessandra Mignatti e Zani Mercenario della Piazza Europea
(2003) com a organização de Anna Maria Testaverde.
48
Pode-se citar como exemplo as iconografias que estão no livro Serge Martin (2003): “ Le Fou Roi des
théâtres”.
126
(2003, p.11), a Máscara zannesca e suas características são interpretadas como uma
“rifunzionalizzazione in proiezione rappresentativa”, isto é, uma “refuncionalização em
projeção representativa” ao interno de um processo que sinaliza a passagem do ritual ao
teatro.
Alessandra Mignatti (2007) enumera muitas manifestações populares italianas
relacionadas ao Zanni49, algumas trazem esta relação de modo evidente e, em outras, de modo
indireto e até mesmo quase invisível no contexto atual.
A origem do nome Zanni sempre despertou muita curiosidade e um dos estudos com
maior repercussão foi o de Riccoboni (1730)50, o qual faz uma coligação do nome Zanni com
a palavra latina Sanniones - Sanniones ... Sannio ... Zanni. Segundo Riccoboni a palavra
Sannione, é sinônimo de “Bufão”, e estes Sanniones estavam presentes tanto na comédia
Attelana quanto entre os Mimos da Antiguidade (Sannio). Sandra Chacra (1983), no seu
estudo sobre a improvisação, também cita as fábulas Atellanas como possível nicho das
Máscaras dell’arte. Porém, Luigi Riccoboni faz um estudo mais detalhado deste possível
entrelaçamento e seu percurso.
Muitos outros estudos, como o da própria Alessandra Mignatti, afirmam que Zanni é
uma corruptela dialetal de Giovanni (Giovanni – Gianni – Zanni). Carlo Dati51, nos seus
estudos, traz um dado no qual afirma que na Espanha, em léxico antigo, os bufões das farsas
eram chamados de Giovanni, informação que, para esta pesquisa, é muito importante, porque
re-encaminha o pensamento para o vínculo entre Bufão e Zanni.
Como se pode perceber, a Máscara do Zanni contém muitos segredos e labirintos. Essa
figura de um servo vestido em trajes brancos, espada na mão e grande nariz adunco, de modos
rústicos, rudes, em alguns momentos, até mesmo animalescos, pouco civilizados, mas
também ingênuo e ignorante, no sentido de ignorar a vida citadina, tem conexões com a
história da humanidade desde a Antiguidade – considerando os rituais a Dionísio e todo o
percurso já mencionado.
A ligação do Zani com o universo dionisíaco, bufonesco e subterrâneo ou demoníaco
(aos olhos das religiões cristãs) pode ser vista de modo muito interessante e cheio de
entrelaçamentos e desdobramentos. Beccaria (1995) faz um grande panorama das transições
49
Por causa dos vários dialetos italianos, pode-se encontrar, também, Zani, Zan, Zane, Zoán, Cian, Gian, Duan,
Juvanne/Zuanne.
50
Este livro poce ser consultado na Bibliothèque National de Paris ou na Biblioteca Nazionale Centrale de
Firenze.
51
Carlo Roberto Dati trabalhou no Antico Archivio Storico della Accademia della Crusca (Firenze-IT) durante
muitos anos, nesta função realizou uma importante compilação de documentos e cartas de descrições contextuais
históricas, intitulada “Smarrito” (1667), a qual pode ser consultada na Collezione Magliabechiana da Biblioteca
Nazionale Centrale de Firenze.
127
dos nomes e palavras perdidas ou transformadas pelo tempo ao longo do percurso da
humanidade, buscando principalmente aqueles cujos significados originais
foram sendo
esquecidos ou omitidos por imposições clericais.
Mignatti (2007) propõe ainda este caminho da busca por explicações e coligações em
tempos remotos e línguas diversas, fazendo um passeio em outros idiomas, dando a
importante percepção de que o nome Giovanni é popular e, em muitas línguas, é o nome mais
comum entre as pessoas. Não é preciso ir tão longe para se certificar disso, basta observar na
cultura brasileira: Giovanni é João.
Continuando nas pesquisas de Mignatti, em alemão, entre outras etimologias,
Giovanni é Hans e Hans pode ser um modo de dizer “indivíduo, pessoa, alguém” (um “João
qualquer”, um “Fulano”). Quando o nome Hans vem coligado a um outro ou a um adjetivo,
tornando-se composto, pode ganhar outros significados. Desde o séc.XV, nas terças-feiras
gordas de carnaval, na Alemanha, o personagem Hans aparece fazendo par com Gütel, e os
dois formam o casal de bufões das festas carnavalescas. Os irmãos Grimm, em seus contos,
utilizam muitas composições deste nome: Hans Hagel – Zandiluvio; na versão francesa deste
mesmo nome (Giovanni - Jean – Jan), Janhagel é uma espécie de diabo que está sempre
procurando algo para beber, mas também é usado para falar de alguém que não pensa ou que
é um pouco louco. Este mesmo nome faz referência à tempestade, ao granizo e à saraivada, o
que tem muito a ver com a natureza e os rituais de fertilidade dos campos. Outro nome
alemão é Hans-narr-wurst, cujo significado é de loucura e de louco. Ou ainda, Hanswurst,
personagem que corre pelas ruas durante o carnaval batendo uma salsicha, tem uma conotação
vulgar e também pode ser coonhecido como Hanswort – Zansalsiccio. Existe ainda Jan Posset
ou Johan Bouset, que é usado para indicar uma pessoa qualquer, em alguns casos se refere,
especificamente, a um “corno”, por outro lado, “bouse”, em francês, é excremento bovino, o
que, por conseguinte, dá outro significado ao nome. Jean-fesse / Hans Arsch, nome com
referências vulgares, pois fesse é nádega em francês, mas aqui é usado para designar a parte
que fica muito próxima às nádegas, o ânus. Sem falar em Hans Ulrich, que é a
“personificação” do vômito.
Mignatti traz tantas nominações de personagens com cunho vulgar que utilizam o
nome Hans, Jean, Johan, João, Giovanni, Zanni ou Zan, que não caberia a esta tese enumerálas, mas se pode encontrá-las nos estudos de Mignatti, Beccaria, Tiraboschi, Testaverde, entre
outros.
Entre os exemplos realizados por Mignatti, vale ressaltar uma relação muito peculiar e
que, posteriormente, será muito importante. Mignatti vai buscar no Deutshes Wörterbuch,
128
importante dicionário diacrônico iniciado pelos irmãos Grimm (1877), onde se encontra Hans
Knochenreich, uma espécie de demônio, relativo à morte, ou ainda na Nave dei folli, de Brant,
Hans é alguém que ajusta a onda, de acordo com a idade e a força de quem deve arrastar,
parecendo ser a “própria” Morte. Aproveita-se esta ligação com a loucura para citar
rapidamente outra cadeia relacional: Zanni – Hans - Nave dei folli - loucos – Bufões – Sátiros
– Dionísio – mundo subterrâneo – demônios – inferno. Como dito, as relações do Bufão e do
Zanni com o universo “infernal” são bastante estreitas, e entrelaçam-se através de vários
caminhos.
O nome Giovanni, na Itália, sempre foi muito popular, pois foi muito divulgado pelo
cristianismo na figura de San Giovanni, que na forma dialetal bergamasca, transforma-se em
Zanni.
Os compostos com o nome Zanni viraram, inclusive, sobrenomes. No séc. XIII, os
sobrenomes Zambellus, Zambonus, Zambenedetti e outros deste tipo eram muito difusos. A
desconfiança, segundo Mignatti, é de que estes sobrenomes foram sendo fixados pelas
próprias famílias de commicos. Giovanni/Zanni, também na Itália, ganha adjetivos bastante
vulgares ou terríveis e é utilizado para nominar alguém ou alguma coisa por uma
característica específica.
Em torno do nome Zanni, encontram-se muitas curiosidades interessantes,
que
auxiliam, em algum grau, a compreender o universo desta Máscara. Em muitas partes da
Itália, o nome Giovanni é dado ao verme que vive na fruta. Algumas regiões como Emilia
Romagna, Toscana, Piemonte e Verona possuem muitos ditos populares52 do tipo “Em São
João, cada cereja tem o seu Joãzinho” e, em algumas regiões, como a do interior de Verona, a
cereja (mora) tem também o sentido de “moça” e Joãzinho pode ser interpretado como o feto
ou o caruncho; todas estas duas possibilidades são interessantes, uma é um ser em formação e
a outra é a maculação da imagem. Estes ditados populares também trazem a recordação de
que, na Itália, a festa de San Giovanni se interliga a antigos rituais, entre eles, os de
fertilidade. Estas festas não acontecem somente na Itália, muitas são as realizadas no Brasil no
período de junho e julho (festas de São João), vindouras de uma tradição antiga de festejos ao
solstício e à fertilidade.
52
Muitos provérbios populares se utilizam desta nominação. Em piemontese “A San Giuvan ogni ciresa a l’a
l’so Giuanin”; na campanha veronese “A San Doan ogni mora ga’l so Doanin”.
129
Antônio Tiraboschi53, grande estudioso das tradições orais, principalmente, dos
dialetos italiano, catalogando canções, histórias e superstições e a estudiosa das tradições
dell’arte, Alessandra Mignatti, a qual cita os estudos de Tiraboscchi, trazem a informação de
que em uma parte da região bergamasca, acreditava-se que era exatamente na noite de San
Giovan que os vermes entravam nas frutas, para torná-las não comestíveis. Mas de onde vem
essa crença popular? Como São João se iguala a vermes? Como “San Zanni” se relaciona com
este mundo verminoso?
Para esta tese, este labirinto é muito valioso, pois se coliga com a técnica criada para o
Bufão, a qual busca muitos impulsos no mundo subterrâneo, na terra e nas imagens de
vermes.
Muito interessante, também, é muitas formas dialetais derivadas de Giovanni – Zanni
– Zan – Cian – Gian se relacionam com o mundo verminoso e subterrâneo do Bufão. Por
exemplo, o nome dado à sanguessuga em dialeto ladino-moenese é Zangheta.
Em dialeto genovese, Zänello é o nome dado ao verme da castanha, enquanto que
Zambèl significa situação enganosa. Ainda em genovese, Zanzugol é uma pessoa sem caráter
e “zanella dei fossi” significa cova ou valeta dos mortos, uma conexão interessante para a
Máscara em questão, já que Zanni tem muitos ligames com o mundo dos mortos.
No dialeto de Abruzzo e Molise (Zan = Cian ou Gia), o verme dos legumes se chama
ciambene, enquanto que giammichiellu é o nome do vaga-lume, também uma conexão
interessante, pois mesmo este é um inseto que produz luz. É conveniente ressaltar que São
João Batista, veremos mais tarde, tem uma relação muito estreita com os insetos. Nesta
mesma região, ciambrone é “minchione”, um modo vulgar de nomear o pênis e ciambambele
é o nome dado ao pênis do porco – conexões com a grande fome e com a sexualidade do
Zanni.
Na região toscana, a palavra “zana” é empregada no sentido de brincadeira, chacota,
divertimento, mas também para nomear uma espécie de cesta de forma oval, feita de vime,
que se transforma em berço, uma espécie de moisés, o que também é uma boa versão para o
Zanni, uma vez que, em muitas iconografias, Arlecchino aparece com uma gerla (espécie de
cesto corniforme que se carrega nas costas) cheia de crianças. Em outras pinturas, o próprio
Zanni utiliza a zana para carregar coisas e, como já dito, ele tem a fome sexual exacerbada,
53
Os estudos de Antonio Tiraboschi (1838 – 1883), tais como “L'anno festivo Bergamasco”, “Canti popolari
bergamaschi”, “Il gergo dei pastori bergamaschi”, “Vocabolario bergamasco”, “Il Vocabolario dei dialetti
bergamaschi antichi e moderni”, “Raccolta dei Proverbi Bergamaschi”, “Gli usi di Natale e di Pasqua nel
bergamasco” e “Fiabe bergamasche” - podem ser consultados no Archivio della cultura di base no Sistema
Bibliotecario Urbano, de Bergamo.
130
uma fome carnavalesca, que, consequentemente, tem muito a ver com a fertilidade. Outra
ligação que não se pode esquecer é que, nos cortejos dos Charivari, o cortejo da noite dos
mortos dos carnavais medievais, os Bufões e o próprio Hellequin guiavam uma grande zana
cheia de espíritos de crianças mortas54.
Na região calábria, “zanna” ganha sentido de troça e zammara é o nome de um
instrumento que os Zanni aparecem tocando em muitas iconografias, é uma espécie de flauta
feita de bambu, tradicional das regiões campeiras e com uma melodia “encantatória” – o que
re-encaminha ao poder fascinante das flautas dos Sátiros.
Tiraboscchi, entre as várias utilizações da palavra Zanni e de derivações desta,
encontrou zana como fome ou meretriz e zanàt como esfomeado – estas três derivações se
integram muito bem ao caráter do Zanni. Em suas pesquisas de campo, na região bergamasca,
Tiraboschi também encontrou o nome de “zannóne” para um viajante vagabundo ou, quando
utilizado no feminino, para se referir a uma moça namoradeira e assanhada.
As derivações da palavra Zanni são muitas e variadas (podendo citar, novamente, os
estudos de Tiraboscchi, Mignatti e Beccaria), algumas com relações muito interessantes para
esta pesquisa. Contudo, deixa-se um pouco de lado estas curiosidades e faz-se um salto para a
poesia de Dante Alighieri (1265-1321). Na sua obra mais famosa: a “Divina Comédia”, traz
um personagem muito conhecido, o qual protagoniza o canto XXII do inferno. Nesta
passagem, o diabo Alichino aceita o desafio de Ciampolo que, para se salvar, desafia-o em
uma corrida e o vence. Alichinio, enraivecido, começa uma discussão e, depois, uma briga
corpo a corpo com outro diabo e terminam caindo no lamaçal do inferno. Enquanto os diabos
se debatem no lamaçal sem conseguirem sair dali, Ciampolo fica feliz, pois conseguiu
escapar, mais uma vez, do caldeirão. Mas quem é Ciampolo? Quem é este personagem que
engana o diabo Alichino? Ciampolo é um personagem que vem de outra história, ainda mais
antiga que a “Divina Comédia” e não tão conhecida, mas que Menocchio a guardou na
memória: trata-se da história de dois buffões – Zampolo/Ciampolo e Taiacalze/Tagliacalze.
Zampolo, depois de morto e de ter estado no paraíso, conversado com São Pedro, vai até o
inferno procurar seu amigo, Taiacalze, e o reencontra. Taiacalze, antes do reencontro, para
fugir dos caldeirões da cozinha infernal, faz uso de todas as suas técnicas bufonescas e de
ator, obtendo sucesso nas suas expectativas e escapando dos caldeirões infernais. Ao se
encontrarem no inferno, em frente a Belzebu, os dois dançam, fazem evoluções bufonescas e
54
Algumas iconografias dos Charivaris podem ser vistas em: Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomonatura in antiche tradizioni carnevalesche In Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mon, de
Claudia Contin & Ferruccio Merisi. La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni , de Alessandra
Mignatti.
131
acabam ganhando, também, a amizade do Demônio. Mais uma vez a imaginação trabalhou
unindo duas histórias distantes, detalhes contados por Menocchio enriqueciam a história do
Bufão ou Zanni em visita ao inferno.
Muitas são as derivações da palavra zanni e muitas são as versões e histórias que
contam as idas e vindas dos servos da commedia dell’arte ao inferno e ao céu. Muitas das
relações de Zanni com os deuses celestiais fazem parte da herança deixada por San Giovanni
e as relações do santo com os vermes e o mundo subterrâneo.
San Giovanni é festejado em junho, a comemoração de seu nascimento coincide, na
Europa, com o dia do solstício de verão - para nós, o solstício de inverno com as festas
juninas (pipoca, pau-de-sebo, balão, fogueira...). Esta ligação do santo com o verão europeu é
muito importante, pois, antigamente, era quando se iniciavam os ciclos de fertilidade. Apesar
da origem católica cristã, San Giovanni tem muitas ligações com crenças populares da Itália
que, por sua vez, possuem fortes relações com os rituais pagãos de fertilidade.
É difícil de desvencilhar São João Batista da imagem do santo católico, mas até
mesmo este santo tem conexões com a Máscara do Zanni. Dentro das figuras santas, São João
Batista foi um mensageiro, um profeta, um visionário - um xamã. Para quem quiser
acompanhar o percurso detalhado de São João Batista, basta se dirigir à Bíblia, no Novo
Testamento, no capítulo dedicado ao “último profeta e primeiro apóstolo”, como São João
Batista é lembrado em muitos rituais católicos, mas para quem deseja ter uma leitura mais
dinâmica e relacional com a máscara do Zanni da vida de San Zeovan, Mignatti (2007) a faz
de forma interessante e incitante.
Na história, São João se exilou no deserto, sofreu tentações, foi posto a prova, um
exemplo perfeito de guerreiro que vive entre o Bem e o Mal, entre as trevas e a luz, sozinho
no deserto como um “Uomo selvaggio”, vestido com peles e vivendo fora dos domínios da
cidade, comia gafanhotos e mel (este comportamento de João Batista também é citado no
texto teatral de Oscar Wilde “Salomé”).
Se pararmos para pensar em uma relação muito especial, o mel é uma substância
muito utilizada em rituais pagãos. E não precisa nem ir até a Europa para lembrar disso, na
própria cultura indígena brasileira, o mel tem propriedades curativas e xamânicas e, no
candomblé e na umbanda, é muito utilizado para atrair boas energias. Já na Europa, na Idade
Média, quando os reis se enraiveciam com os seus bufões, como castigo, estes eram banhados
em mel, depois cobertos de penas e expostos em praça pública para serem linchados pelo
povo, que cuspiam em suas faces, jogavam coisas e os insultavam (WILLEFORD, 2005).
Sem falar que, na Itália, na região das montanhas, principalmente em Piemonte, o urso, cujo
132
alimento é o mel, é um símbolo do carnaval (ARTONI apud TESTAVERDE, 2003). Assim,
mais uma vez, nesta pesquisadora, as informações levam a uma conexão deste San Giovanni
com o carnaval.
O gafanhoto também tem uma forte significação e aumenta a crença em “San Zanni”.
Um inseto que integra as sete pragas do Egito. Imagina a crença que o povo tinha no poder
sobrenatural de um homem que se alimenta de uma praga, de uma força destrutiva, “San
Zanni” a deglutia e digeria, fazia dela seu alimento, isto é, transformava a destruição em vida.
Este processo digestivo é uma inversão de força (ou poder) típica dos bufões e, mais uma vez,
a imaginação trabalha nas conexões subterrâneas.
Mignatti e Tiraboscchi citam, ainda, uma outra ligação de San Giovanni com insetos,
na região de Bérgamo existe uma crença que envolve o santo e as formigas. Esta manifestação
de “entrelaçamento” vai do dia 15 de agosto (ferragosto - é a festa de “assunção de Maria”)
até 29 do mesmo mês – dia do martírio de San Giovanni. São formigas voadoras que, a partir
do dia de ferragosto, começam a se dirigir ao Monte San Giovanni, no Valle Caleppia, para
fazerem seus últimos vôos de invasão da igreja no dia 29, tomando-a por dentro e por fora e
ali morrerem. Não se sabe como esta lenda nasceu, nem porque estas formigas vão até esta
igreja neste período do ano. Há muitos documentos, como notícias de jornais, cartas e livros,
dedicados aos costumes bergamascos que falam dessa lenda55. Para esta pesquisa, esta ligação
de insetos e vermes com “San Zanni” é bastante significativa, por todos os ligames com o
mundo subterrâneo que já foram mencionados, também no estudo e processo da técnica criada
do Bufão e que se estendem em um DNA imaginal ao Zanni.
Outra crença interessante que faz a ligação de Zanni com o mundo subterrâneo, citado
por Mignatti, vem de uma espécie de tratado, de cunho católico, feito no séc. XI por Michele
Psello, no qual este faz uma espécie de apanhado das formas que o Diabo pode se manifestar.
No seu período de estudo, Michele encontra um monge que relata sobre a multiplicação dos
demônios através do próprio sêmen que, caindo por terra, transforma-se em vermes, e estes
mesmos vermes originais também saem nos excrementos. Esta pesquisa sobre as formas que o
demônio pode se apresentar ou tomar, também é realizado por Beccaria (1995) e a forma de
verme, também nos seus estudos, é comum estar ligada ao demônio.
Mais uma vez, os vermes tornam-se equivalentes ao demônio (e a imaginação age
nesta pesquisatriz, ainda mais), e, num pensamento lógico, os insetos gerados destas larvas
55
Alguns destes documentos podem ser lidos no Archivio della cultura di base no Sistema Bibliotecario Urbano,
de Bergamo, juntamente com os escritos de Tiraboscchi.
133
devem ser vistos como herdeiros desta carga originária e, outra vez, o Zanni toma esta
igualdade infernal. Lembrando, ainda, que Giovanni é o termo dialetal utilizado para não
dizer o nome do diabo.
Existe outra história, relatada por Mignatti, ligada ao mundo subterrâneo, na qual o
agente é uma árvore de nozes. Esta árvore parece morta durante todo o ano e, de uma hora
para outra, na época das festas juninas, se enche de folhas, flores e depois frutos – o mais
curioso é que o verme da castanha e da noz é chamado de Giovanni, como também o são, os
vermes das outras frutas, conforme os ditados populares citados anteriormente.
Na crença popular bergamasca, as nogueiras são tidas como árvores do diabo, pois é
aquela que, nos rituais de sabá, as feiticeiras dançam em torno, inclusive, aparece no centro de
algumas iconografias encontradas nas paredes das casas de Bergamo, cujas datas são do
séc.XV e possuem como tema, o ritual de feitiçaria e danças macabras56.
Como já foi dito, o período das festas juninas é um período que assumia, na
antiguidade, um significado muito especial, já que era uma temporada de muitos ritos e, na
maioria destes, existia uma forte relação de comunhão entre seres humanos e plantas
(BECCARIA, 1995). Tais rituais e crenças tinham forte influência sobre os moradores das
montanhas, em cujo âmbito, segundo Piero Camporesi (1993), o feijão e a fava tomam uma
dimensão ritualística, eles são grãos ícones da fertilidade. O feijão possui uma forte ligação
com o mundo popular, tanto da festa, quanto da morte. Ele é um dos principais alimentos dos
populares e não só na Itália antiga.
Feijão, comumente, é um alimento popular e, no Brasil, é forte presença entre as
classes mais baixas, trabalhadores rurais ou braçais. Ele é um alimento rico em ferro, o que
fortalece o organismo, e toda esta força é retirado do solo, das profundezas da terra. O Feijão,
na feijoada, conquistou o “senhorio”, é uma comida rústica que acabou conquistando
“estômagos requintados”, ganhou a conotação de festa e a importância de patrimônio cultural
– exemplo de inversão carnavalesca. Na Itália, também, o feijão e o nabo, os dois juntos
simbolizam o órgão genital masculino:
[...] fruto de raiz sem medida, da polpa branca e leitosa, fincada como um falo rico
em sêmen, na quente, negra e úmida terra, devia ser semeado de acordo com a
liturgia pré-cristã, com o corpo nu e acompanhando a semeadura com preces e
56
As pinturas não trazem nomes específicos para os rituais e danças e nos arquivos bibliotecários da cidade de
Bergamo, são citadas apenas como “Danze Macabre” ou “Saba”. Algumas destas pinturas podem ser vistas em:
Zani Mercenario della Piazza Europea, organização de Anna Maria Testaverde; L’Arte del Buffone. Maschera
e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo, de Daniele Vianello; La maschera e il viaggio. Sull’origine
dello Zanni, de Alessandra Mignatti.
134
fórmulas propícias para que a raiz cresça bonita e grande. Rito de religião telúrica,
57
inferior e genital, coligado magicamente à geração (CAMPORESI, 1993, p. 19).
Piero Camporesi é um grande estudioso da cultura popular italiana primitiva e
medieval, principalmente da obra de Giulio Cesare Croce, criador de Bertoldo, um
personagem, ou como ele chama uma máscara grotesca e carnavalesca da mesma época de
Gargantua e Pantagruel. Bertoldo, tanto quanto os personagens de Rabelais, reúne em si os
princípios vital e moral do carnaval. Bertholdo tornou-se tão concreto que atingiu o patamar
de Máscara, trata-se de um Zanni ou de um Bufão, ele está neste mesmo lugar de Menocchio entre o Bufão e o Zanni. Porém, Menocchio foi uma pessoa da realidade objetiva que
intensificou o arquétipo do Zanni, enquanto Bertholdo foi mais uma atividade lúdica que
pungiu a realidade objetiva, perpetuando um DNA imaginal. Bertoldo é extremamente ligado
aos rituais telúricos conectados à terra e ao cultivo desta e dos legumes “símbolo da
continuidade fecunda da vida além da morte, em uma civilização ligada à terra”
(CAMPORESI, 1993, p.21) .58
Estes legumes que se nutrem da terra e nutrem o homem de modo visceral e
“espiritual” fazem parte de apenas um dos ligames da relação do Bufão e do Zanni com a terra
e com todo este universo subterrâneo, como também com esta religiosidade telúrica na qual a
vida e a morte do homem conectam-se com a dos animais e plantas.
Este telurismo pode ser visto em iconografias, nas quais o Zanni aparece em danças
macabras de rituais mágicos ou então marcado pela presença da lua, que é um símbolo muito
importante do telurismo, pois com suas fases ela simboliza nascimento e morte em um ciclo
contínuo e tem grande influência na fecundação da terra. Uma das imagens mais estudadas e
que ilustra esta conexão telúrica do Zanni é a xilogravura intitulada “Frota d’um padre, e
d’um servo. Intitolata Zannin da Bologna” que pode ser vista na Biblioteca Alessandrina em
Roma. Trata-se de uma imagem muito simples, mas se estudada cuidadosamente, como o fez
Mignatti, e levando em conta a época e o contexto em que foi criada (séc.XIV), pode-se
perceber nitidamente as características da ligação telúrica do Zanni com o universo: do lado
esquerdo está o patrão com seu campo seco e sobre o patrão, o sol; do outro lado, o Zanni,
57
Tradução da autora: [...] frutto dalla radice smisurata, dalla polpa bianca e lattescente, conficcata come un
fallo ricco di seme nella calda, nera e úmida terra, doveva essere seminato secondo la liturgia agraria precristiana a corpo nudo, accompagnando l’interramento con preghiere e formule propiziatorie perché la radice
cresce bella e grande. Rito di religione tellurica, inferica e genitale, collegato magicamente alla generazione
[...].
58
Tradução da autora: “Simbolo della continuitá feconda della vita oltre la morte in una civiltá legata alla
terra.”.
135
com plantas e sobre ele a lua, com todas as suas fases e entre os dois, no solo, uma planta com
a palavra “inveja” escrita sobre ela.
Para esta tese, é muito interessante a ligação que as religiões telúricas têm com a lua,
um símbolo de fecundidade, mas também de morte e de todo este sistema metamórfico e
dialético de vida e morte, o qual representa através de suas fases que se repetem infinitamente.
Muitas pinturas mostram a ligação entre vida, morte e natureza com o Zanni. Em
Cassiglio, cidade nos domínios de Bergamo59, podem ser vistas muitas pinturas com este
argumento. Por exemplo, nas paredes de uma casa do séc. XVIII, pode-se ver a pintura
intitulada Danza Macabra: um urso, um macaco e outro animal não identificado, o qual
lembra um bode ou um leão ou, para esta tese, um Bufão com seu travestimento bestial, cada
qual ao lado de uma árvore (Seriam nogueiras? É difícil de identificar). No fundo, estão duas
velhas acorrentadas a um esqueleto - a Morte. Ela ferirá com uma flecha um cavaleiro, ao
lado deste está um Zanni, um Brighella, que dança ao som de um alaúde e sem medo da
presença da Morte.
Pinturas similares a esta, com Zanni, Bufão, Morte e animais, são vistas por toda a
cidade de Cassiglio, em casas e igrejas. Mas não se consegue identificar qual dança
ritualística o Zanni destas pinturas está fazendo, se a de San Giovanni, de San Vito, do
Tarantismo ou qualquer outra.
As danças rituais, geralmente, têm como característica o transe, o distanciamento da
realidade, o deixar-se levar para outra dimensão. É por esta característica xamânica que, em
pinturas cujo tema é a commedia dell’arte e danças macabras ou ritualísticas sejam o
argumento, sempre são os Zanni ou outros servos que estão a dançar.
Mas o transe e a Máscara estão presentes em muitas culturas - lembrando que não se
está falando da máscara somente como objeto, mas também de uma máscara física, pois cada
Máscara dell’Arte tem um corpo específico, tal qual o Bufão - mas isso será visto mais
adiante. Um exemplo disso na cultura brasileira é o Candomblé, ritualidade em que as
entidades e orixás possuem uma dança, uma gesticulação, um corpo e uma energia específica.
Neste patamar de corpo Máscara, depois de todas as explicações da ligação do Bufão e do
Zanni com as religiões telúricas e com o carnaval - como visão de mundo – fica mais simples
realizar a conexão do Bufão, do Zanni, da Servetta, enfim das Máscaras dell’Arte com as
Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras.
59
Esta mesma pintura pode ser vista em: La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra
Mignati.
136
Retornando um pouco, nesta conexão entre Homem, animal, vegetal, mundo real e
mundo subterrâneo, muitas são as conexões que podem ser feitas entre o Bufão e o Exu –
algumas delas foram mencionadas anteriormente. O Exu, Orixá do submundo, no sentido de
estar sob a terra, pode auxiliar na compreensão desta ligação mítica da máscara com aqueles
que a faziam, primeiro como ritual ou como escolha de vida e, depois, mais tarde, como
profissão, onde mesmo na cena ainda possui uma conexão com o seu lado mítico e místico.
Ainda que, para o ator, seja necessário acioná-lo com veemência.
Dionísio, Exu, Bufão e Zanni possuem conexões com este universo de inversão de
poder, de mundo, de carnaval, todos estão ligados à sobrevivência instintiva, à fertilidade, às
várias fomes, ao subterrâneo e, também, são seres resultantes de uma comunhão entre os
mundos animal, vegetal e humano, seres metamorfoseados e metamorfoseantes. O Brasil não
teve o Uomo Selvaggio ou o Sátiro, mas possui outras representações deste universo telúrico
xamânico, e esta pesquisa escolheu e foi escolhida pela conexão de um DNA imaginal que
atravessa o tempo e as fronteiras territoriais, conectando-se ao Exu. É preciso chamar a
atenção para o fato de que o Exu sofre uma grande rejeição principalmente pela sua relação
com as religiões católicas que realizam sua correspondência, no sincretismo, como o
demônio, porém, mais ainda, como a personificação do mal, pois para o catolicismo ou
cristianismo, essa é a usa imagem. Porém, na técnica do Bufão criada, os corpos são
grotescos, podendo, até mesmo, serem demoníacos, pois adquirem forças nas ligações
telúricas, metamorfoseantes, instintivas e animalescas, mas não relacionadas com um suposto
Mal.
Reafirma-se, então, a posição adquirida para esta pesquisa, pois não se pode deixar de
falar sobre a ligação do Bufão e do Zanni com o universo infernal. Não é somente através da
lua e da conexão com a terra que a Morte relaciona-se com estas Máscaras, ela também se
conecta através da figura do próprio Diabo, como mencionado muitas vezes neste percurso.
Muitas são as histórias que envolvem Zanni e/ou Arlecchino e diabos, são histórias que
contam as aventuras destes Ciampolo, Taliacalze, Arlecchino, Arlequin, Alichino, Hellequin,
Herlequin no mundo infernal.
Como comentado, Zanni e Arlecchino aparecem na literatura de Dante. Também
aparecem em Danças Macabras e em rituais selvagens de fertilidade. Arlecchino/Hellequin
participava da noite dos mortos dos carnavais, guiava os carros-berços dos Charivari e tornase uma figura importantíssima dentro destes cortejos. Os cortejos fúnebres carnavalescos
eram eventos comuns nas festas carnavalescas, as quais aconteciam durante todo o ano,
porém, eram mais intensificadas em fevereiro. No decorrer da história, o carnaval foi sendo
137
restrito ao seu período mais intenso – fevereiro. Mas mesmo assim, inconscientemente, as
expectativas carnavalescas e o seu espírito têm início no mês de dezembro, na expectação do
reinício do ano e, com isso, de uma nova vida. O carnaval acaba sendo a “continuação” do
“Ano Novo”, o qual também tem toda uma significação muito interessante. O “Ano Novo” é
o início de um novo ciclo de vida, é uma reinauguração do tempo e renovação da vida (data
que o cristianismo e catolicismo deram uma nova interpretação, através do nascimento de
Jesus). Um ano morre, para nascer um outro. Em Nápole, ainda existe a tradição de, ao som
dos fogos de fim de ano, jogar pela janela velharias, como símbolo de desfazer-se do passado
e promover o recomeço de uma nova vida.
A perspectiva de uma nova vida, em dezembro, dá início ao movimento de instauração
do caos, para depois estabelecer uma nova ordem... crença da Antiguidade. Este movimento
de caos tinha o auge em fevereiro, no carnaval e depois da noite dos mortos, quando a
inversão da ordem era suprema, recomeçava-se o ciclo da organização (quarta-feira de cinzas
e quaresma). Faz parte das tradições antigas acreditar que a ordem só poderia ter o seu
renascimento depois de sua total destruição.
Na evolução deste ciclo de renovação da vida e reorganização do cosmos, em Etrúria
(IT), o Ano Novo era o início das comemorações do Carnaval, de Februus, divindade etrusca,
cujo ritual começava no final de dezembro e finalizava na metade de fevereiro e significava a
purificação dos vivos e o retorno dos mortos. Destas antigas comemorações é que surgiram os
cortejos dos Charivaris, da noite dos mortos no carnaval – os Charivaris também possuíam
vertentes na Alemanha e na França.
Muitas festividades fúnebres traziam a “presença” dos mortos através da utilização de
máscaras. Na região de Bergamo, em Valverde, antigamente, existia a tradição de que, nos
cortejos fúnebres, os familiares travestiam-se com as roupas dos mortos, simbolizando o
próprio defunto ali presente – vida e morte unidas no cortejo. Em alguns cortejos, além das
roupas, os entes também endossavam a máscara mortuária do defunto sublinhando a sua
presença “vida” no seu próprio funeral.
Em alguns lugares, sempre nas redondezas de Bérgamo, esses cortejos repetiam-se na
noite dos mortos do Carnaval, que coincidia com o fim do Tríduo dos Mortos, feito pela igreja
católica, que, ao que tudo indica, tem origem nesta celebração a Februus. Fazia parte desta
celebração, a romaria com velas acesas, o costume era de fazer o cortejo pelas ruas da cidade,
em favor das almas dos mortos, “limpando-a” e iluminando-a para que a vitória sobre os
inimigos acontecesse. Mas está é uma das conexões, o cortejo dos Charivari possui várias
coligações com vários outros rituais dedicados a Marte, a Februus e outros deuses. Mais tarde,
138
a igreja adestrou, catequizou e deu novo nome a este rito, é a “Purificação de Maria”,
comemorada pelo calendário católico no dia 02 de fevereiro. As conexões rizomáticas dos
rituais pagãos e católicos esparramam-se como ervas daninhas e o tapete gramíneo é imenso...
Conforme visto, o Zanni possui muitas conexões com as festas Juninas, e ainda
incorpora o Carnaval e a Morte, é considerado o xamã das plantas e animais, um representante
do mundo subterrâneo, é “[...] aquele mágico paralelo que une a fertilidade humana, animal e
vegetal [...]” (MIGNATTI, 2007, p.94)60. O Zanni é, como o clown, herdeiro de um DNA
imaginal vindouro além Bufão.
Toda esta ligação entre o Bufão, o Zanni e o reino dos mortos, da terra, da semeadura,
das plantas, da fertilidade, durante o carnaval ganham mais força. O Bufão ganha a liberdade
da obscenidade através dos caminhos ritualísticos, quando o corpo nu e a fertilização da terra
com o sêmen humano faziam parte do ciclo de fevereiro.
Através deste rizoma é que a obscenidade se fortalece como instrumento do Bufão, do
Zanni e de outras Máscaras dell’Arte. A obscenidade também se foi tornando instrumento da
inversão da ordem através desta ligação com a terra, não porque o obsceno é transgressor da
moralidade, mas porque o ato de fertilizar a terra, vindouro dos rituais antigos, faz parte de
uma força telúrica que integra homem, animal e vegetal. A sexualidade faz parte da
fertilização do cosmos e na festa carnavalesca potencializa-se e transforma-se em uma das
principais forças do popular, conforme indica Backthin.
No caleidoscópio das Máscaras dell’Arte, Manifestações Espetaculares Populares
Brasileiras e diversos Rituais, torna-se difícil fazer um caminho em linha reta. É preciso
constatar algumas das diversas conexões de uma Máscara para justificar os caminhos
escolhidos para criar uma técnica como a dos Bufões, totalmente ligada ao telurismo e ao
jogo-festa-ritual. Como, também, para esclarecer os procedimentos de apropriação de um
gênero de teatro específico, no caso, a commedia dell’arte, através de células de
Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras. Utilizando estas como ponto de partida
para a compreensão de universos e, daí então, a criação de uma técnica de Bufão e de uma
possibilidade de acesso às máscaras dell’arte.
Após o relato da técnica criada para o Bufão, da compreensão do seu universo e do
desdobramento deste no Zanni, começa-se a relatar o caminho percorrido para a apropriação
das máscaras dell’arte. Para tanto, a ordem que se seguirá será a do conhecimento prático
adquirido ao longo do estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore e de outras experiências
60
Tradução da autora: [...] quel magico parallelo che unisce la fertilità umana, animale e vegetale [...]”.
139
solos realizadas e não uma cronologia histórica das Máscaras dell’Arte ou das Manifestações
Espetaculares Populares Brasileiras.
140
4. FESTAROLAS E TRANSDUÇÕES1 - TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA
DELL’ARTE
“Toda investigação do imaginário social-histórico redunda em fascínio”
Monique Augras (2009, p.13)
Tentar rastrear os transcursos rizomáticos engendrados pela imensidão líquida do
imaginário é muito complicado. Principalmente, porque este é constituído de forma não
hierárquica, o que coloca todos os seus elementos formadores (afluentes) numa mesma
situação. Tentar organizar uma apresentação destes “afluentes” implica em colocá-los numa
ordem o que, se faz necessário lembrar, não tem a ver com hierarquia. Estarei fazendo, neste
primeiro momento, uma apresentação das práticas espetaculares populares brasileiras que
integram esta pesquisa, deixando as máscaras dell’arte (Zanni, Servetta, Cortigiana,
Pantalone, Capitano, Nobile, Arlecchino e Brighella) para o momento posterior. Contudo, as
máscaras poderão ser citadas para marcar algumas de suas relações com as práticas
espetaculares populares brasileiras apresentadas. É conveniente ainda lembrar que uma
relação mais detalhada da relação dos códigos será mostrada no capítulo seguinte.
O modo como percebi que poderia acessar as máscaras dell’arte foi através de uma
percepção sensível, um caminho subjetivo que minha musculatura descobriu antes que eu
racionalizasse sobre esta possibilidade. Foi quando cursava a graduação em teatro na
Universidade Federal de Santa Maria, numa aula prática de commedia dell’arte com a Drª.
Inês Marocco, em que estávamos aprendendo a movimentação da máscara do Arlecchino e
onde seguia todas as suas indicações. Em determinado momento, quando estava praticando a
caminhada desta máscara (cujo passo é duplo, avançando com dois passos seguidos com cada
perna, mantendo os joelhos semiflexionados e o baricentro baixo), minha musculatura acessou
o mesmo circuito muscular que utilizava para realizar o “avanço” da capoeira regional, e para
a forma da movimentação (ângulos dos joelhos, cotovelos e quadril) e postura que o corpo
permanecia quando parava, minha musculatura foi buscar suporte nos circuitos da dança do
frevo.
Transdução, na física, é um processo pelo qual uma energia transforma-se em outra de natureza diferente e na
genética é a transferência de ADN (Ácido Desoxirribonucléico - ou DNA, como é conhecido) entre bactérias tomo emprestado esta nominação de um mecanismo da física e da genética, utilizando, mais uma vez, a força da
metáfora, defendida por Bachelard e Maffesoli como grande potência para o aprendizado e compreensão. Utilizo
o termo, justamente, para tentar compreender e explicar o mecanismo imaginativo que se realiza neste trabalho. 1
141
Na minha imaginação, parecia que a máscara de Arlecchino, ao invés de caminhar
seguindo a partitura dada, caminhava/dançando um passo que misturava frevo e capoeira e
tudo indicava que aquela mistura funcionava, pois a máscara, aos olhos da professora e da
turma, tinha ganhado vida. Foi assim que, posteriormente, devido ao envolvimento com o
universo da máscara e os desdobramentos deste trabalho, reaproximei-me das máscaras
dell’arte e fui compreendendo o que tinha acontecido naquele momento – minha musculatura
acessava experiências vivificadas para, antropofagicamente, fazer o novo que lhe era
proposto. Isto é, para fazer a movimentação da máscara do Arlecchino (o novo), minha
musculatura convocava os circuitos musculares que já conhecia (a capoeira e o frevo) e que se
aproximavam ou se igualavam, em alguma instância, daquilo que “o novo” lhe exigia.
Olhando pelo lado da praticidade, não tem nada de novo ou absurdo neste processo, pois a
musculatura realiza, uma certa “economia”, utilizando-se daquilo que já é inerente a ela e que
tem controle para alcançar o “novo” que lhe está sendo proposto.
A partir do momento em que compreendi o processo pelo qual passei quando estava
aprendendo a máscara do Arlecchino e misturei a esta frevo e capoeira, tracei como objetivo a
aprendizagem de outras práticas espetaculares populares brasileiras. Não pensei quantas, nem
quais, mas sabia que o caminho para me apropriar das máscaras dell’arte era me apropriando,
primeiro, das práticas espetaculares populares brasileiras – da minha própria cultura popular.
Este caminho foi sendo realizado tranquilamente: aprendendo vivências cirandeiras,
conhecendo cavalo-marinho, saudando caboclinho, maracatuando em lança, sambando em
terreiros, frevando em coco, xaxando capoeira e maculelê. Cada experiência ao seu tempo,
com o prazer de fazer festarolas, mas com a seriedade de um explorador curioso e apreensivo
em compreender as transduções conectivas de um espaço abstrato e sensível que trabalha em
uma memória muscular comovida por afetos.
A primeira das manifestações espetaculares, com a qual tive contato foi o frevo. Ainda
cedo, antes mesmo de começar a fazer teatro, num curso de danças populares. Esta dança,
posso assim dizer, foi o primeiro eco das vibrações dos elementos arcaicos da alma, que se
pronunciou conectando-se, de modo subterrâneo, mas intenso, com as máscaras dell’arte e foi
a primeira das práticas espetaculares populares brasileiras apreendidas, daquelas que formam
o conjunto que integram esta pesquisa.
O frevo foi criado em Recife e trata-se de uma dança ágil e que requer muito vigor
físico do dançarino. Segundo a pesquisadora Ana Valéria Ramos Vicente (2008), o termo
“frevo” foi publicado pela primeira vez em 1907, e sua consolidação como expressão – no
âmbito da dança – deu-se paralelamente à emergência de uma nova classe social advinda do
142
final do sistema escravista e composta por diferentes representantes das classes menos
favorecidas (antigos escravos, capoeiristas, trabalhadores de canaviais, empregados, etc.).
Vicente comenta que a música do frevo é uma resultante da mistura entre polcas2,
dobrados3, quadrilha4 e maxixe5, tocado em compasso binário ou quaternário e andamento
rápido. Já a dança do frevo, continua Valéria Vicente, surgiu do diálogo desta música bem
misturada e o jogo dos capoeiristas, no final do séc.XIX, na cidade de Recife⁄Pernambuco. Na
sua pesquisa sobre o frevo, Ana Valéria Ramos Vicente faz um panorama do desdobramento
da capoeira até o frevo, elencando e ilustrando os passos da dança (PP. 82 - 84). A
pesquisadora ressalta que, mais tarde, com a criação de Escolas de frevo, a dança acabou
recebendo influências do ballet e danças cossacas6, o que causou variações de passos com
ponta de pé e agachamentos.
Segundo Valéria Vicente, Recife sempre teve tradição de desfile de bandas durante os
carnavais - para a pesquisadora, esta é uma tradição muito influenciada pelo movimento
social da mestiçagem das classes subalternas do período pós-escravismo. Foi nesta
movimentação de desenvolvimento das classes sociais que a diversão carnavalesca das ruas,
possuindo um trajeto peculiar, aos poucos se foi tornando uma grande manifestação popular
brasileira. Foi neste percurso de desenvolvimento e fortalecimento do carnaval (meados do
séc. XIX) que, segundo Vicente, as disputas entre as bandas que desfilavam ficaram mais
“calorosas” e, então, grupos de capoeiristas passaram a acompanhá-las para fazer a segurança
e defesa destas. A consequência era que, sempre que duas ou mais bandas encontravam-se, as
brigas eram inevitáveis. Devido a estes encontros e disputas físicas, a presença de capoeiristas
junto às bandas foi proibida, desse modo, eles acompanhavam-nas, disfarçando seus golpes
em uma dança muito vigorosa e cheia de vitalidade.
2
Dança e música em compasso binário, originária da Boêmia, país celta da Europa Central (região da República
Tcheca), no séc. XIX foi difundida por toda a Europa e Brasil, cuja parição influenciou algumas danças, como o
vanerão, no Rio Grande do Sul e o frevo em Pernambuco. Para saber mais sobre as polcas e a relação com o
frevo, ler: Entre a ponta dos pés e o calcanhar: Reflexões sobre o frevo na criação coreográfica do Recife,
na década de 1990: cultura subalternidade e produção Artística, de Ana Valéria Ramos Vicente. Samba de
Gafieira: Corpos em contato na cena social carioca, de Ana Maria de São José. 3
O dobrado é uma marcha militar em ritmo rápido, tanto a marcha como a própria música que serve de fundo e
ritmo cadencial para esta marcha, chama-se dobrado (VICENTE, 2008). 4
Dança popular realizada em festejos juninos, é dançada em pares e possui influência das danças das cortes
francesas - esta dança possui uma relação com o samba de gafieira (SÃO JOSÉ, 2005). 5
O maxixe, de acordo com São José, é considerado a primeira dança social brasileira. Resultante da mistura de
polca e do lundu, com sons de percussão típico do lundu, o maxixe é dançado em par, com passos muito
sensuais. Foi muito popular no Rio de Janeiro, no final do séc. XIX (SÃO JOSÉ, 2005). 6
Os cossacos eram um povo com características nômades ou seminômades, que habitava o Sul da Rússia,
Ucrânia e Sibéria, cuja dança exige bastante vigor e bom preparo nas pernas por parte dos dançarinos, pois
possui muitos passos de agachamento e joelhos flexionados, muitos deles incorporados ao frevo (VICENTE,
2008) 143
Com o passar do tempo, o disfarce da capoeira deixou de ser a “válvula
impulsionadora” para a execução desta dança, que acabou firmando-se como estilo próprio.
Com a passagem dos carnavais, o frevo foi ganhando algumas variações e, na década de
trinta, já se desdobrava em Frevo de Rua (frevo feito somente com orquestra), Frevo-Canção
(frevo com voz e orquestra) e Frevo de Bloco (apresenta, também, uma orquestra de madeiras
e cordas e é conhecido, também, como marcha de bloco).
Alguns dos acessórios do frevo, como a sombrinha, também é uma adaptação advinda
dos tempos em que o frevo firmou-se como expressão. Quando os capoeiristas
acompanhavam os desfiles das bandas, por causa do sol forte, alguns deles usavam guardachuvas e aproveitavam-nos, também, como objeto para executar evoluções individuais dentro
da dança. Com o passar dos carnavais e com a legitimidade do frevo como dança, o guardachuva virou uma sombrinha colorida, utilizada como um acessório da dança7.
Mas foi sem acessório e sem música que o frevo agiu em minha musculatura para dar
vida à máscara do Arlecchino, a dança emergiu e realizou-se como tal. Mais adiante,
desenvolvendo o trabalho com as máscaras dell’arte, percebi que o frevo não é conectado
somente com a máscara de Arlecchino, mas também possui relações conectivas com a
máscara do Zanni, da Servetta e da Cortigiana, servindo, ainda, para ações do Pantalone,
Capitano, Brighella, enfim, com quase todas as máscaras dell’arte.
As máscaras sempre me fascinaram, e a commedia dell’arte era mais um universo
destas máscaras. Meu primeiro interesse era habitar e deixar-me habitar por esse universo e,
para tanto, deveria encontrar um meio de comunicar-me, conectar-me com ele. No momento
em que a máscara do Arlecchino encontrou a força do frevo, a sensação da máscara ganhando
vida através do meu corpo e este se transformando a partir do contato com um universo
abstrato imaginário e sem fronteira constituem uma lembrança/dado/afeto presente, até hoje,
na minha musculatura. Foi este primeiro dado que me impulsionou em busca deste acesso
através de experiências mais próximas à minha con/vivência.
Esta transdução entre células das manifestações espetaculares populares brasileiras e
máscaras dell’arte é resultante de um percurso muito específico, cujo período mais intenso e
de estruturação foi o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal da Bahia e intercâmbio com a Università di Roma Tre e Scuola
Sperimentale dell’Attore. O que deve ficar muito claro é que esta técnica, a qual chamo de
7
Para saber mais sobre Frevo, ler: Do Frevo ao Manguebeat, de José Telles; Entre a ponta dos pés e o
calcanhar: Reflexões sobre o frevo na criação coreográfica do Recife, na década de 1990: cultura
subalternidade e produção Artística, de Ana Maria Vicente. 144
“transdução caleidoscópica” não é uma técnica de commedia dell’arte, mas um possível
acesso às máscaras da commedia dell’arte, em específico, as de Claudia Contin8.
Nas minhas buscas em diversos mares, conheci a commedia dell’arte desenvolvida por
muitos profissionais e escolas diversas. A commedia dell’arte de Claudia Contin é aquela que
me fascina, por portar, mais que as outras, um pouco do universo grotesco e carnavalesco das
máscaras dell’arte e, principalmente, por conservar um ligame com o lado xamânico das
máscaras. Nesta commedia dell’arte era (é) onde minha musculatura trabalhava (trabalha)
junto com a imaginação. Quando tive a experiência mais intensa com a Scuola Sperimentale
dell’Attore e fui desenvolvendo minhas dúvidas e aprofundando meus mergulhos no universo
das máscaras dell’arte, comecei a perceber que o acesso criado para me apropriar das
máscaras à italiana alargava-se cada vez mais, os dados geravam novos dados e assim se
proliferavam de modo espiralado e torrencial.
Com o “mestre” Arlecchino Claudia Contin, em sala de aula, apreendi a
movimentação, corporeidade e fisicidade das máscaras dell’arte de modo “puro”, isto é,
segundo a técnica criada por ela, sem intervenção de movimentos das praticas espetaculares
populares brasileiras. Com Ferruccio Merisi, aprendi a encontrar a voz e ação vocal destas
máscaras. Mas meu trabalho de acesso as máscaras dell’arte através das práticas espetaculares
populares brasileiras seguia numa corrente subterrânea. Enquanto apreendia as partituras e
movimentos codificados das máscaras dell’arte com Claudia Contin e Ferruccio Merisi e
exercitava-me com a professora Verônica Risatti9, minha musculatura e, principalmente, meu
querer, identificavam nos movimentos das máscaras as semelhanças energéticas e musculares
com movimentos das manifestações espetaculares populares brasileiras. Não era um “querer
racional”, mas sim sensível, enquanto executava os movimentos codificados das máscaras da
commedia dell’arte, minha musculatura lembrava-me que aquele movimento era similar a um
outro movimento do samba, do coco, da ciranda e assim por diante – da mesma forma que
aconteceu quando fiz a máscara do Arlecchino com Marocco, não era um raciocínio sobre o
movimento, mas uma atividade muscular e imaginativa.
Depois de ter absorvido as corporeidades e fisicidades das máscaras dell’arte e de
receber continuamente a ação dos dados na minha musculatura, através do processo de
8
Faz-se necessário lembrar que tive experiências com a commedia dell’arte difundida por Lecoq, Scuola
Pantakin (Venezia), Renzo Sindoca (Venezia) e de Carlo Bosso (Paris), porém, prefiro fazer referência à
commedia dell’arte de Contin, com a qual tenho maior afinidade e tive uma experiência na Scuola Sperimentale
dell’Attore, mais longa e intensa. 9
Verônica Risatti fez parte da Scuola Sperimentale dell’Attore de 2003 a 2009, trabalhando como professora e
atriz do grupo da Scuola. Formada em Teatro pela Universidade de Bologna, ela era a responsável por me
exercitar e fixar o material trabalhado por Contin e Merisi, de forma que a movimentação se tornasse autômata e,
ao mesmo tempo, orgânica. 145
imaginação, comecei o trabalho de transposição dos circuitos das máscaras físicas e da
movimentação destas, com células de movimentos deslocados das manifestações
espetaculares populares brasileiras, de modo mais lógico e racional. Porém, chegou um
momento em que, conhecendo a máscara dell’arte, seu caráter e seu modo de agir e
conhecendo as possíveis combinações das codificações recriadas a partir de células de
movimentos extraídos das práticas espetaculares populares brasileiras, minha musculatura e
imaginação, com estes dados, agiam numa combinação caleidoscópica.
Mas este ritmo dinâmico de combinações de dados foi possível, somente, porque
desenvolvi uma habilidade em trabalhar com os códigos extraídos das práticas espetaculares
populares brasileiras. Tal habilidade desenvolvida também passou por um processo, cuja
importância, para a técnica de transdução caleidoscópica de acesso às máscaras dell’arte, é de
primeira magnitude – tão essencial quanto o processo de Bufão.
Se o processo de Bufão auxiliou à compreensão do lado xamânico da máscara, a
convivência e prática das manifestações espetaculares populares brasileiras (dentro de seus
contextos), auxiliam (dentro de uma realidade mais próxima) a compreender o corpo que se
emana em festa, a entender a ancestralidade festiva, a sensibilizar-se com as atmosferas e
energias abstratas de uma força além tempo e fronteiras territoriais. Já a prática da codificação
e decodificação dos movimentos das manifestações espetaculares populares brasileiras dá a
possibilidade de criar uma exatidão muscular e de conhecer uma conexão entre o lado festivo
e xamânico e o lado técnico do teatro e das máscaras.
4.1. TRANSLOCAÇÃO10: TÉCNICA MOTRIZ PARA A TRANSDUÇÃO
“Claude Lévi-Strauss foi um dos primeiros a chamar a nossa atenção sobre a
multiplicidade dos “códigos sensoriais”, através dos quais a informação pode ser
transmitida e sobre como estes podem se combinar e “traduzir” um no outro.”11
Victor Turner (1986, p. 30)
10
A translocação, na genética, é um tipo de mutação cromossômica na qual ocorre a relocação de um fragmento
de cromossomo em outra posição no mesmo genoma – mais uma vez, tomo emprestado uma nominação de um
mecanismo da genética, utilizando a força da metáfora (Bachelard e Maffesoli) para tentar a compreensão e
explicação do mecanismo imaginativo deste trabalho. 11
Tradução da autora: “Claude Lévi-Strauss fu uno dei primi a richiamare la nostra attenzione sulla molteplicità
dei “codici sensoriali” attraverso i quali l’informazione può essere trasmessa, e su come essi si possono
combinare e “tradurre” l’uno nell’altro.” 146
Na verdade, tal como o processo e técnica criada para o Bufão, a própria habilidade
em geminar as células das práticas espetaculares populares brasileiras, constitui, em si, uma
técnica: translocação caleidoscópica.
A técnica de translocação caleidoscópica é constituída, somente, dos (dados)
movimentos das práticas espetaculares populares brasileiras, e a técnica de transdução
caleidoscópica constitui-se da técnica de translocação mais os dados das máscaras dell’arte.
Esta primeira técnica de translocação caleidoscópica com as células deslocadas das práticas
espetaculares populares brasileiras tem a finalidade de servir de base e força motriz para a
técnica de transdução caleidoscópica.
Como a translocação caleidoscópica é o próximo processo para a técnica de acesso às
máscaras dell’arte, relatarei, primeiro, os encaminhamentos desta, fazendo algumas
interferências, quando necessário, sobre as práticas espetaculares populares brasileiras em
questão. Chamo a atenção, que, conforme foi feito com a técnica do bufão, os relatos
porvindouros não constituem um diário de ensaio, mas os encaminhamentos desta técnica.
Primeiro, por período indeterminado, teve o período de conhecimento vivificado de
algumas Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras, daquelas que me interessavam,
instigavam-me e que estavam ao meu alcance a possibilidade de conhecê-las e praticá-las.
Como aconteceu com o frevo, cujo primeiro contato foi em um curso de dança e,
posteriormente, fui conhecê-lo nas ruas de Recife durante o carnaval, aconteceu, também,
com algumas outras práticas espetaculares populares brasileiras, como o Cavalo-Marinho, o
Xaxado, o Maracatu e o Caboclinho.
Para fazer o reconhecimento do Frevo, Maracatu, Caboclinho e Cavalo Marinho, em
campo, em terras pernambucanas, tive um excelente mestre de cerimônias, o Doutor Érico
José Souza de Oliveira, eterno apaixonado por sua terra e com uma incrível capacidade em
mostrar as coisas belas de sua cultura, com um olhar crítico, mas, ao mesmo tempo, passional.
Foi ele quem me levou para frevar nas ruas, acompanhar cortejos de Maracatu e Caboclinho e
apresentou-me Mestre Biu Alexandre e seu Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado
(PE).
Para a Capoeira Regional, Maculelê e noções da Capoeira Angola, segui os passos do
Mestre Alabama de Salvador/BA. Na Capoeira de Angola, também tive contato com o
professor Marquinho (Marcos André Alves de Albuquerque) de Recife – atualmente,
responsável pelo Centro Capoeira Angola Itália de Sacile, seguindo sempre os passos de seu
mestre João Grande. Para o Samba de Roda e Sambas diversos, não tive nenhum mestre, nem
mesmo de cerimônia, fui apreendendo participando das rodas de samba no final das rodas de
147
capoeira, nas festas e festejos populares e com as ressonâncias de minha alma. Desta mesma
forma espontânea e ao sabor de festas, foram apreendidos o Coco e a Ciranda.
Como mestre de cerimônias das Danças dos Orixás, contei com a apresentação
calorosa da querida colega Silvia Rita. A continuação desta apreensão foi nas pacientes tardes
em companhia da Ekedy Sinha (Gersonice Azevedo Brandão) e nas noites no Ilê Axé Iyá
Nassô Oka, Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho/BA, além das diversas mães e filhas
de santo deste mesmo terreiro e de outros terreiros de Candomblé; Candomblé de Angola e do
terreiro Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá, de Santa Maria/RS. Este último
terreiro no qual convivi por muito tempo participando dos rituais de Caboclos, Exus e
Pombogiras12, Pretos Velhos e Êres, intitula-se Terreiro de Linha Cruzada13 e, apesar de ter
ligações com a Umbanda, não possui práticas comuns ao espiritismo, sua relação com a
religiosidade e ritos é com o Candomblé. Muito dos termos utilizados no terreiro, os cultos, as
festas e a presença dos Orixás são advindos do Candomblé, porém, a Linha Cruzada tem,
também, a presença das entidades - seres espirituais da Umbanda que não fazem parte do
Candomblé, a não ser no Candomblé de Angola, cujo culto ao Caboclo é acentuado. Neste
terreiro de Santa Maria/RS, as festas dos Orixás são chamadas de Batuque e são realizadas
eventualmente, enquanto que o culto às “Entidades”, Caboclo, Preto-Velho, Exu e Pombogira,
são semanais. Os Caboclos e Pretos-velhos falam numa mistura de Iorubá com português, já
os Exus e Pombogiras (também chamadas de Exu-mulher) falam em uma linguagem bem
específica e própria, a qual não é iorubá. Este tipo de rito religioso que encontrei em Santa
Maria/RS possui muitas similaridades com os ritos do Candomblé de Angola. Mas estas
questões concernentes às religiosidades afro-brasileiras, denominações e diferenças, não
dizem respeito ao núcleo desta pesquisa, portanto, encaminho aqueles que anseiam por mais
informações sobre diferenças entre religiões afro-brasileiras, para os estudos de René Ribeiro
(1982), José Carlos Pereira (2004), Raul Giovanni Lody (1977) e Deolindo Amorim (1993).
Dessa forma, em campo, seguindo mestres de cerimônias e mestres da prática, fui
apreendendo as práticas espetaculares populares brasileiras, que estavam ao meu alcance:
Frevo, Maracatu, Capoeira, Maculelê, Dança dos Orixás, Coco, Ciranda, Xaxado, Cavalo
Marinho, Caboclinho e Samba.
Também é encontrado a nominação “Pombagira”, esta variação acontece, a depender do terreiro. A Linha Cruzada, segundo o Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá, de Santa Maria\RS, surgiu
por volta de 1950 e está entre os ritos afro-brasileiros mais jovens do Rio Grande do Sul. O nome “Linha
Cruzada” foi dado, devido à mistura de entidades da Umbanda - Caboclos, Pretos-Velhos, Pombogiras - Orixás
do Batuque (como o Candomblé é chamado no Rio Grande do Sul) e a Jurema. Ao entrar num terreiro de Linha
Cruzada, tive a sensação de estar num encontro de várias manifestações ritualísticas brasileiras, pois além das
imagens da Jurema, entidades e Orixás, também é possível encontrar imagens de santos do cristianismo. 12
13
148
A partir das convivências comecei um exercício destas, não somente indo a campo
(festas, festejos e rituais) e seguindo cursos, mas com uma disciplina própria, fazendo uma
prática esquematizada em sala de trabalho.
Como um bailarino ou um músico que, para dominar uma dança ou um instrumento
deve exercitar-se, eu tinha que dominar os movimentos das danças e golpes que integram o
conjunto das práticas espetaculares populares brasileiras desta pesquisa. Para desenvolver
uma possível agilidade dentro dos movimentos de tais manifestações espetaculares, somente
praticando-as, era necessário criar uma rotina de trabalho, exercitar-me, orquestrar-me, treinar
ou ensaiar – qualquer um destes nomes quer dizer, para esta pesquisa, uma prática assídua
esquematizada e uma organização desta prática de modo objetivo e⁄ou subjetivo.
O circuito energético forma-se a partir do circuito muscular - Artaud já assinalava esta
capacidade de formação e conexão de tais circuitos quando fazia referência ao ator como
“atleta afetivo” (conforme mencionado anteriormente) – é como se a musculatura trouxesse,
impressa nela, energias. Por consequência da dinâmica entre o circuito muscular e o
energético, são comovidos afetos que tocam uma “experiência ancestral” (MAFFESOLI,
2008)14 e emanam certa “ancestralidade festiva” record/ativa das práticas espetaculares
populares brasileiras.
Para esta pesquisa, é muito importante ter a experiência em campo, pois estas
emanações ancestrais, a cada renovação ganham mais força e multiplicam-se de maneira
facetada e, certamente, a atmosfera em que estas manifestações são habituadas a se realizarem
já está impregnada destas partículas, as quais agem, também, naquele que se está iniciando
nas práticas espetaculares populares em questão, como sujeito da ação ou como público.
Posso dizer, também, que a presença frequente ou em massa destas pessoas que habitualmente
se emanam em festa e ritualidade e que produzem e reproduzem nelas estes circuitos
musculares e energéticos ajudam, de alguma forma, em diferentes instâncias, através da
convivência e, então, do dado sensível, a fazer com que a musculatura conheça, compreenda e
apreenda tais possibilidades. Estando em campo, penso que a intuição e a subjetividade agem
em lençóis subterrâneos, com maior eficiência.
Com a intuição coloca-se em jogo uma “visão central” que, justamente, não indireta,
mas, antes, enraíza-se profundamente na própria coisa, dela se nutre e, portanto, dela
frui [...] É preciso, com efeito, lembrar que o conhecimento remete, em parte, para o
“nascer com” (cum-nascere) e que, portanto, implica uma forma de convivência
(MAFFESOLI, 2008, p. 133).
14
Termo utilizado por Maffesoli para fazer referência à atuação da intuição dentro do pensamento/ação
intelectual. 149
Para esta pesquisatriz, o convívio com aquilo que se procura conhecer é fato
necessário e nenhum outro modo de conhecimento é tão eficiente quanto o da convivência.
Uma experiência que tenho muito clara sobre os afetos que esta convivência move ou
os genes imaginários que se comovem com a imaginação foi a primeira vez em que estive
jogando em uma roda de capoeira. Durante muito tempo pratiquei os golpes e jogo em dupla,
sob os olhos e comandos do mestre (Mestre Alabama), mas quando este me mandou jogar na
roda é que senti os dados sensíveis se comoverem em imaginação. Num momento, estava na
roda de capoeira e, num outro momento, percebi naquele espaço algo que ultrapassava a sala e
até mesmo as pessoas ali presentes. Os dois capoeiristas no meio da roda se assemelhavam,
em alguma instância da tríade “jogo-festa-ritual”, com dois gladiadores ou dois
conquistadores de tribos diferentes - seres com ressonâncias energéticas de elementos
vindouros de outro espaço/tempo, as quais se reconheciam nas vibrações dos corpos que se
emanavam em festa-jogo-ritual.
A própria capoeira possui intensa ligação com as três instâncias da tríade de Huizinga.
Atualmente, a capoeira é difundida pelo mundo como luta, dança e jogo, tendo como estilos
principais a Angola e a Regional. A meu ver, a capoeira pode ser considerada uma arte
marcial15 com um diferencial em relação às outras: o acompanhamento musical – atabaques,
pandeiro, berimbau, agogô, palmas e voz (atualmente, percorrendo diversas rodas de capoeira,
encontrei incorporados à música outros instrumentos, como o bumbo, a caixa e outros).
Segundo Evani Tavares Lima, não há uma opinião em comum sobre a origem da capoeira,
sabe-se que era praticada nas senzalas e quilombos, porém, nos tempos do missionário jesuíta,
José de Anchieta (1534-1597), tinha-se notícias de uma prática que se aproximava muito à da
capoeira, entre os indígenas e, segundo a pesquisadora, tal informação traz imprecisões e
dúvidas sobre a origem e miscigenação desta. Desde o século XVI que Portugal enviava
escravos vindos da África para o Brasil e, dentro das senzalas, as primeiras notícias da
presença da capoeira no Brasil acorreram no século XVII, quando aconteceram os primeiros
movimentos de fuga de escravos, entretanto, não existe documentoção destes movimentos de
rebeldia por parte dos escravos.
Os capoeiristas, na grande maioria dos golpes de ataque e de defesa, utilizam pernas,
pés, cabeça e, ocasionalmente, braços e mãos. A capoeira de angola é caracterizada por um
jogo denominado “baixo”, “lento”, matreiro, cheio de malícias, disfarces, malandragem e
ludibriações. Segundo Lima, a capoeira angola trabalha no corpo-espírito, pela caracterização
15
Conforme assinala o anteprojeto de regulamentação da capoeira, de 1980 “Capoeira: arte marcial brasileira”, o
qual pode ser encontrado na biblioteca de música da UFBA. 150
do não enfrentamento direto e pelo grande teor ritualístico. A capoeira angola traz com ela a
forte presença da “mandinga” - expressão que pode fazer referência ao jogo difícil, mas
também traz a ligação ancestral e mítica entre os capoeiristas e com a própria capoeira. A
capoeira também se conecta ao samba de roda, samba-duro e samba de caboclo, os quais,
nesta arte, são tipos de ritmos para embalar o jogo. Mas estes tipos de samba também são
cantados ao final da roda de capoeira regional, como forma de saudar e comemorar a
capoeiragem. A capoeira regional, estruturada por Mestre Bimba, o qual introduziu um
treinamento sistemático e criou uma metodologia de cordas para as graduações dos
capoeiristas, possui golpes baixos e altos, o tempo de execução dos golpes é mais rápido, em
relação à angola, e sua principal característica é o enfrentamento direto e o elemento
acrobático16. A capoeira regional traz com ela um teor ritualístico, em menor grau que a
angola, mas que se pode perceber nas ladainhas17 e na presença dos sambas – conforme
comentado anteriormente. Apesar das duas modalidades de capoeira possuírem golpes em
comum, os nomes e alguns detalhes de movimentação destes podem variar de um grupo para
outro18. Dentro da minha prática de acesso das máscaras dell’arte, a capoeira é conectada,
intensamente, com as Máscaras do Zanni, Arlecchino, Cortigiana e Capitano, mas participa,
também, das ações de outras máscaras dell’arte.
Este efeito de transposição de atmosfera que aconteceu quando estive no centro de
uma roda de capoeira, por exemplo, não aconteceu quando joguei maculelê. Conforme Popó
do Maculelê19 (Paulino Aloísio Andrade) em entrevista dada a Maria Mutti (1978, p. 9) o
“maculelê é dança e luta ao mesmo tempo, defesa e ataque misturado ao ritmo nego
(definição de Popó, sempre que falava no ritmo do maculelê)”.
Feito com bastões, chamados de grimas, o maculelê possui três possibilidades de
surgimento. As duas primeiras versões, ouvi de dançadores/lutadores de maculelê, com quem
16
Para saber mais sobre Capoeira, Capoeira Angola e Capoeira Regional, ler: Capoeira Angola como
treinamento para o ator, de Evani Tavares Lima; Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da Câmara
Cascudo; A arte da resistência: atividade que mistura luta e dança busca independência In Problemas
Brasileiros, de Telma Egle; A capoeiragem baiana na corte imperial (1863-1890) In Afro-Ásia, de Carlos
Eugênio Líbano Soares; Capoeiras e intelectuais: a construção coletiva da capoeira ‘autêntica’. In Estudos
Históricos, de Simone Pondé. 17
A ladainha, segundo Evani T. Lima, é o momento de maior introspecção e teor ritualístico da capoeira (2008,
p. 31). 18
Alguns dos principais golpes da regional, alguns deles se repetem na angola, são eles: aú (conhecido
comumente como roda ou estrela), armada de costas, ponteira, benção, cabeçada, chapa, martelo, martelo
cruzado, queixada, chibata, macaco, meia-lua, meia-lua de compasso, gancho, rasteira, vingativa, cruz, esquiva,
rabo-de-arraia, queda de rins, rolamento, passo a frente, semipulo e tantos outros. Grande parte destes golpes
pode ser vista nas ilustrações ao longo do livro de Evani Tavares Lima “Capoeira Angola como treinamento para
o ator” (2008). 19
Popó do Maculelê nasceu em Santo Amaro/BA e foi quem, segundo Maria Mutti e Zilda Paim, difundiu e deu
fama ao maculelê. 151
praticava capoeira nas aulas do Mestre Alabama. A primeira delas possui uma característica
mais mitológica: diz a lenda que Maculelê era um negro fugido, o qual foi acolhido e curado
de todos os ferimentos da fuga por uma tribo indígena. Como Maculelê não era da tribo, ele
não tinha permissão para acompanhar os índios em todas as suas atividades. Um dia, uma
tribo rival atacou a tribo em que Maculelê estava e, não havendo índios para defender a tribo,
Maculelê, lutando com bastões e facões, venceu heroicamente os guerreiros da tribo invasora.
Desde então, a dança/luta/jogo que ganhou seu nome é realizada como um modo de honrar e
contar o feito de Maculelê.
A segunda versão possui uma característica mais simbólica. A versão diz que o
jogo/dança/luta maculelê teve origem como um ato de resistência dos negros, simbolizando a
luta destes com os feitores das grandes propriedades escravocratas.
A terceira versão está no livro de Maria Mutti intitulado “Maculelê”, no qual a
pesquisadora e jogadora/dançadora/lutadora de maculelê, entrevista Vavá de Popó (Valfrido
Vieira de Jesus, filho de Popó) e deixa esta versão documentada. Vavá diz que o maculelê era
feito nas senzalas, durante a noite, servindo como treinamento para os escravos rebeldes,
porém, a luta era disfarçada em dança e, como cantavam e comemoravam em língua africana,
os senhores pensavam que aquele era o modo dos escravos saudarem os deuses africanos. Na
entrevista a Maria Mutti, Vavá deixa claro que o maculelê tradicional é feito com grimas, não
com facão e que o maculelê com facão é uma recriação recente.
O maculelê é realizado em quatro tempos e se caracteriza pela exigência de
vigorosidade dos jogadores. Cada jogador possui uma grima em cada mão e se enfrentam num
jogo de golpes de bastões que se cruzam, batendo no alto em um dos tempos e executando
movimentos ágeis nos outros três tempos20. Quando os jogadores/lutadores/dançadores fazem
o maculelê com facões no lugar das grimas, exige muito mais habilidade destes21.
Quando joguei maculelê pela primeira vez, tive dificuldade em me deixar habitar pela
prática e na medida em que fui aprendendo, a imaginação trabalhava e esta dança/jogo/luta foi
ganhando força. Ainda não sabia como utilizaria esta prática espetacular popular brasileira na
minha pesquisa, mas sabia que, se ela estava apresentando-se, deveria apreendê-la.
Posteriormente, a imaginação trabalhou e o maculelê foi utilizado em cenas com as máscaras
do Pantalone, Zanni e Capitano.
20
Maria Mutti, ao longo do livro “Maculelê”, traz fotografias do jogo\luta de maculelê, feito nas ruas de Santo
Amaro/BA. 21
Para saber mais sobre o Maculelê, ler: Maculelê, de Maria Mutti; Relicário Popular e Isto é Santo Amaro,
de Zilda Paim; Olelê maculelê, de Emília Biancardi Ferreira. 152
Enquanto aprendia algumas práticas espetaculares populares brasileiras com mestres,
outras eram apreendidas em festas e festejos populares, seguindo mestres anônimos, como foi
o caso do coco e da ciranda, cujas práticas estão, respectivamente nesta ordem, nas bases das
máscaras do Pantalone e da Nobile ou Enamorada (como também é conhecida).
O Coco, também conhecido como Coco de Roda ou Samba de Coco (apresentando,
ainda, outras variações de nomes), é uma dança que possui origenes contraditórias. Feita em
três tempos, a sua maior dificuldade está no próprio ato de executá-la por horas, exigindo dos
dançadores certa resistência física. A dança pode ser feita em roda, em fila, em pares ou soltos
pelo salão ou pátio, relacionando-se livremente. Os dançadores executam um sapateado
específico e relativamente “simples”, batem palma marcando o ritmo, trocam “umbigadas”
com os dançadores vizinhos e respondem ao coco cantado pelo “coquero”22 – mestre cantador
que canta o verso improvisado ou decorado. Mesmo tendo uma “pisada” marcante, o coco não
exige nenhum tipo de veste ou sapatos específicos, podendo ser dançado com sapatos,
chinelos ou descalços.
Segundo o pesquisador Leonardo Dantas Silva, no livro “Alguns documentos para a
história da escravidão” (Recife: Massangana,1988), o Coco é originário das cidades litorâneas
do Brasil. Primeiro surgiu como um canto executado pelos colhedores de coco e, aos poucos,
foi desenvolvendo-se, também, como ritmo dançado. Já a pesquisadora Mariana Cunha
Mesquita do Nascimento (2005), afirma que o Coco é uma das danças mais tradicionais do
nordeste brasileiro, trazendo a informação de seu surgimento, ao citar Evandro Rabello, nos
quilombos, especificamente no Quilombo dos Palmares, por volta do séc. XVII. Nascimento
afirma que os negros deste quilombo, para quebrar a casca do coco, apoiava-o no chão e
depois batiam neste com um outro e, como eram muitos a quebrar cocos, uma batida foi-se
sobrepondo a outra e o ritmo foi sendo construído. Quando o ritmo foi levado para a senzala,
as batidas dos cocos foram substituídas por palmas e uma “pisada” especial. Sendo uma dança
não muito complicada, ela une canto, palmas, pisadas e umbigadas, todos, segundo
Nascimento, elementos advindos das tradições africanas.
Baptista Siqueira (1978) também fala da presença do coco de roda entre os
descendentes africanos, seguindo os caminhos do samba, o autor fala deste encontro do samba
com o coco e comenta rapidamente a influência ameríndia contida neste último.
A pesquisadora Mariana Nascimento chama a atenção para o fato de que, no século
XX, o coco tornou-se muito popular e tinha-se por costume, entre as pessoas mais simples,
22
Baptista Siqueira, no livro Origem do termo samba (1978), traz algumas fotografias do samba de coco. 153
chamar os moradores das redondezas para “pisar o coco” depois da construção de uma casa,
com a finalidade de aplainar o terreno de terra batida - festejando a moradia e aplainando o
terreno. Apesar de ter tido grande popularidade, no decorrer do séc. XX, com o processo de
urbanização e industrialização, gradativamente, o coco foi perdendo força e se tornando
menos popular. Atualmente, restam poucos grupos de coco no litoral brasileiro. Mas a autora
sublinha um outro componente que contribuiu para o declínio da popularidade do coco, ela
afirma que o prestígio do coco foi terminando, não somente pelo processo de urbanização,
mas para abrir espaço para outro ritmo que estava crescendo na época: a ciranda23.
Apesar de a ciranda ter tido seu apogeu após o coco, ela também teve o mesmo destino
dele. Mesmo sendo uma dança praieira e comum de ser realizada nas festas populares, são
poucos os grupos específicos de ciranda. Segundo Mariana Nascimento, diferente do coco, a
ciranda não possui suas possíveis “origens” nas danças africanas e, sim, nas danças européias.
Afirmação compartilhada por Maria de Souza (2008), mas que, ainda assim, traz a lembrança
de danças célticas e indígenas que possuem características semelhantes à ciranda.
Tanto quanto o coco, a ciranda não tem uma data específica de festejos, ela é realizada
durante todo o ano e sem limites de idade ou de participantes para realizá-la, quando uma roda
de ciranda se torna muito grande, os cirandeiros fazem outra menor no seu interior. Maria
Souza conta que, na ilha de Itamaracá, em Pernambuco, a ciranda tem início sempre para o
sentido anti-horário.
Para a realização de uma roda de ciranda, necessita-se da presença do mestre
cirandeiro, cuja responsabilidade é a entoação do canto das cirandas que embalam a festa, seja
improvisando ou fazendo cantigas decoradas.
A ciranda não possui grande variação instrumental, são quase sempre os mesmos
(tanto em Pernambuco quanto no Ceará ou na Bahia), sendo os mais comuns o bombo ou
zabumba, o mineiro ou ganzá, uma espécie de chocalho (chamado de maracá ou maracaxá) e
a caixa ou tarol.
A pesquisadora Maria de Souza traz a explicação da possível origem do nome ciranda,
citando Evandro Rabello (apud SOUZA, 2008, p.59-60):
A origem do nome ciranda se assemelha com a forma de união dos participantes
como descreve Rabello, pois do árabe çarand (tecer) para o espanhol zaranda
23
Para saber mais sobre Coco, Samba de Coco, Coco de roda, ler: O coco praieiro: uma dança de umbigada.,
de Altimar de Alencar Pimentel; Alguns documentos para a história da escravidão e Pernambuco
Preservado, Leonardo Dantas Silva; João Manoel, Maciel Salustiano. Três gerações de artistas populares
recriando os folguedos de Pernambuco, de Mariana Cunha Mesquita do Nascimento; Origem do termo
Samba, de Baptista Siqueira. 154
(peneira) pareceu assumir a forma que hoje conhecemos. Uma outra procedência do
nome teria sido associada ao fato de as mulheres trabalharem em serões o que daria,
por extensão, seranda e, aí, ciranda.
Mas, além das considerações sobre a possível origem do nome desta prática
espetacular popular brasileira que a pesquisadora Maria Aparecida de Souza (2008, p.53) vai
buscar com dedicação, está o destaque que a pesquisadora dá a um aspecto da ciranda que,
para esta pesquisa, é muito interessante:
A partir do momento em que o canto é iniciado o tempo corre e o que foi narrado
deixa de estar numa posição estática e assume sua natureza dinâmica, mobilizadora.
Numa roda de ciranda o ambiente do dançador redimensiona tempo e espaço e, aí
também, o cirandeiro refaz um movimento que o ancestral desconhecido lhe legou: a
tarefa de perpetuar o prazer de bailar com a comunidade.
Mais adiante, a pesquisadora ressalta, dentro da ciranda, a questão da extensão
histórica e da transmissão que remete a uma memória de longa duração, indicando, ainda, um
caminho de continuidade da sociedade envolvida em um espírito coletivo. Além da questão
coletiva que permeia esta dança, encontra-se, no discurso de Maria Souza, o aspecto ancestral
e cósmico da dança, o que, para esta pesquisa, é um dos fatos que fazem a conexão rizomática
com as máscaras dell’arte. Este mesmo aspecto ancestral citado por Souza não diz respeito
somente à ciranda, mas a todas as práticas espetaculares populares que integram esta
pesquisa24.
Conforme dito, o Coco e a Ciranda, na minha prática, estão na base das máscaras do
Pantalone e da Nobile, como a Capoeira e o Frevo estão na base das máscaras do Zanni e do
Arlecchino. Esta última possui, ainda, uma forte ligação com a Dança dos Orixás – mais
adiante falarei da composição desta máscara dell’arte. Apesar de cada máscara dell’arte
possuir maior intensidade de conexão com uma, duas ou três, das práticas espetaculares
populares brasileiras, na medida em que uma máscara ganha vida através de ações, outras
práticas espetaculares populares brasileiras são requeridas para a realização de ações.
O interessante é que, em algum momento, muito dos estudos já realizados sobre as
manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa tocam neste
aspecto ancestral de tais práticas – é o DNA imaginal que percorre a história sem fronteiras ou
24
Para saber mais sobre a Ciranda, ler: Ciranda na Ilha: Um rito espetacular, herança de Mestre Baracho e
Lia de Itamaracá, de Maria Aparecida de Souza; Antologia pernambucana de folclore 1, de Mário
Soutomaior e Waldemar Valente(Org.); Danças folclóricas, de Américo Pellegrini Filho; João Manoel, Maciel
Salustiano. Três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, de Mariana Cunha
Mesquita do Nascimento. 155
limiares e se faz presente, pungindo insistentemente a realidade e se fortalecendo na
renovação.
Outro exemplo da presença desta ancestralidade cósmica e festiva está no maracatu,
prática espetacular que faz parte da base da máscara do Brighella e serve a ações das máscaras
da Cortigiana, Servetta e Capitano. Complexo, o Maracatu possui duas variantes: Maracatu de
Baque Solto ou Rural e Maracatu de Baque Virado ou Nação. Na minha prática, o Maracatu
de Baque Virado é muito mais utilizado, porém, não posso deixar de sublinhar a figura do
Caboclo de Lança do Maracatu Rural, a qual, sem dúvida, merece um estudo conectivo mais
aprofundado e detalhista num momento posterior a esta tese.
O Maracatu é uma prática espetacular popular tipicamente pernambucana e, conforme
anunciado ao citar o Caboclo de Lança, tanto o Rural quanto o Nação possuem estreitas
ligações com o rito religioso (o Nação com o Candomblé e o Rural com o Culto da Jurema).
Apesar do maracatu Nação ter a ligação maior com o Candomblé, todos os dois maracatus
trazem a fusão com elementos indígenas, principalmente, na presença da figura do Caboclo:
no maracatu nação, o Caboclo de Pena e no maracatu rural, o Caboclo de Lança.
Segundo a pesquisadora Roseana Borges de Medeiros (2005), os maracatus Nação são
mais antigos que os maracatus rurais. Alguns deles possuem aparições datadas e
documentadas em 1863, todavia, segundo Leonardo Dantas Silva (2002), como se trata de
uma prática advinda de escravos, os quais mantinham os costumes da tradição oral e não
escrita, é possível que os Maracatus sejam muito mais antigos do que seus registros.
No século XIX, os Maracatus não eram bem vistos e, somente no decorrer do século
XX, conquistaram prestígio (foi, também, no século XX, segundo Medeiros, que os maracatus
rurais foram criados).
Segundo Medeiros, o maracatu Nação possui forte ligação com os terreiros de Xangô
(como o Candomblé é chamado em Pernambuco, principalmente em Recife), tendo nos
babalorixás dos terreiros nagô, os representantes dos reis negros vindos da África. O Maracatu
Nação é formado pelas figuras do Rei e da Rainha, uma Dama de Honra, que acompanha a
Rainha e outra que acompanha o Rei, um Príncipe e uma Princesa, um Duque e a Duquesa,
um Ministro, um Embaixador, um Conde e uma Condessa, Damas de Paço25 (são elas que
levam a Calunga – divindade espiritual ligada ao Candomblé), Vassalos, Porta-Estandarte,
Escravo (é ele quem carrega o guarda-sol do casal real), Caboclo de Penas, Baianas e outras
25
Segundo o Dicionário Virtual Houaiss 1.0: Paço: substantivo masculino; 1- habitação suntuosa para a realeza
ou o episcopado; palácio; 2- Derivação: por metonímia - conjunto de pessoas que habitam esse palácio; 3edifício onde se reúne o conselho ou a câmara municipal. 156
figuras como os corneteiros e animais. São as danças destas figuras representadas no cortejo
do Maracatu Nação, suas fisicidades e corporeidades que fazem parte da constituição do
grande reservatório/motor que possibilita o acesso às máscaras dell’arte através das técnicas
de translocação e transdução - ambas as técnicas serão explicadas mais adiante, aqui, faz-se
necessário esclarecer quais as práticas espetaculares populares brasileiras que incorporam
estas duas técnicas.
Seria um discurso muito prolongado descrever a dança de cada uma destas figuras,
então remeto o leitor interessado por estas, aos estudos de Maria Alice Amorim e Roberto
Benjamin (2002). Ainda, aos leitores que desejam mais informações sobre o maracatu Nação
e seus cortejos, remeto-os, sobretudo, aos estudos específicos do maracatu rural de Roseana
Borges de Medeiros (2005), Ana Valéria Vicente (2005), Mariana Cunha Mesquita do
Nascimento (2005) e Severino Vicente da Silva (2005). Também, faz-se importante
mencionar o acervo do Museu do Homem, no centro da cidade de Recife e a importância de
visitar e ver os desfiles dos maracatus26.
As danças das figuras do Maracatu são utilizadas como força motriz da técnica de
transdução. Por exemplo, a dança da figura do Porta-Estandarte geminada com a do rei e da
rainha é utilizada na composição da máscara física do Brighella. Já em um momento de
locomoção específica desta mesma máscara (quando está bêbado), emprega-se a dança do rei
e da rainha. Outro exemplo é a dança dos escravos e das baianas, utilizadas em ações das
máscaras da Servetta, Cortigiana e, também, Brighella, enquanto o passo do cavaleiro é
utilizado para ações da máscara do Capitano.
Esta mesma relação é estabelecida com o Cavalo Marinho. Formado por muitas
figuras, com momentos de interação com o público, outros de total entrosamento técnico,
improvisação e descontração somente entre os brincantes, é uma prática espetacular que
mereceria um estudo muito específico. Porém, mais uma vez, adentrar tal universo seria
perder-se nele e fazer uma pausa ou desvio demasiado longo no processo de compreensão dos
encaminhamentos das técnicas que compõem esta pesquisa.
Em linhas gerais, segundo o pesquisador Erico José Souza de Oliveira (2007), o
Cavalo Marinho é uma prática espetacular que abarca figuras e fragmentos advindas de outras
manifestações espetaculares populares da região Nordeste do Brasil. Como é o caso dos
Galantes, figuras muito próximas do folguedo da Marujada e, também, dos Reisados, ou da
26
Não poderia deixar de indicar a apreciação e visitação aos próprios cortejos desta pratica espetacular - a
melhor das possibilidades para uma compreensão mais detalhada, não só das danças e figuras do Maracatu de
Baque Virado, mas também da estrutura e identidade dos grupos que fazem esta prática espetacular popular
brasileira. 157
figura do Boi e toda a trama que o envolve, um trecho claramente ligado ao folguedo do
Bumba meu boi. Somente por estes dois exemplos já se pode vislumbrar a vastidão de
conexões que o Cavalo Marinho desencadeia. Para esta pesquisa e, principalmente, para este
momento desta pesquisa, detenho-me em ocupar as danças dos Galantes e do margüio,
momento em que o público pode interagir na brincadeira, juntamente com os brincadores27.
Os Galantes fazem parte, segundo Oliveira, de um momento religioso da brincadeira do
Cavalo Marinho, com suas danças e cantos de louvação, eles saúdam os Reis do Oriente.
Algumas das danças dos Galantes são realizadas com arcos enfeitados com fitas – no caso da
utilização destas danças nas técnicas de translocação e transdução, os arcos são substituídos
por objetos da cena ou a evolução é feita sem nada nas mãos. Também aqui para os leitores
que anseiam por mais informações sobre os Galantes, a estrutura das suas danças e sobre o
próprio Cavalo Marinho, vejo a necessidade de reencaminhá-los para estudos mais
específicos, como os realizados pelos pesquisadores Erico José Souza de Oliveira (2007),
John Murfhy (1994), Mariana Cunha Mesquita do Nascimento (2005) e Alício do Amaral
Mello Júnior e Juliana Teles Pardo (2004).
A dança dos Galantes com todas as suas evoluções, na minha prática, é muito propícia
às ações da máscara de Pantalone e, também, para ações com a máscara dos Nobili e Capitano
– todas as três máscaras utilizam a dança e evoluções realizadas pelos Galantes, cada qual
dentro do seu caráter. O “margüio”, nesta pesquisatriz, além de servir às ações das máscaras
do Pantalone, Capitano, Nóbili, serve às máscaras de Arlecchino e Zanni.
Conforme já anunciado, o Cavalo Marinho não faz parte da composição de nenhuma
estrutura das máscaras físicas da commedia dell’arte, mas da composição de ações de muitas
delas, mesmo caso do Caboclinho, do Xaxado e do, já comentado, Maculelê.
O Caboclinho é também uma manifestação espetacular popular pernambucana, cuja
dança carrega o mesmo nome da manifestação. Segundo Ana Valéria Vicente (2005), o
Caboclinho comporta e representa a herança indígena do povo brasileiro. Durante o carnaval
de Recife, os Caboclinhos desfilam ao som de uma percussão feita por eles, com arcos e
flechas e flautas. Porém, com o desenvolvimento do carnaval e a vontade de renovação e de
ser mais vistoso aos olhos da alteridade, movimento natural da competição entre grupos, fez
com que os grupos de Caboclinhos adicionassem à música que acompanha os desfiles, gaitas,
surdos e ganzás.
27
O pesquisador Erico José Souza de Oliveira, nas páginas 251 e 252 do livro “A roda do mundo gira: Um olhar
sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado – PE)” explica mais detalhadamente o momento do margüio
na brincadeira do Cavalo-Marinho. 158
Segundo Valéria Vicente, as danças do Caboclinho estão ligadas às danças indígenas
das tribos da região da Paraíba e Pernambuco, nelas também está a ligação com os cultos de
pajelança, chamado pelos seguidores de Catimbó, e possui relações estreitas com o
Candomblé de Angola e com o samba de Caboclo (LODY, 1977), onde o culto da Jurema,
entidade indígena, é muito forte.
O caboclinho, na minha prática da técnica de transdução, é utilizado nas ações das
máscaras do Zanni, Capitano e Cortigiana.
Também o xaxado faz parte de ações de algumas máscaras dell’arte, sem fazer parte
da base de nenhuma delas. Na verdade, o xaxado é uma dança pouco utilizada, por não
possuir grande variedade de ritmos e passos. Segundo Câmara Cascudo (1972), o nome
Xaxado vem do som das alpargatas de couro que os cangaceiros arrastavam no chão no ato da
dança. Sendo uma dança que se expandiu por todo o nordeste através dos cangaceiros, o
xaxado possui um ritmo cadenciado pelo som das alpargatas e pancadas de rifles no chão e é
uma dança tipicamente masculina. Esta dança, na técnica de transdução, serve muito às ações
das máscaras do Zanni, Brighella, Capitano e Pantalone.
Seguindo as referências das manifestações espetaculares populares brasileiras que
utilizo neste momento da pesquisa, introduzo, também, o samba - outro imenso universo, com
tantas variantes, que se torna difícil vislumbrar os limiares do discurso. Para as máscaras
dell’arte, utiliza-se muitas variações do samba: samba de roda; samba dançado por passistas
das escolas de samba, também chamado de samba de quadra; outros passos que vêm do
samba que se dança em par, também conhecido por samba de gafieira e muitos outros.
Com tamanha inundação, vejo como melhor possibilidade de organização e
compreensão, na medida em que avançar nas explicações, reencaminhar o leitor a estudos
mais específicos do samba.
Indiscutivelmente, o samba está ligado ao ritual e à festa. Baptista Siqueira (1978) faz
um estudo sobre o samba, perseguindo a origem do termo. Em documentos da fase de
catequisação dos índios28, encontram-se referências deste termo entre os índios Cariri,
Tapuias e de língua tupi, descobrindo que este sempre teve relação com a festa ou com
reunião de pessoas. Diz ainda que, o termo “samba” é a junção de três outras palavras: S igual
a “sua”, amb igual a paga (troca) e a igual a “gente” – o que resulta nua espécie de “troca
entre pessoas”. Seguindo seu estudo, Siqueira lembra que, entre os índios de língua tupis, as
danças em grupo sempre tinham relação com rituais ou cerimônias relacionados às práticas
28
Estes documentos se encontram na seção de livros raros da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 159
herdadas de seus ancestrais, com isso, a conexão do samba com o ritual e a festa se faz real.
Seguindo esta mesma linha conectiva, vale lembrar que Ana Maria de São José chama a
atenção para a pesquisa do Dr. José Adriano Fenerik (Depto de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), lembrando que existem depoimentos que
afirmam a origem do samba dentro dos terreiros de macumba.
São José assinala, ainda, que a palavra samba, advém da relação com semba, palavra
de origem angolana que faz referência a um movimento específico da dança, a umbigada,
muito presente no samba de coco (ou coco) e no samba de roda. Ainda no seu estudo sobre o
samba de Gafieira, São José (2005, p. 113) adentra o samba de roda, fazendo a relação e a
descrição dos passos desse samba29 que possui forte interação com o Batuque, a capoeira e o
ritual – o samba de roda é realizado no final da roda de capoeira como modo de
agradecimento, louvor e de festejar os feitos dos antepassados – e, nesse ponto, o samba
reencontra o ritual e a ancestralidade.
Tanto Baptista Siqueira quanto São José fazem um rápido panorama das várias
influências que o samba recebeu de cada região do Brasil, o que cooperou para o
desenvolvimento de vários estilos de samba, tanto na música quanto na dança.
A ligação do samba com o ritual e a festa (e, portanto, com o jogo) vem desde a sua
ligação com a cultura indígena e também com a cultura afro-brasileira, no samba de coco, no
samba de caboclo, no samba de roda, no samba duro e nas várias outras misturas ocorridas no
transcurso
desta
manifestação
espetacular
popular
brasileira,
conforme
assinalam
Siqueira(1978), Leopoldi (1977) e São José.
A palavra samba também tem conexões dentro do candomblé, conforme assinala René
Ribeiro(1982) quando comenta sobre os Xangôs de Recife (como são chamados os
Candomblés) e fala do culto afro denominado Ketu, dizendo que estes são aqueles que se
intitulam Shamba. Esta mesma afirmação sobre os cultos Ketu e o Shamba é mencionada
quando Ribeiro fala das festas de Ibejis30, ou melhor, do Shamba de Ibejis.
Na técnica de transdução, o samba de roda é muito utilizado em ações do Pantalone e
Brighella, mas serve às ações da Servetta, Cortigiana e Capitano.
Outro tipo de samba que utilizo muito é o samba dançado nos desfiles de carnaval nas
regiões do Rio de Janeiro e São Paulo, também conhecido popularmente como samba de
29
Não está, entre os objetivos deste estudo, elencar os movimentos que fazem parte do samba de roda, samba de
gafieira ou samba de quadra, para os que anseiam mais informações, como nomenclaturas e explicações dos
passos, reencaminho para: Samba de Gafieira: Corpos em contato na cena social carioca, de Ana Maria de
São José. 30
Segundo René Ribeiro (1982, p. 140-144), a festa de Ibejis, no Candomblé Ketu, é referente ao culto dos
gêmeos, crianças, Ibeji e Hojo, seres da floresta e grandes conhecedores de magia. 160
quadra ou, conforme assinala São José, samba no pé. Este tipo de samba é totalmente ligado
ao carnaval e caracteriza-se por uma dança ágil e sensual. Segundo Leopoldi, que analisa os
encaminhamentos tomados pelas escolas de samba ao longo de cada ano para a preparação do
desfile e festa do carnaval, este samba possui uma ligação muito específica com o ritual, ele
vê os procedimentos das escolas de samba, antropologicamente, como rituais de uma
sociedade e reafirma o carnaval como evento ritualístico31.
O samba de quadra possui movimentos muito mais expansivos que o samba de roda e
está na base da máscara física da Servetta e da Cortigiana, mas também pode servir a ações
das máscaras da Nobile, Capitano, Zanni e Arlecchino.
O samba é utilizado em vários dos seus desdobramentos, principalmente, o samba de
roda e o samba de quadra, a não escolha por apenas um estilo de samba se dá porque esta
pesquisa não fixa ou refuta um estilo, ela segue um fluxo subjetivo de dados que utiliza o
reservatório inerente para acessar as máscaras dell’arte sem realizar uma seleção racional32.
Outra prática espetacular popular brasileira que também possui uma imensidão de
desdobramentos e que segue os mesmos mecanismos de “não seleção”, são as danças dos
Orixás33. O Candomblé é tão complexo dentro de seus desdobramentos que devo dizer que
aqui, mais do que em todas as outras práticas espetaculares populares que integram esta
pesquisa, o princípio da “não seleção” é quase condição para que a técnica de transdução
aconteça. Isso porque, durante muito tempo, visitei terreiros de diversos segmentos do
Candomblé: Terreiro de Linha Cruzada, Batuque, Umbanda, Candomblé de Angola, Xangô,
Nagô e Ketu. Em determinado momento da técnica de translocação, as danças oriundas de
mais de um terreiro se misturaram. Devido aos desdobramentos e conectividades
diversificadas do Candomblé, prefiro falar nas danças dos Orixás sem especificar de que
terreiro ou linha estou falando. Não é um modo de generalizar, mas de não se deter em
questões sobre espaços e territórios entre linhas e terreiros diversos, uma discussão que não
faz parte do nosso objeto de estudo.
Cada Orixá possui sua dança e uma gama de passos diversos, podendo, ainda,
diferenciar-se e de terreiro para terreiro. Apreendi muitas danças diferentes, desde as
31
Para saber mais sobre Escola de samba e ritual, ler: Escola de Samba, ritual e sociedade, de José Sávio
Leopoldi. 32
Certamente que, neste momento da pesquisa e da produção da tese, foi necessário um recorte, pois continuo e
continuarei apreendendo outras práticas espetaculares populares brasileiras e sempre que solicitadas, integrá-lasei às máscaras dell’arte, através da técnica de translocação e transdução. Como afirmei anteriormente, não jogo
uma âncora, o processo de pesquisa e apropriação das máscaras dell’arte através de células de práticas
espetaculares populares brasileiras continuará vadeando em muitos mares. 33
Os Orixás mais importantes, segundo a tradição Ketu de Candomblé, são 16: Exu, Ogum, Oxóssi, Xangô,
Omolú, Ewá, Logum Edé, Oxumaré, Ossain, Oxalá, Êres/Ibejis, Iansã, Oxum, Iemanjá, Obá e Nanã. 161
estilizadas (utilizado por grupos folclóricos e ligados à dança contemporânea) até os mais
ritualísticos, realizados dentro dos próprios terreiros de Candomblé, com quem não tem a
dança como profissão, mas a devoção ao Candomblé, à Linha Cruzada, ao Xangô, ao
Batuque, ao Candomblé de Angola, à Jurema – para esta pesquisa, todo o acervo apreendido
no decorrer de anos, serve de reservatório e motor para as técnicas de translocação
caleidoscópica e transdução caleidoscópica.
Conforme explicado, não utilizo somente as danças dos Orixás de um determinado
terreiro. Fazem parte de meu reservatório e motor danças apreendidas em terreiros de Linha
Cruzada, Candomblé de Angola e Ketu, sem nenhum tipo de resistência ou preferência, aquilo
que a máscara dell’arte requer energética ou fisicamente, a imaginação vai buscar no acervo
muscular incorporado. Como exemplo deste mecanismo, posso citar a máscara do Arlecchino,
enquanto que, para as pernas e pés, esta máscara requer frevo e capoeira, para o tórax, ombros
e braços, os quais possuem posturas bem específicas, ela requer uma movimentação advinda
de uma dança de Iansã da Linha Cruzada - também conhecida nesta linha como Pombogira34.
As danças dos Orixás são muito utilizadas por mim, para as máscaras dell’arte e,
também, para a técnica de translocação caleidoscópica, pois possuem uma variedade de
corporeidades e fisicidades muito grande, com gestos expressivos e cheios de uma
comunicação “além da razão”. Tais danças, segundo a pesquisadora Suzana Martins, possuem
uma forte ligação com outra esfera da realidade, por se relacionarem de modo incomum com
o tempo. É na dança e no ritual que passado, presente e futuro relacionam-se, é como se
codividissem o espaço/corpo/atmosfera do local e daqueles que estão ali presentes – em
diferentes graus, a depender da capacidade de disponibilidade de cada um. Nos festejos em
homenagem ao Orixá, ritual e festa codividem o mesmo espaço fisico e imaterial. No ritual e
nas próprias danças, é possível perceber o dado sensível que se perpetua e se renova - é o
DNA imaginal transgredindo as leis comuns de tempo e espaço:
Seguindo a sequência de gestos que correspondem às qualidades e características de
cada um deles [dos Orixás], os religiosos (“nós, rodantes” Janail Peixoto, 1992)
continuam a se locomover, em sentido anti-horário, o que significa “voltar ao
passado”, aos ancestrais. “A música, o ritmo, a dança são extensões dessa expressão.
34
Na Linha Cruzada, a Pombogira também é chamada de Exu Mulher, pois é o feminino da força de Exu. Esta
relação entre a Pombogira e Iansã é comum em algumas linhas, no Candomblé Nagô, por exemplo, Iansã é muito
próxima aos Exus. Considerada a senhora dos Eguns (ou Eguguns espíritos perdidos) é ela quem guia tais
espíritos. Tal como os Exus, ela também atua como mensageira entre as almas e os homens - e outra vez, através
de Iansã ou Pombogira, as conexões podem se enredar ao infinito... Arlecchino – Pombogira – Exu... e daí para o
Zanni, Bufão e Dionísio. Para saber mais sobre a relação de Iansã e Eguns, ler: Iansã do Balé Senhora dos
Eguns, de Sebastião Guilhermin; Oya: Um louvor à Deusa Africana, de Judith Gleason; A dança do vento e
da tempestade, de Rosa Maria Susanna Bárbara. 162
Suprimiram as fronteiras territoriais, contrariaram o sentido do tempo cronológico; o
tempo deles não gira no sentido do relógio, mas, como roda ritual, busca um contato
mais profundo com a ancestralidade” (LIGÉRIO apud MARTINS, 2008, p.43)
Gilbert Durand (1963) também ressalta esta relação com o tempo dentro das estruturas
ritualísticas, afirmando que a necessidade de “pará-lo” e celebrá-lo faz parte da sua formação
ritual. Segundo Durand, a dança, nestes rituais, ganha um caráter ambíguo: além de
representar o antepassado, ela também ganha a força de uma dança da vitória sobre o tempo,
pois através da supressão deste, ela possibilita a sua perpetuação e, dentro dela, acontece o
encontro com o antepassado e o ancestral.
A pesquisadora em sociologia Rosa Maria Susanna Bárbara (1995) fala que as danças
dos Orixás expressam o equilíbrio dinâmico do universo, pois os Orixás possuem relações
com o universo e todos os seus elementos, dessa forma, suas danças “[...] simbolizam as
energias da natureza [e], expressam esse eterno e alterno ritmo, que continua em ciclos
infinitos [...] As danças das divindades tornam-se, assim, a síntese do ritmo humano, do
nascimento, da morte e dos ciclos cósmicos da criação e da destruição” (BÁRBARA, 1995, p.
72-73).
Bárbara (1995, p.73) toca num ponto muito importante para esta pesquisa, o que talvez
tenha sido o início do processo de imaginação caleidoscópica do interesse por esta prática
espetacular popular brasileira e as máscaras dell’arte:
Através da dança, o corpo sai da sua própria individualidade física e insere-se num
movimento mais amplo que interessa à coletividade, à natureza, à divindade e ao
cosmo todo. Distante da dança sagrada é um modo de fundir-se num único corpo
vivente com as energias da natureza.
Penso que foi esta qualidade de movimentos que abrangem a coletividade, os quais,
como já comentado anteriormente, possuem genes/partículas vindouros do Fundo Comum dos
Sonhos, de um universo imaginário líquido que transborda e punge a realidade objetiva, que
foram os agentes conectivos destas danças ritualísticas e as máscaras dell’arte.
É nesta gestualidade ancestral que atua com uma transgressão ou supressão de
quaisquer fronteiras temporais e territoriais, que percebi sensivelmente a atuação do processo
de imaginação, sentindo a possibilidade de utilizar tal gesticulação ancestral para o acesso das
máscaras dell’arte. Para esta pesquisatriz, mais que conseguir acessar as máscaras dell’arte, o
interesse está em conseguir uma qualidade específica de movimentação para as máscaras
acessadas. Procura-se uma qualidade inerente à máscara, intenta-se reencontrar o aspecto
ancestral dionisíaco destas, em outras palavras, o aspecto xamânico que toda máscara deve
163
portar e que Claudia Contin tanto sublinha dentro de sua visão e prática das máscaras
dell’arte. Para esta pesquisa, estes genes que se repetem, renovam-se, transformam-se e
propagam-se rizomaticamente, que se emanam nos movimentos que integram as
manifestações espetaculares populares brasileiras sem controle, nem limiares, podem ser um
dos principais agentes do acesso às máscaras dell’arte que proponho. São movimentos que
possuem uma capacidade de identificação fasciculada ou, até, de uma conexão submolecular
de desdobramentos de um DNA imaginal, reunindo características novas e ancestrais.
É necessário dizer que esta pesquisa não trata da atmosfera destas manifestações
espetaculares populares ou sensações provocadas por estas, mas busca compreender como um
processo imaginativo ocorre na musculatura de um corpo prazenteiro que (se) emana em
ancestralidade festiva (OLIVEIRA, 2007) a partir destes dados sensíveis.
Da mesma forma que nas danças ritualísticas dos cultos a Dionísio, os Sátiros
representavam e incorporavam o mito, o mesmo acontece nas danças do Candomblé, segundo
Roger Bastide (1978, p. 22), “[...] a dança constitui a evocação de alguns episódios da história
da divindade que são fragmentos do mito e o mito tem que ser representado ao mesmo tempo
em que contado para adquirir todo o poder evocador” e este mito é contado e incorporado nos
elementos do ritual: movimentação, música, canto, travestimento, ser travestido e toda a
estrutura que comporta o ritual.
Mas a utilização das danças dos Orixás não está na busca da incorporação do mito do
Orixá, para esta pesquisa, a movimentação das danças é válida pela conexão com o Fundo
Comum dos Sonhos e, então, pelo processo de imaginação e Fundo Poético Comum. As
danças dos Orixás estão dentro das práticas espetaculares populares brasileiras que possuem a
conectividade com uma atmosfera cósmica que ultrapassa limiares comuns à realidade
objetiva, como espaço/tempo/cultura.
Algumas imagens das danças dos Orixás que utilizo podem ser vistas nos estudos de
Suzana Martins (2008) - dança de Iemanjá; de Rosa Maria Bárbara (1995) - dança de Iansãdo vento, da guerra, do afastamento dos Eguns, da borboleta, no xirê; de Karliane Macedo
Nunes (2008) - imagens do gestual dos Exus e de Marlene de Oliveira Cunha (1986) imagens da gestualidade dos Orixás no Candomblé de Angola. Ainda mais adiante, serão
inseridas no corpo textual desta tese, imagens dos movimentos deslocados das manifestações
espetaculares populares brasileiras e entre elas estarão alguns códigos das danças dos Orixás.
As danças dos Orixás, na técnica da transdução, são utilizadas de modo muito
específico e, como dito, interagem, em graduações diferentes com todas as máscaras dell’arte.
As danças de Ogum, Xangô, Oxóssi e Omolú são muito utilizadas nas ações das máscaras do
164
Capitano e do Zanni. As danças de Ogum, Xangô, Iansã, Iemanjá e Oxum servem muito às
máscaras da Cortegiana e da Servetta. Pantalone utiliza a movimentos de Oxalá e Nanã e,
dessa maneira, quando necessário, as máscaras requerem os movimentos deslocados das
danças dos Orixás.
Os exemplos acima são conexões que podem ser estabelecidas mais rapidamente
dentro deste pensamento gramíneo que se ramifica torrencialmente e incontrolavelmente. Mas
foi deste prévio conhecimento que as técnicas de translocação e transdução foram
engendradas, seguindo uma torrente de dados, deixando-os agirem em minha subjetividade
para, então, tentar apreendê-los35 e compreender o mecanismo do processo de imaginação
pelo qual os dados estavam passando.
Realizado um rápido panorama das manifestações espetaculares populares brasileiras
que integram o grupo das práticas espetaculares desta tese, sem adentrá-las em detalhes, pois,
como já afirmado diversas vezes, não se trata de relações comparativas e, além disso, adentrar
nos pormenores de cada prática espetacular popular brasileira seria uma suspensão no
pensamento dos encaminhamentos que compõem esta pesquisa, prossigo no intento de
explicar o funcionamento das técnicas de translocação e transdução.
Primeiro intento tornar inteligível a técnica de translocação, força motriz da técnica de
transdução. Todas as três técnicas que compõem o acesso às máscaras da commedia dell’arte
(bufão, translocação e transdução) funcionam pela comoção de dados sensíveis, através de um
sistema de imaginação e dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético
Comum.
Dentro deste processo fluvial, torrencial e aluvial de aprendizado pela dúvida e
incerteza, apreensão e comoção de dados, pouco a pouco, fui esquematizando uma prática
para deixar os movimentos deslocados das práticas espetaculares populares brasileiras com
formas bem definidas, realizando um trabalho detalhista, voltado para as questões plásticas e
estéticas dos movimentos, mas sem perder os circuitos energéticos que cada movimento cria tentando trazer com os circuitos musculares, os circuitos energéticos inerentes ao movimento
de cada manifestação espetacular popular.
A técnica de translocação, a qual é a força motriz da transdução, requer uma prática
sistemática dos dados apreendidos, conforme dito, não somente na presença e convivência em
35
Para saber mais sobre as danças dos Orixás, ler: Em busca de um espaço: a linguagem gestual no
Candomblé de Angola, de Marlene de Oliveira Cunha; A dança do vento e da tempestade, de Rosa Maria
Suzana Bárbara; A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo, de Suzana Maria Coelho
Martins; Xetro, marrombaxetro, caboclo! A construção do corpo caboclo nos candomblés da cidade de
Cachoeira – BA, de Sérgio José de Oliveira. 165
campo, a qual se deve sempre revolver, mas em laboratórios individuais, em sala de ensaio.
Neste sistema de trabalho em sala, com o tempo, cada movimento deixa de ser uma dança ou
um golpe e torna-se parte de uma partitura esquematizada e desenhada. Através deste
trabalho, os movimentos começam a ser pensados/conhecidos como possibilidades de
representação e ação - criando uma “linguagem” muito específica. Esta “linguagem” corporal
proporciona-me um modo muito particular de contar/viver uma história, possuindo uma
presença de corpo com desenhos/formas definidos e uma linha de ação muito “colorida” em
termos de ritmos e energias, através da ideia da formação de circuitos musculares e
energéticos. Isto é, quando codifico um golpe de capoeira, mantenho na musculatura a energia
com que este golpe é dado quando se está jogando capoeira. Ou, ainda, um passo de frevo
deve manter o circuito muscular e energético das pernas, mesmo quando geminado com uma
movimentação dos braços da ciranda que, por sua vez, também manterá seu circuito muscular
e energético. O que acontecerá é uma geminação dos circuitos, em algumas instâncias, estes
dois circuitos complementar-se-ão, compartilharão e comungarão de pontos energéticos e
musculares, formando um novo circuito resultante de tal enredamento.
Repito que a escolha pelas manifestações espetaculares populares brasileiras que
integram esta pesquisa não segue nenhum critério se não o de já assimilar, na musculatura
desta pesquisatriz, o que torna a técnica criada para possibilitar o acesso às máscaras dell’arte
muito mais específica. Ainda, as danças, golpes e movimentos deslocados não são utilizados
tal qual acontecem durante os eventos em questão, mas passam por um processo de
apreensão, codificação e decomposição/decodificação, para serem relocadas em partituras de
ação.
A codificação é a transformação de cada movimento ou passo das danças ou golpe das
lutas em uma sequência de movimentos muito bem organizados fisicamente e a
decomposição/decodificação consiste em esfacelar este código ainda mais, transformando-o
em células, cada célula se torna uma peça que formará as imagens criadas pelo sistema
caleidoscópico. Por exemplo, o golpe de capoeira cujo nome é “queixada” pode ser um
código, porém, para ser realizado, é necessária uma série de movimentos, assim, o golpe é
decomposto em códigos ainda menores (movimento da perna esquerda e direita, braço
esquerdo e direito, pé esquerdo e direito, quadril, mão esquerda e direita, cabeça), desse
modo, cada movimento executado por uma parte do corpo para a execução do golpe constitui
uma célula/componente do código.
O momento de codificação é de dedicação e paciência por parte do pesquisator, que
deve, primeiro, exercitar-se por um período significativo, ao menos até obter certa autonomia
166
dentro destes códigos, misturando-os em uma sequência a ponto de executá-los sem
raciocinar, deixando-se levar pela lógica dos movimentos e fluxo das energias (ex.: um passo
de maracatu é seguido de um passo de frevo, que é seguido de um passo de ciranda, depois
por um golpe de capoeira...). Dessa forma, o corpo vai aprendendo a associar ritmos e
movimentos de dinâmicas diversas e os circuitos vão-se coligando em uma linha contínua de
ação, realizando o transpassamento de um circuito para outro e criando as imagens
caleidoscópicas.
O exercício contínuo desta prática faz com que o pesquisator adquira uma capacidade
na execução dos diversos ritmos e agilidade na realização dos códigos e na ação de geminálos. Quando o pesquisator chega à habilidade de geminar tais códigos, é porque os dados
estão começando a agir de modo autônomo. Da codificação para a realização da
decodificação, é uma questão de tempo, pois a própria musculatura, na prática do esforço nas
questões de fisicidade e corporeidade de cada movimento que compõem um passo ou golpe,
começa a realizar a decodificação dos mesmos. Porém, as duas etapas não podem ser
realizadas ao mesmo tempo, pois na codificação o “foco” é aberto, isto é, a atenção é
direcionada para o código completo, como um todo e, na decodificação, o foco é direcionado
para cada movimento que forma o código.
Também é importante que, num primeiro momento de apreensão e demarcação dos
códigos, os exercícios das danças e golpes que compõem as práticas espetaculares populares
brasileiras que integram o grupo que serve como força motriz para a transdução, sejam
realizados dentro dos seus contextos rítmicos e musicais: frevo com frevo, caboclinho com
caboclinho, cada dança de Orixá com o seu toque. Posteriormente, quando os códigos já
estiverem fixados e bem definidos, aí então, faz-se o exercício de conjugação dos circuitos
utilizando um só ritmo musical.
O ritmo utilizado por esta pesquisatriz é o samba, pois dentro dele é possível encontrar
a noção de base de todos os outros ritmos das manifestações espetaculares populares
brasileiras que fazem parte desta pesquisa36. Já no momento de transpassamento e geminação
dos circuitos, da mistura de passos de práticas diferentes (pernas do “margüio” do cavalomarinho e braços do caboclinho), nem sempre utilizo o samba, às vezes, utilizo batuque de
Candomblé e, outras vezes, o trabalho é realizado sem música – tudo depende da ação dos
dados, não há uma receita para a ação da subjetividade.
36
Faço esta observação, partindo da minha experiência de pesquisatriz, sem afirmar o samba como ritmo
contentor de outros ritmos, foi uma escolha pessoal. 167
Devo fazer uma importante observação, mesmo que as manifestações espetaculares
populares brasileiras utilizadas nesta pesquisa, inicialmente, sejam embaladas, cada qual por
seus ritmos e músicas e, numa segunda fase, seja utilizado um único ritmo para embalar a
coligação dos circuitos, não se trata, em nenhum momento, da estruturação de coreografias de
dança. Trata-se de um exercício de contínua produção e transição entre os vários tipos de
energias produzidas pelas práticas espetaculares populares brasileiras sem racionalizar,
mantendo o grau de improvisação e subjetividade, muitas vezes inerentes às próprias
escolhidas.
Também é necessário esclarecer que o uso de um único ritmo musical não é para
simplificar o trabalho, ele serve como “argamassa”, como impulsionador e ligame dos fluxos
de energias e circuitos musculares, deixando que tais circuitos hajam num processo de não
racionalização. Neste momento de laboratório individual e exercício em sala, a música
representa um retorno à festa e ao ritual37, servindo como elemento recordativo do processo
de instauração de ambos no corpo do pesquisator. Além de representar esta record/ativa ao
ritual e à festa como eventos que se instauram, a música serve, também, para a transformação
destes dois eventos em “material técnico”. Conforme Angel-B Espina Barrio (2005), nos
capítulos dedicados a “Antropologia Social. Sistemas Religiosos” e “Etnografia”, é preciso
considerar a música e a dança como aspectos que sempre acompanharam o ser humano, nem
sempre as duas estão presentes conjuntamente, mas ambas estão relacionadas ao ritual, à festa
e, em muitas culturas, a uma alteração de estado de consciência, sem contar no aspecto lúdico
(do jogo) que todas as duas apresentam.
Tornando ainda mais nebulosa a tentativa de explicação do funcionamento das
técnicas de translocação e transdução, é preciso considerar dentro dos mecanismos que as
compõem, espaços como “terras de ninguém”, são os “espaços entre-circuitos”, cuja gerência
é de total subjetividade – ali, onde a memória falha, a imaginação trabalha. Muitas vezes, um
circuito necessita realizar algumas pequenas modificações para se conectar ao outro, como
por exemplo, para transpassar de um passo de coco para um golpe de maculelê, é preciso
mexer nos circuitos que se formam no final do passo de coco e no início do golpe de
maculelê. O mesmo acontece com códigos que já foram decodificados, sempre que se
geminam dois circuitos diferentes é preciso fazer algumas pequenas modificações nestes, por
exemplo: para conectar as pernas do margüio do cavalo marinho, com braços e tronco de uma
37
Certamente que a música ao vivo é muito mais ritualística, com as vibrações dos instrumentos e/ou vozes, mas
não se pode negar que a música, mesmo eletrônica, possui seus meios de manter o ritual e portar a estados de
consciência diversos, ainda mais quando existe já a predisposição a esta transposição de atmosfera, adquirida em
campo e auxiliada pela imaginação. 168
das danças de Omolu, é necessário que haja uma modificação nas extremidades de cada um
dos circuitos, no das pernas do cavalo-marinho que, ao invés de se conectar ao tronco e braços
habituais, vai se coligar com uma nova estrutura muscular e energética de tronco e braços.
Esta etapa de translocar os códigos/células das práticas espetaculares populares
brasileiras, deslocando-os para se relacionarem com outros códigos/células de manifestações
espetaculares populares brasileiras, que não os de costume, requer uma dedicação e prática
sistemática.
O processo de decodificação exige que o pesquisator trabalhe no detalhe de cada
código. Quando a decodificação dos passos e golpes estiver definida na musculatura, começase a realizar a translocação das células. Este processo segue o mesmo encaminhamento do
trabalhado realizado nas combinações das corporeidades e fisicidades dos animais na
formação do corpo do bufão - num processo aleatório, sem pensar, mas deixando que as
combinações aconteçam seguindo um fluxo dinâmico de energias que se movem e comovem
o pesquisator: pés e pernas de caboclinho e tronco, braços, mãos e cabeça de uma dança do
orixá Oxóssi; pernas e pés de cavalo-marinho, tronco, braços e mão de dança do orixá
Ogum... Assim, as células vão sendo conjugadas, geminadas = translocadas.
No processo de translocação, a intenção é chegar numa dinâmica orgânica de
combinações caleidoscópica, de modo que, através da prática sistemática, o próprio fluxo da
prática estabeleça sequências, as quais podem servir como partituras.
Na translocação caleidoscópica, as imagens que se formam são compostas por células
oriundas de diferentes manifestações espetaculares populares brasileiras (conforme tentativa
de explicação realizada) e constitui a chave para o possível acesso às máscaras dell’arte que
proponho nesta tese. Somente passando pelo processo de translocação é que o pesquisator
chegará ao processo de transdução. Somente com os códigos muito precisos e notadamente
decodificados é que ele poderá formar as imagens caleidoscópicas, que se movem e recriam
na musculatura as máscaras físicas da commedia dell’arte.
O trabalho que o pesquisator realiza, de certa forma, neste tipo de acesso às máscaras
dell’arte, é a de um montador de um grande quebra-cabeça, utilizando e reproduzindo as
peças no seu próprio corpo. São as pequenas modificações nos circuitos - trabalho realizado
pelo sistema de imaginação - que permitem que os códigos/células se geminem compondo um
corpo harmonioso.
Certamente que, nestas minúsculas ou pequenas modificações na rede dos circuitos
musculares, acabam modificando, também, um pouco do circuito energético dos códigos.
Contudo, estas modificações estão em níveis secundários, o que acontece, em nome desta
169
comunhão, é uma adequação em ambos os circuitos, para a passagem do fluxo energético de
um código a outro. Mesmo com estas modificações, os genes primordiais vindouros de uma
outra esfera devem estar contidos e latentes no cerne de cada célula que compõem o código.
Através da musculatura, o pesquisator tem as ferramentas necessárias para manter pontos
energéticos e emanantes de cada código/célula, de modo a formar um único e novo circuito,
tão potente energeticamente quanto aqueles que o originam. Os novos circuitos possuem uma
riqueza em possibilidades de modulações energéticas, pois abarcam células de manifestações
espetaculares populares diversas que se conectam reinventando o “novo”.
No final do processo de translocação (e também no de transdução), percebe-se que as
pequenas modificações realizadas nos circuitos resultam em ondulações, graduações e
modulações energéticas que indicam ainda mais riqueza e possibilidades para as imagens
caleidoscópicas.
O processo caleidoscópico não é estático, os circuitos agem de modo contínuo, muitas
vezes se sobrepondo parcialmente ou deixando os “espaços entre-circuitos”, para a realização
das pequenas modificações e transformação dos diferentes circuitos em um só. Sabe-se que é
delicado relatar uma ação que “é” constante transformação e metamorfose, mas este modo de
conexão é a base prática para o acesso das máscaras dell’arte – também, por isso, é
importante para o pesquisator passar pela técnica do bufão, outra base prática desta pesquisa,
pois, como visto, ele também é transformação e metamorfose.
A prática sistemática da translocação, além de ser chave para as máscaras dell’arte,
constitui, ela própria, uma técnica que pode ser levada à cena. Ela pode ser encaminhada de
modo racionalizado ou de modo improvisado.
Para a criação de ações e cenas, dá-se continuidade ao exercício de trasnlocação de
células deslocadas das várias manifestações espetaculares populares brasileiras de modo
improvisado, deixando-se levar pelo fluxo dos movimentos, embalados pela música.
Posteriormente, acrescenta-se o texto, já contido na memória ou improvisado, o importante é
que o argumento esteja muito claro para que não seja necessário parar para pensar durante o
processo. O texto deve ser mais uma peça a formar as imagens caleidoscópicas, talvez não
chegue a ser uma peça, mas um fluido a mais, adicionado às imagens que transpassa e
trabalha junto com elas.
Também aqui, a prática com o mesmo texto falado é realizada muitas vezes, deixando,
num primeiro momento, a música embalar os códigos que deslizam no fluído literal que é o
texto. A repetição acaba por, algumas vezes, fixando algumas das geminações realizadas, e
estas insistências podem ser tomadas como uma parte da cena já estruturada, servindo-se a
170
cena. Pode-se, ainda, deixar partes do monólogo para serem improvisadas no ato da
apresentação, ou a coligação das células e códigos podem ser estabelecidas de modo racional.
Neste último caso, o fluxo natural da movimentação deve ser estabelecido posteriormente,
com a repetição exaustiva da série das ações recriadas, buscando a pulsação energética e de
emanação através da musculatura, acionando os circuitos de modo a comover as energias e
forças oriundas de cada código.
É muito importante a coligação dos circuitos das células vindouras de diferentes
manifestações espetaculares populares brasileiras seguindo um impulso e fluxo natural,
mantendo em cada código e célula a sua pulsação e energia originária, pois este combustível
permitirá ao público, diante da cena, perceber os dados sensíveis que se movimentam sob as
ações desta. É exatamente neste vislumbramento de “dança das energias” que começa a
translocação caleidoscópica da cena intitulada “Alla ricerca di um Zanni”.
Penso que os encaminhamentos acerca de ambas as técnicas possam ser mais
esclarecedores se seguirem o transcurso através do processo de translocação caleidoscópica
para, depois, relatar nova navegação na cena de transdução caleidoscópica, mostrando como a
terceira técnica é quase uma consequência da segunda.
4.2. DE FESTAROLAS A TRANSDUÇÕES: ZANN PIEDINI38
“[...] O diálogo é reduzido ao mínimo funcional e deixa livre trânsito à fantasia
gestual do ator [...] O Ator aqui se torna o narrador de uma ação, encarnando, ao
mesmo tempo, seus personagens.”
Jean-Jaques Roubine (2002, p. 30)
A cena “Alla ricerca de um Zanni” é nata num processo metamorfoseante, passando
da experiência e técnica do Bufão à técnica de translocação, até chegar à técnica de
transdução e, então, à cena estruturada com a Máscara do Zanni. Zanni foi a máscara que
acompanhou o processo de endossamento de todas as outras que me foram ensinadas e,
algumas delas, confiadas pelos mestres Contin e Merisi. Um fato curioso é que, enquanto
estive na Scuola Sperimentale dell’Attore, eles confiaram a mim muitas outras máscaras,
menos Zanni e Arlecchino – aquelas que sempre afirmei serem as mais importantes dentro da
minha pesquisa. No seu livro e espetáculo “Gli Abitanti di Arlecchinia”, Claudia Contin fala
da necessidade de paciência para chegar às máscaras dell’arte, de como elas trabalham em
38
Nome da minha máscara do Zanni, sugerido por Ferruccio Merisi, devido a uma série de pequenos acidentes
que tive envolvendo meus pés - “João Pezinhos”. 171
você e que, nem sempre, os bons mestres dão ao aluno aquilo que ele quer no momento. E foi
nestes muitos mergulhos, passando pelas máscaras da Servetta, Cortigiana, Nobile, Pantalone,
Brighella e Capitano, que Zanni e Arlecchino foram ganhando força e estruturando suas cenas
de transdução, num processo pleno de modulações.
Através deste processo de passagem de translocação à transdução e de Zanni à
Arlecchino, obtive uma compreensão dos transcursos das máscaras dell’arte, principalmente,
de como a máscara do Zanni abre os caminhos para as outras máscaras e de como estas
máscaras conectam-se com o universo bufonesco e carnavalesco.
A cena “Alla ricerca di un Zanni” teve como primeiro elemento, o texto. Na verdade,
o texto não foi escolhido, ele que se escolheu, pois sua presença entre a prática das máscaras
dell’arte era insistente.
Trata-se de um texto totalmente inserido na cultura popular brasileira, reescrito das
histórias de Chicó, personagem da peça “O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. Na
cena com a técnica de translocação, utilizo uma compilação e livre adaptação do texto de
Suassuna, traduzido em italiano por L. Lotti: Guaraldi, 1992. Primeiro foi realizada uma
adaptação, depois, com o tempo, o texto de Suassuna foi servindo de guia, ao serem
acrescentadas expressões de dialetos italianos e também do português.
Em novembro de 2007, a Dr.ª Maria de Lourdes Rabetti convidou-me para fazer uma
participação em um seminário que seria apresentado no dia 12 de dezembro de 2007. O
seminário faria parte do Curso “Drammaturgia Teatrale”, desenvolvido pelo Dr. Roberto
Tessari no DAMS di Torino (UNITO), durante o acadêmico 2007/08 e dedicado às
“problemáticas histórico-críticas da Commedia dell’arte”. O seminário oferecido pela referida
doutora se intitulava “Semminario Temi della storia del teatro brasiliano: la commedia e
l’invenzione della tradizione” e minha participação seria uma “Demonstração prática de
trabalho de pesquisa sobre o personagem–tipo na peça ‘Auto da Compadecida’ de Ariano
Suassuna”, cujo personagem-tipo escolhido foi Chicó. Foi este primeiro estudo do
personagem Chicó que originou a cena intitulada “Alla ricerca di un Zanni”.
Estava trabalhando na cena para apresentar no referido seminário, quando fui fazer o
primeiro curso de commedia dell’arte com Contin e Merisi (no Teatro Ostia, província de
Roma/IT) exercitando-me com a técnica de translocação, apropriação das máscaras dell’arte
continianas e estruturação da técnica de transdução, durante esses processos, foi nascendo o
desejo de trabalhar o texto nessas técnicas. Enquanto tudo acontecia, o texto ecoava em meus
pensamentos e imaginação.
172
Em janeiro de 2008, retomei as atividades de commedia dell’arte com Claudia Contin,
Ferruccio Merisi e Veronica Risatti, na sede da Scuola Sperimentale dell’Attore, em
Pordenone/IT. Durante o trabalho prático em grupo e em laboratórios individuais com a
professora Veronica Risatti, passando pelas máscaras dell’arte, o texto das histórias de Chicó
trabalhava em mim, de forma sutil e continuada. Estranhamente, perpendicularmente ao
trabalho com a commedia dell’arte, aquele texto continuava a pedir-me que fosse trabalhado,
que continuasse explorando suas possibilidades, pois a narração das histórias “vividas” por
Chicó assemelha-se muito aos monólogos dos Zannis: conversas e sonhos mirabolantes,
plenos de fantasia.
Então decidi escutar aquele impulso da atitude lúdica e transformar o texto das
histórias de Chicó em um monólogo da técnica de translocação, para depois transformá-lo em
um monólogo de Zann Piedini. Foi assim que surgiu a cena Alla ricerca di un Zanni com a
técnica de translocação, a qual ganhou este nome, por que foi (e é) um mergulho de
exploração da técnica de translocação e do caminho a ser percorrido para a realização de uma
cena do Zanni, a partir de códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras.
Os laboratórios foram realizados de forma individual, trabalhando só em sala de aula.
O primeiro passo foi trabalhar a cena a partir da improvisação com as células das
manifestações espetaculares populares brasileiras - técnica de translocação. Desse modo, a
história foi criando pulsação, expressa através de uma movimentação que se autogerenciava e
se autofixava de acordo com a lógica que o corpo criava utilizando tais códigos. Com uma
prática sistemática da técnica de translocação, a cena foi-se estruturando e (em algumas
partes) fixando-se, de forma espontânea e precisa.
Foto: Veronica Risatti
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: 23\junho\2008
A primeira vez que a cena “Alla ricerca di un Zanni” foi apresentada em público foi
no evento “Arreia”, em junho de 2008, produzido pela Scuola Sperimentale dell’Attore, na
sua própria sede, em Pordenone (ver texto integral e publicidade do evento no APÊNDICE C
E ANEXO C). Foi após esta apresentação que Contin e Merisi demonstraram interesse em
173
dirigir um espetáculo dentro da minha proposta de mistura entre máscaras dell’arte italianas e
práticas espetaculares populares brasileiras – foi o início dos trabalhos para o espetáculo
“Papaietta Poliglota”.
Após esta primeira apresentação, Alla ricerca di um Zanni foi apresentada outras
vezes, na Itália, em Luxemburgo e no Brasil.
Intento, através da inserção de algumas imagens do referido monólogo, auxiliar na
compreensão da técnica de translocação. Faz-se necessário dizer que, em qualquer lugar que
seja apresentado o espetáculo, o texto é em italiano macarrônico39 (misturando português,
expressões de dialetos italianos e italiano clássico). Desde o início, esta cena foi trabalhada
desta maneira e, por este motivo, a tradução literal da cena é uma tarefa difícil. Também, a
meu ver, a tradução perde o sentido, uma vez que a apresentação deste trabalho é com esta
linguagem e é desse modo que a cena está no espetáculo e no DVD40:
“Eccomi qua! In questo mondo ci sono di storie... credi che uma moglie vuol benedire il suo
can per veder se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so com’è questa gente,
ãh? Ma non c’è niente di stragno. Io stesso ho avuto um cavallo benedetto.”
De costas para o público, em um passo da dança de Oxaguiã – “Eccomi qua”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubrro\2010.
Forma de comunicação muito utilizada pelos bufões e cômicos dell’arte, cuja explicação mais detalhada, já foi
dada anteriormente (no segundo capítulo). 40
Com isso, faço um breve resumo da situação da cena, cujo texto serve como exemplo - Nesta frase, o
personagem comenta como o mundo é cheio de histórias. Após, conta que uma senhora quer benzer seu
cachorro, para ver se ele não morre, afirmando que não vê nada de estranho nessa atitude, pois ele mesmo já teve
um “cavalo abençoado”. 39
174
Girando de frente com um passo de samba; braços com a postura da ciranda – “in questo
mondo ci sono di storie”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009.
Passo do margüião do cavalo-marinho, aproximando-se do
público – “credi”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009.
Passo de ciranda e mãos da dança dos Orixás (Ogum) “che una donna” - “vuole benedire il suo cane”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009
“Passo à frente” da Capoeira regional, braços e mãos da dança dos Orixás (Iemanjá)
(cabeça faz o golpe de máscara) – “per vedere se l’animale non muore”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009
175
Parada sobre os calcanhares do samba ou da dança do
Exu (Zé Pilintra) - “Beh!”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009
Passo de frevo – “dico cosí perché non
so come è questa gente”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009
Passo de frevo com mãos de dança dos Orixás (Oxumaré) –
“Éh!?”.
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009
Ginga da capoeira com mãos da dança de Oxumaré – “ma non c’è niente di strano” –
Foto: Léo Azevedo
“Alla ricerca di un Zanni”
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: outubro\2009
176
E, dessa maneira, em um caleidoscópio de células/códigos advindos das práticas
espetaculares populares brasileiras, toda a sequência foi sendo engendrada, sendo que a sua
estrutura é constituída de uma porção rígida e outra flexível (OLIVERA, 2007), isto é, partes
bem recodificadas e fixadas e outras com espaço para improvisações com os códigos.
Um exemplo da estrutura rígida que constitui esta cena é a “presença” de um preto
velho41 e de um Exu da Calunga42. Na medida em que praticava a técnica de translocação,
minha memória muscular trouxe, insistentemente, a mímesis corpórea43 de um trabalho
desenvolvido durante muito tempo em um terreiro de Linha Cruzada em Santa Maria⁄RS,
incluindo, na sequência, a mímesis de um Preto Velho e de um Exu. Estas inclusões não
estavam previstas no elenco das manifestações espetaculares populares brasileiras que
integram esta pesquisa, mas como, muitas vezes, durante a prática da improvisação com os
códigos/células das manifestações espetaculares populares brasileiras, estas memórias
musculares se faziam presentes, decidi deixá-las na cena, não me preocupando em afastá-las
ou negá-las, pois, de alguma maneira, como trabalhava com danças advindas do Candomblé,
era natural que estas memórias vindouras de um terreiro de Linha Cruzada “aproveitassem” a
torrente e emergissem no trabalho – Ver cena ou clip da cena construída com a técnica de
translocação caleidoscópica “Alla ricerca di um Zanni” no DVD: MENU: 2 TRANSLOCAÇÃO CALEIDOSCÓPICA : 2.2 - ALLA RICERCA DI UM ZANNI – clip.
2.3 – ALLA RICERCA DI UN ZANNI – cena.
Após ter realizado todo o percurso de codificação e decodificação com as células das
práticas espetaculares populares brasileiras e recodificação em uma estrutura de cena,
comecei a trabalhar para transformar aquela cena em commedia dell’arte, utilizando a
máscara física do Zanni. Tal processo gerou uma experiência ímpar, pois a máscara física do
Zanni é muito grotesca e como toda máscara dell’arte continiana, sua movimentação é muito
específica e codificada. Fazer este trabalho de ajuste de circuitos musculares e energético na
máscara do Zanni com as células das práticas espetaculares populares brasileiras foi um
trabalho “artesanal”, pois era preciso dedicar-me a detalhes mínimos desta “transdução”.
41
Entidade Espiritual (integrante da Umbanda e Linha Cruzada) que possui relação com os antigos escravos. O Exu também faz parte das entidades da Umbanda e o termo “Calunga” indica os meios com o qual ele se
relaciona, no caso, as almas e o cemitério. 43
A mímesis corpórea é uma técnica estruturada por Luís Otávio Burnier, cuja habilidade está na observação e
imitação, porém, em uma “observação profissional”, calcada no detalhe, na fisicidade e na corporeidade. Trata-se de uma “capacidade mimética” que tenta abranger não somente a forma mas também as energias, ritmo, élan
e impulsos que fazem parte daquele que é observado. Para saber mais sobre mímesis corpórea, ler: A Arte de
Ator: da Técnica à Representação. Elaboração, codificação e sistematização de técnicas corpóreas e vocais
para o ator, de Luis Otávio Burnier. 42
177
Apesar de, anteriormente, a Máscara do Zanni ter sido muito citada e comentada, foi
falado mais em termos de mito ou daquilo que ela representa para a Commedia dell’arte, por
isso, precisa-se falar um pouco da transformação do corpo do ator em Máscara física do
Zanni, tal como ela era em 1500 e tentar entender a metamorfose que esse corpo deve passar
para transformar-se em um Zanni.
Tornemos a lembrar as características do Zanni, não só de caráter, mas de como seu
corpo porta este arquétipo desde o período em que estas subiram aos palcos e alcançaram o
sucesso (1800), além de quando nem mesmo faziam parte da cena teatral (1400). Claudia
Contin, a meu ver, é quem melhor relaciona Máscara-corpo-caráter e a passagem desta
máscara do “mundo popular e mítico” para os palcos das ruas e praças e, posteriormente, para
os teatros e palácios.
Como já remarcado, Zanni é uma máscara de origem camponesa, especificamente, do
interior de Bérgamo. Segundo Claudia Contin (1999, p. 44), os trabalhadores rurais
bergamascos tinham um corpo muito peculiar:
Zanni é uma máscara de origem bergamasca e os bergamascos – por algum estranho
orgulho antropológico – gostam de se autodefinirem “traccagnotti” [parrudos], isto
é “baixinhos” de estatura, sólidos e bem plantados na terra. Para tanto, o ator deve
baixar muito o baricentro do próprio corpo. Porém, o termo “traccagnotto”
[parrudo] não significa somente “baixo de estatura”, quer dizer, também: forçudo,
musculoso, “pequeno touro”. Então, o ator deve botar para fora toda a musculatura
lateral da caixa torácica – as chamadas “asas” – e adotar para o dorso uma curvatura,
44
desenhando a forma de costas forte e habituada a suportar muito peso.
A partir destas características, começa-se a imaginar a máscara física do Zanni e podese, até mesmo, em meio à penumbra, imaginar o corpo de um capoeirista “traccagnotto”, com
grande força e agilidade.
Ao lado deste corpo parrudo, há outras características muito específicas que auxiliam
na composição, absorção, compreensão, metamorfose e imaginação desta máscara física:
[...] Zanni tem as mãos cheias de calos, grandes e duros “como batatas”, que o
impede de fechar ou relaxar os dedos. Porém, Zanni é muito orgulhoso em mostrar
seus calos de trabalho e, por isso, as mãos parecem grandes flores coriáceas, nas
quais os dedos “brotam” bem alargados e se movem com gestos secos, lenhosos e
decididos (CONTIN, 1999, p. 45).
44
Tradução da autora: Zanni è una maschera di origine bergamasca e i bergamaschi - per qualche strano tipo di
orgoglio antropologico - amano definirsi "traccagnotti", cioè "bassotti" di statura, solidi e ben piantati per
terra. Perciò l'attore deve abbassare molto il baricentro del proprio corpo. Il termine "traccagnotto" - però non significa solo "basso di statura", vuol dire anche: forzuto, muscolosetto, "torello". L'attore deve spingere in
fuori la muscolatura laterale della cassa toracica - le cosiddette "ali" - ed assumere una posizione incurvata del
dorso, disegnando la forma di una schiena forte ed abituata a sopportare grandi pesi.). 178
O desenho das mãos do Zanni, pelo trabalho que é habituado a fazer, é muito preciso,
porém, isso não acarreta um tipo de rigidez, seu desenho é definido e permanece quando as
mãos não estão envolvidas em ações, senão ela move-se normalmente, sem perder a tensão
habitual e necessária.
Continuando a descrição da máscara física do Zanni, Contin (1999, p. 45) fala:
Sendo um tipo do interior, certamente Zanni não é um estúpido, mas, também, não é
muito culto: não pôde estudar, mas – em cada caso – não quer ser enganado por
advogados e comerciantes [...]. Por isso, Zanni é atento a tudo, principalmente
àquilo que não conhece, é curiosíssimo e empurra a cabeça para frente como uma
mula enxerida que quer meter o nariz em todas as coisas, até mesmo naquelas que
não entende. Neste seu comportamento simplório, Zanni não é somente curioso de
tudo, mas também tem a característica de se admirar de tudo: a sua boca é sempre
aberta, escancarada pelo estupor, como um “O” alongado em direção ao solo, com
os lábios para fora e o maxilar completamente abaixado. Esta posição da boca é uma
característica típica do Zanni, a parte inferior do rosto, abaixo da meia máscara de
45
couro, é sempre exageradamente alongada em direção a terra.
Pode-se perceber que Claudia Contin reconhece as características arquétipas da
Máscara na composição física desta, desse modo, elas tornam-se ainda mais destacadas e
confirmadas. O mesmo acontece com a fome atávica do Zanni, e a relação desta com a região
do púbis, que, segundo Contin, como representa todas as fomes (comida e sexo), dever ser tão
direcionada para frente quanto o nariz.
A primeira fome, a instintiva, coloca a púbis bem à frente, o intestino acompanha esta
fome, já que é o lugar de transformação de alimento em energia e o estomago é sempre vazio.
A modulação do corpo nesta posição mostra as características citadas: a cabeça vai para
frente, como se quisesse conhecer tudo, a boca mostra a admiração com o mundo, as costas e
os braços robustos se alargam mostrando a sua capacidade e potência para o trabalho, o
estomago, permanecendo para dentro, parece um buraco e a púbis, tenta saciar a sua fome.
Com este corpo, jamais será possível um Zanni comportar-se como um nobre, a sua forma
grotesca já o exclui de certos “papéis” ou interpretações e declara traços muito marcantes de
sua personalidade.
45
Tradução da autora: Essendo un tipo campagnolo, Zanni non è certamente uno stupido, ma non è neppure
molto colto: non ha potuto studiare, ma - in ogni caso - non vuole lasciarsi imbrogliare da avvocati e
commercianti [...]. Per questo Zanni è attento a tutto, a tutto ciò che non conosce, è curiosissimo ed innesta la
testa in avanti come un mulo testardo che vuole ficcare il naso in ogni cosa, anche quelle che non capisce. In
questo suo comportamento da sempliciotto Zanni non solo è curioso di tutto, ma ha anche la caratteristica di
sorprendersi di ogni cosa: la sua bocca è sempre spalancata dallo stupore, in una sorta di "O" allungata verso
il basso, con le labbra sporgenti e la mascella completamente abbassata. Questa posizione della bocca è una
tipica caratteristica dello Zanni: la parte inferiore del volto, al di sotto della mezza maschera di cuoio, è sempre
esasperatamente allungata verso terra.
179
Mas além destas, existem outras características específicas e significativas que
compõem o corpo e o comportamento do Zanni:
Este camponês robusto – nos vales bergamascos, com os tamancos de madeira nos
pés – devia caminhar com passos grandes e pesados, nos quais toda a perna se eleva
mantendo numa curva aberta e larga e o pé bate por terra com potência, enquanto
que o quadril permanece solidamente em avanço e os braços desenham amplos arcos
46
ao lado do corpo (CONTIN, 1999, p. 46).
Tratando-se de uma pesquisadora que não permanece na superfície das descobertas,
ainda havia, nas iconografias do período de 1600, características que tinham sofrido algumas
mudanças, o que a fez ir mais além e descobrir a passagem do Zanni de Bergamo até o Zanni
das ruas e praças de Veneza e da Commedia dell’arte. Era muito lógico que o arquétipo
bronco, parrudo e simplório daquele Zanni de Bergamo, com seus pés apontados, não
condissesse, em tudo, com aquele das iconografias e testemunhos da Commedia de 1600,
então, era preciso saber o que aconteceu como mudança na sua vida cotidiana, para
transformar, também, as características físicas. E Contin, através de uma exaustiva pesquisa
em documentos, livros e imaginação, descobriu que as mudanças do corpo do Zanni
aconteceram devido a uma passagem, não da rua para o palco, mas de trabalho e do meio em
que vivia.
Tal passagem se deu, principalmente, por uma questão econômica, um êxodo rural dos
Zanni, fazendo com que estes saíssem do interior e fossem procurar emprego nas cidades
desenvolvidas.
Em 1500/1600 as regiões próximas à Veneto, incluindo a zona bergamasca e a região
de Friuli, não eram terras livres, mas sim províncias submetidas à República de Veneza, a
qual se enriquecia cada vez mais, através das transações mercantis com o Oriente e pela
exploração agrícola das terras que pertenciam aos seus domínios. Como em toda relação de
exploração de território, o espaço geográfico acabava transformando-se em cidades e regiões
muito pobres, porque, embora possuíssem meios naturais de se manterem, não tinham como
explorarem os próprios recursos ou sobreviverem da produção local, o que forçava os
habitantes ao êxodo, saindo em busca de lugares mais propícios. Foi por causa deste
mecanismo, que os Zannis foram obrigados a sair de Bergamo, rumo à cidade das
oportunidades da época: Veneza. São muitos os documentos de igrejas e instituições
46
Tradução da autora: “Più o meno questo contadinotto tarchiato - nelle sue valli bergamasche, con gli
zoccoloni di legno ai piedi - doveva camminare più o meno con dei grandi passi pesanti, in cui tutta la gamba si
solleva mantenendo una curva aperta e divaricata, ed il piede sbatte poi a terra con potenza, mentre il bacino
rimane solidamente innestato in avanti e le braccia compiono ampi archi di cerchio a fianco del corpo". 180
governamentais da época que testemunham este fenômeno de emigração de Bergamo à
Veneza, conforme comenta Alessandra Mignatti. Outro ponto interessante é que nestes
documentos, cartas trocadas entre mercantes e manuscritos da Igreja, segundo Contin, é
remarcado que os trabalhadores que chegavam da região bergamasca eram aqueles que
trabalhavam como carpinteiros, pedreiros, carregadores e outros trabalhos do gênero, isto é,
os bergamascos eram aqueles que faziam o “trabalho braçal”, mudando de ambiente (campocidade), mas não de “papel social”.
Naquele período Veneza era a cidade das oportunidades, até por que, conforme um
imaginário, se Veneza se enriquecia com toda a riqueza que as suas províncias produziam, era
compreensível que a população das “colônias” se dirigisse para o local da concentração
monetária. Foi com este pensamento de ter um trabalho bem remunerado, que, segundo
Contin, Zanni chega à Veneza.
Diferentemente dos mercantes, para os Zanni, Veneza não foi a terra das boas
oportunidades. Aliás, possibilidade de fazer fortuna, não tiveram nenhuma, pois eram
explorados da mesma forma que em Bergamo. O Zanni migrado de Bergamo é um
trabalhador nato, ele está sempre disposto a trabalhar (quando pode não, ele não trabalha, mas
se deve, então o faz bem), porém, por não ter tanto estudo, o único trabalho que encontrava
era como servo ou operário:
Em Veneza, estes Zannis forçudos, parrudos e poucos civilizados podiam encontrar
trabalho, exclusivamente, como servos dos ricos mercantes venezianos ou como
carregadores e transportadores das mercadorias dos barcos. Enfim, trabalhador
47
braçal (CONTIN, 1999, p. 47).
Porém, esse tipo de trabalho, apesar de fazer uso de “força bruta”, fez com que o
Zanni não lidasse mais com animais, plantações e outros camponeses habituados a relações
agrestes, como era no interior e montanhas de Bérgamo. Segundo Contin, essa relação
citadina estabeleceu um relacionamento muito mais próximo do seu patrão e, a partir desta
aproximação, surgiu a oportunidade de trabalhar dentro da casa do patrão, fazendo o servidor
e empregado da casa, aquele que era chamado para fazer serviços braçais mais domésticos,
como cortar lenha, carregar malas, carregar as compras da feira, mudar os móveis de lugar e
outras atividades do gênero.
47
Tradução da autora: “In Venezia questi Zanni forzuti, traccagnotti e poco civilizzati potevano trovare lavoro
esclusivamente come servi dei ricchi mercanti veneziani o come facchini per lo scarico delle navi e il trasporto
delle merci. Uomini di fatica insomma.”. 181
Por ser chamado pelo patrão para fazer parte dos domínios mais pessoais e
domésticos, Zanni foi se adaptando, também, fisicamente e a sua natureza rude e simplória,
foi sofrendo algumas pequenas transformações que o deixaram mais elegante e leve na
gestualidade, pois não poderia ter o mesmo modo de caminhar e de se comportar que tinha no
campo, com o chão de terra firme sob seus pés. Também, não podia falar com os patrões
como falava com seus companheiros Zanni, precisava deixar seus gestos e caminhada mais
elegantes e a fala mais doce.
Contin (1999, p. 48-9) conta resumidamente este pequeno percurso do Zanni
Bergamasco ao Zanni da Commedia dell’arte e a transformação física que ocorreu desta
adaptação do campo à cidade.
Ele [Zanni] não se encontra mais no campo entre os seus parreirais ou os campos de
feno, mas se encontra diante de coisas que nunca tinha visto antes: palácios
refinados com fachadas riquíssimas, portais bífores e trífores e rosáceas de
mármores coloridos, senhores elegantes que passeiam pelos jardins e perfumes de
especiarias e incensos. A sua admiração aumenta desmedidamente, a sua cabeça
começa a levitar como massa de pão, torna-se leve como um balão, enquanto que
Zanni olha em torno com uma boca tão aberta e alongada que poderia cair o maxilar.
Antes a curiosidade do Zanni era obstinada e incisivamente à frente, a partir daí
qualquer admirável maravilha faz a cabeça levantar vôo, tornando o pescoço flexível
e alongado como o de um ganso. Ainda, tem-se a sorte de encontrar trabalho como
empregado de um mercante rico, Zanni se vê diante da situação de entrar, pela
primeira vez, em uma casa que supera a imaginação: com aqueles famosos
pavimentos venezianos, cuidados e lustrados, com aqueles tapetes orientais
delicados e preciosos, com aqueles salões construídos sobre pavimentos de madeira
flexíveis, os quais, quando se caminha pesadamente, todos os móveis balançam e os
cristais caem, quebrando-se. Zanni não pode, então, permitir-se usar – na casa do
novo patrão – a sua caminhada camponesa e “rudimentar”, com grandes e pesados
passos, ele adquire, então, um pensamento de respeito e circunspecção, dessa forma,
coloca-se à meia-ponta e assume uma nova caminhada – sempre muito grotesca e
48
bruta – mas que tem, também, alguma coisa de elegante e leve [...].
Estas pequenas modificações são muito importantes para entendermos porque, em
algumas iconografias que retratavam a Commedia dell’arte em questão, como as de Calloi, os
48
Tradução da autora: “Egli non si trova più in campagna tra i suoi filari di vite o i campi di fieno, ma si trova
di fronte a cose che non ha mai visto prima: palazzi raffinatissimi con ricche facciate, bifore e trifore e rosoni di
marmi colorati, signore eleganti che passeggiano per i campielli, profumi di spezie e incensi. Il suo stupore
aumenta a dismisura, la sua testa comincia a lievitare come il pane, diventa leggera come un palloncino, mentre
lo Zanni si guarda intorno con una bocca aperta talmente allungata che potrebbe quasi cadergli la mascella.
Mentre prima la curiosità di Zanni era caparbiamente e rigidamente innestata in avanti, ora una stuporosa
meraviglia gli fa quasi levitare la testa, rendendo il collo flessibile ed allungato come quello d'un oca. Poi, se ha
la fortuna di trovare lavoro come servitore presso un ricco mercante, Zanni si trova ad entrare per la prima
volta in una casa che supera ogni immaginazione: con quei famosi pavimenti alla veneziana lucidi e curati, con
quei tappeti orientali delicatissimi e preziosi, con quei saloni costruiti su elastici solai di legno che se ci
cammini sopra troppo pesantemente tutti i mobili rimbalzano e le cristallerie si frantumano. Zanni non può
dunque permettersi di usare - nella casa del nuovo padrone - la sua camminata campagnola e "zoccoluta", con
le grandi falcate pesanti; egli viene preso da un senso di rispetto e circospezione, così si mette sulle mezze-punte
dei piedi ed assume una nuova camminata - sempre molto grottesca e grezza - ma che contiene anche qualcosa
di elegante e leggero [...].” 182
Zanni possuem, às vezes, os pés bem plantados no chão e outras, os pés em meia-ponta, como
se dançassem. Esta mudança, de um ponto de vista, parece sutil, de outro aparece como uma
grande força e característica vital, pois foi o modo que o Zanni encontrou para se adaptar e
sobreviver à nova realidade - amortecendo seus grandes e pesados passos rurais - conforme
explicação de Contin. A partir desta aparente pequena adaptação, vieram as outras mudanças
e, daí, para se transformar em um servidor de hotel ou restaurante (Brighella), empregado de
loja (Trufaldino) ou servo de companhia (Arlecchino), é muito mais compreensível tais
desdobramentos de uma máscara em outras. São estas pequenas, mas importantes
modificações que nos fazem entender as transformações da Máscara ao longo da história e
seus traços arquétipos.
A Máscara do Zanni e qualquer derivante desta fazem parte da classe de pobres,
broncos, esfomeados emigrantes, camponeses deslumbrados com a cidade, desajeitados
deselegantes, mas muito astutos e ágeis no seu trabalho. Segundo Contin, são estas
características que formam o conjunto dos aspectos cômico-grotescos dos Zanni retratados na
commedia dell’arte.
A partir da cena “Alla ricerca di um Zanni”, pensando na corporeidade retratada do
Zanni, começaram os trabalhos com Zann Piedini, e a primeira imagem que se formou, como
uma possível conexão, conforme já foi comentado, foi a de um capoeirista. Não somente pelo
corpo parrudo e ágil, o que lembra muito o corpo de um capoeirista, mas também pela ligação
com a mandinga, com a situação de fome, seja ela qual for, com a agilidade, esperteza e
malandragem com que conseguiam levar a vida e as situações em que se encontravam, cada
qual em sua realidade.
Apesar de ter o capoeirista e a capoeira em mente como forte ponto conectivo, não
foram negadas outras possibilidades de conexões e dentro dessas possibilidades encontrou-se
o côco, mais especificamente a umbigada, e o gincado da dança dos Orixás49. A partir da
construção\sustentação da máscara física do Zanni com os códigos das práticas espetaculares
populares brasileiras, foi-se estabelecendo uma prática com outros códigos provenientes
destas manifestações, deixando que estes se conectassem, se transformassem, se
translocassem, se metamorfoseassem e se transduzissem na máscara do Zanni e na ação da
cena.
49
Ver os códigos que auxiliam na construção da máscara física do Zanni, no DVD que acompanha a Tese.
MENU: 4.1 – ZANNI: 4.1.2 – ZANNI - dança.
183
Apesar dos Zannis serem camponeses rústicos, eles são tão espertos quanto os
capoeiristas e, buscando descobrir uma forma de satisfazer sua situação de fome insaciável e
constante, sempre tentam enganar os seus patrões, tirando um pouco de proveito da situação já que são poucas as situações que lhe são favoráveis ao desfrute de qualquer pequena regalia,
conforme se pode ver em tantos canovacci (roteiros) da commedia dell’arte50. Relacionando
canovacci de commedia dell’arte e as histórias de Chicó e João Grilo, percebi que a
imaginação que o autor impregnou àqueles personagenes cabia perfeitamente numa fala de
um Zanni, todas as mirabolâncias e peripécias criadas e que certificam a todos como fato
vivido e/ou testemunhado. Tudo isso é comum à dupla de Zanni, as histórias tem as mesmas
características dos “sonhos maravilhosos” destes. Era normal, então, que através destes
caminhos subterrâneos, a máscara continuasse a ecoar e requerer um trabalho mais detalhado.
Para uma pequena amostra da máscara do Zanni, com a técnica de transdução, foi
criada a cena “Le avventure di Zann Piedini”, que se trata do seguinte argumento: Zanni vem
para o Brasil acompanhando seu Patrão (Padrum) e acaba perdendo-se deste. Enquanto o está
procurando, percebe que tem muita gente em volta e, então, pensa que pode ter comida
também. Permanece na dúvida entre procurar o patrão ou a dispensa em que está guardada
toda a comida daquelas pessoas e, após muito se perguntar, decide procurar o patrão.51
Para a pequena cena de Zann Piedini, utiliza-se células de maracatu, cavalo-marinho,
samba, coco, ciranda, dança dos orixás, xaxado, caboclinho, frevo e capoeira, tudo muito
mesclado e conjugado com a fisicidade e corporeidade do Zanni. Dessa maneira, a máscara
torna-se muito mais rica em movimentação e modulação de energias, bem como potencializa
as ações e movimentos que já fazem parte das “clássicas” partituras que integram a Máscara
do Zanni52.
Como exemplo, pode-se utilizar algumas frases da cena criada:
De fora da cena se houve um grito: - Zanni!!!!!
E, depois, ouve-se a resposta (ainda fora da cena): Arrivo Padrum!
Entra Zanni correndo e, depois, coloca-se no meio da sala fazendo sua saudação
pernas de base com a posição da “ponteira” da capoeira; tronco e braços da dança dos Orixás
(Omolú) (igual à postura da reverência do Zanni) – “Eccomi qua, Padrum!”
50
Para saber mais, ler: Tutti i lazzi della Commedia dell’arte. Un catalogo ragionato del patrimonio dei
Comici, de Nicoletta Capozza; I Canovacci della Commedia dell’arte, organização de Annamaria Testaverde. 51
Ver clipe da cena ou a cena integral, no DVD que acompanha a Tese. MENU: 4.1 – ZANNI: 4.1.3 – LE
AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – clip; 4.1.4 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – cena. 52
Contin possui um elenco de partituras para cada máscara. Para o Zanni, a mais utilizada é a reverência do
Zanni – a qual inicia a cena “Le avventure di Zann Piedini”. 184
“Le avventure di Zann Piedini”
Foto: Léo Azevedo
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: janeiro2010.
Percebendo que ninguém responde, ele pergunta:
Salto de Oxumaré, com tronco baixo: – Pota!
Depois, com postura base da capoeira e golpe de máscara
pergunta novamente:
- Padrum!? Padrum!?
Salto de Oxumaré com tronco baixo e, em seguida, passo de ciranda – Ma, dov’é mi
Padrum?
“Le avventure di Zann Piedini”
Foto: Léo Azevedo
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: janeiro2010.
“Le avventure di Zann
Piedini”
Foto: Léo Azevedo
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: janeiro2010.
Dando um passo com o golpe ponteira (movimento da capoeira
regional) e passo da dança do Orixá Xangô: – Ma varda quanta gente.
“Le avventure di Zann Piedini”
Foto: Léo Azevedo
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: janeiro2010.
Depois, golpe “benção” da Capoeira regional: - Ma varda dove mi son caipat!
Passo da dança do Orixá Iansã, seguido de passo do maculelê e, depois, frevo:
- Immagina te la mesura della dispensa per tutti quanti qui!
185
Início da “benção” e desce para a “negativa” (ambos
da capoeira regional) – Mi tocca scovèlzer!
“Le avventure di Zann Piedini”
Foto: Léo Azevedo
Atuação/Direção: Joice Aglae
Data: janeiro2010.
E, dessa maneira, como um caleidoscópio de células de manifestações espetaculares
populares, a sequência foi sendo trabalhada. Tal como na Commedia dell’arte, primeiro
estruturei uma sequência muito rígida, para depois deixar espaço para a improvisação, pois o
corpo já tinha assimilado tantos códigos que se organizava mais velozmente, podendo assim
arriscar espaços de total improvisação e outros de partitura fixa.
O primeiro contato que tive com a commedia dell’arte foi num estilo mais
oitocentesco, seguindo o estilo francês e, já naquele período de aprendizagem deste gênero,
ela fazia parte de um universo que me instigava. O que me estimulava, todavia, na commedia
dell’arte eram os seus aspectos grotescos, carnavalescos, lúdicos, sua ligação com os instintos
e com o mundo primitivo e ritualístico.
No decorrer do descortinamento da commedia dell’arte, na história social e teatral,
esta faceta não tão divulgada das máscaras dell’arte começou a ser vislumbrada e, então, a me
seduzir cada vez mais. As máscaras que se fizeram descobrir eram parte de uma Commedia
dell’arte mais antiga que aquela de 1800, tão antiga que ainda não era conhecida como tal e,
nem mesmo, possuía os mesmos padrões estéticos da commedia dell’arte de Goldoni ou
Molière. A commedia dell’arte que me interessa é aquela que, segundo Bragaglia (1981,
p.15), contém seus primeiros testemunhos muito antes de 1500, um teatro que “[...] os
contemporâneos fazem alusões, porém, denominando-a “commedia all’improviso”,
“commedia improvisa” [...]53.
Este gênero chamado há “pouco tempo” de commedia dell’arte, ao longo de seu
percurso histórico, estrutural e profissionalizante, recebeu muitos nomes. Conforme Tessari,
Taviani, Mignatti, Testaverde e Contin assinalam, ela foi chamada de “commedia dei Zanni”,
“Maschere del teatro italiano”, “Maschere all’italiana” ou simplesmente Maschere. É esta
commedia dell’arte mais grotesca que me interessava, interessa-me e é com ela que toda esta
53
Tradução da autora: “[...] alla quale i contemporanei fanno allusione perlopiú denominandola “commedia
all’improviso”, “commedia improvisa” [...].” 186
pesquisa se relaciona e submerge e, também, é dentro da perspectiva de suas máscaras, que o
próximo capítulo desenvolve-se.
Neste transcurso de apreensão e apropriação, a prática das manifestações espetaculares
populares brasileiras que integram esta pesquisa é continua, e o trabalho com as máscaras
físicas da commedia dell’arte, também. Com o estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore,
com Claudia Contin, Ferruccio Merisi e toda sua equipe, a laboração que vinha
desenvolvendo com as máscaras dell’arte foi enriquecida e fortalecida.
O trabalho realizado por Contin e Merisi vinha ao encontro daquilo que procurava
como Commediante dell’Arte e foi a experiência com eles que propiciou meu mergulho mais
profundo no universo das Máscaras dell’Arte - num período primordial destas máscaras, o
qual, para esta pesquisatriz, constitui uma importante fase deste gênero de teatro - aquele das
ruas, das praças e carnavais de 1400 e 1500. Foi através deste intenso mergulho que a
imaginação trabalhou e trabalha arduamente. As imagens das práticas espetaculares populares
que já trabalhavam e agiam em mim fisicamente, com a aquisição das máscaras físicas da
commedia dell’arte de Claudia Contin e todos os códigos corporais pertencentes a cada uma
destas máscaras criavam novos circuitos, e as conexões realizavam-se de modo dinâmico.
Com todo o acervo de movimentos adquiridos, codificados e recodificados das
manifestações espetaculares populares brasileiras e das máscaras físicas da commedia
dell’arte, a conexão entre os circuitos energéticos e musculares que se assemelhavam
aconteciam num processo quase “natural”. Enquanto me exercitava nas máscaras dell’arte nos
ensaios e trabalhos com os atores da Scuola Sperimentale dell’Attore, a musculatura
recordava tais circuitos - como aconteceu quando fiz a máscara do Arlecchino.
A primeira verificação destes circuitos com pontos em comum era rápida, mas
constituía o início de uma série de averiguações e constatações mais penetrantes, chegando
até a comoção dos pontos que formam os circuitos, aproximando-os e obtendo o resultado
desejado para geminar máscaras dell’arte com práticas espetaculares populares brasileiras.
Investigando mais profundamente os circuitos, através da prática insistente, o corpo
desenvolve uma capacidade de aproximação dos circuitos musculares e energéticos de ambas
as práticas espetaculares populares (commedia dell’arte e manifestações espetaculares
populares brasileiras) e, dessa forma, recria as gesticulações e ações para as máscaras
dell’arte – seguindo a “lógica corporal, física e arquétipa” das mesmas – porém, tendo como
reservatório/motor as células codificadas das manifestações espetaculares populares
brasileiras.
187
Para melhor explicar: cada máscara continiana possui uma gama de ações codificadas,
as quais fazem parte de sua movimentação (caminhar, saltar, sentar, dançar, dormir) e, a partir
destas, desdobram-se todas as ações que constituem a movimentação total da máscara para
um espetáculo, improvisação ou, simplesmente, uma prática assídua. Para dar um exemplo,
tem-se a partitura de como a máscara de Pantalone senta, corre, caminha, dança valsa, conta
dinheiro (entre outras), então, conhecendo as tensões do corpo e qualidades destas ações,
podem-se criar outras, como tomar sopa, pular num banco, pensar, jogar carta, entre outras.
A partir dos códigos que já se conhece (aqueles estruturados por Contin), pode-se criar
outros. A sequência de códigos é que compõe a ação da cena. Os códigos são compostos de
qualidades de energias, qualidades de movimentos e tensões musculares. Para introduzir
alguma movimentação nova em uma máscara, deve-se saber que tipo de movimento, tensão e
qualidade de energia tal máscara dell’arte requer. Um dos trabalhos que fazem parte das
razões desta pesquisa está na capacidade de manter as máscaras físicas dell’arte continianas,
graças ao potencial que a musculatura desenvolveu através da prática das manifestações
espetaculares populares brasileiras. Mais ainda, além de darem o suporte físico e energético
necessário para manter as máscaras dell’arte continianas, as práticas espetaculares populares
brasileiras permitem-me, através da codificação e decodificação destas, chegar a novos
movimentos e ações que se assemelham aos das máscaras, em tensão e qualidade. Durante
meu estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore, criava minhas partituras para as cenas a
partir da geminação de códigos advindos das manifestações espetaculares populares
brasileiras que integram esta pesquisa. Sempre, para obter a boa combinação dos códigos,
fazia muita atenção aos circuitos musculares e energéticos de tais códigos, bem como, às
tensões e qualidades com que empregava estes. Com esse encaminamento cauteloso, os
movimentos e ações que desenvolvia para as cenas com as máscaras dell’arte obtinham a
aceitação e aprovação de meus “maestri italiani”.
A harmonia que a geminação entre as Máscaras dell’Arte e os códigos das
manifestações espetaculares populares brasileiras pode chegar é de uma semelhança e
equilíbrio tão grande, a ponto de tornar impossível a diferenciação da origem de tais códigos,
pois a amálgama que se forma dá a impressão de ser uma coisa só, de ter uma só fonte, de ter
somente um reservatório\motor54.
O estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore rendeu alguns espetáculos e cenas,
trabalhos que me são muito caros, porém, tem um pelo qual alimento um sentimento mais
54
Na verdade, a ideia de um espaço como o Fundo Comum dos Sonhos é de ter uma “fonte única” que se
ramifica através de um DNA imaginal. 188
especial. O espetáculo “Papaietta Poliglota”55, cuja direção é de Claudia Contin e supervisão
de Ferruccio Merisi, foi construído visando esta união entre a commedia dell’arte e as
manifestações espetaculares populares brasileiras. Em agosto de 2008, ao final da primeira
apresentação do espetáculo, realizado somente para convidados da Scuola Sperimentale
dell’Attore, Merisi falou, reflexivo, que, nas cenas, não era mais possível distinguir quais
movimentos “pertenciam” à commedia dell’arte e quais eram advindos das práticas
espetaculares populares brasileiras.
Por tudo o que já foi expresso a respeito da imaginação, do Fundo Comum dos Sonhos
e Fundo Poético Comum, da formação dos circuitos e metamorfose destes, pode-se
compreender porque as ações e movimentos em “Papaietta Poliglota” eram tidos por Contin e
Merisi como “giusti” (justos, corretos) dentro da perspectiva das máscaras dell’arte. Pois, tais
movimentos portavam genes imaginais advindos das práticas espetaculares populares
brasileiras, embora fossem compartilhados, também, pelas máscaras dell’arte – ou, na visão
deles, o contrário: eram genes que faziam parte das máscaras dell’arte e, também, das práticas
espetaculares populares brasileiras.
Claro que se trata de proporções de micropartículas imagéticas e energéticas que
integram a parcela do imaginário que atravessa o tempo e o espaço, que transborda e inunda a
pluralidade. Mas são nestas ínfimas, porém, grandiosas, frações de comunhão, que as ações e
a cena obtêm a homogeneidade de natureza, é onde acontece a transdução dos movimentos.
Continuando com a apresentação dos “afluentes” deste imenso mar, introduzirei as
máscaras dell’arte continianas, algumas considerações a respeito destas e das experiências
mais intensas que tive com elas na cena.
55
Meu espetáculo solo, dirigido por Claudia Contin e com supervisão de Ferruccio Merisi. O nome do
espetáculo vem de nome da minha Servetta – Papaietta - e do fato que, no espetáculo, falo em português, italiano
oficial, dialetos do italiano, italiano macarrônico e espanhol. Posteriormente será falado especificamente deste
espetáculo. 189 5. IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS
“O estudo sistemático das produções do imaginário efetivo propicia o acesso a
aspectos mais profundos dessa realidade, disfarçados pela roupagem colorida do
fantástico.”
Monique Augras (2009, p.10)
Se o Bufão permitiu-me vislumbrar o lado carnavalesco e ritualístico das máscaras
dell’arte, o Zanni fez-me perceber os desdobramentos destas, suas conexões, as correntes em
galerias fluviais subterrâneas que deságuam em atitudes lúdicas.
Como já comentado, as máscaras do Zanni e do Arlecchino acompanharam todo meu
processo de aprendizagem e apropriação das outras máscaras dell’arte. Zanni é a primeira
máscara ensinada por Claudia Contin. Segundo ela, Zanni é uma espécie de “carro abre-alas”,
isso “[...] porque é uma das máscaras mais antigas da Commedia dell’Arte, juntamente com os
Capitani” (CONTIN, 1999, p.44) 1 e então ela, de certa forma, apresenta o fantástico universo
destas máscaras. Antes mesmo de aprender esta e as outras máscaras com Claudia Contin
(Roma, 2007, fui apresentada ao Zanni continiano pelo professor Dr. Giuliano Campo (Paris,
2005). Quando fui para a Scuola Sperimentale dell’Attore (Pordenone/2008) como
atriz/aluna/estagiária e colaboradora/professora desta, fui realizando mergulhos mais
profundos no mundo de cada máscara dell’arte, através de laboratórios com o grupo (Claudia
Contin, Ferruccio Merisi, Lucia Zaghet, Veronica Risatti e Xu Xuan) , com a professora
Veronica Risatti, em laboratórios e trabalho individual em sala de aula e espetáculos.
Os primeiros laboratórios do estágio foram dedicados à investigação das máscaras
femininas da commedia dell’arte. De manhã, trabalhava em laboratórios individuais com a
professora Veronica Risatti e a noite com o grupo. Foi um mergulho intenso e penetrante,
conhecendo o funcionamento destas máscaras e sendo “batizada” na primeira Máscara
dell’Arte.
Este costume de receber um nome e assumi-lo, sempre que vestir a máscara, é uma
tradição deste gênero de teatro – porém, pessoalmente, acredito que isto é uma característica
de todo teatro que trabalha com a máscara e o travestimento. Segundo Tessari (1981, p.85), a
commedia dell’arte teve a “generosidade” de deixar (como uma espécie de herança ou marca)
para os atores que se dedicavam a este gênero de teatro, o nome da máscara a que se
destinavam:
1
Tradução da autora: “[...] perché è una delle maschere più antiche assieme ai Capitani della Commedia
dell’Arte”. 190 Aqui, a fisicidade do tipo escolhido pelo intérprete – herdado de uma tradição e
replasmado por uma vida inteira de arte (ou, ao menos, por uma ampla porção desta)
- encontra o seu símbolo mais claro e inquietante na atitude que induz o comico a
acrescentar, ao próprio nome, aquele da máscara que sempre interpretou: quase em
um processo de osmose e de confusão entre individualidade social e papel cênico, o
que sintetiza na forma mais jocosa e mais cruel o nexo de construção e de
“liberdade” criativa sobre o qual se edifica a tarefa “tão belíssima, quão difícil e
perigosa” da improvisação.2
O nome da máscara ligado ao nome do ator funciona como uma espécie de
identificador e, também, de neutralizador da identidade do ator (singular e plural). Um
identificador, porque destaca o ator dentro da arte da máscara, como os vários casos citados
por Taviani e Schino ao longo do livro “Il segreto della Commedial dell’Arte. La memoria
delle compagnie italiane del XVI, XVII, XVIII secolo” (1982). Neste estudo, os autores
trazem a publicação de cartas (pessoais e documentos institucionais), nas quais, em muitas
delas, o ator assina e, ao lado de seu nome, acrescenta o da máscara ou firma somente com o
nome da máscara. Um exemplo deste caso é o de Zan Ganassa, famoso ator de commedia
dell’arte, conhecido pelo seu nome de arte, mas que se chamava, na realidade, Alberto
Naselli. Quando endereçava suas cartas à autoridade da realeza, assinava, também, como Zan
Ganassa (TAVIANI; SCHINO, 1982, p. 90).
Assinar com o nome de arte dava uma dupla identidade ao ator. A duplicidade poderia
destacá-lo entre os comicos dell’arte e, também, dentro da sociedade. Por outro lado, o nome
de arte o coloca dentro de um espaço comum a todas as máscaras (no caso de Naselli, do
Zanni), pulverizando-o dentro deste outro universo e, certamente, protegendo-o porque, sob o
caráter da máscara, o ator tinha licença para agir fora das normas sociais e fazer exigências ao
seu público.
Nas cartas divulgadas por Taviani e Schino (1982), muitos são aquelas em que,
utilizando-se do nome de arte, o ator pede favores, pagamentos e presentes aos barões, duques
e reis3.
Utilizando o nome de arte, o ator/atriz possuía, muitas vezes, permissão para
frequentar a corte ou, até mesmo, era convidado por seus membros para frequentá-la. Ainda,
2
Tradução da autora: Qui, la fissità del tipo scelto dall’interprete – ereditato da uma tradizione e riplasmato per
una intera vita d’arte (o almeno, per amplissime porzione di questa) – trova il suo simbolo più chiaro e
inquietante nell’atteggiamento che induce il comico ad aggiungere al proprio nome quello della maschera
sempre interpretata: quasi in un processo di osmosi e di confusioni tra individualità sociale e ruolo scenico, che
sintetizza nella forma più giocosa e più crudele il nesso di costruzione e di “libertà” creativa su cui si fonda
l’impresa “bellissima, quanto difficile e pericolosa” dell’improvvisazione. 3
No segundo capítulo desta tese, foi citada uma observação de Cesare Molinari, sobre tal artimanha dos comicos
dell’arte (o autor se referia à Tristano Martinelli), chamando tal estratagema de “fazer o bufão” ou “jogo
bufonesco” (MOLINARI, 1985, p.110). 191 em alguns casos, o ator tornava-se mais conhecido pelo seu nome de arte que pelo seu nome
de batismo, como aconteceu com o já citado Zan Ganassa.
Claudia Contin, atualizando e seguindo a tradição dos “nomes de arte”, assina
“Arlecchino Claudia Contin” e “batiza” os atores do grupo com o nome das máscaras que
estes assumem.
A primeira máscara com a qual fui “batizada” foi a de Servetta/Cortigiana Papaietta.
Quando me refiro “a primeira” é que a teoria desenvolvida por Contin prevê que o ator deve
passar por todas as principais máscaras dell’arte. Para Contin, uma máscara “seguirá” o ator e
ele irá assumi-la inteiramente, para tanto, ele deve conhecer o mundo de cada uma delas, uma
vez que somente conhecendo os mundos destas é que ele, em cena, poderá jogar livremente.
O jogo da improvisação dell’arte depende de uma série de fatores: do total conhecimento do
mundo da máscara que se endossa, do conhecimento do mundo das máscaras com que se
dialoga, do conhecimento das possibilidades de construção de cena dentro das perspectivas
destas máscaras e do conhecimento das possibilidades, dentro da cena, de cada ator e da
comunicação em cena entre os atores. Dentro destes encaminhamentos, endossei algumas
máscaras com mais intensidade e afinidade e recebi, para estas, nomes que me identificavam.
Para cada máscara dell’arte que apresentar, revelarei os códigos utilizados na técnica
de transdução, farei também um relato resumido das experiências resultantes do acesso a ela,
realizado na Scuola Sperimentale dell’Attore. Tal procedimento é necessário visto que penso
que tais espetáculos e participações podem servir como uma espécie de comprovação ou
validação da técnica que proponho, pois exercitei a transdução entre aqueles que são
considerados, pelo próprio público e academia italiana e francesa, como “profissionais”4 e
experts da commedia dell’arte.
4
Foi meu orientador, Dr. Raimondo Guarino da Universitá di Roma Tre, que me “encaminhou” para o trabalho
de Claudia Contin, afirmando que ela é, atualmente, a principal profissional ligada à prática da commedia
dell’arte. O mesmo me foi dito pelo Dr. Giuliano Campo, especialista em Commedia dell’Arte e pela Drª.
Beatrice Picon-Valin, da Sourbone (FR), grande estudiosa de Meyerhold. Ouvi muitos outros comentários do
mesmo gênero, não é o caso enumerá-los, penso que é suficiente dizer que Claudia Contin é muito respeitada
entre os pesquisadores da Commedia dell’Arte e encaminhar os leitores para a bibliografia desta tese, para que
possam ter acesso às indicações de seus livros e artigos . 192 5.1. SERVETTA “PAPAIETTA”, A CORTIGIANA ENAMORADA: MÁSCARAS
FEMININAS DA COMMEDIA DELL’ARTE
“O poder de Eva é apenas uma parte do poder masculino, enquanto que o poder de
Lilith é o poder feminino em toda a sua plenitude [...] é necessário seguir os
caminhos do imaginário que, ao longo dos séculos, asseguram a permanência de
antigas representações.”
Monique Augras (2009, p. 40-41)
Antes de qualquer colocação, deve-se relembrar e readirmar que a Commedia dell’Arte
é um gênero de teatro que utiliza a máscara. Inicialmente foi falado que a máscara, para esta
pesquisa, não é somente um objeto, é uma complexa categoria, dentro da qual estão situadas,
entre outras, o clown, o bufão e as máscaras dell’arte. Quanto às máscaras que integram a
commedia dell’arte, nem todas utilizam a máscara de couro, porém, todas possuem uma
máscara física. É o caso das máscaras femininas e dos enamorados ou nobres, os quais não
utilizam o objeto máscara, mas são constituídos de uma máscara física. Tal qual o bufão, as
máscaras dell’arte tomam o corpo inteiro.
Como primeira máscara dell’arte, assumi a Servetta/Cortigiana, e foi com este
“batismo” e convivência no grupo que entendi que o nome que me foi dado, coloca-me em
um grupo ou coletivo e, paralelamente, num espaço singular. No grupo, éramos quatro
Servette (Servetta Caipirinha/Veronica Risatti, Servetta Polentina/Lucia Zaghet, Servetta
Mandarina/Xu Xuan e Servetta Papaietta/Joice Aglae Brondani), onde tal nome identificava
meu lugar no coletivo e meu espaço pessoal dentro deste – com tudo que era comum às
máscaras da Servetta e aquilo que era especificamente meu5.
O primeiro estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore foi um mergulho nas máscaras
femininas, um trabalho destinado à criação do espetáculo “Né serva, Né Padrona” - direção de
Claudia Contin e Ferruccio Merisi (Ver Anexo B).
A máscara da Servetta é uma máscara de origem tão popular quanto à do Zanni. Na
verdade, ela é a companheira do Zanni e, tanto quanto a máscara de seu companheiro, ela
também se desdobrou em muitas outras. Quando as companhias dell’arte “invadiram” a
5
O nome Papaietta surgiu de um discurso que fiz. Gosto muito de mamão (seja papaia, formosa ou qualquer
outro tipo) e, depois de alguns meses na Itália, tinha muita vontade de comer esta fruta. Então, procurei por todos
os mercados e feiras de Pordenone e encontrei-a em uma pequena loja de frutas exóticas. Eram caríssimos,
pequenos e estavam verdes, mesmo assim, tamanha era a minha vontade, que comprei uma embalagem com três
papaias. Chegando à Scuola, coloquei-os para amadurecer próximos à janela da cozinha. Um dia, depois do
ensaio, fui “saborear” a fruta, quase sem aroma e com um gosto horrivelmente amargo, para mim, um desastre.
Então fiz um longo discurso sobre a dificuldade de encontrar papaia, o sabor diferente que a fruta tinha na
Europa, o preço absurdo por um pequeno exemplar da fruta e todos riam da minha “fúria” contra os mercantes e
a natureza que não proporcionava papaias mais saborosas na Itália. Desde então, passaram a me chamar de
Papaietta. 193 França, a máscara da Servetta já chegou com seus desdobramentos e tornou-se mais
conhecida pelo seu segundo nome, pode-se citar como exemplo a Colombina e outros como
Riciulina e Franceschina (CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.57). Foi o mesmo
processo de desdobramentos da máscara que aconteceu com o Zanni.
Apesar de ser a companheira do Zanni, enquanto que este tem origem bergamasca, a
Servetta, segundo Contin (1999, p. 134), é de origem veneziana:
[A Servetta] É geralmente identificada como máscara de origem veneziana – mesmo
se existiam Servettas de várias proveniências – talvez por causa de uma certa fama
de maior desinibição social das mulheres venezianas, em relação àquelas de outras
regiões.6
Conforme especificado por Contin, existiam Servettas de toda parte da Itália. Clavier e
Duchefdelaville (1994, p.58), por exemplo, não falam da origem da Servetta, dizem apenas
que ela foi seduzida por Arlequin, em Veneza e que, depois do fato consumado, tornou-se
uma comediante.
Outro exemplo de sua múltipla origem está em um texto intitulado “Il saluto di uma
Servetta”, contido em R. Tessari (1981, p.159), cujo trecho é extraído de outro texto,
nomeado “Saluto di serva toscana” de A. Perrucci, contido no livro “Dell’Arte
rappresentativa premeditata e all’improviso” (1699). Neste texto, a Servetta conta histórias,
tão fantasiosas como as histórias de um Zanni, que envolvem mitos como Netuno, Baco,
Adonis e Marte, são causos que interpõem o absurdo, o cômico e a esperteza destas máscaras
dos servos.
Segundo Tessari (1981, p.20), não existe um documento que possa dizer, com
exatidão, a data da aparição da mulher na cena - não se sabe, também, se a Servetta foi a
primeira máscara feminina a aparecer na cena (ou se foi a Cortigiana ou Nóbile). Mas,
conforme a observação do autor, sabe-se que a presença da mulher nos palcos está ligada, sem
sombra de dúvidas, à commedia dell’arte. Pois, anterior ao fenômeno das companhias
dell’arte, tradicionalmente, eram os homens que faziam os papéis femininos. Foi, certamente,
na commedia dell’arte que a mulher assumiu seu papel na cena.
As máscaras femininas da commedia dell’arte foram parte de um movimento que
ecoou, não somente no mercado, mas na sociedade em todos os sentidos. Conforme Tessari
(1981, p.20) assinala, a escolha de colocar mulheres em cena foi, também, mercadológica e
6
Tradução da autora: “Viene spesso identificata come maschera di origine Veneziana – anche se si ebbero
Servette di svariata provenienza – forse a causa di una certa fama di maggiore disinibizione sociale delle donne
Veneziane rispetto a quelle di altre regioni.”
194 econômica, pois como não era um costume ter mulheres “expostas” com todas as suas
capacidades de tramas e encantos, a presença feminina chamava a atenção do público em
geral, mas, principalmente, do masculino. A presença da mulher em cena, em uma época em
que as mesmas não podiam expor-se, foi muito impactante, principalmente, porque a máscara
feminina na commedia dell’arte tem como base mais importante, segundo Contin, a
exuberância, a beleza e o fascínio da feminilidade.
Em “Commedia dell’arte: la Maschera e l’ombra” (1981), Tessari traz muitas
observações sobre este incrível fascínio que as mulheres exerciam na cena. Ele cita
documentos clericais que “denunciam” as companhias dell’arte que usavam mulheres em
cena “desvirtuando” os jovens, os pais de família e as jovens que se encantavam com aquele
universo e dedicavam-se à arte de interpretar. Enfim, para a igreja, as compagnias dell’arte
eram consideradas engenhos de desvirtuação e tentação aos bons costumes e à sociedade.
Muitos documentos que contêm tais observações também são encontrados em La Commedia
dell’Arte e la Società Barocca. La fascinazione del teatro, de Ferdinando Taviani (1991).
Certamente, que a commedia dell’arte contribuiu, mesmo se pensasse de forma
mercadológica, para um movimento importantíssimo: a presença da mulher dentro do
universo das artes e, daí, para um engajamento desta, até mesmo, na sociedade. É impossível
não pensar que muitas conquistas femininas tiveram, como passo inicial, o ato da mulher estar
em cena, enfrentando rejeições e acusações. Contudo, esta tese não se dedica a estas
implicações.
Na commedia dell’arte, as mulheres não usam máscaras. Isso porque, na época, a
companhia desejava mostrar que o papel feminino estava sendo realizado por uma mulher e
não por um homem vestido de mulher. Segundo Contin (1999: 133), se a compagnia dell’arte
colocasse uma máscara sobre o rosto da mulher, estaria cometendo um grave erro, pois estaria
desfigurando a “poderosa arma de chamar público” - que era a presença da mulher no palco com um pedaço de couro que, com certeza, não seria tão belo quanto o rosto da atriz.
Não se pode esquecer que mesmo a beleza apolínea da Servetta possui um ligame com
o universo subterrâneo. Como serva, ela contém a mesma fome característica do Zanni, porém
é travestida na sua esperteza, capacidade de duplo sentido, independência e “liberdade”
(CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.58).
195 Foto: Veronica Risatti
Espetáculo: Papaietta Poliglota
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 24 07 2008
Nas máscaras dell’arte continianas, a exuberância feminina explora seu lado
dionisíaco, e seus aspectos carnavalescos e grotescos também são convocados, exatamente, no
exagero desta feminilidade. A máscara da Servetta une a beleza, o grotesco e o absurdo. Seus
discursos podem ser tão absurdos quanto os do Zanni. Cito como exemplo um belíssimo
trabalho que assisti, depois apreendi, e tornou-se uma das cenas de meu espetáculo dirigido
por Contin e Merisi, intitulado “La scorza di melone”7. Trata-se de uma cena reconstruída por
Contin, de um discurso e jogo típico da Servetta. Cena em que uma jovem conta como um
escorregão em uma casca de melão a fez engravidar de um Capitano que, querendo ajudá-la a
levantar-se do tombo, descuidadamente, escorregou na mesma casca e caiu no seu colo. Dessa
queda, então, ela engravidou, restando a ela o destino de ser comediante e construindo com
todos os seus filhos uma compagnia dell’arte. Trata-se de uma história totalmente fantasiosa,
cheia de duplos sentidos, a qual mostra o lado sensual, “ingênuo”, esperto e grotesco da
Servetta.
Segundo Contin, Servetta é tão alegre quanto o Zanni e tão jovial e rebelde quanto
Arlecchino - ela é uma explosão de energia. Sua risada lembra um relincho, um grande
sorriso, que mostra quase todos os seus dentes. Leve e saltitante como se fosse uma pipoca
estourando, ela é radiante e provocativa (CONTIN, 1999, p.132). Estas mesmas
características são assinaladas por Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.58).
7
“La scorza di melone” teve seu texto reconstruído por Claudia Contin e faz parte do acervo da Scuola
Sperimentale dell’Attore. 196 Foto: Veronica Risatti
Espetáculo: Papaietta Poliglota
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 24 07 2008
Na codificação de Claudia Contin, a Servetta possui uma
gama de movimentos e partituras (quadril, braços, saudações,
caminhares) bem específicos. Parto da sua principal caminhada: o
passo duplo. Isto é, ela caminha dando dois passos com a mesma
perna, alternadamente. Porém, não são passos “secos” e “duros”,
ela acrescenta a esse modo de caminhar, uma espécie de pequenos
saltos com certa “maciez”, como se fosse um gingado, fazendo com que o seu caminhar
pareça quase uma dança.
Máscara física continiana da Servetta
Desenho de Alice Mosanghini
A partir da imagem da atriz Veronica Risatti
Data: janeiro 2008
Com este passo duplo, cuja movimentação a deixa ainda mais jovial, a Servetta
locomove-se pelo espaço e seus braços repousam de forma graciosa na cintura, salientando o
peito, os quadris ou ventre (partes do corpo feminino que, naquela época, eram muito
importantes, pois tinham relação com a maternidade) e com a movimentação das mãos que
também ajudava a salientar os atributos femininos. Quando caminha com este passo duplo, as
pontas dos pés são lançadas para cima, um modo sutil de levantar um pouco a saia, fazendo
com que os tornozelos fiquem sutilmente à mostra (muito audacioso para uma época em que
as mulheres eram altamente reprimidas).
Conforme afirma Contin (1999, p.135), as companhias dell’arte apresentavam-se nos
palcos das praças, estes palcos eram colocados, mais ou menos, a um metro ou metro e meio
de altura, deixando os tornozelos levemente desnudos na altura dos olhares do público. Outro
197 ponto que Contin ressalta sobre as mulheres e o modo de estarem em cena, é o exagero em
enfeites nos cabelos e decotes, estes acessórios funcionavam como uma espécie de “moldura”
para o rosto maquiado cuidadosa e elegantemente, ressaltando olhos e boca. Os decotes
também eram enfeitados com fitas e babados em torno do colo, mantendo o mesmo efeito de
“emolduramento” e “enquadramento”, puxando o foco dos olhares do público para aquela
parte do corpo e chamando a atenção através da sensualidade. Dessa forma, trabalhando com
detalhes e truques, as atrizes tornavam-se mulheres exuberantíssimas, quase mágicas, ou
melhor, feiticeiras que encantavam o público, dentro e fora da cena – e foi com estes
pequenos sortilégios da cena que a fama de feiticeiras das atrizes da commedia dell’arte foi
sendo construída.
Tessari e Taviani trazem um discurso de cunho religioso, feito em 1631, por Pedro
Hurtado de Mendonza contra as companhias dell’arte, afirmando que estas eram, na verdade,
um grupo de pessoas imorais. Nelas, os jovens pensavam somente no amor, a ponto de
aprenderem fervorosas e apaixonadas poesias. Sublinhando que ainda mais imoral era a
situação de coabitação entre homens e mulheres, nas quais viviam de forma promíscua, todos
juntos, sem que as mulheres tivessem um quarto somente para elas. Para Mendonza, nas
companhias, as mulheres eram sempre, ou quase sempre, despudoradas, pois os homens viamnas meio nuas e até chegavam a ajudá-las a despir-se e vestir-se rapidamente para entrarem
em cena. Mendonza (apud TESSARI, 1981, p.21), continuando o discurso, vai mais além,
alertando que nada se igualava ao pior dos pecados, à tentação que estas mulheres
representavam:
Para as mulheres, acrescenta-se outro perigo, nem um pouco mais leve: com
freqüência, são extraordinariamente belas, elegantes no comportamento e no modo
de vestir, com palavras suaves, hábeis na dança e no canto, experts na arte de recitar.
E tudo isso arrasta os espectadores à libido.8
A partir destas palavras, pode-se entender o fascínio que as mulheres, que até então
não apareciam nos palcos, exerciam sobre o público. Este fascínio acabou chamando a
atenção e desencadeando, por vários motivos, a cólera da Igreja sobre as companhias de
commedia dell’arte. Alguns documentos trazidos por Tessari (1981) e Taviani (1969) são de
acusação de clérigos contra as companhias dell’arte. Os motivos eram muitos, falavam do
fato que o público dava dinheiro para as companhias e poderiam, assim, deixar de cumprir os
8
Tradução da autora: Per le donne si aggiunge un altro pericolo per niente più lieve: spesso sono
straordinariamente belle, eleganti nel comportamento e nelle vesti, di facile parola, abili nella danza e nel
canto, esperte nell’arte della recitazione. E tutto ciò trascina gli spettatori alla libidine. 198 deveres sociais. Afirmavam que muitas famílias esperavam (a semana, o mês) e preparavamse para ir até a praça assistir às companhias dell’arte (isso quer dizer que as peças de teatro
foram ganhando importância na vida da sociedade).
Em Taviani (1969, p.356) e Tessari (1981, p.22-23), pode-se ler uma carta do jesuíta
Domenico Ottonelli, de 1652 (ambos os autores divulgam este documento), a qual é plena de
graves acusações contra as companhias dell’arte. Em tal documento, o jesuíta chega a afirmar
que os meretrícios e as meretrizes eram permitidos e aceitos pela igreja, pois evitavam
pecados mais sérios como o adultério, o incesto e outros, mas as comédias (referindo-se às
peças das companhias dell’arte), ao contrário, instigavam o público em direção à ação destes
graves pecados.
Lendo tais documentos, a partir dos comentários ali escritos, pode-se ter uma ideia de
como as máscaras femininas da commedia dell’arte foram alvos de discursos contrários a sua
presença em cena. As atrizes, por parte das instituições religiosas, acabaram sofrendo algumas
“condenações”. Por esta “demonização” da figura feminina, em algumas iconografias, as fitas
e enfeites dos cabelos das Servettas acabavam desenhando duas pequenas guampas, mas não
se sabe se este detalhe do ornamento das cabeças faz parte do grupo das causas ou das
consequências dos comentários tecidos pela igreja.
Foto: Veronica Risatti
Espetáculo: Papaietta Poliglota
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 24 07 2008
Segundo Contin, estes ornamentos colocados de forma a lembrar pequenos cornos, é
um modo de reafirmar a ligação desta máscara com o universo infernal e subterrâneo.
Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.58) também chamam a atenção destes recursos
“demoníacos” da Servetta, no uso da maquiagem e ornamentos.
Mas esta ligação da Servetta com o universo xamânico e demoníaco vai muito além de
uma condenação eclesiástica, ela passa por toda a relação que é inerente ao Zanni, seu
companheiro. Como uma “zanna”9, ela também possui as mesmas conexões telúricas que ele
9
Nome que também é chamado a Servetta companheira do Pulcinella, em Napoli. 199 tem com o universo subterrâneo, dionisíaco, xamânico e infernal (este último, muito
relacionado a Arlecchino, como será visto mais adiante).
Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: Né Serva, Né Padrona
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atrizes: Joice Aglae e VeronicaRizatti
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 18 01 2008
Estudando as máscaras femininas e as conexões xamânicas destas, percebi que a
Servetta não recebe somente as conexões xamânicas e telúricas do Zanni, ela possui uma
conectividade específica dela que se reafirma a cada vez que ela se move, está no seu
caminhar em passo duplo. Apesar de Arlecchino caminhar deste mesmo modo, com o passo
duplo e Contin (1999, p.133) falar desta ligação entre Servetta e Arlecchino, este passo duplo
da Servetta vem, também, de outra conectividade. A Servetta tem, com este duplo passo
saltitante, doce e leve, uma conexão com um ritual antigo da região mediterrânea italiana. Ela
se locomove com o mesmo passo base da tarantella – dança xamânica (tida como curativa e
de transe) do sul da Itália, realizada por mulheres (especificamente em Puglia, tinha\tem uma
grande concentração de tarantatte – eventos\rituais em que tocam e dançam a tarantella –
tanto a música, como a dança que fazem parte da tarantatta são chamadas de tarantella).
Antigamente, acreditava-se que esta dança tinha o poder de curar as mulheres que tinham sido
vítimas de uma “picada de aranha” (taranta). Então, quando as mulheres apresentavam os
sintomas da “picada da taranta”, os músicos iam até a casa da hipotética doente e, com violino
e tamorra, tocavam tarantella. A “doente”, como em uma espécie de transe, levantava-se e
dançava até que todo o “veneno” saísse do corpo. A tarantatta não tinha/tem hora para
terminar, dura o tempo necessário que a “doente” precisa para “expulsar o veneno” através da
dança, então, para que os músicos dessem conta da demanda, muitas vezes, eram reunidas
mais de uma “doente” e, nessa reunião de “doentes” em transe, dançando freneticamente, o
ritual de cura pela dança, parece uma festa. Com o tempo, este ritual foi se tornando, também,
um evento festivo, foram surgindo aqueles que se contagiavam pelo ritmo e entravam para
dançar e festejar, sem uma intenção curativa – festa e ritual – e hoje, na Itália, a tarantella é
uma das fontes de inspiração para a dança contemporânea.
200 Hoje, através de estudos, sabe-se que não se tratava de uma picada de aranha, mas sim,
de um fenômeno psicológico, o qual, com o transe causado pela dança e música era, de forma
catártica, “exorcizado”10.
A tarantatta, este ritual de cura pela dança, ainda existe nos dias de hoje. Em Puglia, é
possível encontrar rituais muito próximos daqueles que se faziam antigamente, mas é preciso
ir além da época dos festivais que transformaram o ritual em evento turístico ou dança
contemporânea. Os grandes festivais acontecem em junho e a maioria dos rituais também,
pois a festa de São João (San Giovanni – San Gianni) é o ponto alto destes rituais (ligação da
tarantatta com Zanni). Muitas vezes, é necessário procurar as tarantattas nos arredores da
cidade, longe do centro e assim, encontrar aquelas que ainda mantêm algumas características
originárias do evento.
Para esta pesquisa, este duplo passo advindo da tarantatta é mais um fio que vem
fortalecer as ramificações rizomáticas desta pesquisa com o universo ritualístico, com a festa
e com as máscaras dell’arte. A tarantella, então, é um dos elementos que serve de
reservatório/motor para a Servetta. Esta sua caminhada advinda da tarantella, com uma
pequena modificação do circuito, transformou-se em um caminhar suave, doce, arredondado,
mas também vigoroso, marcante e vivaz.
Estas mesmas características de suavidade e vitalidade podem aplicar-se a uma dança
brasileira, a qual possui, também, conexões com o ritual e a festa: o samba. No acesso através
da técnica de transdução caleidoscópica, a máscara da Servetta, seu caminhar e toda a
movimentação do quadril, pernas e pés, têm como base células/códigos advindos do samba.
Esta conexão precisa de uma pequena modificação no circuito muscular e no acento rítmico
do passo. Com estas pequenas mudanças, a tarantella transduz-se em samba e, vice-versa.
Além do samba, na técnica de transdução caleidoscópica, na parte superior, o tronco
acompanha o samba e os braços e as mãos ganham a fluidez da água e a força do vento, com
os movimentos das danças dos Orixás, principalmente, das de Oxum, Iemanjá e Iansã.
Ver a “construção” da máscara física da Servetta através das práticas espetaculares
populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO
CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA - 4.2.1 – SERVETTA –
fotos e dança.
10
Para saber mais sobre a tarantatta, ler: Tracce di teatro sciamanico tra Africa e Mediterraneo. Le maschere e
la danza come contatto con stati di coscienza “diversi”. In Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontr, de
Giovanni Azzaroni; Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte, Lo Scaffale Racolta De Teatro;
Antropologia delle anime in pena. Teatralità e malattia nella cultura napoletana “underground napoletano”.
In Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontr, de Marino Niola; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico. In
Progetto Sciamano 2000. Esperienze di Teatro-ed-Handicap, Eugenia Casini Ropa. 201 Foto: Léo Azevedo
Aula-Demosntração: Transduções e Imaginações Caleidoscópicas
Direção/Atuação: Joice Aglae
Data: Outubro 2009
Outra máscara feminina muito presente nas tramas e canovacci é a da Cortigiana11.
Segundo Contin (1999, p.144-145), a Cortigiana é uma máscara dupla, pois reúne nela
as corporeidades e fisicidades da Servetta e da Nobile (ou Enamorada). Sua natureza alternase entre populacha, agressiva, requintada e dengosa. Nas tramas, a Cortigiana é quem assume
os papéis de dançarina, cantora, cigana e coisas do gênero. Ela não é uma serva e nem mesmo
uma patroa, mas pode comportar-se das duas maneiras e, por isso, permear estes dois
universos. Por estar neste lugar que lhe propicia o diálogo com ambos os universos, ela é uma
máscara que contém traços misteriosos e exóticos, servindo, inclusive, para os papéis de
estrangeira e feiticeira.
Esta dupla natureza da Cortigiana se manifesta numa interseção contínua de duas
precisas máscaras físicas: a primeira é aquela de uma jovem popularesca rude e com
gestualidade mais grosseira e musculosa que a de uma Servetta normal; a segunda é
aquela de uma nobre amorosa, refinadíssima e muito arredondada, com a
gestualidade rica em elementos de dança e de sedução [...] A comicidade da
Cortigiana depende, exatamente, do efeito que estas suas repentinas mudanças de
comportamento agem sobre todos os personagens que a rodeiam. Geralmente a voz
é extremamente móvel e pode passar, repentinamente, de um gorjeio lírico a um
rugido profundo de uma leoa (CONTIN, 1999, p.145).12
11
Esta máscara pode ser confundida com a máscara da “La strega” ou em francês, “La sorcière” (CLAVILIER;
DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.60), que seria “A feiticeira”, uma espécie de herbolária, cujo papel, dentro da
trama é ligado à feitiçaria. Esta função, originalmente, era desenvolvida pelo Dottore, Capitano, Ciarlatano e
Cortigiana. A Cortigiana pode trabalhar com poções mágicas e feitiços, mas seus domínios não se resumem a
este universo da “feitiçaria”. 12
Tradução da autora: Questa doppia natura della Cortigiana si manifesta nell’intersecarsi continuo di due
precise maschere fisiche: la prima è quella di una popolana rude e dalla gestualità più pesante e muscolosa di
quella d’una normale Servetta; la seconda è quella di una nobile amorosa, raffinatissima e molto flessuosa,
dalla gestualità ricca di elementi di danza e di seduzione [...] La comicità della Cortigiana dipende proprio
dall’effetto che questi suoi repentini cambi di comportamento ottengono su tutti i personaggi che la circondano.
Persino la voce è estremamente mobile e può passare improvvisamente dai gorgheggi lirici al ruggito profondo
di una leonessa. 202 A Cortigiana possui uma conexão grande com o bufão, não somente pela “aura” de
mistério que circula esta máscara, mas, também pela retórica, ela é muito hábil com a ironia e
a sedução, como arma de manipulação. A Cortigiana incorpora a inversão do poder, porém,
faz isso de maneira graciosa e leviana – ela possui a malandragem e o “jogo de cintura” do
capoeirista e do sambista.
Foto: Léo Azevedo
Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópicas
Direção/Atuação: Joice Aglae
Data: outubro 2009
Com sua rebeldia e traquejo, a máscara da
Cortigiana, na técnica de transdução, ganha vida através de
células do samba, da capoeira, da ciranda, do maculelê e das
danças dos Orixás (principalmente, Iansã, Oxum, Iemanjá,
Xangô, Ogum, Oxumaré e Exu).
Numa dinâmica caleidoscópica da imaginação, conforme caminhos líquidos já
mencionados, a geminação de códigos, circuitos musculares e energéticos destas práticas
espetaculares populares brasileiras dá vida e forma a base de sustentação da máscara da
Cortigiana. Ver a construção da máscara física da Cortigiana através das práticas
espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4.
TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.3 –
CORTIGIANA – fotos e dança.
Como dito, a primeira máscara que incorporei foi a da Servetta, porém, a primeira
cena solo de commedia dell’arte, dentro da Scuola Sperimentale dell’Attore, foi de uma
Cortigiana, no espetáculo “Né serva, Né Padrona”, dirigido por Claudia Contin e Ferruccio
Merisi. Para fazê-la, tive de aprender, primeiro, as máscaras da Servetta e da Nobile.
Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: Né Serva, Né Padrona
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atriz: Joice Aglae
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 18 01 2008
203 Prosseguindo, então, na descrição das máscaras femininas que incorporei, devo falar
da outra faceta, cuja fisicidade integra a máscara da Cortigiana: a Nobile.
Os Nobili, tanto femininos como masculinos, também não usavam/usam
máscaras/objeto, mas possuem a máscara física.
Segundo Contin (1999, p.109), as companhias de commedia dell’arte seguiam o
preceito de que os “nobres de coração”, ou seja, aqueles que representavam/representam o
amor (e outros sentimentos nobres) nas tramas, não deveriam/devem esconder-se atrás de
máscaras. Contin ainda ressalta outro aspecto estético da cena que contribuía para a visão
“poética” destas máscaras, cuja visível pele pálida daqueles que sofriam/sofrem por amor
sobressaía ao obscuro mundo das máscaras de couros escurecidos e grosseiros.
Foto: Léo Azevedo
Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica
Direção/Atuação: Joice Aglae
Data: outubro 2009
A máscara física continiana de um Nobile (maculino e
feminino) é bastante complexa, plena de tensões e torções, pois nela
se contradizem os instintos e os sentimentos e, segundo Contin, é
nessa total contradição que estão as suas características cômicas e
grotescas.
Segundo as máscaras continianas, a Nobile (lê-se ambos os
sexos), quando parada, possui uma postura quase de bailarina, esguia e elegante, a aparentar
uma “educação clássica”. Os seus pés possuem uma abertura de 90 graus, os tornozelos
aproximam-se elevando levemente as extremidades externas dos pés, como se fossem levantar
vôo. Apesar dos pés serem levemente abertos, as pernas são tesas e bem fechadas, com uma
certa tensão nas coxas. Mesmo que a parte inferior do corpo seja tensa, numa tentativa de
bloquear os instintos, seu corpo é muito leve. O quadril apresenta uma característica torção,
constituindo uma negação desta região instintiva, ele é girado na direção oposta à do peito,
onde está o coração e seu sentimento nobre. O peito é alongado, direcionado para o alto, como
quem deseja desgrudar-se do quadril para fazer o coração voar junto com as suas aspirações
românticas. Então, na máscara física da Nobile, os pés e o peito são voltados para o lado
oposto ao do quadril:
204 Portanto, o Nobile na tentativa de separar as próprias pulsões, acrescenta uma torção
deste tipo: o quadril permanece voltado para um lado, ao centro do ângulo formado
pelos pés, enquanto o busto gira em outra direção, procurando dar-se vida e
existência própria, independentemente da parte inferior (CONTIN, 1999, p.111).13
Máscara física continiana dos Nobili
Desenho de AliceMosanghini
A partir da imagem da atriz Veronica Risatti
Data: janeiro 2010
O rosto do Nobile é voltado para o alto, como se fosse puxado pelo nariz, que cheira
suavemente o perfume das “sferi celesti”, “esferas celestes”. Os braços são elevados seguindo
a linha dos ombros, uma forma de negar e de manter as mãos longe da zona instintiva do
quadril – diferente da Servetta e da Cortigiana que os apoiam nesta região com muito
desembaraço. Os cotovelos e pulsos são semiflexionados, dando a impressão de que os braços
são asas e as mãos passeiam pelo ar desenhando as ondas emocionais (CONTIN, 1999, p.109114).
Todas estas tensões e formas específicas da máscara da Nobile são encontradas nas
práticas espetaculares populares brasileiras. A postura esguia e elegante pode ser encontrada
no maracatu, na postura do rei e da rainha ou na coluna ereta típica do xaxado. Os pés, com
abertura de 90 graus, têm a mesma posição de um dos códigos que fazem parte do golpe de
capoeira chamado “armada de costas”. A tensão nas extremidades externas dos pés é possível
encontrar entre os códigos de uma das danças de Xangô e, também, está presente no
maracatu, entre as células da dança do Porta-estandarte (ou dança do vassalo do Portaestandarte). É ainda na dança desta figura do maracatu que se encontra uma tensão nas pernas
semelhante às tensões das pernas dos Nobili. Já a leveza do corpo, o seu modo de caminhar e
as posições dos braços são parecidos com os códigos advindos da ciranda. Então, a máscara
física da Nobile, na técnica de transdução caleidoscópica, conecta-se e recebe energia da
13
Tradução da Autora: Pertanto il Nobile, nel tentativo di separare le proprie pulsioni, aggiunge una torsione di
questo tipo: il bacino rimane rivolto da un lato, al centro della squadra formata dai piedi, mentre tutto il busto
ruota in un altra direzione cercando di darsi vita ed esistenza propria, indipendentemente dalla parte inferiore. 205 ciranda, da capoeira, do maracatu e da dança dos Orixás. Ver a construção da máscara física
da Nobile através das práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha
esta
tese.
MENU:
4.
TRANSDUÇÃO
CALEIDOSCÓPICA:
4.2
-
SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.2. – NOBILE – fotos e dança.
Reafirmo que não é simples falar de uma dinâmica caleidoscópica da imaginação,
pois se, conforme Bachelard, uma imagem só pode ser explicada por outra, então, sabe-se que
as tentativas de explicação destes engendros são usualmente falhas. O relato de algumas
experiências dos espetáculos de commedia dell’arte que participei na Scuola Sperimentale
dell’Attore, pode ajudar não a explicar, mas a entender que o acesso às máscaras dell’arte
construído através das práticas espetaculares populares brasileiras é possível.
5.1.1. “Né Serva, né Padrona”
“Né serva, né Padrona” foi um espetáculo preparado para o início das comemorações
do carnaval italiano de 2008, na região de Pordenone.
Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: Né Serva, né Padrona
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atores: Joice Aglae, Lucia Zaghet, Veronica Risatti e Xu Xuan
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 10 01 2008 Para a construção do espetáculo e para que eu tivesse
acesso a todas as informações sobre as máscaras femininas, a
Scuola Sperimentale dell’Attore realizou um laboratório de
pesquisa prático-teórico interno, isto é, somente para os atores da Scuola Sperimentale
dell’Attore, em cujo grupo fui engajada. O laboratório intitulado “Carattere Femminili della
Commedia dell’Arte” aconteceu de 08 a 18/01/2008 (60 H/A), dirigido por Claudia Contin e
Ferruccio Merisi, contando, ainda, com o auxílio da professora Veronica Risatti. Os assuntos
desenvolvidos dentro do laboratório foram: “Le Servette, Le Amorose, Le Cortigiane, Prime e
Seconda Donne di Compagnia, Amor Sacro e Amor Profano, Cantatrici, Danzatrici,
Suonatrici, Mezzane, Ruffiane e Curatrici, L’Amor nel Gioco e nella Poesia”; sendo divididos
em 30 horas de laboratório prático; 20 horas de ensaios e dramaturgia cênica; 10 horas de
206 treinamento e atividades de divulgação pública. O laboratório seguiu conforme indicado:
primeiro foi trabalhada a máscara da Servetta (como máscara feminina companheira de
Arlecchino), depois foi a Nobile (como máscara que representa o amor) e, por fim, a
Cortigiana (a máscara dupla, serva e nobre). Aprender detalhadamente as máscaras femininas
serviu para aprofundar em detalhes o diálogo com as manifestações espetaculares populares
brasileiras, descobrindo novas conexões e confirmando aquelas já vislumbradas.
Nas cenas em que entrava como Servetta, aos olhos dos mestres, estava fazendo “à
italiana”, mas internamente utilizava a técnica de transdução de forma sutil, trabalhando os
circuitos energéticos, buscando a ancestralidade festiva do samba e das danças dos Orixás.
A utilização deliberada das práticas espetaculares populares brasileiras foi permitida,
pelos mestres, quando entrava para fazer a cena do monólogo da Cortigiana, com texto
adaptado de um dos discursos de Ottonelli, cujas palavras eram de julgamento e observação
do comportamento das comicas dell’arte e do comportamento social para com elas. Nesta
cena, a pedido de Merisi, a capoeira servia como base, como reservatório/motor para a
máscara física (juntamente com a ciranda, o maracatu, o samba e a dança dos Orixás), mas
também para a movimentação dentro da cena. Construída com uma sequência de movimentos
da capoeira, a Cortigiana Papaietta percorria todo o palco. Mais tarde, a sequência de golpes
foi sendo trabalhada e transformada, tornando-se menos identificável como capoeira e mais
adequada às ações que a cena requeria.
Apresento abaixo o texto da cena da Cortigina Papaietta (adaptado por Claudia Contin
e Ferruccio Merisi, extraído de uma carta de A. D. Ottonelli). Na cena, o discurso é feito pela
própria Cortigiana, que conta como é bom, para uma mulher, ser chamada de “Senhora” e ir a
grandes cidades encontrar-se com nobres cavalheiros, com suas carruagens, depois, ser
conduzida a um quarto bem preparado, ser recebida com presentes, banquetes, grandes honras
e, finalmente, esperar pela noite, por uma nobre consumação. Acredita-se que não seria o caso
de colocar uma tradução, uma vez que a cena é apresentada, originalmente, em italiano e por
se tratar de uma adaptação, há uma mistura de italiano antigo e atual. Então, fez-se um
panorâma da situação para colocar o leitor a par da ação da cena.
Para ler o texto integral e sem adaptações, reencaminho o leitor para “Commedia
dell’Arte: La Maschera e l’Ombra”, de Roberto Tessari (1981, p.22):
O che gusto per uma donna che si possa preggiare del grazioso titolo di Signora. O
che gusto per uma donna, si è. Andar ad una grand città, et esser tal volta
incontrata da nobil cavalcate, et anche da carrozze da 4 o da 6 posti. E vedersi
condotta a preparate stanze, et ivi ricever subito regali di rinfreschi per far lauti
pasti e deliziosi. O che bella, anzi bellissima cosa, ricevere onori grandi e grand
207 presenti e alla fine sperare per la notte d’aver l’onore di una nobilissima
consumazione.
A sequência da cena da Cortigiana resultou na seguinte forma:
O che gusto [passo de maculelê com mãos e braços das danças dos Orixás (Oxum)].
Foto: Léo Azevedo
Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica
Direção/Atuação: Joice Aglae
Outubro 2009
Per una donna (passo de ciranda)
Foto: Léo Azevedo
Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica
Direção/Atuação: Joice Aglae
Outubro 2009
Che si possa preggiare del (rasteira do cavalo marinho ou da capoeira).
Foto: Léo Azevedo
Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica
Direção/Atuação: Joice Aglae
Outubro2009.
Grazioso titolo di Signora (passo da ciranda).
E, dessa forma, a cena foi tomando forrma. Primeiro, ela fez parte da conferênciaespetáculo intitulada “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte – Né serva,
né Padrona” e foi a público pela primeira vez, no Auditorium Comunale di Roveredo in
Piano, nos dias 18/01/08 e 20/01/08, na Sala Arlecchino da Scuola Sperimentale dell’Attore
(PN-IT).
Neste mesmo espetáculo, outra colaboração da cultura popular brasileira: uma canção
de ninar brasileira, cantada em português e em italiano e que se tornou uma cena do
espetáculo, na qual Arlecchino escolhia um espectador e entregava-o às Servette (éramos
quatro) para que estas o fizessem dormir.
208 Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: “Né Serva, Né Padrona”
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet, Veronica
Risatti e Xu Xuan (e público)
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 18/012008
Os códigos da cultura popular brasileira e da commedia dell’arte geminaram-se de
forma bem equilibrada e as cenas conectaram-se tão bem que acabaram fazendo parte,
também, do espetáculo “Arlecchino e le sue colombine”, apresentado meses mais tarde,
especificamente, no dia 16/05/08, no Agriturismo La' Di Fantin, em Pordenone (IT).
5.1.2. Preparação do espetáculo para Papaietta
A criação de um “espetáculo dell’arte” realizado com códigos advindos das práticas
espetaculares populares brasileiras, sempre foi um dos propósitos desta tese. Porém, após o
primeiro curso de dança popular brasileira que ministrei na Scuola Sperimentale dell’Attore
(16 a 22/06/2008) e da primeira aula-espetáculo mostrada ao público italiano (“Tracciati
Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni
Spettacolari Popolari Brasiliane” - Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale
dell”Attore – PN-IT, em 23/06/2008), cujo tema central foi a técnica de translocação e o
vislumbramento da técnica de transdução, Contin e Merisi mostraram interesse pela direção
de tal espetáculo. Então, no dia 30 de junho de 2008, começaram os ensaios de “Papaietta
Poliglota”.
De 30 de junho a 23 de julho de 2008, uma rotina de trabalho foi estabelecida para a
criação de um espetáculo com uma parceria colaborativa harmoniosa, cujo texto é de
organização e criação de Claudia Contin. O trabalho ganhou a seguinte dinâmica: pela parte
da manhã, eu entrava em sala de aula sozinha e trabalhava utilizando o texto escrito por
Contin e as máscaras físicas da commedia dell’arte, porém, já usando a técnica de transdução.
Dentro do trabalho matinal que realizava só, colocava na movimentação das cenas, códigos e
movimentações que advinham das práticas espetaculares populares brasileiras (e que fossem
coerentes com o perfil da máscara dentro da ação da cena). As tardes eram reservadas para os
cursos que ministrava dentro da Scuola (“danças populares e o trabalho do ator”, “clown” e
209 “capoeira e o trabalho do ator”) e cursos nos quais era aluna (laboratórios individuais das
máscaras dell’arte com a professora Veronica Risatti). À noite, entrava em sala com Claudia
Contin. Ela via o material que tinha trabalhado, só, pela parte da manhã e organizava-os,
dirigindo as cenas dentro da perspectiva da commedia dell’arte. Com esse mecanismo, o
espetáculo foi sendo criado. No dia 24 de julho de 2008, o processo do laboratório “La
Servetta, Cortigiana e Damma Enamoratta – Papaietta – Rapporto tra Commedia dell’Arte e
Manifestazioni Spettacolari, Popolari Brasiliane” foi apresentado aos integrantes da Scuola
Sperimentale dell’Attore e a um pequeno grupo de convidados.
Foto: Veronica Risatti
Espetáculo: Né Serva, Né Padrona
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atores: Joice Aglae
Data: 24 07 2008
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
De 25 de julho a 10 de agosto, tivemos ensaios e apresentação do espetáculo
“Arlecchino e la vale dell’uomo” e de 11 a 23 de agosto/2008, as atividades laboratoriais para
“Papaietta Poliglota” foram retomadas, desta vez, baseadas na máscara de Pantalone, para a
composição da segunda parte do espetáculo. Mais tarde, falar-se-á da participação de
Pantalone em “Papaietta Poliglota” - como também, do próprio espetáculo.
5.2. PANTALONE, IL VECCHIETO PICANTIN / O VELHINHO PICANTEZINHO
Depois das máscaras femininas, é necessário falar de uma máscara que tem muita
relação com elas: Pantalone.
Pantalone é uma máscara que usa a máscara objeto e possui grande parte de suas
tramas ligadas às máscaras femininas e ao Zanni, pois como afirma Contin, ele é o seu patrão
por excelência.
Pantalone é de origem veneziana. Trata-se de um velho mercante de Veneza, o mais
avaro deles, deve-se especificar. Como Veneza era a região mercantil da Itália, por causa de
sua posição e zona portuária, Pantalone é um típico homem de negócios, trabalha com
210 dinheiro (compra e venda) e tem como principal característica a avareza. Ele é totalmente
libidinoso, o que economiza nos mercados, gasta em presentes para mulheres, principalmente
para as Coritigianas.
Apesar de fazer parte do grupo dos patrões, Pantalone não é um nobre: “Pantalone
representa uma figura de mercador veneziano que enriquecceu com a florescência comercial
da “Serennissima”: é avaríssimo, senhorial, mas não nobre, aliás, ele é de claríssima origem
popular” (CONTIN, 1999, p.62).14
Conforme Contin, Pantalone é muito velho, é como se fosse o arquétipo da velhice,
não basta dar-lhe 90 anos, mas 290 anos que lhe pesam sobre as costas, fazendo com que os
ombros caiam para frente e a coluna ganhe uma pequena curvatura, na altura das escápulas,
como se equilibrasse este peso da idade nesta pequena corcunda. É importante ressaltar que
esta curvatura das costas do Pantalone não é igual àquela do Zanni, que possui a tensão
empurrando o estômago para trás. No Pantalone, tem uma tensão em direção ao alto [é a
mesma que se forma nos ombros e na coluna no gincado da dança dos Orixás (Exu), porém,
quando, na técnica de transdução, os códigos são adaptados e os circuitos sofrem pequenos
ajustes, aproveita-se para tornar os movimentos mais evidenciados e dilatados que quando
feito nos rituais de candomblé]. Esta curvatura vista de costas parece ser o ponto pelo qual
Pantalone se mantém “pendurado” no firmamento e que o mantém em pé. Vista de frente,
observa-se um espaço côncavo que se forma entre os ombros pendidos para frente, que se
transforma em uma pequena “área de proteção”, um lugar para contar o dinheiro dos
negócios.
As características de Pantalone são bem definidas, como todas as máscaras dell’arte
continianas. Pantalone envelheceu de forma peculiar, apesar da idade avançada, ele não
perdeu a sanidade e, quando o assunto é “negócios”, ele está sempre alerta e esperto. Além
disso, Pantalone não envelheceu alargando as medidas, ele permaneceu magro, aliás, Contin
compara-o com uma árvore que envelheceu secando. Apesar desta comparação com a árvore
seca, no que diz respeito ao seu corpo, não é nem um pouco decrépito, ao contrário, tem muita
energia, principalmente se for para ganhar dinheiro, escapar de uma dívida ou cortejar uma
jovem.
Para conseguir passar todas estas informações, o corpo do ator que incorpora a
máscara do Pantalone está sempre dentro de uma luta de tensões. Por causa da sua idade, o
14
Tradução da autora: Pantalone rappresenta una figura di mercante veneziano che si è arricchito con i fiorenti
commerci della “Serenissima”: é avarissimo, signorile ma non nobile, anzi egli è di chiarissima origine
popolare. 211 peso do corpo age no sentido da gravidade e suas pernas lutam para deixar o corpo em pé.
Nesta luta de gravidade versus vitalidade, os pés permanecem unidos, mas giram para fora, o
mesmo acontece com os joelhos, que se alargam e, devido ao peso, flexionam-se, dessa
forma, Pantalone ganha uma boa base de sustentação. Essa construção acaba deixando, no
meio das pernas, a forma de losango, onde agem outras forças. Como a do seu órgão genital,
que deve dar a impressão de um peso pendurado em meio a este losango. Claudia Contin
(1999, p.68) cita que, em alguns figurinos vistos em iconografias antigas, Pantalone tem preso
na cintura um saco de dinheiro, o qual fica pendurado, exatamente, neste losango, fazendo
uma alusão ao seu órgão e ao seu recurso com as mulheres. Este “imaginário” órgão genital
pesado em meio às pernas puxa-o para baixo, evidenciando, ainda mais, a sua idade, ao
mesmo tempo, que o puxa para frente, mostrando seu desejo libidinoso com as mulheres. É
necessário lembrar que Pantalone mantém sua libido ligada à vontade e não à ação. Segundo
Contin, é nesta fome sexual que a origem popular de Pantalone se revela e, nas cartas de
amor, revela-se a sua tentativa de ascensão à nobreza.
Máscara física continiana de Pantalone
Desenho de Alice Mosanghini
A partir da imagem da atriz Veronica Risatti
Data: janeiro/2010
A sua hipotética virilidade não funciona, mas, em sua fogosa imaginação, Pantalone
realmente acredita que realizará seus desejos sexuais com as Servettas e Cortigianas que
galanteia. Estas, por sua vez, sabem que ele não oferece nenhum tipo de “perigo” e
aproveitam para ganhar agrados do Pantalone, que possui como única realização de sua libido,
presentes, mimos e cartas de amor. Muitos canovacci trabalham com o enredo em que
Pantalone envia, por Zanni, uma carta de amor a sua amada (geralmente uma Cortigiana),
como exemplo desse tipo de intriga, pode-se citar o texto de Goldoni, intitulado Bancarrota.
Tessari (1981, p.144) traz algumas observações de A. Perrucci quanto à distribuição
de papéis nas companhias e às características das máscaras em cena e, no que diz respeito a
Pantalone, os comentários e acusações são bem incisivos. Deste mesmo teor são as
212 observações de P.M. Cecchini, também divulgadas por Tessari (1981, p.125). Cecchini fala da
presença de Pantalone como um velho engenhoso que, por ser um idoso, deveria impor
respeito, mas se mostra ridículo em suas vestes, linguagem (pois se diz “nobre”, mas fala em
dialeto), voluptuosidade em direção às jovens e tramas com os servos, chegando até a
desvirtuar a classe nobre, já que se apresenta como mercador, diz-se nobre, contudo, age de
forma vergonhosa15.
Quando se lê discursos com tais conteúdos, pode-se perceber que Pantalone chegava a
causar alguma indignação e desconforto na sociedade, por suas características e modo de agir,
já que, dizendo-se mercador, permanecia entre os nobres, mas se comportava como servo,
tratando com eles como se fossem da mesma classe, deixando-se levar pelos impulsos sexuais
e falando em dialeto - característica da classe subalterna.
Toda a voluptuosa sexualidade, avareza e origem populacha de Pantalone são
identificáveis na máscara física continiana. Com tanta fome sexual, o quadril de Pantalone
também é projetado para frente, como o do Zanni. Porém, ao contrário do último, Pantalone
não age sexualmente e sua volúpia acaba manifestando-se em cartas de amor e presentes.
Como dito anteriormente, quem sabe aproveitar esta situação é a Cortigiana, que recebe
muitos agrados e mimos de Pantalone, mas se relaciona com o Zanni ou Nobile.
Quanto à máscara física, Pantalone possui três forças que agem: a gravidade que o
puxa para baixo e as pernas que o empurram para cima, tendo como aliada a corcunda (que o
prende ao firmamento), e o quadril que o puxa para frente. Na sua caminhada, ainda possui
um pequeno impulso nos calcanhares, que também o ajudam a avançar. Dentro da técnica de
transdução, a postura do Pantalone é sustentada com códigos advindos do coco, cavalo
marinho, samba e dança dos Orixás.
Para ter a força e tensão necessária nas pernas, pegam-se códigos do passo marcante
do coco, daquele que caracteriza a “pisada” e, no quadril, mantém-se a força e o movimento
da umbigada, também, do coco. Para as coxas, encontra-se a mesma tensão nas coxas e
panturrilhas da perna quando se faz o passo “margüio” do cavalo marinho. Para a tensão das
costas, como já dito, utilizam-se os códigos da dança dos Orixás (Exu). Para caminhar,
utiliza-se uma partícula de um código advindo do samba e, assim, tem-se o pequeno impulso
no calcanhar. Para os braços, na sua postura de base, que são para trás, pode-se utilizar a
postura dos braços do xaxado ou das danças dos Orixás (código de uma postura de Oxóssi) e,
para as mãos, pede-se emprestado uma partícula da dança dos Orixás (Oxumaré), que mantém
15
Por se tratar de uma escrita em italiano antigo, pensa-se que seja melhor não fazer uma tradução, então, para
aqueles que desejam ler o discurso, aconselhamos buscá-lo na própria fonte (TESSARI, 1981, p.125). 213 uma “energia frenética” como a de um guiso de cobra. Nas mãos do Pantalone, há uma
agilidade de quem conta dinheiro e a qualidade destas ações são fortes, “secas” e leves - como
o guiso da cobra (ou, como Contin fala, são como antenas de um inseto). Ver a construção da
máscara física do Pantalone no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO
CALEIDOSCÓPICA: 4.4 - PANTALONE: 4.4.2 – PANTALONE – dança.
A máscara do Pantalone foi meu segundo profundo mergulho dentro do universo das
máscaras dell’arte e constituiu a continuação do trabalho para os festejos carnavalescos de
2008, realizados pela Scuola Sperimentale dell’Attore em Pordenone (Ver publicidade no
Anexo E).
A preparação do cortejo carnavalesco que passaria pelos restaurantes e bares de
Pordenone seguiu o mesmo esquema do trabalho com a máscara da Servetta. Tivemos (o
grupo da Scuola Sperimentale dell’Attore, eu e Luciana Basilicò) um laboratório de pesquisa
(prático-teórico) intitulado “Carattere di Pantalone”, ministrado por Claudia Contin e
Ferruccio Merisi, auxiliados por Veronica Risatti, de 26/01/2008 a 02/02/2008. Foram oito
dias de intenso trabalho dentro do universo da máscara de Pantalone, passando por todos os
assuntos e características que dizem respeito a esta máscara: Il Vecchio Avaro, L’Amor Senza
Età, L’a Figura dell’Ebreo Errante, Senilità, Fecondità, Caparbietà, Saggezza, Richezza,
Sublimazione e Rapporti com le Parate degli Antichi Carnevali Montani Europei.
Sempre dentro do mesmo esquema de produção, pela parte da manhã, trabalhávamos
em um treinamento com a professora Veronica Risatti, à tarde, tínhamos laboratório com
Claudia Contin e, à noite, a construção do cannovacio com Ferruccio Merisi, em uma
distribuição de 21h/a de laboratório prático, 21h/a de trainning do personagem, 14h/a de
ensaios e dramaturgia cênica e 5h/a de preparação e atividades de divulgação pública,
totalizando 61h/a, incluindo o trabalho com capoeira, maculelê e samba de roda.
No trabalho com Contin, passávamos a máscara física e a incorporação desta no seu
universo e sua conexão com o carnaval. À noite, com Merisi, trabalhávamos jogo e
improvisações e, pela manhã, trabalhávamos a fixação e a organicidade da máscara física com
Veronica Risatti.
Este trabalho para o carnaval foi idealizado por Merisi e tinha como fio inspirador a
peça “Arlecchino servitore di due Padroni”, de Goldoni. Porém, neste caso, éramos cinco
Pantaloni para um Arlecchino e o cortejo/scorribanda, por conseguinte, chamou-se
“Arlecchino servitore di... quatre Padrone” (no início, havia quatro e, depois, foi incorporada
ao grupo uma atriz de Pordenone, passsando, então, a cinco Pantalones no cortejo). (Ver
publicidade no Anexo F)
214 Neste trabalho, foram utilizadas muitas práticas espetaculares populares brasileiras,
inclusive, incorporadas ao laboratório de grupo de preparação do cortejo e das cenas. Para os
atores e mestres da Scuola Sperimentale dell’Attore, as práticas espetaculares populares
brasileiras não trabalhavam na máscara física, como para mim, mas serviam para a
movimentação dos Pantalones durante o cortejo.
Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: Scorribanda di Carnevale
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet, Luciana
Basilicò,Veronica Risatti, Xu Xuan
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 02 02 /2008
O cortejo foi criado com uma estrutura fixa e outra flexível [como a estrutura do
cavalo marinho (OLIVEIRA, 2007) e como a estrutura das peças dell’arte, segundo Contin
(1999, p.200)]. A partir de cenas estruturadas, improvisávamos. Um exemplo desta
combinação era: conforme o sinal de Arlecchino (realizado com um apito, ou chocalho), os
Pantaloni se reuniam próximos a ele e giravam em torno, chamando-o para realizar esta
“pequena cena”, nesse caso, era utilizado o passo base do samba de roda. Estes mesmos
passos eram utilizados quando os Pantalones, depois de fecharem o cerco em torno de
Arlecchino, viravam de costas para ele e iam em direção ao público, “blasfemando” contra ele
que escapava.
Ou ainda, com Arlecchino ao centro e Pantalones ao redor, o cortejo seguia pela rua e,
para avançar na caminhada (a depender do chamado de Arlecchino), era utilizada a ginga ou o
avanço com a troca de negativa, ambos da capoeira.
Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: Scorribanda di Carnevale
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet,
Luciana Baslicò, Veronica Risatti, Xu Xuan
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 02 02 2008
215 Também foi preparado o canovacci de duas cenas, em que ambas eram de desafio: em
determinado momento, dois Pantalones apaixonavam-se pela mesma mulher (uma freguesa do
restaurante, que era escolhida na hora através de jogo de cena), então, Arlecchino preparava o
desafio, um era um “jogo” de capoeira e outro de maculelê e, assim, quem vencia (não era
combinado dependia do jogo e da música) tinha “o direito sobre a donzela”, porém, quem a
galanteava diretamente e saia com ela nos braços era Arlecchino, fazendo com que todos os
Pantalones corressem atrás dele, que saía do restaurante.
Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: Scorribanda di Carnevale
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atores: Joice Aglae e Lucia Zaghet
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Data: 02 02 2008
Vale lembrar que, apesar das máscaras físicas serem bem codificadas, Contin, sempre
que preparávamos uma cena, lembrava que as máscaras físicas não são formas cristalizadas,
mas deformações do corpo a partir do próprio universo que as engendraram. Então, a máscara
física deve funcionar como um elástico: estender-se para realizar a ação e retornar a sua forma
e tensão. Porém, nesta “ação do elástico”, o ator não pode relaxar e desfazer todo o trabalho
de construção da máscara física, para tanto, ele deve ter o conhecimento do universo da
máscara, para saber que tipo de qualidade de tensão reflete no movimento que ele irá fazer.
Devido à atenção com as qualidades de tensões, Pantalone pode jogar capoeira, maculelê,
dançar ciranda e muitas outras práticas espetaculares populares brasileiras16. Com isso, pode
utilizar as práticas espetaculares populares brasileiras para a construção da máscara física,
dentro da trama, como subsídio para a estruturação da cena e para a movimentação das
máscaras dentro desta.
16
Devido ao conhecimento dos universos das máscaras dell’arte e do repertório de qualidades de tensões e
energias de cada uma delas, acaba-se percebendo que algumas ações podem ser feitas por determinadas
máscaras, outras não. Por exemplo: Pantalone pode jogar capoeira, maculelê e dançar ciranda (e muitas outras
práticas) e, certamente, será diferente da ciranda dançada por um Nobile, porém, com certeza, este não jogaria
capoeira, nem maculelê, embora pudesse usar a movimentação destas práticas para a cena. Isso porque Pantalone
tem uma variação de energias que o permite jogar com a diversidade, enquanto que o Nobile possui uma gama
mais homogênea, o que não exclui certas atividades, mas pedem uma adaptação maior dos circuitos. Poder-se-ia
dizer que com as máscaras dell’arte, tudo é muito relativo, podendo requerer grandes ou quase nenhuma
adaptação de circuitos musculares e energéticos. Mas muito mais que relativo, o que age/comove é o dado
sensível e tudo passa a ser mutável e re-combinável, nada é excluído (como é típico dos engendros do
imaginário). 216 A scorribanda passou pelos restaurantes e bares de Pordenone e, em quase todos, os
donos ofereciam taças de vinho (como manda a tradição) e o ator não pode não aceitar, por
que o vinho é oferecido para a máscara, não para o ator.
Foto: Alessio Prosser
Espetáculo: Scorribanda di Carnevale
Data: 02 02 2008
Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atores: Joice Aglae e Lucia Zaghet
Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore
Contin decidiu colocar em cena a máscara do Pantalone para “contracenar” com as
máscaras femininas, porque foi com esta máscara que dei meu segundo intenso mergulho no
universo das máscaras dell’arte - mas, esta experiência será comentada posteriormente.
Como já dito, o processo com Pantalone foi de 11 a 23 de agosto/2008. O sistema
para a montagem das cenas com Pantalone foi o mesmo adotado para as cenas da Servetta e
Cortigiana: durante a manhã trabalhava sozinha e, à noite, trabalhava com Claudia Cotin.
Desse modo, a trama do espetáculo foi sendo montada e ganhando a unidade.
Contudo, conforme dito, “Papaietta Poliglota” é de propriedade da Scuola
Sperimentale dell’Attore, assim, da parte de Pantalone não possuo, nem mesmo, fotografias.
Então, também, para Pantalone criei uma nova cena, a qual faz parte do espetáculo
“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações: Máscaras dell’Arte e Cultura Popular
Brasileira” – que será comentado posteriormente.
5.3. THE HOLY FOOL: CAPITANO E BRIGHELLA
Depois do período de trabalho para a scorribanda, começaram os trabalhos para o
Progetto Sciamano. Um projeto social que tem como objetivo a criação de uma relação entre
o universo das máscaras dell’arte e portadores de necessidades especiais17. Este projeto
17
O Progetto Sciamano trabalha com portadores de necessidades especiais do Centro ANFFAS “G. Locatelli”, de
Pordenone. O projeto acontece desde 1999 e apresenta, sempre, ao final do processo, um espetáculo, o qual tem
a intenção de levar a público a relação dos frequentadores deste centro contracenando com o universo das
máscaras17. O espetáculo final intitulado “Sherwood delle Danze”, com direção de Ferruccio Merisi e Claudia
217 ocupou a maioria dos dias de abril e maio, sendo que também tivemos os ensaios de
preparação e apresentação do espetáculo “Arlecchino e le sue Colombine”.
Do dia 31de maio a 11 de junho de 2008, foi realizado o laboratório “Carattere di
Zanni”, para mim e outra aluna vinda de Roma. O laboratório foi ministrado por Verônica
Risatti, sob a coordenação de Ferruccio Merisi e Claudia Contin, e teve a duração de 26h/a.
Durante o trabalho, foi explorada a máscara física do Zanni, sua movimentação e temas
pertinentes a esta: Carnavale, Servitù, Amore e Fame. Tal laboratório não tinha a finalidade
de uma apresentação, somente de adentrar mais profundamente esta importante máscara
dell’arte. Mas, para esta pesquisadora e para a técnica de transdução, foi um laboratório
imprescindível e de importância impar, pois foi a partir dele que Zann Piedini ganhou força conforme mencionado anteriormente.
Posterior ao laboratório da máscara do Zanni, aconteceu o curso de danças populares
brasileiras que, juntamente com o professor Dr. Erico José Souza de Oliveira, ministrei na
Scuola Sperimentale dell’Attore18. O encerramento do curso foi com a aula-espetáculo em que
apresentei a técnica de translocação caleidoscópica e indicava o caminho para a técnica de
transdução caleidoscópica, dando início, então, ao processo de construção de “Papaieta
Poliglota”19.
Então, após uma sequência20 de atividades desenvolvidas, chegou a época do festival
L’Arlecchino Errante - Ano XII. Este festival caracteriza-se particularmente pelo fato de, a
cada edição, estabelecer o diálogo da commedia dell’arte com uma prática espetacular ou
cultura diversa. No ano de 2008, o tema escolhido para trabalhar dialogando com a commedia
Contin, teve três apresentações. Duas foram realizadas na Sala Arlecchino Teatro Studio da Scuola Sperimental
dell’Attore nos dias 26 e 27/05/08 e outro no Auditorium Concordia de Pordenone, no dia 28\05\2008 (Ver
publicidade do evento em Anexo G – evento do dia 28 de maio\2008). Mesmo nesta experiência que não tem
relação com minha tese, mas que participei, por estar na Scuola Sperimentale dell’Attore, a cultura popular
brasileira esteve presente, em uma cena, Arlecchino chama alguns dos frequentadores do ANFFAS e joga
maculelê com eles, que acabam dando uma “surra” em Arlecchino. Foi uma bela experiência, mas que não está
entre as mais importantes desta tese, pois participei como assistente de todo o processo, mas não usava nenhuma
máscara dell’arte. Aqueles que desejam saber mais sobre o Progetto Sciamano, de Claudia Contin, devem ler as
revistas específicas do projeto: Progetto Sciamano 1999. Proposte Didattiche per le attività di
Drammatizazione e Teatrali; Progetto Sciamano 2000. Esperienze di Teatro-ed-Handicap; Progetto Sciamano
2001. Incoltro col Teatro Cinese. Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mondo; Progetto
Sciamano 2004. Teatro interetnico e teatro Social; Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontri. Todas com Org.
de Claudia Contin e Scene Senza Barriere. Um’ocasione di dibattito sulle iniziative per il teatro della
differenza, com Org. Claudia Contin e Ferruccio Merisi. 18
A publicidade do curso está contida no Anexo C. 19
Perpendicular ao processo de montagem do espetáculo “Papaietta Poliglota”, teve a montagem do espetáculo,
já comentado, “Arlecchino e la valle dell’uomo”, no qual participava com meu Bufão: Murcia (Publicidade no
Anexo G – evento do dia 26 de junho/2008). 20
Durante o período que estive na Scuola Sperimentale dell’Attore, ministrei cursos de clown, dança e capoeira,
alguns, para os atores da mesma e outros abertos ao público (ver relação das atividades realizadas com a Scuola
Sperimentale dell’Attore, no Apêndice D). 218 foi a arte do bufão. No conjunto das atividades durante o festival, todos os professores da
Scuola Sperimentale dell’Attore entram em sala com os alunos: Contin ensina, trabalha as
máscaras dell’arte, improvisações com elas e dirige o espetáculo final; Veronica Risatti fixa e
exercita as máscaras dell’arte; Lucia Zaghet trabalha acrobacias e danças populares para a
cena de commedia dell’arte; Alice Mosanghini trabalha canto para a cena de commedia
dell’arte; Ferruccio Merisi trabalha com a voz para a máscara e dirige o espetáculo final; no
caso deste ano, em que o diálogo era com a arte da bufonaria, o mestre convidado foi Léo
Bassi e este trabalhava na sua área. O festival aconteceu de 31 de agosto/2008 a 21 de
setembro/2008, formando, ao todo, 200h/a. No festival, através do conjunto das atividades
desenvolvidas, trabalharam-se as máscaras dell’arte e todo o universo que as circunda.
Além do curso com as atividades práticas relacionadas às máscaras dell’arte, o festival
reúne muitos espetáculos da Itália e de outros países, bem como, realiza simpósios com temas
que dialogam com a natureza do Festival.21
Durante o festival, todos os alunos passam por todas as máscaras dell’arte de forma
intensa, pois se tem uma grande carga de atividades com todas elas. Para mim, aproveitei para
apreender e mergulhar nas máscaras que não tinha trabalhado ainda em laboratórios com a
professora Veronica Risatti, somente em trabalhos e laboratórios individuais: Dottore,
Arlecchino, Pulcinella, Brighella e Capitano, sendo que as últimas duas, Merisi e Contin
confiaram-me para o espetáculo final intitulado “The Holy Fool”, apresentado no dia 21 de
setembro de 2008 – espetáculo em que Contin pediu, também, a participação do meu bufão22.
5.3.1. Brighella, o zanni trabalhador
Brighela, então, foi uma das máscaras que tive de “defender” no espetáculo final do
festival Arlecchino Errante 2008.
Esta máscara também é da linhagem dos servos contendo todas as conexões telúricas e
xamânicas inerentes às máscaras de Zanni. Segundo Contin (1999, p.102), Brighella também
é de origem bergamasca, ainda que, muitas vezes, apareça na tradição lombarda e nas cidades
de Milano e Brescia. Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.46) também assinalam a origem
bergamasca de Brighella e acrescentam outras informações: a de que Bergamo seria uma
Para ver a programação, resumida, do festival ANO XII, ver Anexo H. 22
Ver publicidade do espetáculo no Anexo I. 21
219 cidade dividida em cidade baixa e cidade alta, e que Brighella seria da parte alta, enquanto
que Arlechino seria da parte baixa.
Brighella é um grande amigo de Arlecchino, conforme se vê em muitos canovacci (e
cita-se novamente como exemplo a peça de Goldoni “Arlecchino Servitore di due Padroni”).
Segundo Contin (1999, p.104), tal como Arlecchino, Brighella é um Zanni que se desdobrou
em uma máscara autônoma. Ao contrário de Arlecchino, que não gosta de trabalhar,
Brighella, mesmo sendo um servo de idade avançada, é muito trabalhador, característica
herdada do Zanni.
Segundo Contin (1999, p.104), o nome “Brighella” possui duas conotações: uma é a
de furbo, que significa astuto, malandro e a outra é a de sbrigare, que quer dizer resolver,
despachar, encaminhar, finalizar23. Para Contin, a segunda versão é mais significativa que a
primeira, levando em conta informações trazidas em roteiros tradicionais de commedia
dell’arte, em que Brighella é um serviçal exemplar. Trata-se de um servo que gosta muito do
que faz e procura fazer da melhor forma possível, sbrigando-si/se esforçando ao máximo.
Sempre pronto a servir, seu espaço de trabalho é a cozinha e coisas que dizem respeito
à “arrumação”. Se ele trabalha para alguém (Pantalone, Dottore ou Nobile), é uma espécie de
“mordomo maior” ou “chef” da cozinha, ele não é da mesma condição do Zanni, que é um
serviçal normal.
Algumas vezes, em alguns canovacci24, Brighella é dono de uma pensão ou
restaurante, porém, nada de luxuoso, um estabelecimento modesto voltado para o “mercado”
dos servos. Também, neste caso, percebe-se, pelo seu modo servil de agir, que se trata de
alguém que não tem inclinações para patrão.
A máscara física brighellesca de Contin, como todas as outras, traz todas as
características do seu universo para o corpo, no caso desta, são as deformações do próprio
trabalho (CONTIN, 1999, p.104). Como sempre trabalhou muito, Brighella, como grande
mordomo, mantém sua postura ereta. Seus braços, de tanto se manterem dobrados acima da
altura da cintura (quase no peito), com a toalha de mesa ou pano de copa pendurado, como é
hábito de todo o bom criado de mesa, acostumaram-se naquela posição.
23
Brighella é uma máscara que possui algumas contradições, entre os estudiosos: Clavilier e Duchefdelaville
(1994, p.50-52) falam da amizade entre Arlecchino e Brighella e, também, do nome Brighella derivar de “briga”
e que seu caráter é de alguém que cria confusões. Afirmam ainda que, Brighella é tão preguiçoso quanto
Arlecchino e comentam sobre a capacidade que este tem de manipular Arlecchino – uma visão bastante contrária
àquela de Contin. Como está se trabalhando com as máscaras continianas, não se adentrará nestas discussões. 24
Para aqueles que desejam ler alguns destes canovacci, procurar em: Tutti i lazzi della Commedia dell’Arte, de
Nicoletta Capozza; I Canovacci della Commedia dell’Arte, de Anna Maria Testaverde (organização). 220 Como todo bom serviçal, Brighella permenece grande parte do tempo em pé, pronto
para atender e sbrigare/resolver qualquer pedido feito por seus clientes ou patrão, o mais
rápido possível. Por causa desta prontidão e grande número de tarefas que sempre teve de
cumprir, pois como tem um estabelecimento modesto, não possui empregados, com isso, ele é
quem organiza e faz tudo. Com isso, suas maiores dores, como na maioria dos serviçais de
prontidão, localizam-se nos pés. Tais ferimentos o levaram a desenvolver uma caminhada
muito específica, com a qual procura aliviar seu sofrimento:
O maior problema dos criados é localizado nos pés [...] Cada vez que Brighella
apoia o pé no chão é um sofrimento, qualquer que seja o sapato ou pantufo que
coloque, jamais encontra alívio. O que é que acontece no corpo de uma pessoa que
caminha com tanta dor nos pés? Os ombros erguem-se num impulso, contraídos e
altos até as orelhas, como se um arrepio doloroso percorresse continuamente a
espinha dorsal. As pernas se enrijecem e permanecem retas, porque senão, uma forte
flexão dos joelhos, colocaria em tensão, automaticamente, também, a estrutura dos
pés, ao passo que, com a perna reta pode deixar a planta relaxada [...] Desse modo,
Brighella tende a caminhar sem dobrar muito os joelhos, movimentando, ao invés,
exageradamente as ancas, de modo a descolar os pés da terra, graças à elevação
alternada dos glúteos [...] Por isso, todos os acentos da caminhada brighellesca são
em direção ao alto (CONTIN, 1999, p.104-105).25
Toda a máscara física de Brighella é advinda de seu trabalho, que constitui o maior
argumento de seu jogo na cena da commedia dell’arte.
Outra característica sublinhada por Contin (1999, p.105) é que, as mãos também
auxiliam nesta perspectiva de tirar o peso do corpo dos pés, numa tentativa de aliviar o
sofrimento causado pelas dores. Como os braços permanecem na postura de mordomo que
carrega a toalha, as mãos, ao invés de permanecerem fechadas como de costume, abrem-se e
tentam “ensinar” os pés a pisar de maneira doce e leve, elas vão pisando suavemente o ar
como se, dessa forma, suspendessem o peso do corpo.
Tradicionalmente, Brighella é gago, característica que possui e que faz parte de sua
comicidade. Mas, segundo Contin (1999, p.106), não é uma gagueira resultante de um
problema congênito, a sua tem relação com suas características de servidor nato e da
exigência de perfeição, típica de quem gosta de seu trabalho – como é o seu caso. A
25
Tradução da autora: Il problema più grosso dei camerieri è localizzato nei piedi [...] Ogni volta che Brighella
appoggia il piedi a terra è una sofferenza, qualunque scarpa o pantofola metta ormai non trova più sollievo.
Cosa succede al corpo di una persona che cammina con cosí tanto “mal di piedi”? Le spalle si sollevano con un
scatto, contratte e alte fino alle orecchie, come se un brivido doloroso percorresse continuamente la spina
dorsale. Le gambe si irrigidiscono e rimangono dritte, perché altrimenti una forte piegatura del ginocchio
metterebbe automaticamente in tensione, anche la struttura del piede, mentre la gamba dritta può lasciare la
pianta rilassata [...] Cosí Brighella tende a camminare senza piegare troppo le ginocchia, muovendo invece
esageratamente le anche in modo da staccare i piedi da terra grazie al sollevamento alternato dei glutei [...]
Perciò tutti gli accenti della camminata Brighellesca sono verso l’alto [...]. 221 pesquisadora explica que, como deve servir imediatamente, Brighella ganha uma ansiedade
que o faz gaguejar, isto faz com que a sua fala ganhe ritmos diversos. São tantas tarefas a
fazer que enquanto está cumprindo uma, já está pensando em como irá realizar a outra e,
como bom serviçal, ele é simpático e solícito com todos.
Máscara física continiana: Brighella
Desenho de Alice Mosanghini
A partir da imagem da atriz Veronica Risatti
Data: janeiro 2010
Para compor a máscara física do Brighella e dar vida a esta através da técnica de
transdução, o ator deve saber maracatu, especificamente, a dança/caminhar do Portaestandarte (ou dança do vassalo do Porta-estandarte), pois ele possui um caminhar, durante o
cortejo, que “imita” uma marcha de um cavalo, cujos joelhos são levemente flexionados e o
movimento, por não utilizar muito os joelhos, parte das ancas. Por segurar o estandarte à
frente do corpo, os braços e ombros do vassalo adquirem as mesmas qualidades que Contin
ressalta como brighellescas e as mãos espalmadas, cuja intenção é a de manter uma leveza,
tais traços encontram-se na dança dos Orixás, em um código de uma das danças de Iemanjá.
O espetáculo “The Holy Fool”, direção de Claudia Contin e Ferruccio Merisi, era
composto por uma trama de cenas que continham todo o material apreendido durante o curso
(acrobacias, danças, argumentos, músicas, improvisação, tudo dento do contexto da commedia
dell’arte). Uma das tramas tinha como centro Brighellino, como Contin chamava a minha
máscara de Brighella. Ele era dono de um restaurante, cuja lista de devedores era imensa,
entre eles, Pulcinella - o maior de todos.
Brighellino entra em cena e faz um discurso contando sobre seus devedores e decide ir
cobrar as dívidas. No caminho, encontra Pulcinella dormindo, acorda-o e cobra a dívida, este,
por sua vez, ri de Brighellino e o paga em “pauladas”. Brighellino sai correndo e depois
retorna, num pequeno solilóquio diz que sabe o que fazer com os maus pagadores e tira do
bolso um rato morto.
222 Na Itália, principalmente na região das montanhas de Piemonte, o rato morto é
símbolo da peste e da loucura, bater com um rato morto em alguém é como se desejasse a
peste ou a loucura para essa pessoa. Porém, quem o porta, tem-no como uma espécie de
amuleto contra as energias negativas. O rato morto, então, é como um desconjuro.
Esta crença foi-me “revelada” em uma conferência organizada pela Scuola
Sperimentale dell’Attore, em Pordenone (18/02/2009), para marcar o início das festividades
carnavalescas/2009, cujo convidado e conferencista foi o antropólogo e pesquisador da
Facoltà di Lettere e Filosofia dell’Università degli Studi del Piemonte Orientale “Amedeo
Avogadro”, Dr. Davide Porporato. Porporato possui um vasto estudo sobre os carnavais
antigos e tradições que se perpetuam nas montanhas de Piemonte. O pesquisador não se
detém, somente, em escrever artigos ou livros, ele trabalha, também, com vídeos e projetos
multimídias. Projetos como o “Bestie Santi Divinità, Maschere animale dell’Europa
tradizionale”, o qual pode ser encontrado no Museo Nazionale della Montagna – CAI Torino
(IT), que mostra um pouco desta tradição26. Além da importante conferência que realizou a
Pordenone, Davide Porporato mostrou-se muito interessado na relação entre as culturas
populares da Itália e do Brasil e colaborou cedendo material de sua pesquisa para que eu
pudesse ter uma noção das tradições carnavalescas das montanhas de Piemonte.
Com esta crença do rato morto, Brighellino partia outra vez para cobrar as dívidas. Ao
encontrar Pulcinella, pedia o pagamento e quando este se negava, ele tirava do bolso o rato
morto e, gargalhando, corria atrás do devedor que escapava amedrontado. Posterior a esta
cena e em meio a cenas de outras máscaras, Brighellino atravessava o palco, mostrando o rato
e gargalhando, como se ele mesmo estivesse possuído pela loucura portada pelo rato morto.
Mais uma vez, o espetáculo de encerramento do Festivale Arlecchino Errante é de
direito da Scuola Sperimentale dell’Attore e, portanto, não possuo nenhuma imagem deste,
seja em fotografia ou filme. A própria direção da Scuola S.A., por ocasião do Festival, no
momento em que pediu aos alunos que assinassem o termo de concessão de imagem, disselhes que seríamos presenteados com um CD com algumas das imagens do Festival e do
“Saggio Finale”, mas já se passou mais de um ano, já aconteceu outra edição do festival e
nenhum dos alunos recebeu tais imagens, permanecemos na espera e torcendo para que elas
cheguem em breve, pois é uma boa lembrança da experiência vivida.
26
Outras obras do antropólogo e pesquisador que possuem relação com as festividades e tradições italianas são:
Bestie Santi Divinità. Maschere animali dell’Europa tradizional, de D. Porporato (Multimidia); Oggetti e
immagini. Esperienze di ricerca etnoantropologici, D. Porporato, F. Tamarozzi (a cura di); “Il carnevale delle
olimpiadi. Il ritorno “Du grand Carnaval” de Champlas du Col”; “Il Rosario dell’albero del maggio. Sacro e
profano a Costamagna di Lequio Tanaro”; “Le Parlate. Il venerdì santo a Entraque”, D. Porporato, André
Carénini, Piercarlo Grimaldi, Luca Percivalle (Vídeos). 223 É preciso dizer que Brighella não é uma das máscaras integrantes do espetáculo
“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”. Foi uma difícil escolha, mas, por questões
práticas dramatúrgicas, Brighella, juntamente com Dottore e Pulcinella ficaram para um
próximo espetáculo. Dottore Ballanzone e Pulcinella porque foram máscaras que não
“incorporei” em espetáculos na Itália e Brighella, porque se trata de mais um servo e já estão
no espetáculo Zanni e Arlecchino. Então, optei em deixá-lo de fora da Aula-Demonstração27.
5.3.2. Capitano: o “grande” guerreador
Capitano foi outra máscara que incorporei no espetáculo “The Holy Fool” e devo
confessar que ela seduz, intriga e comove forças. Contin apresenta a máscara do Capitano
como uma das mais antigas e complexas da commedia dell’arte, pois se trata de uma máscara
dupla - como a Cortigiana. Porém, a Cortigiana, como foi relatado, é sedutora, forte, atrevida,
esconde o seu lado perverso, ela é perspicaz no jogo de manipular as situações e as pessoas.
Em algumas situações, ela pode ser velhaca, principalmente, tratando- -se de Pantalone,
Ballanzone e, até mesmo, do Capitano.
Ao contrário, Capitano é dono de um discurso falacioso. Narra as maiores guerras que
o mundo poderia viver, como se as tivesse vivido e vencido. Segundo seu discurso, possui
técnicas de ataque e defesa, conhece e luta com armas brancas (como a espada) muito bem,
luta todos os tipos de artes marciais e se pronuncia como o maior lutador e herói de todos os
tempos. Mas tudo isso é para disfarçar sua outra faceta: a de covarde (CONTIN, 1999, p.115).
O Capitano, na verdade, é uma máscara que porta para cena uma grande eloquência e
o absurdo, a sua cena “[...] é uma parte pomposa de palavras e gestos, que se vangloria de sua
beleza, de graças e de riqueza, quando, na verdade, é um monstro, um pateta, um covarde, um
pobre coitado e louco de amarrar” ( PERRUCCI apud TESSARI,1981, p.14).28
Típico falastrão, nas mãos da Cortigiana, vê-se em apuros, pois ela, como é uma
máscara dupla, também reconhece alguém com duas facetas e sabe muito bem quais são as
que fazem parte do Capitano, jogando com isso o tempo todo. Mas a porção covarde do
Capitano pode aparecer a qualquer momento, qualquer rumor, um estouro ou livro que cai,
27
No Anexo J, pode ser visto algumas fotografias que dizem respeito a momentos da cena “Alla ricerca di un
Zanni”, nas quais as geminações dos códigos das manifestações espetaculares populares brasileiras criaram
circuítos que se assemelham à máscara física do Brighella. 28
Tradução da Autora: “[...] uma parte ampollosa di parole e di gesti, che si vanta di belezza, di grazie e di
recchezza, quando per altro è um mostro di natura, un balordo, un codardo, un poveruomo e matto da catena.” 224 pode fazer as suas máscaras se alternarem e, num lapso, passar de uma grande encenação de
guerra e heroísmo a um coelho que se esconde do predador.
Não é possível determinar com certeza as origens da máscara do Capitano, uma vez
que não há clareza nos dados de seu surgimento, nem mesmo em relação à região e data29.
Segundo Contin (1999, p.44), o Capitano é uma máscara tão antiga quanto a do Zanni, porém,
rastrear a região ou cidade da Itália em que este arquétipo concretizou-se como
objeto/máscara é muito difícil. Contin (1999, p.120) afirma que dentro da commedia dell’arte,
ele é reconhecido como estrangeiro, geralmente, usa sotaque espanhol, mas, também, alemão
ou, ainda, siciliano (pois quando a Itália de hoje ainda não existia como um único país, a
Sicilia era terra estrangeira). Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.61) são categóricos em
afirmar que o Capitano fala com uma característica espanhola. Tessari traz as observações de
P.M. Cecchini (apud TESSARI,1981, p.126) e A. Perrucci (apud TESSARI,1981, p.145) em
que, ambos, em cartas, afirmam que a máscara do Capitano “combina” mais com o sotaque
espanhol. Perrucci, inclusive, afirma que os “bravos capitães de antigamente” (citando Miles
gloriosus de Plauto e o Trasone de Terencio em Eunuco), naquele momento (1699), eram
feitos em diversas línguas (citando: toscano, napolitano, romanesco, calabrese, siciliano e
espanhol), ratificando a diversidade de sotaque e idiomas desta máscara.
Lendo tantas observações a respeito da fala do Capitano, é possível perceber que a fala
era uma característica muito marcante desta máscara dell’arte e não passava despercebida
pelo público, fosse ele contra ou a favor deste gênero de teatro.
Segundo Molinari (1996, p.106), a fala do Capitano é fundamental, também, para o
desenvolvimento de outra característica muito marcante desta máscara: o discurso
hiperbólico.
Analisando as várias línguas com que o Capitano faz seus discursos, Molinari (1972,
p.106) traz à tona a questão de sua origem e observa que a máscara do Capitano, não pode ser
vista como uma, mas como uma classe de máscaras, pois tanto quanto o Zanni, a máscara do
Capitano desdobrou-se em uma grande variedade de capitães. Nesse sentido, Contin (1999,
p.158) acrescenta, ainda, que alguns Capitanos, inclusive, são desdobramentos de Zanni,
alguns deles seriam Zanni que, querendo ter “origem” mais nobre, passavam-se por capitães,
citando como exemplo o calabrese Giangurgolo ou Scaramuccia, que era napolitano.
29
Quanto a estes dados, Clavilier e Duchefdelaville (1994:60) afirmam que a máscara do Capitano nasceu no
momento das invasões espanholas e alemãs, tendo seu grande sucesso em toda a Europa, durante o séc.XVI e
início do séc.XVII – também não se adentrará em uma discussão sobre estas discordâncias. 225 Molinari (1996, p.106) chama a atenção para o fato de que, dentro desta classe dos
Capitani, por possuir muitas variações, as máscaras, muitas vezes, nem possuem o elo dialetal
como regra, podendo falar em italiano, espanhol e tantos outros. Os Zannis possuem o dialeto
bergamasco como uma característica própria, já o Capitano pode falar dialetos de diversas
partes da Itália e até idiomas diferentes. Então, pensando na língua/idioma/dialeto de cada
máscara dell’arte como uma característica própria e de identificação entre elas (Zanni:
bergamasco; Pantalone: veneziano; Brighella: bergamasco; Servetta: veneziano; Dottore:
bolognese...), o Capitano não a possui. Todavia, pensando por outro viés, esta ausência de um
dialeto e/ou idioma de unificação passa a constituir uma das características do Capitano
(embora não se possa esquecer que o espanhol é aquele que melhor representa a máscara,
segundo as opiniões já citadas).
Sempre na perspectiva de Contin (1999, p.120), esta característica de não ter um
dialeto/idioma específico, vem, também, do próprio perfil da máscara. Nas narrativas das
guerras, batalhas e conquistas que diz ter vivido, Capitano conta e revive suas peripécias e
proezas realizadas pelo mundo, caracterizando-se como um viajante. Esta “áurea” de
andarilho reforça a possibilidade dos diversos dialetos/idiomas para uma mesma máscara, sem
que isto cause estranhamentos. Mas, Contin concorda com os outros estudiosos de que o
espanhol ajusta-se muito bem à máscara do Capitano.
Outras características são destacadas por Molinari (1996, p.106) a respeito do
Capitano. Para este autor, trata-se de uma máscara verbosa e redundante e que seus discursos
são sempre eloquentes, cheios de “vantagens” e falsas glórias que ele conta como verdades
absolutas.
Contin fala que esta eloquência verbal com todo o tipo de hipérbole e excessos é uma
forte característica da máscara do Capitano, mas que toda esta pomposidade oral é
acompanhada de uma hábil gesticulação. A cada guerra que conta, Capitano a ilustra com
exagerada ênfase em cada fato, deixando seu discurso ainda mais suntuoso e alegórico.
Este lado falastrão do Capitano faz parte, segundo Contin (1999, p.115), de sua segunda
máscara, a que “ele criou para se mostrar ao mundo”:
Na realidade, o Capitano é um grande covarde, um coelho que tem medo de tudo:
teme, até mesmo, a sua sombra. A sua verdadeira máscara física caracterizadora
representa uma postura angulosa, com as pernas dobradas e trêmulas, os joelhos são
voltados para dentro, se tocam e se batem um contra o outro, o corpo é retraído da
covardia, os braços contorcidos ou pendurados, vibrantes de medo e o pescoço é
encolhido pelo temor de uma desgraça que possa cair do céu. Mas sobre esta
miserável estrutura, o Capitano é capaz de construir uma segunda máscara física,
226 com a qual se apresenta em sociedade, uma máscara fictícia que lhe permite suportar
– ao menos diante de si mesmo – os exageros que conta.30
Apesar da primeira máscara do Capitano ser a do “pobre coitado\covarde”, a técnica
continiana não a tem como referência, o trabalho maior é a partir da segunda, daquela que ele
criou para se mostrar – a do falso valente. Esta porção pomposa, exuberante, ágil e plena de
recursos do Capitano advém, então, de sua segunda máscara. É com esta que ele convive. A
primeira aparece, somente, em momentos de descontrole, causado por sustos e surpresas. Por
conseguinte, no processo de apreensão da máscara do Capitano, chega-se a sua faceta covarde
a partir da sua segunda porção, pois ela é, na verdade, a desconstrução da faceta falastrona,
daquela que ele mostra. Por isso, primeiro apreende-se como ele se vê, o que ele quer mostrar
de si mesmo, para depois desmontar esta imagem criada. Então, de fato, a porção
“vangloriante” da máscara do Capitano, dentro do processo de apreensão da sua
complexidade, é a primeira a ser apreendida e trabalhada, uma vez que esta se sobrepõe à
outra, à porção covarde. É claro que estas duas porções, a covarde e a falastrona, compõem a
complexa máscara do Capitano, mas, por ser aquela com que ele apresenta-se, é com a porção
valente que a técnica de transdução caleidoscópica trabalha. Sendo a parte covarde, a
desconstrução da valente, do que se conclui que tendo a faceta vangloriosa bem estruturada,
chega-se à medrosa.
Sobre esta dupla personalidade e sua presença nas peças dell’arte, A. Perrucci (apud
TESSARI,1981, p.145) acrescenta ao seu comentário, citado anteriormente, que a máscara do
Capitano “[...] quer viver com a fama daquilo que não é [...]”31 e, continuando as suas
observações, ele é incisivo em advertir a influência negativa desta máscara na conduta de
jovens, pois estes aprenderiam, com o Capitano, a se passarem por pessoas dignas de respeito,
a se vangloriarem de “[...] nobreza e riqueza, sendo plebeus, velhacos e paupérrimos
[...]”(apud TESSARI,1981, p.145). 32
Mas os cômicos dell’arte, apesar de tantas manifestações contra o seu ofício,
continuavam a representar as suas peças nas praças e ruas e a máscara do Capitano, conforme
sublinhado, agradava muito ao público. Este fator cômico, segundo Contin (1999, p.132), vem
30
Tradução da Autora: In realtà il Capitano è un grande vigliacco, un coniglio che ha paura di tutto: teme
persino la sua ombra. La sua vera maschera fisica caratteriale presenta una postura nodosa, con le gambe
piegate e tremanti, le ginocchia rivolte verso l’interno che si toccano e sbattono l’una contro l’altra, il corpo
rattrappito dalla vigliaccheria, le braccia contorte, oppure penzolanti, vibranti di paura, il collo incassato nel
timore di una disgrazia che possa cadere dal cielo. Ma sopra questa misera struttura il Capitano è in grado di
costruire una seconda maschera fisica con cui presentarsi in società, una maschera fittizia che gli consenta di
supportare – almeno di fronte a sé stesso –le esagerazioni che racconta. 31
Tradução da autora: [...] vuol vivere col credito d’esser tenuto quello che non è [...]. 32
Tradução da autora: “[...] nobiltà e ricchezze essendo plebei, forfanti e poverissimi”. 227 exatamente da contraposição das suas duas naturezas, dos dois pólos que constituem a
complexa máscara do Capitano: uma porção pomposa e exuberante e outra covarde e velhaca.
Esta dinâmica de troca entre as suas duas porções e toda a capacidade elocubrante do
Capitano, deixam esta máscara interessantíssima, intrigante e cômica, beirando o absurdo e o
surreal. Isto porque o Capitano não economiza nas demonstrações de seus dotes físicos, para
mostrar como é capaz de sozinho derrotar inteiros batalhões. Essas demonstrações acabam
criando certo dualismo, pois seu vigor físico em mostrar os golpes e lutas travadas durante a
“guerra” poderia convencer de sua capacidade, mas se depara com um discurso hiperbólico.
Então, se por um lado vê-se que ele é, verdadeiramente, ágil e entende de lutas, por outro, o
seu exagero nos detalhes da guerra, em querer reconhecimento e glória por parte dos
“ouvintes” o condena ao inverossímil.
O Capitano é uma máscara que necessita de um corpo ágil e bem trabalhado, porém,
não pode ser parrudo como o de um trabalhador como o Zanni, pois ele se diz nobre, então,
mesmo sendo um “guerreiro”, ele deve ser “elegante”:
Mesmo estando, quase sempre, em más condições o Capitano deseja sempre se
passar por um Nobre Cavaleiro/Nobile Cavaliere, mesmo tendo, comumente,
origens populares ou ambíguas, revelando-se, então, um Falso Nobre/Falso Nobile
ou, no máximo, um Nobre Decadente/Nobile Decaduto. Mas não se dá, jamais, por
vencido e procura redesenhar o seu corpo segundo uma educação cavaleirosa: copia
dos Nobili a posição em ângulo dos pés, as pernas esticadas - mesmo se estas lhe
desmoronem sempre em alguns ataques de tremores e transforma a postura de
bailarino em uma postura marcial de soldado em “Atenção”. O Capitano copia dos
Nobili, também, o alongamento do busto em direção à esquerda, em respeito ao
quadril, porém a transforma em uma atitude de alerta, para estar mais preparado a
pegar a espada em caso de perigo. Não imita a elevação nobre do nariz que, no seu
caso, permanece ameaçadoramente muito abaixado, enquanto o gira em torno
continuamente, procurando admiradores e admiradoras. Os ombros, enfim, são
elevados até as orelhas e deslocados pra frente, numa tentativa vã de mostrar a força
e a virilidade da própria musculatura (CONTIN, 1999, p.120-121).33
33
Tradução da autora: Pur essendo spesso in povere condizioni, il Capitano desidera comunque farsi sempre
passare per un Nobile Cavaliere, anche se solitamente egli ha origini popolari o ambigue e si rivela dunque un
Falso Nobile, oppure può farsi passare al massimo per un Nobile Decaduto. Ma non si da mai per vinto e cerca
di ridisegnare il suo corpo secondo un galateo cavalleresco: copia dai Nobili la posizione a squadra dei piedi,
la drittezza composta delle gambe – anche se spesso gli sfuggono in qualche cedimento di tremore – e
trasforma la postura da ballerino in una postura marziale di soldato sull’“Attenti”. Il Capitano copia ai Nobili
anche l’allungamento del busto verso sinistra rispetto al bacino, però la trasforma in un atteggiamento di
allerta, per essere più pronto ad afferrare la spada in caso di pericolo. Non imita invece l’elevazione nobile del
naso che, nel suo caso, rimane minacciosamente molto abbassato mentre ruota continuamente tutt’intorno alla
ricerca di ammiratori e ammiratrici. Le spalle infine sono sollevate fino all’orecchio ed esposte in avanti nel
tentativo vanno di mostrare la forza e la virilità della propria muscolatura. 228 Como o Capitano imita com seu corpo o corpo do Nobile, na técnica de transdução,
também são utilizados quase os mesmos códigos das práticas espetaculares populares
brasileiras que se utiliza para a máscara imitada.
Máscara física continiana do Capitano
Desenho de Alice Mosanghini
A partir da imagem da atriz Veronica Risatti
Data: janeiro 2010
A postura esguia e elegante a que Contin refere-se “como de bailarino” encontra-se no
maracatu, como dito anteriormente, na postura do rei e da rainha ou na coluna ereta típica do
xaxado. Os pés com abertura de 90 graus ou em ângulo, como diz a pesquisadora, faz parte,
também, de um dos códigos que constituem o golpe de capoeira regional (Mestre Alabama)
chamado “armada de costas” ou “queixada”. Só que o Capitano não possui a tensão nas
extremidades externas dos pés (típica dos Nobili), seus pés são bem plantados no chão, pois
ele se diz um homem de lutas, como os pés do xaxado. A tensão necessária para as pernas da
máscara física do Capitano e do Nobile encontra-se entre os códigos da dança do vassalo do
maracatu, no seu passo que imita a marcha de um cavalo. A torção do busto e do quadril
encontra-se na “armada de costas” da capoeira regional e os ombros e braços pode-se
encontrar nos códigos da dança dos Orixás, no gincado comum a todos os Orixás e na postura
de braços de Iansã. Ver a construção da máscara física do Capitano através de códigos das
práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU. 4.
TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.5 – CAPITANO: 4.5.2 – CAPITANO – dança34.
Como sempre, cada máscara física é composta pela combinação de códigos
específicos, mas se conectam e recebem energias de muitas outras. Com a do Capitano
acontece o mesmo mecanismo, conectando-se com a capoeira, o maracatu, danças de Orixás,
frevo, maculelê e todas as outras práticas espetaculares populares brasileiras.
34
O DVD apresenta um engano na edição da imagem que compõe o fundo do ítem “CAPITANO – dança”,
subdivisão do menu relativo ao CAPITANO: 4.5.2 . A imagem que ficou como “papel de parede” é de uma
máscara de Arlecchino e não do Capitano, como deveria ser. 229 Foto: Léo Azevedo
Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica
Direção/Atuação: Joice Aglae
Data: outubro 2009
Uma das cenas do Festivale Arlecchino Errante/2008, em que incorporava a máscara
do Capitano, tinha como enredo um duelo entre dois Capitani. Meu Capitano (chamado por
Contin de Cocodrilo), cuja estatura é pequena (1,52cm), e um outro muito mais alto (1,90cm)
fazíamos um duelo, simulando uma luta de espadas que, na verdade, era maculelê misturado
com muitas acrobacias. No final, revelava-se que meu Capitano era aprendiz do outro
Capitano (mais velho) e este lhe estava ensinando golpes durante o falso duelo, assim, não
havia um vencedor. Por se tratar da apresentação final do Festival Arlecchino Errante,
integrante do arquivo de imagens da Scuola Sperimentale dell’Attore, e também pelas razões
já relatadas, não possuo imagens da apresentação.
Em janeiro de 2009, a Scuola Sperimentale dell’Attore promoveu o 1º Arlecchino
Errante Invernale, uma versão condensada do Arlecchino Errante, cuja finalidade era de
aprofundamento em uma das máscaras que tinham sido confiadas ao aluno durante o festival
Arlecchino Errante. Para mim, neste estágio aprofundado, foi destinada a máscara do
Capitano. Neste período de uma semana de pesquisa sobre a máscara do Capitano, trabalhei
seguindo todas as indicações de Merisi, mas empregava a técnica de transdução. Durante o
trabalho, apresentávamos as cenas que estavam sendo construídas e estes mestres, ao verem a
cena do Capitano, afirmavam que os movimentos eram “giusti” (justos), como costumava
dizer Merisi. Um dia, apresentei meu monólogo à turma e Merisi, com seu olhar analítico e
pontual, deu-me uma grande satisfação, quando olhou para a turma e disse aos outros alunos:
“Bene... Tutti devono arrivare a questo! \Muito bem... Todos devem chegar neste ponto!”.
230 Para a confirmação da técnica de transdução, ouvir que os movimentos eram exatos,
dentro da perspectiva da commedia dell’arte, foi muito importante, pois eu estava trabalhando
com códigos e, até, movimentações da cena, advindos da cultura popular brasileira, mas
“vistos” por olhos especializados em commedia dell’arte. Esta nova experiência deu-me ainda
mais certeza de que o caminho de acesso e apropriação para dar vida às máscaras dell’arte
continianas a partir das práticas espetaculares populares brasileiras, as quais faziam parte de
meu reservatório/motor, era sólido.
Desta experiência no 1º Arlecchino Errante Invernale, construí o discurso de autoapresentação do Capitano, que mescla italiano espanhol e português e faz parte da AulaDemonstração “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações” – porém, com uma livre
adaptação, pois se trata de um longo discurso.
5.4. ARLECCHINO, O ZANNI ESPERTO
A última máscara deste capítulo está relacionada, diretamente, com o Zanni – para, de
certa forma, “retornar” à primeira máscara dell’arte. Na verdade, trata-se de um Zanni que se
tornou tão famoso, a ponto de alcançar status próprio, sendo, talvez, uma máscara mais
conhecida que a própria commedia dell’arte: é a mascara do Arlecchino.
Arlecchino é uma máscara plena de lendas e suas torrentes são tão (ou mais)
rizomáticas quanto às do Zanni, pois, sendo ele um desdobramento deste servo, já contém as
conexões advindas dele e mais as que se ramificaram através das suas próprias conexões.
A máscara do Zanni foi desaparecendo da cena e deu lugar aos Zanni que se
destacavam, sendo nomeados, não mais por primeiro e segundo Zanni, mas por seus “nomes
próprios”, como é o caso do Brighella, Arlecchino e outros servos. Neste movimento dos
papéis das máscaras dentro da trama e do processo de fama destas, Arlecchino alcançou
sucesso, não somente na Itália, mas na França e em outros países da Europa e fora dela. Dessa
forma, a máscara do Arlecchino foi-se tornando uma espécie de ícone da commedia dell’arte
e ganhando, cada vez mais, espaço e proporções internacionais.
Neste caminho pelo mundo, a máscara do Arlecchino, Arlequim, Herlequin ou
Hellequin também foi sendo rodeada de lendas e misticismos. Se de um lado, Arlecchino é
um Zanni, de outro, é uma máscara emblemática por si só. Fausto Nicolini (1993, p.3), no
livro “Vita di Arlecchino”, faz um estudo aprofundado desta máscara, comentando, inclusive,
231 sobre alguns atores que se dedicaram a ela e reafirmando que se trata de um desdobramento
do Zanni:
Arlecchino (e do mesmo modo Pulcinella) não é, como se acredita normalmente, um
nome genérico originário de um tipo cômico fundamental, mas um dos tantos nomes
específicos indicador das muitas variedades do quarto, entre os quatro tipos cômicos
fundamentais ou máscaras da Commedia dell’arte: o Magnifico (Pantalone), o
Dottore (chamado primeiro de Graziano, depois Baloard ou Balouard, enfim
Balanzón), o primeiro zanni e – habitualmente também o chefe da compagnia – o
segundo zanni.35
Mais adiante, Nicolini mais uma vez comenta da ligação entre Arlecchino e Zanni.
Porém, enfocando o ator que teria incorporado a primeira máscara de Arlecchino, na França, e
que antes, na Itália, era o famoso Zan Ganassa. Trata-se de uma transformação que se realizou
através de uma atitude muito consciente, quanto à troca de nome do ator:
O nome de arte do mais famoso entre os zanni cinquecentista, isto é, do primeiro
que teria assumido na França, com justa discussão da opinião tradicional, nome e
máscara de Arlecchino, foi Zan Ganassa [...], cujo nome de batismo era Alberto
Naselli (NICOLINI,1993, p. 13).36
Naselli já foi citado outras vezes nesta tese. Faz-se necessário dizer que não se está
pretendendo investigar os caminhos do ator, o importante das palavras de Nicolini é a
compreensão de que existiu esta outra possibilidade de desdobramento do Zanni em
Arlecchino. Uma transformação muito consciente de um ator que incorporava a máscara de
Zan Ganassa e, ao chegar à França, queria um nome fácil de ser divulgado e, como já
comentado, os cortejos carnavalescos dos Charivaris eram muito conhecidos, Alberto Naselli,
adotou o famoso nome de Herllequin – uma observação diferente daquelas em que se afirma
que o tempo teria sido “responsável” pelo desaparecimento do nome “Zan”, pois deixa a
entender que a escolha de abstrair o primeiro nome da máscara teria sido um ato totalmente
consciente.
Contin também reafirma o desdobramento de Zanni para Arlecchino, juntamente com
Merisi, no artigo “Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni
35
Tradução da autora: “Arlecchino (e, al modo medésimo, Pulcinella) non é già, come si crede comunemente, un
nome generico originario d’un tipo comico fondamentale, bensì uno dei tanti nomi specifici indicanti una delle
tante varietà del quarto tra i quattro tipi comici fondamentali o maschere della Commedia dell’arte: il
Magnifico (Pantalone), il Dottore (chiamato prima Graziano, poi Baloard o Balouard, infine Balanzón), il
primo zani e – abitualmente anche capocomico – il secondo zani.” 36
Tradução da autora: Il nome d’arte del più famoso tra gli zani cinquecenteschi, cioè del primo che, giusta la
discutibile opinione tradizionale, avrebbe assunto in Francia nome e maschera di Arlecchino, era Zan Ganassa
[...] il suo nome di battesimo era Alberto Naselli. 232 carnevalesche” (In Progetto Sciamano 2002), mas se detém às relações das máscaras, não
adentrando as questões que dizem respeito aos atores. No referido artigo, os autores
relacionam Zanni e Arlecchino (principalmente o segundo) com tradições de antigos
carnavais, não somente da Europa. Na verdade, os pesquisadores tentam fazer um esboço do
complexo emaranhado de crenças, lendas e vertentes da história que se relacionam com a
máscara do Arlecchino.
Na commedia dell’arte, segundo Contin (1999, p.89), a máscara do Arlecchino é mais
seiscentista, apareceu posteriormente à do Zanni - sendo ele um “desdobramento” desta.
Apesar de ser uma derivação do Zanni, Arlecchino o superou, tornando-se uma das máscaras
dell’arte mais conhecidas pelo mundo (juntamente com a do Pulcinella).
Isto porque ele possui uma segunda natureza que é anterior a sua existência na
commedia dell’arte, podendo ser a máscara que tem mais “mistérios” a sua volta. Como visto
anteriormente, Zanni possui conexões diretas com os bufões e Sátiros - todos os servos da
commedia dell’arte carregam, em proporções diversas, estas características. Além disso, foi
visto que a Servetta possui conexões com a tarantatta e Brighella com a “alquimia” da
cozinha, Arlecchino também possui suas próprias conexões:
Arlecchino é um personagem complexo porque não tem somente características
humanas ou grotesco-humanas como vimos para os caracteres precedentes; ele
conserva, também, aspectos de animal, de boneco, de pequeno diabo ou de servidor
do diabo em pessoa (CONTIN, 1999. p.89).37
Esta conexão entre Arlecchino e o mundo das almas vem de uma “raiz literária”,
segundo Beccaria, está registrado nos escritos do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321):
No inferno dantesco, nos deparamos com diabos mais que simpáticos. São diabos
em cena que se comportam como em um tablado de uma representação sacra.
Diabos rumorosos que gritam, berra Minosse, Cerbero urra. São grosseiros e
vulgares. O canto XXI termina com uma prazerosa brincadeira populacha, comum
entre os diabos europeus do medievo; no canto sucessivo os diabos são enganados
(segundo a tradição) por Ciampolo [...] [Os diabos] Têm, mais que nomes,
sobrenomes engraçados que revelam a sua natureza má (Malacoda, Graffiacane), ou
seus aspectos rosnantes e animalescos (Cagnazzo, Draghinazzo) e também cômico,
de máscara ou de duende, come Barbarica, Scarmiglione, Farfarello4 e Alicchino
(que tem a mesma raiz da máscara Arlecchino, cuja origem demoníaca faz jus à
máscara negra, os saltos e os movimentos repentinos que lhe são específicos e o
distingue. Talvez, o bastão [que Arlecchino carrega] seja o mesmo do duende que
anda nos bosques das Tre Venezie (cfr.cap.IV, §7), ou uma variação do bastão,
característico daquele uomo selatico/homem selvagem que, uma vez, víamos guiar
aquele cortejo dos mortos, o qual Tacito faz alusão na Alemanha: uma procissão
37
Tradução da autora: Arlecchino è un personaggio complesso perché non possiede solo caratteristiche umane o
grotesco-umane come abbiamo visto per i precedenti Caratteri; egli conserva anche delle aspetti di animale, di
burattino, di diavoletto o di servitore del diavolo in persona. 233 itinerante de malditos que depois Mille [do ano 1.000] toma um caráter diabólico, a
“família Herlechini” da qual Oderico Vitale fala na sua Storia Eclesiastica,
a.1140).38
O pesquisador Gian Luigi Beccaria tem um profundo estudo sobre nomes, suas
origens e transformações dentro da cultura popular. Na citação acima, faz-se outra visita à
obra de Dante, mas desta vez o foco não está em Ciampolo (como quando a visitamos através
da máscara do Zanni), mas na a aparição de Arlecchino como um dos diabos que foi enganado
por ele. Ainda, Beccaria não só lembra que Arlecchino estava presente na obra de Dante,
como também cita outras duas conexões desta máscara entre as crenças populares: entre os
duendes (região de Veneza) e nos cortejos macabros da Alemanha.
Estes cortejos das almas dos mortos são muito estudados por Contin e Merisi (2002,
p.204). Os dois pesquisadores levam o leitor a um passeio pelas conexões que Arlecchino
possui:
Hellequin pode-se considerar como um dos misteriosos nomes antigos do
Arlecchino, quer dizer, uma das raízes medievais da qual a máscara cinquescentesca
tardia do primeiro Arlecchino teatral extraiu a sua potência misteriosa e, ao mesmo
tempo, a sua persistente renovada atualidade no imaginário coletivo dos séculos
sucessivos.39
Contin e Merisi fazem um resumo das referências mais antigas sobre a Máscara do
Arlecchino passando pelas “bataglie noturne”, “caccia selvaggia”, os cortejos das almas
errantes, as relações com o “Sabba”, citando o profundo estudo "Storia notturna: Una
decifrazione del Sabba” de Carlo Ghinzburg (1989), os escritos de Alessandro Veselofskij,
“Alichino e Aredolesa” (in Giornale Storico della letteratura italiana – XI – anno 1888, p.
325-343), dando destaque, ainda, ao estudo “Storia Ecclesiastica” de Orderico Vitale (1091),
38
Tradução da autora: Nell’inferno dantesco c’imbattiamo in diavolacci tutt’altro che antipatici. Sono diavoli in
scena, che si comportano come sul tavolato d’una sacra reppresentazione. Diavoli rumorosi, che gridano, urla
Minosse, Cerbero sbraita. Sono grossolani e volgari. Il canto XXI si chiudi con una loro compiaciuta manollata
sconcia, consueta tra i diavoli europei del Medioevo; nel canto successivo i diavoli si lasciano ingannare
(secondo tradizione) da Ciampolo [...] Hanno, più che nomi, buffi soprannomi, che rivelano la loro mala natura
(Malacoda, Graffiacane), il loro aspetto digrignante e ferino (Cagnazzo, Draghignazzo) e anche comico, da
maschera o foletto, come Barbarica, Scarmiglione, Farfarello4 e Alichino (che ha la stessa radice della
maschera Arlecchino, della cui origine demoniaca fanno fede la maschera nera, i salti e i movimenti improvvisi
che lo contraddistinguono, e forse il mazzuolo è lo stesso del folletto che si aggira nei boschi delle Tre Venezie
(cfr.cap.IV, §7), o modificazione della clava, prerogativa di quell’uomo selvatico che talvolta vediamo guidare
quel corteo dei morti cui già allude Tacito nella Germania una torma itinerante di maledetti che doppo il Mille
prende un carattere diabolico, la “familia Herlechini” di cui parla Oderico Vitale nella sua Storia Eclesiastica,
a,1140). 39
Tradução da autora: Hellequin si può ormai considerare come uno dei misteriosi nomi antichi di Arlecchino,
ovvero una delle radici medievali da cui poi la maschera tardo-cinquecentesca del primo Arlecchino teatrale ha
tratto la sua potenza misteriosa e al contempo la sua persistente rinnovata atualità nell’immaginario collettivo
dei secoli successivi. 234 também reverenciado por Beccaria, como um dos mais antigos e importantes testemunhos do
trânsito desta máscara. Os estudiosos passeiam pelas diversas variantes que a “famiglia
Herlechini” sofreu, apontando um caminho de desenvolvimento e passagem da máscara do
carnaval ao teatro:
Daquele momento, os testemunhos de vislumbramento de diversas variantes da
familia Herlechini se seguiram pelos séculos sucessivos sofrendo contínuas
mutações: da manada de mortos condenados ao mítico exército de cavaleiros
errantes imortais, ao exército dos diabos e espíritos irreverentes, até as aproximações
trecentistas nas tradições de teatro de praça e arrebatadores cortejos carnavalescos,
dos quais é exemplo típico, o Charivari francês [...] No famoso Roman du Fauvel,
do século XIV141, é descrito um Charivari com um texto acompanhado de
interessantes imagens miniaturas142. Trata-se de uma espécie de violento cortejo, de
sarabanda endiabrada, de festa mascarada e descontrolada que corre pela estrada em
ocasião das contestadas núpcias do terrível Fauvel com Vaine Gloire. Uma espécie
de cortejo nupcial ao inverso, à frente do qual encontramos o próprio Hellequin em
pessoa143. Além das evidentes afinidades com o desenvolvimento das festividades
carnavalescas, o texto descritivo deste Charivari foi muitas vezes analisado e
identificado, também, como ponto de passagem entre os antigos mitos e crenças
populares, nas quais se insere aquelas técnicas teatrais coletivas que, no medievo,
estavam se definindo; técnicas cênicas que teriam portado a gradual formação
daquela “profissão de ator” que a Commedia dell’Arte cinquecentesca, por assim
dizer, consagrou (CONTIN, MERISI, 2002, p.205).40
O texto “Roman du Fauvel” a que Contin e Merisi fazem referência está na
Bibliothèque National de Paris, cuja descrição literária do Charivari e as imagens são muito
interessantes. Nelas, é possível reconhecer Hellequin com um chapéu de asas (como o de
Hermes), guiando o cortejo das almas perdidas. Todas as imagens, segundo os estudiosos, são
interessantes, mas duas delas merecem um olhar diferenciado: na primeira, Hellequin guia
uma charrete que é uma espécie de berço, na qual estão almas de crianças mortas e, na
segunda, ele aparece no meio do cortejo, não mais guiando, mas junto com outras máscaras
demoníacas41.
Estas duas imagens são muito significativas, por que, posterior a este texto, quando
40
Tradução da autora: Da quel momento le testimonianze di avvistamento di diverse varianti della famiglia
Herlechini si susseguono nei secoli successivi subendo continue mutazioni: da masnada di morti dannati, a
mitico esercito di cavalieri erranti oltre il tempo, a orda di diavoli e spiriti irriverenti, fino agli approcci
trecenteschi nele tradizioni di teatro di piazza e di irruenti cortei carnevaleschi di cui è tipico exempio lo
Charivari francese [...] Nel famoso Roman du Fauvel, del XIV secolo141, è descrito uno Charivari con un testo
accompagnat]o da interessanti immagini miniate142. Si trata di una sorta di violento corteo, di sarabanda
indiavolata, di festa mascherata e scatenata che si snoda per le strade in occasione de contestate nozze del
terribile Fauvel con Vaine Gloire. Una sorta di corteo nuziale alla rovescia, a capo del qualle incontriamo
proprio Hellequin in persona143. Oltre alle evidenti affinità con lo sviluppo delle festività carnevalesche, il testo
descrittivo di questo Charivari é stato più volte analizzato e identificato anche come punto di passagio tra gli
antichi miti e credenze popolari, cui si è accenato, e quelle tecniche teatrali collettive che nel medioevo si
andavano definendo; tecniche sceniche che avvrebbero portato alla graduale formazione di quella “professione
d’attore” che la Commedia dell’Arte cinquecentesca ha, per così dire, consacrato. 41
Todas as imagens podem ser vistas, também, no artigo: Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura
in antiche tradizioni carnevalesche. In Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mondo, de
Claudia Contin e Ferruccio Merisi. 235 Arlecchino já tinha se fixado como máscara dell’arte, encontra-se muitas iconografias em que
ele aparece carregando uma cesta cheia de crianças – ideia que está ligada, também, à
fertilidade e à perpetuação da vida, característica própria dos Zanni. Na segunda imagem,
conforme Contin e Merisi, Arlecchino retoma a sua origem selvática, de fauno, de uomo
selvaggio.
Esta ligação de Arlecchino com o mundo dos mortos e dos infernos é muito latente e
toda a ligação com o mundo subterrâneo, própria de qualquer Zanni potencializa-se com as
lendas de Hellequin. Neste sentido, os escritos de Oderico Vitale têm um grande valor para a
construção do imaginário, pois, como afirma Contin, talvez estes escritos sejam a ponte entre
as festividades carnavalescas e a tomada destas pelo teatro, especificamente, pela Commedia
dell’Arte.
Estes festejos guiados por Hellequin têm muita importância, não somente para estudos
teatrais, mas sociológicos e antropológicos. Em determinado momento, segundo Monique
Augras (2009, p.10), quando se trata de uma “bacia semântica” como a cultura (a autora cita
Gilbert Durand), os fatos, sejam eles históricos ou imaginados, acabam por tocar o campo do
sagrado e, então, igualam-se, porque aquilo que é histórico sempre é reinventado e o
imaginado, com o tempo, acaba ganhando contornos reais. O antropólogo brasileiro Ordep
Serra, no seu inquietante estudo “Veredas: Antropologia Infernal” (2002), sobre o imaginário
que circula a atmosfera “infernal”, vai até os cortejos fúnebres dos Charivaris e traz a figura
de Hellequin como protagonista destes cortejos. O autor faz esta busca, também, através os
escritos “Storia Eclesiastica” (1091) de Oderico Vitale. Outros estudos antropológicos e
sociológicos, que não vem ao caso enumerá-los, vão buscar no mito e no sagrado, a resposta e
compreensão de muitos fenômenos.
Fausto Nicolini (1993) pesquisa incessantemente a origem do nome Arlecchino,
contrapondo dados e datas, fazendo um percurso pela obra de Dante, pelas lendas da
Alemanha, Inglaterra, passando por variações dialetais italianas, pela literatura de Giulio
Cesare Croce, pelos cortejos dos Charivaris e pelos escritos de Orderico Vitale. Segundo
Nicolini (1993, p.69), foi através destes cortejos que Herlequin/Hellequin, já na metade de
Duzentos, na França, alcançou o perfil de um tipo de diabo cômico, porém, foi na Itália,
muitos anos depois (mais de 200), que Arlecchino transformou-se em máscara do teatro. Para
Nicolini, é incontestável a ligação destes cortejos fúnebre dos Charivaris franceses, com o
Arlecchino da Commedia dell’Arte. Muitas destas relações fortaleceram-se nas conexões do
Zanni com o universo telúrico e muito também se deve ao fato que na região de Veneto, entre
as suas lendas, já existia um duende com o nome Alichino. Conforme comentário anterior,
236 Nicolini levanta a hipótese do ator que incorporava Zanni (Alberto Naselli, o Zan Ganassa)
ter-se aproveitado da difusão do nome Alecchino/Hellequin/Herlequin, para dar uma forma a
este, uma máscara. Como muitas companhias dell’arte dirigiam-se à França, Arlecchino seria
um nome fácil de ser lembrado em terras francesas e italianas. Nicolini (1993) levanta muitas
considerações até chegar a esta hipótese, terminando por lembrar ao leitor que, mais
importante que o fato, é o mito.
Contin (2008) possui muitos artigos dedicados a esta máscara que a acompanha. No
artigo Perseguindo Arlecchino, traduzido por esta autora, ela conta como a máscara de
Arlecchino lhe foi confiada e como teve que trabalhar, transformando o seu corpo, para
conquistá-la. Nesta transformação, Contin (1999, p.90) foi descobrindo algumas
características desta máscara, como “[...] quando salta é muito leve e “aeroso”, quando retorna
ao chão, ao contrário, é como se fosse esculpido em uma madeira sólida e pesada”42. Através
de pesquisas e seguindo seus mestres, Contin (1999, p.91-93) foi compreendendo e
redesenhando a máscara física do Arlecchino:
Arlecchino é um dos maiores “boas-vidas” da história: se pudesse não fazer nada,
nunca, ele seria muito contente: odeia o trabalho com todas as suas forças e todo o
seu corpo o está dizendo. O calcanhar plantado na frente, não é uma simples mania,
mas uma espécie de “freio” [...] Os dois joelhos não são retos, mas bem dobrados e
dão uma impressão de força e de ser seguro de si [...] a postura base prevê o
baricentro do corpo muito abaixado com as duas pernas posicionadas de modo a
formar uma espécie de losango. As mãos flexionadas para trás e apoiadas com o
pulso contra o quadril [...] testemunham, mais ainda, a atitude de uma pessoa que
não tem nada para fazer [...] os ombros são recuados e abertos, mas os cotovelos são
empurrados para frente, quase protegendo as mãos de qualquer tentação de trabalho.
Segundo um dito popular vêneto-friulano diz-se que quem não tem vontade de fazer
nada “puxa a bunda para trás” [...] Arlecchino já tem o quadril emperrado no ato de
“retirada”.43
De acordo com a descrição, a pesquisadora realça algumas características demoníacas
que, de modo sutil, outras bem visíveis, continuam fazendo parte desta Máscara. Uma delas é
o sorriso que Arlecchino sempre tem estampado no rosto, até mesmo quando tem um acesso
42
Tradução da autora: [...] quando viene tirato verso il l’alto risulta leggero ed “arioso”, quando ricade al
suolo è invece scolpito in un legno secco e pesante. 43
Tradução da autora: Arlecchino è uno dei più grandi “scansafatiche” della storia: se potessi non fare mai
niente lui sarebbe davvero molto contento; odia il lavoro con tutto sé stesso e tutto il suo corpo lo sta indicare. Il
tallone piantato in avanti non è un semplice vezzo, ma una sorte di “freno” [...] Entrambe le ginocchia non sono
diriti, ma bien piegate e danno un’impressione di forza e di capàrbia [...] la postura base prevede il baricentro
del corpo molto abbassato, con le due gambe posizionate in modo da formare una sorta di “losanga”. Le mani
flessi in dietro ed appoggiate con i polsi contro i fianchi [...] testimoniano piuttosto l’atteggiamento di una
persona che non ha nulla da fare [...] le spalle sono arretrate e aperte, ma i gomiti sono spinti molto in avanti,
quasi a proteggere anch’essi le mani da qualunque “tentazione” di lavoro. Secondo un gergo popolare venetofriulano si dice che chi non ha voglia di fare niente “tira il sedere in dietro” [...] Arlecchino ha il sedere ormai
incastrato all’indietro nell’atto della “ritirata.
237 de raiva, porém, neste momento, este sorriso transforma-se em uma espécie de relincho ou
grito de ave de rapina, um resquício de sua ligação com o mundo infernal e suas risadas
diabólicas. Outra característica, diz Contin (1999:94), está no movimento do quadril, que é
encaixado para trás, também, porque nele, deve-se imaginar um rabo, que num processo de
civilização lhe foi cortado, mas que se move como um prolongamento da coluna e que é, na
verdade, a lembrança da sua porção animalesca. Neste mesmo processo de civilização, foi-lhe cortadas as guampas. Em algumas máscaras pode-se ver a marca desta castração, o que
pode parecer uma pequena marca arredondada, como se fosse uma verruga, logo acima de um
dos olhos da máscara é, na verdade, o que restou de um corno podado. Em outras, ainda,
pode-se ver uma pontinha de um pequeno corno que insiste em “brotar” como é o caso da máscara do meu Arlecchino.
Máscara física continiana: Capitano
Desenho de Alice Mosanghini
A partir da imagem da atriz Veronica Risatti
Data: janeiro 2010
Algumas máscaras cujo modelo é “cinquecentesco”, como é o caso da máscara do
Arlecchino Claudia Contin, apresentam, na parte lateral da testa, duas protuberâncias, que são
dois pequenos cornos. Contin sinaliza que, mesmo que lhe tenham cortado suas guampas,
Arlecchino mantém na movimentação da cabeça a lembrança delas, preservando pequenos
“golpes de máscara”, como ela chama (1999, p.96), os quais consistem em movimentos secos
laterais ou curvos em direção ao alto, como se movimentasse os cornos de modo a atacar ou
cutucar, com as suas guampas, o companheiro de cena ou o público.
Então, Arlecchino é um desdobramento do Zanni que contém conexões próprias com o
mundo subterrâneo. Sobre isso, poder-se-ia fazer um longo discurso como foi realizado com a
máscara do Zanni, mas, como diz Contin, este abre a porta do universo das máscaras dell’arte
e compreendendo ele, compreende-se muito de seus desdobramentos. Com isso, para o leitor
que deseja saber mais sobre esta máscara e suas conexões com o mundo infernal, aconselha-se
as leituras específicas de: Il MonDologo di Arlecchino. Spetaccolo comico grotesco per anime
perse (2001), Gli Abitanti di Arlecchinia. Favole didattiche sull’arte dell’attore (1999),
Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte (1995) e Perseguindo Arlecchino.(2008) de
238 Claudia Contin; Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni
carnevalesche. De Claudia Contin e Ferruccio Merisi (2002); Vita di Arlecchino de Fausto
Nicolini (1993); Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte de Allardyce
Nicoll (1980).
Na técnica de transdução, a máscara física do Arlecchino contém para as pernas,
joelhos e pés, uma mistura de capoeira e frevo; para o quadril, frevo; para os braços, cotovelos
e mãos, códigos da postura de Iansã. Ver a construção da máscara física da máscara do
Arlecchino através de códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras no
DVD que acompanha esta tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.6 –
ARLECCHINO: 4.6.2 – ARLECCHINO – dança.
Como sempre, para a movimentação na cena e dar vida a esta máscara, várias outras
práticas espetaculares populares brasileiras são acessadas.
Na Scuola Sperimentale dell’Attore, não participei de nenhum espetáculo
incorporando a máscara de Arlecchino – já havia um Arlecchino no grupo: L’Arlecchino
Claudia Contin - mas a trabalhei com afinco em laboratórios individuais (só) e nos cursos da
Scuola S. A. abertos ao público (em Roma, no Arlecchino Errante, no Arlecchino Errante
Invernale. Os laboratórios individuais, os laboratórios com a professora Veronica Risatti e os
cursos com Claudia e Ferruccio foram muito importantes para entender, corporalmente as
transformações da máscara. Interessante que, com a Servetta, tive o desdobramento da
Cortigiana e, com Zanni, tive o desdobramento do Arlecchino. Ambos muito importantes para
minha aprendizagem dos transcursos fluviais que o imaginário engendra.
A máscara do Arlecchino está no espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e
Imaginações”, que será comentado no Apêndice E desta tese.
Com a máscara do Arlecchino, chega-se a um “nó” importante da rede conectiva que
se forma nesta tese. Pois as conexões entre as máscaras dell’arte e as práticas espetaculares
populares brasileiras começaram quando fiz, pela primeira vez, a máscara do Arlecchino com
a professora Dr.ª Inês Marocco. É significativo e importante que este ciclo da pesquisa (o qual
foi nominado doutorado) retorne, modificado e fortalecido pelas conjecturas realizadas, para o
nó que a impulsionou. Com este movimento, de certa forma espiralado, ganha força e nova
impulsão para recomeçar um novo ciclo e novas conexões.
239 6. CONCLUSÃO
Desde o início desta tese, deixou-se claro que “Esta pesquisa flutua!” e, na medida em
que se foi estruturando o pensamento e revelando os encaminhamentos que constituem os
transcursos fluviais desta pesquisatriz, percebia-se que vadear era o destino a ser seguido.
Legitimada, principalmente, na ideia de imagem/imaginário em Gaston Bachelard e fundada
sobre o preceito de circulação de estados (pensamento estruturado no primeiro Capítulo desta
tese), Bachelard, Deleuze e Guatarri engendram--se, liquidificam-se, liquefazem-se e
ramificam-se, formando uma relação de profundas sutilezas e deixando a possibilidade de
seguir ramificando-se rizomaticamente, sem lançar âncora, mas atracando em portos e orlas
de diversas ilhas para, depois, continuar mar a fora, seguindo correntezas, torrentes e marés.
O Fundo Comum dos Sonhos que, numa dinâmica recíproca com o Fundo Poético
Comum, através de um processo de imaginação, metamorfoseia-se no corpo do ator em
máscaras físicas, foi o processo, aqui, desvelado. A ação processual mostrou uma pesquisatriz
que se deixa levar por impulsos criativos da atitude lúdica, buscando vivenciar o jogo-festaritual em cada prática espetacular popular, seja italiana, ou brasileira, comportando genes
vindouros de uma outra esfera - de uma ancestralidade festiva.
Porém, para elucidar tais transcursos, foi necessário adotar critérios para definir as
práticas espetaculares que constituíram o corpo desta tese, pois, do contrário, uma imensa
torrente de conectividades apresentar-se-ia em desdobramentos múltiplos e, se a porção atriz
comovida pelo impulso criativo da atitude lúdica consegue dar conta de tais conectividades, a
parte que deve desdobrar-se na explicação e estruturação do pensamento formador de tais
conectividades não acompanharia tamanha a velocidade e as ramificações rizomáticas no
tempo que se fazia necessário.
Nesta tese, foram reveladas algumas destas conectividades, uma vez que, como dito, a
pesquisa poderia estender-se por muitas outras manifestações espetaculares populares
brasileiras e máscaras dell’arte. Todavia, devido ao esquema adotado, as práticas elencadas
foram a consequência de experiências adquiridas, tanto nas práticas espetaculares populares
brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Capoeira,
Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás) quanto nas Máscaras dell’arte (Zanni,
Brighella, Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Nobile/Innamorata, Pantalone e Capitano). Foram
experiências vivificadas pela ação do imaginário no próprio corpo - em atitude lúdica e
240 imaginação – onde as relações imagéticas possuem grande importância e suas inúmeras
articulações foram e são as fontes de comoção para o acesso às máscaras dell’arte.
As dinâmicas conectivas dialógicas entre a commedia dell’arte e as manifestações
espetaculares populares brasileiras foram estabelecendo-se na medida em que trabalhava as
máscaras dell’arte. Como dito muitas vezes, a musculatura requeria, nos circuitos musculares
conhecidos, a força propulsora e energética que necessitava para acessar e apropriar-se das
máscaras dell’arte, buscando, naquilo que já estava inerente, um caminho para “o novo”.
Sem elencar justificativas e valendo-se da prática realizada foi possível delinear os
campos de atuação e, se não foi possível adentrar todas as principais máscaras da commedia
dell’arte, muito menos um número maior de práticas espetaculares populares brasileiras,
procurou-se encaminhar o leitor às pesquisas mais específicas de tais campos e deixaram-se
muitas questões para vadiagens além desta tese e/ou como encaminhamentos para pesquisas
posteriores.
No transcurso realizado, na medida em que se avançou em direção às máscaras
dell’arte, o Bufão ganhou importante posição - um nó determinante dentro da rede conectiva.
Para compreender as máscaras dell’arte, seus universos e conexões com a tríade de Huizinga,
jogo-festa-ritual, fez-se necessário compreender, também, o universo carnavalesco, partindo
dos rituais de fertilidade até os cortejos carnavalescos: reino do Bufão por excelência. Seria
impossível apropriar-se de modo integral e intenso das máscaras dell’arte sem vadear e vadiar
no oceano bufonesco.
Assim, o Bufão auxiliou na compreensão da relação entre mito dionisíaco e máscaras
dell’arte como também da relação destas máscaras com a ancestralidade festiva, assinalada
por Oliveira, advinda do mito e que se emana em festa. Esta ancestralidade festiva foi
“perseguida” nas (e através das) práticas espetaculares populares brasileiras, intentando
translocar e transduzir tal emanação, através da conjunção e geminação de circuitos
musculares e energéticos para as máscaras dell’arte.
Porém, foi necessário, num primeiro momento, dar conta das teorias que poderiam
elucidar estes mecanismos imaginativos. Tal tentativa de esclarecimento mostrou-se um nó
importante, pois, a partir do entendimento do funcionamento de tais engendros, foi possível
passar e compreender o segundo momento da tese – o Bufão. Neste segundo passo a caminho
das máscaras dell’arte, a técnica de Bufão foi criada e, com a compreensão dos engendros
anteriores, foi possível entender a importância da imagem para esta técnica. Nas
241 encruzilhadas do universo bufonesco, encontrou-se o carnaval e esta conexão do Bufão levoume ao encontro com a festa carnavalesca, as festividades e as práticas espetaculares populares
brasileiras. A partir desse encontro entre Bufão e Brasil, foi possível estabelecer a conexão
das máscaras dell’arte e as práticas espetaculares populares brasileiras. É como se o Bufão
fosse/é, de certa forma, o elo conectivo (ou cabo conector) das duas práticas. Pois, visto que o
Bufão é o grande representante e incorporador da força popular, assinalada por Backthin, ele
consegue, por sua grande capacidade de metamorfose, transformação e desdobramento,
estender- -se até as práticas espetaculares populares que integram esta pesquisa e alimentar-se
desta força ancestral e festiva.
Com a compreensão da intensa relação do bufão com o carnaval, a festa e as máscaras
dell’arte, fez-se um rápido passeio pelas manifestações espetaculares populares brasileiras
que integram a pesquisa, sinalizando algumas das possíveis conexões entre tais práticas
espetaculares e estas. A partir desta compreensão, adentrou--se o universo das máscaras
dell’arte.
Na construção do panorama das máscaras, a visão que predomina é a da técnica
continiana. No breve horizonte realizado, tentou-se mostrar os encaminhamentos de acesso e
apropriação destas máscaras, apontando a possibilidade destas ganharem vida através de
códigos advindos das manifestações espetaculares populares brasileiras, o que consiste nas
técnicas de translocação e transdução.
Percebendo que ainda se fazia necessária alguma atenção aos resultados práticos, foi
construído um apêndice no qual estão contidos os roteiros do espetáculo realizado na Scuola
Sperimentale dell’Attore, cuja direção é de Claudia Contin e Ferruccio Merisi, “Papaietta
Poliglota”, e da Aula-espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginação: Máscaras
dell’Arte e Cultura Popular Brasileira”. Com a mesma finalidade do Apêndice E, a tese
contém outro “apoio à compreensão dos transcursos realizados”, um DVD com imagens dos
espetáculos de Bufão, da técnica de translocação e das máscaras dell’arte com a técnica de
transdução. Não se trata dos espetáculos e aula-demonstração propriamente ditos, mas de
imagens destes.
Com o DVD, a tese tenta apresentar, de forma mais visível, algumas das resultantes
desta pesquisa, chegando a um ambívio nó que intenta ser probante das técnicas aqui expostas
e propostas como um possível acesso às máscaras dell’arte.
242 Quando se diz que o DVD é uma apresentação das resultantes desta pesquisa, não se
está afirmando que é uma finalização da mesma, mas sim a representação do arremate de um
pensamento que intenta elucidá-la - um delineamento, não um limite. O DVD é um nó em
cruzado, que testemunha as técnicas constitutivas do corpo/transcurso desta tese e
pesquisatriz, uma tentativa de representação da vasta rede conectiva de um imaginário líquido
que transcende barreiras culturais, espaciais e temporais.
De certa forma, é este aluvião subjacente do imaginário que esta pesquisatriz intenta
emergir e, a partir dele, estruturar técnicas para a cena. Talvez os transcursos realizados
tenham ido, às vezes, por correntezas turbulentas e de difícil navegação, mas, de vez em
quando, concordando com Beccaria (1995, p.6), é necessário aventurar-se por caminhos que
não se conhece muito bem, agregando dados e deixando levar-se por estes:
É verdade que tanta dispersão pareceria desencorajar cada iniciativa, e nunca somos
capazes de estabelecer comparações sincrônicas. [...] Mas em âmbitos de pesquisas
como a nossa (âmbitos, frequentemente, cobertos daquele véu de mistério, que
envolve caminhos não mais construíveis e percorríveis, que envolve as crenças que
têm seguido as pegadas dos homens, as quais o tempo apagou e a poeira dispersa
destas não permite avançar em hipóteses plausíveis relativas a nascimento, sorte e
precisos trajetos de difusão), não resta mais que reunir os espaçados testemunhos
convergentes, úteis para fixar núcleos de grandes latitudes e antiguidades que, com
variantes e ampliamentos, permanecem inalterados ao longo dos séculos, com o
objetivo de indicar conexões não vagas, mas concretíssimas, entre culturas diversas
e longevas.1
Se foi difícil tentar explicar um processo que se move e, com isso, me comove,
também é difícil fazer considerações finais, sabendo que aqui não é a finalização. Acredito
que, para pesquisar, necessita-se de um espírito aventureiro e o desta pesquisatriz, conforme
anunciado muitas vezes anteriormente, afirma que este estudo ainda me levará a muitos
mares, a conhecer novos horizontes e universos - a viagem não terá fim com esta tese. A
pesquisa continuará a flutuar em outros mares, oceanos, redescobrir-se-á em possibilidades e
novos desdobramentos.
1
È vero che tanta dispersione sembrerebbe scoraggiare ogni iniziativa, e non si è mai in grado di stabilire
comparazioni sincroniche. [...] Ma in ambiti di ricerca come la nostra (ambiti spesso coperti da quel velo di
mistero, che avvolge cammini non piú costruibili e percorribili, che avvolge le credenze che hanno seguito le
orme degli uomini che il tempo ha cancellato, e il polverio disperso di quelle non consente piú di avanzare
ipotesi plausibili relative nascita, fortuna, e precisi tragitti di diffusione) non resta che adunare le sparse
testimonianze convergenti utili a fissare dei nuclei di grande latitudine e antichità che. Con varianti e
ampliamenti, perdurano inalterati nel corso dei secoli, allo scopo di indicare conessione non vaghe ma
concretissime tra culture diversi e lontane. 243 Com isso, as declarações de finalização da tese, são, na verdade, de recomeço de um
novo lançar-se. Mais uma volta da espiral foi conhecida, mas ela continua a espiralar-se e,
sabe-se que flutuar, navegar, vaguear, vadiar e devanear, é preciso, é necessário e é
imprescindível. Esta pesquisatriz segue ao sabor do vento e das águas que carregam a sua
casa/jangada.
244
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262
APÊNDICE A – FATO(S) DO BRASIL
FATO(S) DO BRASIL - UMA SÁTIRA DA HISTÓRIA DO BRASIL
Texto e Direção: Joice Aglae
Temporada do espetáculo: setembro e outubro \2006 – Teatro Gregório de Mattos –
SSA\BA.
Elenco:
Ator
Andréa Rabello
Diana Ramos
Érico José
Fabiana Monçalu
Flávia Gaudêncio
Jorge Baia
Maryvonne Coutrot
Bufão
Da Banguela
Tumor de Feijão
Chupa Culus
Garrancho
Varicusseli
Rhala-Cu-Rei
Petitcagô
O texto não está na sua íntegra, são apenas fragmentos das cenas citadas.
______________________________________________________________________
Cena da chegada da corte portuguesa no Brasil
VARICUSSELI: (Gesto pedindo atenção) Olha a realeza aí gente! Chora cavaco!
Hrala-Currei e Petitcagô tomam as posições de Rei e Rainha, desfilando, o Coro os
acompanha cantando e fazendo as reverências.
CORO: Ê Bahiana! Ê, Ê, Ê baiana. Baianinha.1 (dançam e sambam até chegarem à frente do
palco).
HRALA-CU-REI: Olha o breque! (Todos param).
CORO: Um tempo, página infeliz da nossa história, paisagem desbotada na memória, de
nossas novas gerações. Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era
subtraída2... (Quando recitam “subtraída”, o coro para e somente a realeza continua).
PETITCAGÔ e HRALA-CU-REI: “ (...) em tenebrosas transações”3.
CORO: Subtraída???? (Se coloca em posição oposta a deles).
CORO: Subtraída!? (Indagando à realeza).
PETITCAGÔ: Ma terre a de palmiers où chant un oiseau, les oiseaux que chantent par ici,
ne chantent pas comme là bà!
HRALA-CU-REI: Fala direito!
1
Citação de um fragmento extraído da letra da música “Ê Bahiana” de autoria de Fabrício da Silva, Bahianinho,
Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio.
2
Citação de um fragmento extraído da letra da música “Vai Passar” de autoria de Francis Hime e Chico
Buarque.
3
Idem.
263
PETITCAGÔ: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não
gorjeiam como lá (...).4
CORO: Minha terra com palmeiras você veio me roubar! E sabes que aqui gotejam, minas de
ouro pra levar!5
HRALA-CU-REI: Minha terra com palmeiras é o que vim pegar! O ouro que aqui roubo
serve pra m’enricar!6
______________________________________________________________________
Cena: chegada do Bispo Sardinha no Brasil
HRALA-CU-REI E PETITCAGÔ: Vindo diretamente de Portugal!
PETITCAGÔ: Para.
HRALA-CU-REI: Redimir.
PETITCAGÔ: Para.
HRALA-CU-REI: Absolver.
PETITCAGÔ: Para.
HRALA-CU-REI: Catequizar.
PETITCAGÔ: Para.
HRALA-CU-REI: Ajudar a roubar.
HRALA-CU-REI e PETITCAGÔ: Bispo Sardinha!
Os dois fazem a figura “da capela”, Da Banguela fica no centro da “capela”, enquanto os
outros prestam reverência. Depois, voltam o rosto para o público: cantam.
HRALA-CU-REI: Como canta Gilberto Gil “Primeira missa, primeiro índio abatido
também!”.7
CORO: Ah ah ah ah! Que deus deu! Ô ô ô ! Que Deus dá!8 A A Aaaméééém! (todos se
ajoelham).
Da Banguela dá um passo à frente cantando.
4
Citação de um fragmento extraído da poesia “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias.
Paródia de um fragmento extraído da poesia “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias (Fragmento: Minha terra
tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá [...].).
6
Exílio” de Gonçalves Dias. (Fragmento: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui
gorjeiam não gorjeiam como lá [...].).
7
Citação de um fragmento da letra da música “Toda Menina Baiana” de autoria de Gilberto Gil.
8
Idem.
5
264
DA BANGUELA: Rompemus os culus que comemus!
CORO: Também!
________________________________________________________________
Cena: Dom Pedro II narra as mudanças que foram realizadas no seu mandato.
CHUPA CULUS: Dom Pedrinho II foi coroado! (Depois de coroá-lo, bate em Tumor e segue
com o Coro).
CORO: Hehehehehehehehe!!! (Como torcida de futebol, vão até o fundo da sala).
TUMOR DE FEIJÃO: (Levantando e falando para o público) Em 1850, O Brasil teve
progresso.
CORO: (O coro percebe que Tumor está falando, param e seguem caminhando lentamente,
em direção a Tumor – em tom de xingamento) Progresso? Vai tomar no seu café!
TUMOR DE FEIJÃO: O tráfico negreiro foi proibido!
CORO: Proibido? Vai tomar no seu café! (Se aproxima de Tumor - mais bravo).
TUMOR DE FEIJÃO: O Paraguai declarou guerra contra o Brasil!
CORO: Guerra! Vai tomar no seu café! (Se aproxima de Tumor - mais bravo).
TUMOR DE FEIJÃO: Primeiro o Ventre livre... Depois, a abolição (encolhido de medo).
CORO: Abolição? Vai tomar no seu... cú! (Saltam para cima de Tumor de Feijão, batem e
seguram-no pela cintura, todos olham para frente e exclamam).
265
APÊNDICE B – A ORAÇÃO
CENA QUE ORIGINOU: A PRECE
Texto construído a partir de poemas de Antoin Artaud e Augusto dos Anjos.
Texto da cena experimento que originou o atual scketch “A ORAÇÃO”
Autoria: Joice Aglae.
Direção e Interpretação: Joice Aglae – Bufão: Murcia.
Me dá o teu cérebro.
Me dá o teu crânio em chamas!
Me dá o teu crânio em brasa, em carbono.
No banquete em que me sirvo, me esbaldo.
No banquete em que me sirvo, me esvaio...
Escorro na tua boca e deixo fiapos de minha carne entre seus dentes.
E deslizo para me banhar nos ácidos do teu estômago.
Depois me alojo no âmago do teu ventre...
Nas paredes do teu intestino...
Nas pregas do teu cú...
No teu saco escrotal ou... entre os teus lábios...
E ali eu arranho... coço... e espero que,
Num peido flamejante ou num jato de gozo
Me lance outra vez no espaço... onde pairo outra vez no ar...
Infecto o espaço e penetro no teu pulmão...
No teu cérebro... no teu crânio...
Me dá o teu crânio em chamas, em brasa, em cinzas.
Queimado de tanto pensar... de tanto pensar que pensa.
Me dá o teu crânio em carvão, em carbono, em gás carbônico... em gás...
Em gases... gases cerebrais... peidos cerebrais...
Pensamentos produzidos pela tua merda cinzenta
Merda cinzenta... merda... merda e vermes...
Vermes e ser humano... ser humano é verme
Verme é ser humano... ser humano...
Ser... humano? Ser ou não ser? O que? Humano?
Ser humano... verme!
266
No banquete em que me sirvo... eu me sirvo... de você!
SCKETCH TEATRAL
A ORAÇÃO
Texto construído a partir de poemas de Antoin Artaud e Augusto dos Anjos.
Autoria: Joice Aglae.
Direção e Interpretação: Joice Aglae – Bufão: Murcia.
Canto:
Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá
Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá
Eilá Eilá Eilá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láá!
Bonjour mes enfants...
Je suis venu pour vouz racconté une histoire...
La vostra storia!
Allors... Je comence del debut... si percché l’inizio é proprio um bom começo
Je vous racconterait tout...
Non vi preocupate che vi parlerò tutto. Vou abrir a minha boca... vou por a boca no
trombone... (ir para a cesta para ascender a vela)
Je commence...
Au debut a été la nuite profonde... si ... Proprio all’inizio... sollo il buio... as trevas..
Et aprés... (tirar a vela acesa)
NO!!! Je n’aime pas comment cette stoire comença...
Non me piase per niente questo inizio
Ma não gosto mermo!
Je recomence... (pegar o copo com querosene)
Allors, toutt a comencé avec une grande explosion
A explosão foi enorme... Ma proprio grande la splosione
Grande très grand explosion.. (riso)... une très grand (fogo) explosion… (riso)...
Et comme ça la vie a commencé. (ir para a cesta e largar a vela e o copo, do lado da cesta)
Si. Semplice cosí la vita a cominciato.
BUM... e a vida se criou!
BUM e la vie... (riso)...
267
C’est plus poetique come ça... com mais poesia è molto più bello!... eu gosto dessa poética da
criação
(ir para a cesta e pegar os fogos de artifício)
Aprés, la explosion... BUM - une cellule (pegar um fogo de artifício), autre cellule (pegar um
fogo de artifício) et autre cellule (pegar um fogo de artifício) ... e comme ça ... avec c’est
rendevouz delle cellule... l’être humaine... (levantar os fogos de artifício) ... (riso)
C’est la qu’est plus drôle ... é che.. l’être humaine... lui pense... (riso e colocando os fogos de
artifício no lugar)
Um ser humano pensante... (riso) l’essere umano che pensa (riso)
C’est três dröle ça.... (riso)
Bien... après ... l’être humanie á grandit – cresceu vu... ma é cresciuto tanto.. ma tanto
que pendant sont percour dan sa propre stoire ... l’être humaine si è perdu...
perso nell buio... si é perdu dans la nuit... ... dans le tènebres... cel la d’autre debut....
... no no no no no autre fois les ténèbres e la stoire della luce... (pegar a vela e caxixis)
c’est pas possible... … toujours ont retour, sempre si ritorna sempre all tizio della luce... ma
NON... toujour on ce rejouiandre avec le Monsier della lumiére... le electricien du monde... ô
da luz... je t’appelle...
ô da luz... ô da, ô da, ô da da da da da (ascender os fogos)
ô da, ô da, ô da da da da da, da da da da da da da...
Ahhhhh divina... ai divina, ai ai divina; ai divina, ai ai divina
A nós descei divina luz ... A nós descei divina luz
A nós descei, A nós descei, A nós descei descei descei descei....
... (cantar e dançar até os fogos se apagarem)
Il ne decendre pas... ma non scendi perché... pour qua¿ (largar o caxixi e a vela do lado da
cesta.
Não desce porque sabe que aqui ta uma bagunça.... (pegar o pote para o sal)
Il sait que ici c’est la foole un casino enorme
E bien je vous farait une declaration très importante. (colocar o pote do sal no chão)
L’être humaine soufre... il sofre la poverità... (procurar sal) la peuvraité espirituale... e
quelques une aussi la peuvraité materiale... e ancor quelche foil’essere umano a une ame vide,
sans feu... una ânima vuota... fair l’argent - lavoro e sudore - travaille et souer, il sent le sel
della vie et plusier fois lui stesso é lo sel della vie... (deixar cair o sal dentro do pote)
lo sel et l’homme ... lo sel vien de la mére ... lo sel vien dell’homme aussi...
268
l’homme est la terra, l’homme é la mére... L’homme porte l’eau, terre, air e feu... lui é fait des
elements della nature... ma si est perdú... (finalizar a caída do sal)
e bien... j’essai de vouz aidé...
(rituaile du sel)
Sel: carrière de l’âme.
Dans la mère si crée
Su le soleil si fait in pierre
“pierre chant le destin!”
Destin si devvelope dans le temps – grand juge e consiglière
Destin\temps transformateur...
Sel: carrière de l’âme.
Que se seuleve in müre
Que rendre fort e est forteresse
Sel du munde: en corps, viand, sang, larme e sueur
Sel de la vie
La Vie en chemin dans cet nonde.
Ou trouve nid dans le coeur du château fort - salpêtre
(ir na direção do público com o sal)
Être de sel e vie...
Être de sel e force...
Protege de quelque mal prend viguer
Dans le rende-vous avec il vent
Rejouendre son chemin de aire e sable – saule.
Dans le rende-vouz avec la plui
Rejouendre sa liquefetion
Et en tempête (jogar o sal para o ar) de joi
Échape au son destin la mère
- saline du monde - (jogar o sal para chão nos pés do público)
Reprendre ta vie averse et
Recomence en nouveau cycle...
En nouveau cycle...
La ba au lo cerveaux ne va pas pour quoi il a peur de ne pas reucir
La ba au ce que est espirituel c’est plus importent que le materiale...
La ba ou la vie sempli il y a um valeur...
269
... vouz avez tout… seuf la notion della semplicitè (levar a tigela do sal para ofundo, do lado
da cesta)
Vous avez perdu le sens della simplicitè della vie... au tour de vouz seulment la tecnologie, la
comoditè e la solitude... Le monde... le monde même avec le grand population ça ressemble
un lieu inabité... mentenait vouz étes tout seule...
je vous dit que l’homme, est devenu un jeu de lui mêmme... et en plus il y quelques autrê
que s’amusent beacoup avec lês être humaine... ses tragedie e commedie
Je doit prendre ma responsabilité ... moi aussi, je trouve très amusent voir votre vie... vous etè
shouaite...
et pour ça, just par ce que vous éte shouait, haujourd’oui vous aussi peuvont essaye quelques
emotion diverses...
c’est la que vous verait ici sont des criature très speciaux, sont quelque chose de teuchent, de
comovent, ils ont la propriete de rentré dans l’ame e trouve pas seulement vaccum eux
treuvent le coeur, les sentiment eux soufflent la vie autre foi nelle ame.... allors que...
il feut se prepare car on arrive... et vous rirait, peu-t-ètre plurait, peu-t-ètre reflescirait e …
penserait nel sal, ne la vie ... nel être humaine.....
Profitez vouz... (coçar a cabeça)
Est trop tard... je doit partir... ma je voudrais porte quelque recordation de vouz
(procurar as minhocas)
Donne-moi votre cerveaux.... Donne-moi votre cerveaux (tirar algumas minhocas da cabeça)
Donne-moi votre cerveau brillant, en lumiére...
votre cerveaux en feu, en braise, in cendre...
donne-moi votre serveaux en feu, en carbone...
Donnez-moi votre cerveaux brûle
Donnez moi votre cerveux brûle de trop pense
De pensé que pense. (tirar algumas minhocas da cabeça)
Moi un peuvre bouffon, fils du soufre et du carbone
Moi que fait la digestion de ce la que est indigerible...
Je rentre dans ton corpos comme aire, je suis le envahisseur de tes viscère
Je me prommene dans ton corps (pegar o copo com querosene)...
Je rentre dans ton stomac et intestins,
Je fait la fête ...(riso)... feu pirotecnique... ...(riso)...
...gaze flatos flamejantes... ...(riso)... ( cuspir fogo)
Sens que vouz se rend conte je vouz connêtre dans le votre intimité... ton trü de cul (colocar
vela e copo do lado da cesta)
270
Je vouz conné jusqu’au fond, au contraire... (tirar algumas minhocas do corpo)
“antropofagique” en nature,
Je vouz mange pour rendre-moi fort... je vouz mangé pour vous rendre fort
Je vouz mange pour rendre-moi fort ... et vous jete pour vous rendre fort...
Aussi lês merdes servont de engrais...
Et du engrais ça peut revenir la vite... autre fois
Vie et mort que se rejoundrent atravers di moi...
tout se rejouendre en moi... cet la que est ètè, cet la que est et cet la que serait...
Moi fils du soufre et du carbone ...
Bessa me!
Crachat sur le lèvre que te fait des bisoux!!!
Des bisoux….. bisoux
Excusez-mois se j’ai parlait quelque chose que n’a pás été avec votre “d’accord”…
(guardar as coisas dentro da cesta)
mai... Moi… je suis un peuvre bouffon...
um peuvre bouffon que parte sens auqun recordation de vouz...
mai bien a éte très agreable vouz visité...
Merci de votre companie... vouz éte shouait... (colocar a cesta no pescoço)
Je vouz salut !!!! e Buon courage dans la vie.. (riso)
Vouz aurait besoain...
(Partir)
Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá
Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá
Eilá Eilá Eilá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láá!
Buon courage
(Partir)
271
APÊNDICE C – “ALLA RICERCA DI UN ZANNI”
Livre adaptação da versão italiana (tradução: L. Lotti: Guaraldi, 1992) do texto dos personagens
João Grilo e Chicó, da peça “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna.
Eccomi qua, in questo mondo ci sono di storie sai... credi che una donna vuole
benedire il suo can per vedere se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so
come è questa gente, hé! Ma non c’è niente di strano. Io stesso ho avuto un cavallo
benedetto.
Io ho avuto davvero un cavallo benedetto, cosa posso farci? Vuoi che menta? Vuoi
che dica che non l’ho avuto... Non ha fidúcia? Il signore Antonio Martino è qua? Lui può
provare quello che dico... è vero che il signore Antonio Martino è morto tre anni fa... Ma
era vivo quando ho avuto la bestia! ... Ho avuto la bestia è modo di dire, non è che io sono
stato a partorire il cavallo... no, io no. Ma dal modo in cui vanno le cose, oh..., io non mi
stupisco più di niente. Sì... nella settimana scorsa una Donna ne ha avuto uno nella sierra
di Araripe, dalle parti di Cearà...
Ma racconto come è andata con il mio cavallo. Ecco, è stata una vecchia (n’é) che
me l’ha venduto a basso prezzo (n’é mi figlio), sì, perché cambiava casa . Mi raccomandò
di avere molta cura di lui perché era un cavallo benedetto (n’é mi figlio). E doveva essere
davvero perché io un cavallo così buono non l’avevo mai visto.
Una volta abbiamo corso dietro una vitella dalle sei del mattino alle sei della sera
senza mai fermarci, io a cavalo lui a piedi. Sono riuscito a prendere la vitella che era già
notte e quando ho finito il lavoro mi sono guardato attorno... non conoscevo il luogo dove
eravamo. Allora ho preso una verga che era lì e via, per il sentiero, frustando il bue... Sì,
erano una vitella e un bue e io correvo dietro a tutte le due in una volta, e essi correvano
insieme per tempo senza separarsi.. come mai questo è successo, non lo so! So soltanto che
è stato così.
Io poi sono uscito da Paraíba spingendo bue e vitella .... improvvisamente ho
avvistato una città, ho chiesto ad un uomo dov’ero e lui mi disse che ero a Sergipe e ... Sì
io ero corso fin là con il mio cavallo, segno che era benedetto o no! Come ho attraversato
il rio San Francisco, non lo so! So soltanto che è stato così! Può darsi che in quello
momento il fiume fosse secco perché non mi ricordo di averlo attraversato... e in tutto
questo tempo il cavallo lì senza riclamare niente...
271
272
Canne benedetto, cavallo benedetto sono tutte cose che ho già visto ... io non mi
stupisco più di niente....
Ma vedi... a questo punto credo che il cane della donna sia morto...Sì... è compiuto
il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro
destino sulla terra, con quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò che vive in un
sol gruppo di condanati, perché tutto ciò che vive muore!
“Tutto ciò che vive muore!” Bello! Questo ho sentito dire da un parroco, nel
giorno in cui il mio Pirarucu è morto. Mio è un modo di dire, perché per dire la verità,
penso che ero io che ero suo... Fu quando ero in Amazzonia. Avevo legato una corda
all’arpione, la corda dell’arpione attorno al mio corpo tanto non poter muovere le
braccia. Quando ho afferrato il pesce, lui mi ha datto uno stattone così forte, che mi sono
cadutto nel fiume... è proprio così, il pesce mi ha pescato e, per farla corta, mi ha
trascinato lungo il fiume per tre giorni e tre notti... io non sentivo fame, no, ma una
dannata voglia di fumare...si! Quello che è più buffo è che lui mi ha lasciato prima di
morire, proprio all’entrata di un paesino, in modo che io mi potessi salvare. Il giorno dopo
ci fu il suo funerale e io non ho più dimenticato quello che il prete disse ai bordi della
fossa... Ma non me ricordo però come ho fatto per salvarmi... Ah sí, ho alzato un braccio,
finché una lavandaia mi ha avvistato e cosí sono corsi a liberarmi. Ecco! Si... è vero che
stavo con le braccia legate... ma, beh, nell’ora del bisogno c’è un rimedio per tutto. Come
sono stato salvo... Non lo so! So soltanto che è stato così!
E poi... Io non mi stupisco più di niente... Ad esempio di fantasmi di cane. Esistono,
esistono... io ne ho già incontrato uno. Là dove passa il Rio di Cosme Pinto, mi avevano
detto che là si vedono di fantasmi, ma non sapevo si trattasse di fantasmi di cane. Beh, se
sia posto di fantasmi non lo so, so che quando stavo attraversando il fiume mi è caduta
nell’acqua una moeda de dez. Io stavo lì con il mio cane e davo già persa la moneta,
quando ho visto che lui, il cane, stava confabulando con un altro. All’improvviso si tuffa e
mi raporta i soldi! Vado a verificare e trovo solo duas de cinco?! Beh, forse le alme
dell’aldilà hanno moedas trocadas? Non lo so! So soltanto che è stato così!
Ma queste cose dell’ aldilà poi... Una volta un grande amico... Povero João,
povero Giovanni, poreto Zanni! Così giallo, così svergognato... è stato morto... Ha
compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio
del nostro strano cammino sulla terra, quel fatto senza spiegazioni che eguaglia tutto ciò
che vive in un sol mazzo di condannati, perché tutto ciò che vive muore! ... É morto
davanti a me da un Cangaceiro... una morte tragica... Io, dopo piangere tantissimo, sono
272
273
stato in chiesa a pregare per l’anima di João, il Grilo più intelligente del mondo, e poi
l’ho portato in maca all cimiterio, per il funerale...lui però era venuto così pesante che mi
sono fermato per riposarmi un po’... in questo momento lui ha cominciato a parlare con
me... Madonna mia! Volevo scappare ma avevo l’impressione di aver perso le gambe, e
poi non era mica fantasma, era proprio lui...risuscitato grazie alla Madonna... Sì, proprio
lei... la Compassionevole...
Credo ... Credo, però... non lo so! So soltanto che è stato così!
E poi dal modo in cui vanno le cose ... io non mi stupisco più di niente...
273
274
APÊNDICE D – RELATÓRIO DE ATIVIDADES
Relação (técnica) das atividades realizadas durante o estágio na Scuola Sperimentale
dell’Attore.
Curso: Maschere fisiche della Commedia dell’Arte
Ministrantes: Ferruccio Merisi e Claudia Contin
Local: Teatro del Lido di Ostia (Roma)
Período: 03 a 06/12/2007 - 24H/A
Conteúdo: As Máscaras físicas da Commedia Dell’Arte: Zanni, Pantalone, Servetta,
Capitano, Pulccinella, Nobili, Ballanzone e Arlecchino.
Laboratório de Pesquisa (Prático e Teorico): “Carattere Femminili della Commedia
dell’Arte”.
Ministrantes: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Local: Scuola Sperimentale dell'Attore - Itália
Período: 08 a 18/01/2008
Conteúdo: Le Servette, Le Amorose, Le Cortigiane, Prime e Seconda Donne di Compagnia,
Amor Sacro e Amor Profano, Cantatrici, Danzatrici, Suonatrici, Mezzane, Ruffiane e
Curatrici, L’Amor nel Gioco e nella Poesia.
60 H/A:
30 horas de laboratório prático;
20 horas de ensaios e dramaturgia cênica;
10 horas de treinamento e atividades de divulgação pública
Conferência Espetáculo “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte”
Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin
Atividade: Atriz e Colaboradora
Local: Auditorium Comunale di Roveredo in Piano
Data: 18/01/08
Conferência Espetáculo “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte”
Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin
Atividade: Atriz e Colaboradora
Local: Sala Arlecchino della Scuola Sperimentale dell’Attore - Pordenone (PN - IT)
Data: 20/01/08
Laboratório de Pesquisa (Prático-Teórico) “Carattere di Pantalone”
Ministrantes: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone
Período: 26/01/2008 a 02/02/2008
Conteúdo: Il Vecchio Avaro, L’Amor Senza Età, L’a Figura dell’Ebreo Errante, Senilità,
Fecondità, Caparbietà, Saggezza, Richezza, Sublimazione, Rapporti com le Parate degli
Antichi Carnevali Montani Europei.
Atividades: Atriz e Colaboradora
Colaboradora: Encontros com Danças Populares Brasileiras - maculelê, frevo e capoeira.
61 H/A:
21 horas de laboratório prático
21 horas de training do personagem
275
14 horas de ensaios e dramaturgia cênica;
05 horas de allestimento e atividades de divulgação pública
Ouvinte - “Cen-ferenza: Meditazione Conviviale sulla magia dei Carnevali Antichi:
Hellequin – Dentro le maschere delle montagne venete”
Conferencista: Gianluigi Secco
Local: Osteria “Al Teston” – PD - IT
Organização: Scuola Sperimentale dell’Attore – Pordenone
Data: 30/01/2008
Cortejo Itinerante “Il Servitore di... Quattro Padroni”
Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin
Atividade: Atriz e Colaboradora
Local: Centro Storico di Pordenone
Data: 02/02/08
Tradutora do artigo “Inseguendo Arlecchino / Perseguindo Arlecchino” de Claudia
Contin
Revista “OUVIROUVER” Nº4, 2008 - Departamento de Música e Artes Cênicas da
Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais – BR
Progetto Sciamano – Rapporto tra Commedia dell’Arte e Desabili
Coordenação: Claudia Contin & Ferruccio Merisi
Atividade: Colaboradora
Local: Scuola Sperimentale dell’Attore (PN-IT)
Período: abril e maio/2008
Total: 71 H/A
Espetáculo “Arlecchino e le sue Colombine”
Direção: Ferruccio Merisi
Atividade: Atriz e Colaboradora
local: Agriturismo La' Di Fantin - Pordenone (IT)
Data: 16/05/08
Espetáculo-demonstração “Sherwood delle Danze”
Integrado ao “Progetto Sciamano” – Scuola Sperimentale dell’Attore
Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin
Atividade: Atriz e Colaboradora
Local: Sala Arlecchino Teatro Studio – Scuola Sperimental dell’Attore – PN – IT
Datas: 26 e 27/05/08
Espetáculo-demonstração “Sherwood delle Danze”
Integrado ao “Progetto Sciamano” – Scuola Sperimentale dell’Attore
Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin
Atividade: Atriz e Colaboradora
Local: Auditorium Concordia – PN - IT
Datas: 28/05/08
Laboratório de Pesquisa (Prático-Teórico) “Carattere di Zanni”
Ministrantes: Veronica Risatti
276
Coordenação: Ferruccio Merisi e Claudia Contin
Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone
Período: 31/05/2008 a 11/06/2008
Conteúdo: Carnavale, Servitù, Amore e Fame
Atividades: Atriz.
26 H/A
10 horas de laboratório prático
12 horas de training do personagem
04 horas de dramaturgia cênica
“VIVA – Danzare per Vivere”
Laboratório de Danças Populares Brasileiras: Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo,
Afoxé e Cavalo Marinho.
Ministrantes: Joice Aglae Brondani e Erico José Souza de Oliveira
Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT
Período: 16 a 22 / junho/ 2008
Total: 18 H/A
“Arreia” - Conferência-Espetáculo sobre Teatro Popular Brasileiro
Tradutora da conferência do Dr. Erico José Souza de Oliveira: “Il Cavalo-Marinho di
Condado – Pernambuco - BR”
Local: Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT
Data: 23/06/2008
“Arreia” - Conferência-Espetáculo sobre Teatro Popular Brasileiro
Conferencista e atriz: “Tracciati Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone –
Commedia dell’Arte e le Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane”
Local: Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT
Data: 23/06/2008
Espetáculo: “Arlecchino e la Valle dell’Omo”
Direção: Ferruccio Merisi
Atividade: Atriz e Colaboradora
Local: Auditorium Concordia – PN - IT
Data: 26/06/08
Laboratório individual para “La Servetta, Corteggiana e Damma Enamoratta –
Papaietta” - Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari, Popolari
Brasiliane
Ministrante: Claudia Contin
Local: Scuola Sperimentale dell’Attore
Período: 30 de junho a 23de julho / 2008
Total: 60 H/A
Apresentação interna à Scuola Sperimentale dell’Attore “La Servetta, Corteggiana e
Damma Enamoratta – Papaietta” – Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni
Spettacolari, Popolari Brasiliane
Direção: Claudia Contin
Atividade: Atriz Pesquisadora
Local: Sala Arlecchino
Data: 24/julho/2008
277
Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore “Iniciação às
Técnicas de Clown”
Conteúdo: Metodologia Brasileira – Joice Aglae Brondani - Trabalho com os elementos
(terra, água, fogo e ar) e a relação com a Máscara de Clown. Produção e canalização de
Energia para a Máscara de Clown. Da energia à descoberta da lógica-corpórea do Clown.
Período: Agosto 2008
Total: 24 H/A
Laboratório individual para “Pantalone Picantin de’i Coleottori”
Ministrante: Claudia Contin
Local: Scuola Sperimentale dell’Attore
Período: 11 agosto a 23 agosto/2008
Total: 20 H/A
Workshop Internazional “L’Arlecchino Errante”
Ministrantes: Claudia Contin
Ferruccio Merisi
Leo Bassi - Mestre Convidado
Professores da Scuola: Alice Mosanghini
Lucia Zaghet
Veronica Risatti
Local: Scuola Sperimentale dell’Attore
Período: 31 agosto/2008 a 21 setembro/2008.
Total: 200 H/A
Ouvinte: Festival L’Arlecchino Errante – Simpósio: Omaggio alla Legge Basaglia:
"OUTSIDER ART" (con Video, Musica e Performance)
Data: 12 setembro/2008
Conferencistas: Alessandro Ciriani – Assessore alla Programmazione Sociale - Pordenone
Giovanni Zanolin – Acessori alle Politiche Sociale - Pordenone
Peppe dell’Aqcua – Direttore dell Dipartamento di Salute Mentale - Trieste
Giulia Scabia – Drammaturgo
Allessandro Garzella – Autore e Regista Teatrale
Giorgio Pacorig – Musicista
Claudia Contin – Scuola Sperimentale dell’Attore - Progetto Sciamano
Ouvinte: Festival L’Arlecchino Errante – Simpósio: "THE SMARTY FOOL - Metodo e
Follia nell'Arte dell'Attore " (con Video, Radio e Performance)
Data: 13 setembro/2008
Conferencistas: Dottoressa Cristina Valenti - Università di Bologna
Ambrogio Artoni – Uniersità di Torino
Gustavo Giacosa e Carlo Rossi – Compagnia Pippo Delbono
Claudia Contin – Scuola Sperimentale dell’Attore
Spiro Scimone e Francesco Sframeli – Compagnia Omonima
Ugo Giacomazzi e Luigi Di Gangi – Compagnia Teatri Alchemici
Paolo Billi – Compagnia del Carcere del Pratello di Bologna
“The Holy Fool” - Apresentação Final do Masterclass do Festival L’Arlecchino Errante
278
Direção: Ferruccio Merisi e Claudia Contin
Local: Sala Arlecchino Teatro Studio – Scuola Sperimentale Dell’Attore
Data: 21 setembro/2008.
Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore de “Danças
Populares Brasileiras: Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Afoxé, Cavalo
Marinho, Caboclinho e Xaxado”.
Conteúdo: Le danze popolari brasiliane – una possibilità per il lavoro dell’attore.
Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT
Período: 24 de setembro a 04 de outubro / 2008
Total: 24 H/A
Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore – Capoeira
Conteúdo: Capoeira – una possibilità per il lavoro dell’attore
Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT
Período: fevereiro, agosto e outubro / 2008
Total: 24 H/A
Laboratório individual - “Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni
Spettacolari Popolari Brasiliane – Maschere Femminile e Pantalone”
Professores: Ferruccio Merisi e Claudia Contin
Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT
Período: 01 a 10 / outubro/2008
Total: 10 H/A
Workshop Internazionale “L’Arlecchino Errante Invernale”
Condotto da: Claudia Contin
Ferruccio Merisi
Tutors della Scuola: Lucia Zaghet
Veronica Risatti
Alice Mosanghini
Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore
Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009
Totale: 35 ore
“L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” - Workshop “Giocoleria”
Condotto da: Guido Nardin
Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore
Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009
Totale: 10 ore
“L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” - Workshop “Improvvisazione e dinamiche
di gruppo”
Condotto da: Marco Canuto
Presso alla: Scuola Sperimentale dell’Attore
Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009
Totale: 10 ore
Condottrice: “L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” – Workshop “Danze Popolare
Brasiliane e Capoeira”
279
Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore
Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009
Totale: 10 ore
Ouvinte: Cen-ferenza “Le carnevale antiche di Piemonte”
Condotto da: Davide Porporato
Presso il: “Cenacolo” – PN - IT
Organizzazione: Scuola Sperimentale dell’Attore – PN - IT
Data: 18/02/2000
Workshop “L’attore che canta ... e il cantante che sa interpretare” – corso intensivo di
espressione vocale.
Condotto da: Alice Mosanghini
Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore
Periodo: dal16 al 21 marzo/2009.
Totale: 15 ore
280
APÊNDICE E – SOBRE PAPAIETA E TRANSDUÇÕES
Reafirmo que não é o simples falar de uma dinâmica caleidoscópica da imaginação,
ainda mais, levando em conta a afirmação de Bachelard (1990), de que uma imagem só pode
ser explicada por outra imagem, então, sabe-se que as tentativas de explicação destes
engendros imaginativos de qualquer outro modo são falhas.
O que vem em seguida não é uma tentativa de explicação do processo de transdução
caleidoscópica, mas um breve panorama dos encaminhamentos realizados para as montagens
de “Papaietta Poliglota”, dirigido por Claudia Contin e supervisão geral de Ferruccio Merisi e
do espetáculo sucessor: “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”, cuja criação é de
minha autoria - desta pesquisatriz.
“PAPAIETTA POLIGLOTA”
A criação de um espetáculo cujos códigos adviessem das práticas espetaculares
populares brasileiras, mas que se confundissem, pela natureza de ambos, com os códigos das
máscaras dell’arte, sempre foi um dos propósitos desta tese. Como já foi comentado muitas
vezes, foi após o primeiro curso de danças populares brasileiras que ministrei1 e da primeira
aula-espetáculo mostrada ao público italiano2, cujo tema central foi a técnica de translocação
e vislumbramento da técnica de transdução, que Contin e Merisi mostraram interesse pela
direção do espetáculo que seria o ponto de amarrar um dos nós desta etapa da pesquisa.
No dia 30 de junho de 2008, começaram os ensaios de “Papaietta Poliglota”, os quais
se estenderam até outubro do mesmo ano, com alguns pequenos intervalos, para a realização
de outros espetáculos e eventos.
De 30 de junho a 23 de julho de 2008, uma rotina de trabalho foi estabelecida para a
criação de um espetáculo com uma parceria colaborativa harmoniosa. O texto é de
organização e criação de Claudia Contin e a supervisão da cena, de Ferruccio Merisi, com
minha colaboração, no que diz respeito à cultura popular brasileira.
De 25 de julho a 10 de agosto, tínhamos, também, os ensaios e a apresentação do
espetáculo “Arlecchino e la vale dell’uomo”, comentado anteriormente, cuja preparação
1
De 16 a 22 de junho, de 2008 – Publicidade no ANEXO E. 2
“Tracciati Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni Spettacolari
Popolari Brasiliane”, na Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT, em
23/06/2008 – Publicidade no ANEXO E. 281
causou uma pausa nos ensaios de “Papaietta Poliglota”, mas que não interferiu em seu
crescimento e intensidade.
De 11 a 23 de agosto de 2008, as atividades laboratoriais foram retomadas, desta vez,
calcadas sobre a máscara de Pantalone, que iria compor a segunda parte do espetáculo.
De 24 a 30 de agosto, foram as preparações para o festival Arlecchino Errante, que
aconteceu do dia 31 de agosto a 21 de setembro de 2008, em Pordenone/IT. Após o festival
Arlecchino Errante, começaram os ensaios para a finalização do espetáculo “Papaietta
Poliglota”. Neste período de 01 a 10 de outubro de 2008, o qual constituiu a terceira etapa do
processo de montagem, éramos três trabalhando no espetáculo. Ferruccio Merisi, nesta etapa,
entrou em sala de aula para realizar a direção de voz e supervisão do espetáculo, trabalhando
sobre o material construído por mim e dirigido por Contin.
Dessa forma, o espetáculo “Papaietta Poliglota” foi construído e estava pronto para ir
a público.
No que diz respeito à metodologia ou processo e encaminhamentos para a montagem
do espetáculo, não houve um primeiro momento de montagem somente com as máscaras
físicas da commedia dell’arte para, num segundo momento, acrescentar os códigos advindos
das práticas espetaculares populares brasileiras. O espetáculo foi sendo criado já com a
experimentação e procura dos códigos que se encaixariam na ação do espetáculo.
Pela parte da manhã, eu entrava em sala de aula e trabalhava sozinha com a técnica de
transdução caleidoscópica, utilizando o texto criadoorganizado por Contin e as máscaras
físicas da commedia dell’arte continiana.
As tardes eram reservadas para os cursos que ministrava3 e seguia, sempre dentro da
Scuola Sperimentale dell’Attore4, conforme mencionado em outros momentos e elenco das
atividades realizadas na S.S.A. contidas no Apencide D.
À noite, entrava em sala de aula para trabalhar com Claudia Contin. Trabalhávamos
sem a interferência de nenhum outro aluno ou integrante do grupo de atores da S.S.A..
Primeiro, mostrava a ela o material que tinha trabalhado sozinha pela manhã e, então, ela os
organizava/dirigia dentro da perspectiva da commedia dell’arte e da máscara que estava
incorporando. Com esta dinâmica de trabalho, o espetáculo foi sendo criado.
Na etapa em que trabalhei com Merisi, o esquema era o mesmo: trabalhava sozinha
pela parte da manhã e, à noite, sem a interferência de outros interantes do gupo da S.S.A., em
sala de aula, com ele.
3
Danças populares Brasileiras e o trabalho do ator; Clown e Capoeira e o trabalho do ator. 4
Laboratórios das máscaras dell’arte, em grupo e individuais. 282
A máscara de abertura do espetáculo é a da Servetta. Posteriormente, me transformo
em uma Cortigiana, depois em Nóbile, na “Strega” e no bufão (sem o figurino original, mas
utilizando a saia para me disfarçar). Para finalizar esta parte feminina, retorno à Cortigiana e
saúdo a todos, dançando Frevo e jogando pipoca no público, como se fossem confetes de
carnaval – como acontece na festa de lavagem do Senhor do Bonfim BA.
O espetáculo tem o nome de “Papaietta Poliglota”, porque é realizado em italiano
macarrônico5, uma mistura de dialetos italianos, italiano clássico, português e espanhol.
Contin preferiu realizá-lo desse modo, buscando os moldes dos cômicos dell’arte – com a
mistura de dialetos e línguas, não buscando uma língua gramaticalmente correta, mas
inteligível dentro da ação da cena.
O termo “poliglota”, contudo, diz respeito não somente ao idioma, mas também à
linguagem física, pois vou passando de uma máscara à outra - começo incorporando a
máscara da Servetta (que cita Arlecchino, Capitano, Zanni), depois, a máscara da Cortigiana,
posteriormente, incorporo a máscara da Nobile e, ainda, passo rapidamente pela Strega, pelo
Bufão e retorno para a Cortigiana. Para finalizar o espetáculo, incorporo a máscara de
Pantalone, que fala de seu amor e admiração pelas máscaras femininas da commedia dell’arte.
Também, o termo “poliglota” mantém relação com o diálogo que se estabeleceu no
processo de montagem e no espetáculo, com as práticas espetaculares populares italianas e
brasileiras.
Por conta da mescla de línguas e dialetos que acontece ao longo do espetáculo, pensase que não vem ao caso uma tradução, pois seria impossível, já que se trata de uma maneira
muito específica de comunicação. Desse modo, para o leitor, realizo um resumo das situações
que dão forma ao espetáculo.
O espetáculo começa com a máscara da Servetta. Entro de costas para o público,
coloco-me no centro da sala, ao fundo, e grito como se fosse uma
feirante:
- Papaia, papaia, papaia! Olha a papaia... Papaietta!
“Papaietta Poliglota”
Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Atação: Joice Aglae
Foto: Veronica Risatti
Data: 24 julho 2008
5
No capítulo II, foi explicado o que é o “italiano macarrônico”, que as máscaras dell’arte e, também, os bufões
utilizavam para a cena. Rapidamente e, de forma resumida, “macarrônico” é um termo utilizado para designar
uma fala burlesca. Mistura várias línguas ou falsas línguas como a inclusão de palavras com terminações do
latim, para sublinhar o efeito burlesco. 283
Virando-me de frente para o público, canto uma canção e ofereço a eles, em uma
pequena travessa, biscoitos de papaia. Na outra mão, carrego uma pequena xícara de café.
Depois de oferecer os biscoitos, dirijo-me até o centro da cena, equilibro a travessinha
na cabeça e tomo meu cafezinho.
“Papaietta Poliglota”
Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Interp.: Joice Aglae
Foto: Veronica Risatti
Data: 24 07 2008
Depois, pego a travessa e, com todos os objetos seguros entre as mãos, cumprimento o
público (bom dia/boa noite) em italiano, português, francês, inglês, espanhol e alemão. Após
o cumprimento, uma risada e depositando a xícara e a travessinha no chão, no fundo do palco,
coloco-me, novamente, no centro do palco. Então, me apresento, falando meu nome e digo
que estou ali para contar a minha história.
Conto que sou “metade italiana”, mas baiana de coração. Afirmo que sei interpretar
uma serva rebelde, uma Cortigiana obediente, uma Nobile enamorada, enfim, que sei ser uma
comediante:
Intanto sappiate che son Comica per professione... e per amoroso servizio della
Gran Tradizione del Teatro Italiano de la Commedia de l’Arte.
Tradizione errante che girò per lo Mundo, deixando tanto signos e portando tanto
signos de cada staniera cultura.
Così anche mi, son Comica errabonda:
meza italiana de horigini, ma bajana profonda,
un poco francesa quando civetto,
ma vera brasileira ne i sogni, quando che vago a letto!
So far la serva ribelle,
so far la cortigiana ubbidiente,
so far la dama innamorata,
so far la Comica con ogni parlata.
E oggi son qui, per stringere una alleanza
tra la mia anima italiana e la mia anima brasiliana.
Posso, per esempio, favelàr per voi tuti li dialetti italici!
Ostrega! Son venessiana de Venessia se ghe xé bisogno,
oh gli son pure toschanella di Firenze a l’ochorrenza,
mo vè che non ci ho probleeema a passar da bologneeesa,
e nu puoco pure de nnapulitana tengo in t’o sangue mmio,
o m’allargo a la romana,
o – pota! – po’ ciapo sü e me svolto via a la bergamasca.
E posso anche, per voi, danzar tuti i dialetti de la musica del Brasile!
Perchè il mio corpo è un’Amazzonia!
Son indie le mie ossa,
son creole le mie giunture,
son ispanici i miei peli,
284
son portoghesi i miei occhi...
... ed è così africano il cuore mio.6
Nesta narrativa, conto que sou cômica, venho do Brasil e tenho, em mim, a mistura de
várias culturas. Passeando pelo mundo como uma “comica errabonda”, cheguei à Itália para
fazer a minha “metade brasileira” encontrar minha “metade italiana”. Mas isso só foi possível
porque sou uma comediante, e começo, assim, a contar a história de como me tornei uma.
Contin e Merisi foram generosos, cedendo a partitura da cena da “Scorza di melone”
para Papaietta, transformando-a em “Scorza di papaia”. E, então, revelo ao público como um
escorregão em uma casca de papaia fez com que me transformasse em uma comediante. Tudo
aconteceu quando era jovenzinha e um Capitano cortejava-me. Na ocasião do assédio,
querendo fugir do galanteador, fui correr e escorreguei na casca de papaia, caindo deitada, de
costas para o chão. O Capitano, mostrando-se um cavalheiro, correu para me ajudar a
levantar-me, mas, não vendo a casca de papaia, acabou escorregando e também caiu deitado,
porém, sobre mim. E foi desta brusca queda que engravidei e, por orgulho, fugi da cidade,
formando, com todos os meus filhos, uma Compagnia dell’Arte.
Após esta cena, canto uma tarantella (Che bella cosa far la commedian) e organizo o
palco para a próxima cena: coloco uma cadeira e uso, como objeto cênico, um espanador;
também, solto os cabelos, que antes estavam presos e trançados.
Com os cabelos soltos, coloco-me, então, na máscara da Cortigiana.
Começo um discurso que é, na verdade, uma adaptação de um texto de Domenico
Ottonelli, divulgado por Roberto Tessari em “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra”
(1981), sobre o fascinante mundo da commedia dell’arte e da relação das atrizes com a cena e
a sociedade. Esta cena fez parte do espetáculo “Né serve, Né Padrona”, porém, aqui, Merisi e
Contin trabalharam outras entonações e ritmos.
Nesta cena, conto como é bom ser chamada de “Senhora”, ser esperada e recebida
com banquetes e presentes e depois, ter uma noite agradável e esperar a glória e honra
reservada às grandes cômicas.
Após esta cena, reorganizo o palco, coloco a cadeira no outro lado e vou para trás do
biombo, ascendo uma luz e, ao som de uma caixinha de música, canto, coloco a saia da
Nobile e, depois, com um pente e um espelho nas mãos, entro em cena.
6
O texto é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da
Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. 285
“Papaietta Poliglota” (cena: troca de figurino)
Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Interp.: Joice Aglae
Foto: Veronica Risatti
Data: 24 07 2008
Penteando os cabelos, olhando-me no espelho e cantando, sigo
até o centro da cena. Depois, guardando o espelho e o pente dentro do figurino (no dorso),
recomeço a falar com o público, ao mesmo tempo, em que prendo, novamente, os cabelos.
Numa conversa informal com o público, comento que não se pode nem imaginar as coisas que
uma cômica deve saber fazer:
Non vi crediate che a far la Commediante
non si apprenda anche a far la Gran Dama Ennamorada! (mentre s’acconcia i
capelli)
S’impara a suspirare,
s’impara a poetizzare,
s’impara ad arrossire... e a impallidire...
ed anche a svenire quando serve et conviene.
(mentre
completa
l’acconciatura)
Così come faceva la famosissima Comica Isabella,
che con le sue artistiche pazzie amorose,
innamorava tutti i cuori... ed insieme li divertiva.7
Após estar com roupa e cabelos arrumados, coloco-me na máscara física da Nobile e
começo a cena com um poema intitulado “Memoria di Isabella Andreini e il Sonetto del Cuor
Duro - livremente inspirado no “Sonetto CXXV”, de Isabella Andreini, publicado por Luigi
Rasi em “I comici italiani” (edição/1897 - texto em italiano antigo):
E comunque...
Io non t’amo crudel, perché me l’impedisce
del mio cor selvaggio la natia durezza.
Eppur, se vedo qualcun con tua bellezza
tutta l’anima mia cinguetta e stupisce.
E contro il mio voler nel cor mi scende
un’affetto d’amara, empia dolcezza.
E tant’è potente l’amorosa stranezza,
ch’un estroso umidor in me riaccende.
7
O texto é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da
Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. 286
Dura legge d’Amor!!! Dura legge d’Amor!!!
Dura legge d’Amor!!! Dunque conviene
amar questo in quest’altro? E l’altro invero
farlo cagion insieme di gioie e pene!
Ahi!
Ben tronca é nel mezo ogni mia spene!
Né pace più, né più salute spero
se da cotanti “rivi” il mio dolòr viene.
(Si scatena in una battaglia di calci acrobatici da Capoeira brasiliana, che si
conclude vittoriosamente ed elegantemente seduta sulla poltroncina)8
Após esta cena, retorno à máscara da Cortigiana, levanto-me da cadeira e,
agradecendo a todos, tiro de debaixo da mesma uma pequena cesta de vime cheia de confetes
brancos, jogo-os no público, cantando e abençoando a todos com a “benedizione del maestro
carnevale”/ benção do mestre carnaval. Terminando com os confetes, deixo a cesta na frente
do palco e vou até o fundo, pego uma gamela com pipocas e, jogando-as no público, canto,
deixando, desta vez, o “axé do mestre carnaval”. Após terminar com a benção das pipocas,
deixo a gamela ao lado da cesta e, girando de costas para o público, vou caminhado em
direção ao fundo do palco, transformando meu corpo na máscara física do bufão. Então,
utilizando a saia como manto, canto em “tom gregoriano” “Carnaval! Carnavalis!
Charivaris!”.
Girando–me em direção ao público:
Benedictus sia tuo pu-santo sudoris, danzante!
(da monaco giullare)
Benedicte tucte glandulis vostris, danzantis!
Et preziozizzimus bulbus pilliferum... omnium: irtus et ricciulus, danzantis!
Benedicti pés teus et patas tuas et omnia vescicula, danzante!
Bendicte unhas et unghias, pestatus et consuntus, in plùrima noctis profundus,
danzantis!(da monaca giullaressa)
(Danza Frevo con la gonna “ombrellone”)
“Papaietta Poliglota” (cena: La Strega)
Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Interp.: Joice Aglae
Foto: Veronica Risatti
Data: 24 07 2008
8
A adaptação é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio
da Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. “Papaietta Poliglota” (cena: Il Buffone)
Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Interp.: Joice Aglae
Foto: Veronica Risatti
Data: 24 07 2008
Após falar como público com a máscara do Bufão, recomeço a cantar, acelerando o
ritmo e transformando-o em frevo. A música de um frevo (instrumental) entra, a canção vai
sumindo, ao mesmo tempo, em que a dança do frevo ocupa todo o palco, utilizando a saia
como se fosse “uma sombrinha”. Dançando frevo, vou até o fundo e pego outra gamela cheia
de pipoca, entrego ao público, pedindo que me abençoe com as pipocas. Enquanto o público
joga pipocas, continuo dançando e, dessa forma, dirijo-me ao fundo do palco, saindo para trás
do biombo - o frevo só termina quando não estou mais em cena9.
“Papaietta Poliglota” (cena: frevo)
Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Interp.: Joice Aglae
Foto: Veronica Risatti
Data: 24 07 2008
Quando a música acaba, acendo, novamente, a luz e abro a caixinha de música. Sobre
o biombo, estendo o lenço que utilizo como Servetta, cheio de flores bordadas. Tiro as saias,
permanecendo com a bombachinha e a blusa. Pegando o figurino, maquiagem e máscara de
Pantalone, fecho a caixinha de música, desligo a luz e entro novamente.
“Papaietta Poliglota” (cena: frevo)
Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi
Interp.: Joice Aglae
Foto: Veronica Risatti
Data: 24 07 2008
9
No dia 24 de julho de 2008, este trecho do espetáculo foi apresentado aos integrantes da Scuola Sperimentale
dell’Attore e a um pequeno grupo de convidados. 288
Depois desta “mudança no figurino”, volto à cena, coloco a roupa do Pantalone no
chão, ao fundo, vou até a frente, falo para o público das características da máscara física de
Pantalone, transformando meu corpo nela na medida em que a explico e, por último, faço a
maquiagem que fica sob a máscara10.
Após fazer a maquiagem, vou até o fundo do palco. Primeiro coloco a máscara e o
chapéu, depois, começo a vestir o figurino do Pantalone – dizendo como é bom ver os “dotes”
de uma jovem. Como Pantalone, conto ao público como
me enamoro pela
Servetta/Cortigiana, enumerando o desenho das curvas do seu corpo e como me encanta a sua
beleza. Reclamo para o público que ela, porém, não me dá atenção. Por mais que a persiga,
tente encontrar-me com ela ou permaneça esperando sob a sua sacada, ela não se importa
comigo. Finalmente, chego à conclusão de que as mulheres e o ouro possuem uma relação
única e descubro que, através do ouro, posso chegar no coração de qualquer mulher.
Por último, canto contente, pois encontrei a solução para conquistar a Cortigiana e,
cantando, vou para traz do biombo. Estendendo meu lenço cheio de corações, ao lado do da
Servetta – as luzes se apagam e o espetáculo termina.
Como dito anteriormente, da parte de Pantalone, não possuo nenhuma fotografia para
integrar a este relato.
Após o último dia de ensaio, Ferruccio Merisi entregou-me um documento para que eu
assinasse. Este documento dizia que sempre que houvesse a possibilidade de apresentar o
espetáculo “Papaieta Poliglota” deveria comunicar Contin e Merisi para obter a aprovação de
ambos. Desse modo, era claro para mim que estavam colocando o espetáculo “Papaietta
Poliglota” sob os domínios da Scuola Sperimentale dell’Attore, o que é totalmente cabível e
legal já que a direção do espetáculo pertence a Contin e a supervisão geral à Merisi.
Este seria o caminho a ser percorrido, e foi. Porém, quando surgiram duas
oportunidades de apresentar “Papaietta Poliglota” em Salvador (na sede da Dante Alighieri e
na Escola de Teatro da UFBA), duas vezes pedi autorização a Merisi, duas vezes me foi
negada a apresentação de “Papaieta Poliglota” e duas vezes apresentei, no lugar do referido
espetáculo, a cena “Alla ricerca di un Zanni”. Então, para mim, ficou claro que “Papaietta
10
Contin utiliza uma maquiagem sob a máscara por algumas razões, para tornar a máscara mais homogênea ao
corpo do ator, para salientar características grotescas e animalescas e para lembrar/homenagear o teatro de
bonecos, teatro que “salvaguardou” muito das características das máscaras e roteiros da commedia dell’arte,
quando esta quase desapareceu, após seu apogeu no renascimento. Para outras informações sobre esta
maquiagem, ler “CONTIN, Claudia. Gli Abitanti di Arlecchinia. Favole didattiche sull’arte dell’attore. Pasian
di Prato (UD) /IT: Campanotto Editore. 1999. Pp.161-167. Esta maquiagem pode ser vista, também, no DVD
que acompanha esta tese. MENU. 3 – TRUCO SOTTO MASCHERA – fotos. 289
Poliglota” fazia parte dos domínios da Scuola Sperimentale dell’Attore, o que é muito justo,
já que foi criado e ensaiado na Scuola e com uma parceria colaborativa do interesse dos três
maiores envolvidos no projeto de montagem do espetáculo (Claudia Contin, Ferrucio Merisi e
Joice Aglae Brondani).
Contin e Merisi cederam algumas fotografias do espetáculo “Papaietta Poliglota”,
porém, somente das máscaras femininas. Algumas delas podem ser vistas ao longo do corpo
do texto, as outras estão no DVD que acompanha esta tese; MENU. 4. TRANSDUÇÃO
CALEIDOSCÓPICA: 4.3 - PAPAIETTA POLIGLOTA – fotos.
Permanece o agradecimento incontestável à colaboração de Contin e Merisi, grandes
mestres na arte das máscaras dell’arte e inesquecíveis em sua qualidade, empenho e atenção.
Mas não poderia ficar na perspectiva de total submissão, sem autonomia para apresentar um
espetáculo que teve iniciativa dentro desta pesquisa de doutorado, tendo como dever primeiro
a lealdade aos objetivos desta e seu cumprimento perante os órgãos que primeiro acolheram e
subvencionaram (CNPQ – PPGAC\UFBA) tal estudo.
Por isso, quando estive na Scuola Sperimentale dell’Attore para um novo período de
relações, o espetáculo “Papaietta Poliglota” passou, efetivamente, a ser patrimônio da Scuola
Sperimentale dell’Attore. Para a tese, construí outro espetáculo solo, na verdade, trata-se de
uma Aula-Espetáculo, intitulada “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”.
“TRANSDUÇÕES CALEIDOSCÓPICAS E IMAGINAÇÕES”
Este espetáculo tem como objetivo ser uma das resultantes do processo de acesso e
apropriação das máscaras dell’arte – especificamente, as continianas - que apresento nesta
tese. É um processo muito específico, o qual se conecta com os Bufões e com as práticas
espetaculares populares brasileiras com uma liquidez subterrânea e rizomática.
Como este espetáculo sempre esteve nos objetivos desta tese, quando Contin e Merisi
começaram a trabalhar comigo “Papaietta Poliglota”, ele já estava sendo encaminhado por
conta das experiências que fui acumulando. Quando “atraquei” na Scuola Sperimentale
dell’Attore, os trabalhos com as técnicas de Bufão e de translocação caleidoscópica já tinham
acontecido e o vislumbre da técnica de transdução, também. O porto de Pordenone foi parada
obrigatória para a técnica de transdução ganhar força, consistência e maior riqueza, graças aos
respeitáveis mestres que ali encontrei.
290
O espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”, mais do que um objetivo
a ser cumprido, mais que um resultado probatório e positivo deste possível acesso que
proponho, é um modo de agradecer a todos os mestres que descobri no decorrer deste
transcurso. Mestres, populares e acadêmicos, nominados e anônimos, que se mostraram
generosos na arte de ensinar o seu conhecimento.
“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações” tem um roteiro simples, uma sucessão
de explicações sobre a máscaras dell’arte e de cenas com estas. As máscaras não possuem
uma relação entre si, pois foram organizadas de modo a auxiliar a dinâmica da aulaespetáculo, principalmente, com a questão das trocas de figurinos. A compilação dos textos
que compõem as cenas das máscaras é bem abrangente. Textos que foram entregues aos
alunos do Arlecchino Errante Invernale (a todos os alunos, não somente a mim); textos de
autoria própria; adaptações de textos documentais trazidos por Tessari; textos de Goldoni;
textos e canções populares de domínio público. Também aqui, fala-se em italiano
macarrônico e a tradução não seria o recurso ideal. Então, segue-se apresentando o resumo da
situação das cenas que compõem o espetáculo.
No palco, estão, ao fundo, à esquerda, uma pequena mesa com as máscaras do
Arlecchino, Capitano, Pantalone, os objetos utilizados por estas e os da Cortigiana. Do lado
direito do palco, tem uma arara com os figurinos. Como sonoplastia de fundo, um samba
(instrumental).
Tudo escuro, eu me encontro fora de cena. Ouve-se uma voz chamando o Zanni e,
logo depois, a resposta. Entro como Zanni, correndo - a música baixa quando paro de correr.
Respondo ao chamado do meu “padrum” e percebendo que ninguém responde a minha
reverência, começo a procurar o “padrum”. Quando descubro que tem muita gente e muita
jovem bonita, deduzo, então, que meu “padrum” está correndo atrás de alguma jovenzinha.
Deduzo, também, que se tem gente, deve ter uma dispensa com comida para todos que estão
ali e tenho a ideia de procurá-la. Quando lembro que tenho que procurar meu “padrum”, então
a dúvida permanece, até que decido continuar procurando meu “padrum”.
- Zanni
“Eccomi qua Padrum!
Pota! Padrum? Padrum? Ma!? Dov’é mi padrum?
Mi son venu con lui in carneval di Brasile e lui... sparisce!!!
Ma varda quanta zente!!! E tante Jovenzin...
Allora mi padrum é andato dietro a qualche jovensin. E si! E....
Ma varda te dove mi son capitat!!!....
Immagina voi la mesura xè la dispensa per tutti quanti qui!
Mi tocca sgovelzer... mi toca cercare... mi toca procurar...
291
Ma ... il padrun .. o la dispensa! Il padrun..... la dispensa... il padrun... la dispensa...
il padrun..... la dispensa... il padrun! (trasformano in samba, maculelê ed altre
danze)
Il Padrun....sempre mi Padrum ! Poreto del Zanni!..Arrivo Padrun! (esce di
scena)11.
Retorno à cena sem a máscara. Falo sobre a máscara do Zanni, mostro/falo como é
possível sustentar e dar vida à máscara através das práticas espetaculares populares
brasileiras.
Falo da técnica de translocação caleidoscópica e mostro a cena “Alla Ricerca di un
Zanni”:
Eccomi qua! In questo mondo ci sono di storie ... credi che una moglie vuol
benedire il suo can, per veder se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non
so come è questa zente, ma non c’è niente di strano. Io stesso ho avuto un cavallo
benedetto.
Io ho avuto davvero un cavallo benedetto, cosa posso farci? Vuoi che menta? Vuoi
che dica che non l’ho avuto... Non ha fidúcia? Beh! Il signore Antonio Martino è
qua? Lui può provare quello che dico... È vero... il signore Antonio Martino è
morto tre anni fa... Ma era vivo quando ho avuto la bestia! ... Ho avuto la bestia è
modo di dire, è! Non è che io sono stato a partorire il cavallo... no, io no. Ma dal
modo in cui vanno le cose, mmh... Io non mi stupisco più di niente. Nella settimana
passadta una Donna ne ha avuto uno, nella sierra di Araripe, dalle parti di Cearà...
Ma vi racconto come è andata con il mio cavallo. Ecco, è stata una vecchia che me
l’ha venduto a basso prezzo, né mio figlio. Perché cambiava casa, né. Mi
raccomandò di avere molta cura di lui... perché era un cavallo benedetto, né mio
figlio!? E doveva essere davvero perché io un cavallo così buono non l’avevo mai
visto.
Una volta abbiamo corso dietro una vitella dalle sei del matuttino as seis della sera
senza mai fermarci, io a cavalo lui a piedi. Sono riuscito a prendere la vitella che
era già notte. Quando ho finito il lavoro mi sono guardato attorno... non conoscevo
il posto dove eravamo. Allora ho preso una vara che era lì e via, per lo camino,
frustando il bue... Sì, erano un bue e una vitella ed io correvo dietro a tutte le due in
una volta e essi... essi correvano insieme per tempo senza separarsi.. come mai
questo è successo, non lo so! So soltanto che è stato così.
Io poi sono uscito da Paraíba spingendo bue e vitella .... improvvisamente ho
avvistato una città, ho chiesto ad un ome dov’ero e lui... lui mi disse che ero a
Sergipe... Sì... Io ero corso fin là con il mio cavallo! Segno che era benedetto o no!
Mah, come ho attraversato il fiume San Francisco, non lo so! So soltanto che è stato
così! Può darsi che in quello momento il rio fosse secco... Perché non mi ricordo di
averlo attraversato...
Cane benedetto, cavallo benedetto sono tutte cose che io ho già visto ... io non mi
stupisco più di niente...
Ma vedi... a questo punto, credo che il can della donna sia morto...Sì... è compiuto il
suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del
nostro destino sulla terra, con quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò
che vive in un sol gruppo di condanati, perché tutto ciò che vive muore!
“Tutto ciò che vive muore!” Bello! Questo ho sentito dire da un parroco, nel giorno
in cui il mio Pirarucu è morto. Mio è modo di dire, ãh!? Perché per dire la verità,
penso che ero io che ero suo... Fu quando ero in Amazzonia. Avevo legato una
11
A dramaturgia foi criada a partir das improvisações e laboratórios em grupo, durante o Arlecchino Errante
2008, laboratórios individuais e trabalho com a professora Veronca Rizatti, durante estágio na Scuola
Sperimentale dell’Attore. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese.
Localização: MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.1 – ZANNI: 4.1.3 – LE AVVENTURE DI
ZAN PIEDINI – clip. 4.1.4 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – cena. 292
corda all’arpione, la corda dell’arpione attorno al mio corpo tanto non poter
muovere le braccia. Quando ho afferrato il pesce, lui mi ha datto uno stattone così
forte, che mi sono cadutto nel rio... È proprio così, il pesce mi ha pescato e, per
farla corta, mi ha trascinato lungo il fiume per tre giorni e tre notti... e io... io non
sentivo fame... no... ma una dannata voglia di fumare, si...! Quello che è più buffo è
che lui mi ha lasciato prima di morire, proprio all’entrata di un citadina, in modo
che io mi potessi salvare. Il giorno dopo ci fu il suo funerale e io non ho più
dimenticato quello che il prete disse na bera da fossa... Ma, non me ricordo però
come ho fatto per salvarmi... Ah sí, ho alzato un braccio, finché una lavandera mi
ha avvistato e cosí son corsi a liberarmi. É é é... Si... è vero che stavo con le braccia
legate... ma, nell’ora del bisogno c’è un rimedio per tutto. Come sono stato salvo...
Non lo so! So soltanto che è stato così!
E poi... Io non mi stupisco più di niente... Ad esempio di fantasmi di cane. Esistono,
esistono... io ne ho già incontrato uno. Là dove passa il Rio Cosme Pinto. Mi
avevano detto che là si vedono di fantasmi, ma non sapevo si trattasse di fantasmi di
cane. Beh, se sia posto di fantasmi non lo so, so che quando stavo attraversando il
fiume mi è caduta nell’acqua una moeda da diez. Io stavo lì con il mio cane ... e
davo già persa a moneta. Quando ho visto che lui, il cane, stava confabulando con
un altro. All’improvviso si tuffa e mi raporta i soldi! Vado a verificare e trovo solo
duas de cinco. Ma, forse le alme do lado di lá hanno trocado? Non lo so! So
soltanto che è stato così!
Ma queste cose dell’ aldilà poi... Una volta un grande amico... Povero João, Povero
Giovanni, Poreto Zanni... così giallo, così svergognato... è stato morto... Ha
compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il
marchio del nostro strano cammino sulla terra, quel fatto senza spiegazioni che
uguaglia tutto ciò che vive in un sol mazzo di condannati, perché tutto ciò che vive
muore! ... É morto davanti a me da un Cangaceiro... una morte tragica... Io, dopo
piangere tantissimo, sono stato in chiesa a pregare per l’anima di João, il Zanni più
intelligente del mondo, e poi l’ho portato in maca all cimiterio, per il funerale...lui
però era venuto così pesante che mi sono fermato per riposarmi un po’... in questo
momento lui ha cominciato a parlare con me... Madonna mia! Volevo scappare ma
avevo l’impressione di aver perso le gambe, e poi non era mica fantasma, era
proprio lui...risuscitato grazie alla Madonna... Sì, proprio lei... la
Compassionevole...
Credo ... però... non lo so! So soltanto che è stato così!
E poi dal modo in cui vanno le cose ... io non mi stupisco più di niente... di niente!12
Após mostrar a cena com a técnica de translocação caleidoscópica, continuo a falar do
universo dos servos dentro da Commedia dell’Arte e realizo uma breve explanação do que é a
máscara do Arlecchino, mostrando a sua máscara física e falando das células das práticas
espetaculares populares brasileiras que utilizo para acessar e dar vida a esta. Passo então à
demonstração da máscara do Arlecchino.
A cena da máscara do Arlecchino é, na verdade, uma “adaptação resumida” da cena
“A Oração” de Murcia. Arlecchino fala com os homens sobre o rumo que o mundo tomou e,
rapidamente, comenta com Deus e com o Diabo sobre o Homem, mas acaba indo embora,
pois o Ser Humano não é um problema dele.
12
Como já foi dito anteriormente, a dramaturgia é uma livre adaptação da tradução de “Auto da Compadecida”
de Ariano Suassuna, realizada por L. Lotti: Guaraldi, 1992. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no
DVD que acompanha a tese. MENU. 2 - TRANSLOCAÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 2.2 - ALLA RICERCA DI
UM ZANNI – clip. 2.3 – ALLA RICERCA DI N ZANNI – cena. 293
Bom giorno a chi é di buon giorno, buona sera a chi é di buona sera, bom dia e boa
noite, bonjour e bon soireé, good night... gothen narthene... bien - avete capito..
Mi hano inviato per favelare a voi di come siete arrivati in questo casino.. e beh...
vediamo cosa quelli mi hanno combinato.... ..... ok – allora, tutto a cominciato cosí
All’inio era solo il buio, as trevas profundas e doppo é stato creato la luce e.....
mhmmmm non me piase proprio questo inizio.... leggiamo un può di più ...
veddiamo... dia quatro... girno cinque.... giorno sei.... mmm... anoiante, da vero
entediante... allora... ricomincio al mio modo... aaaahahahahah!
Tutto ha cominciato con una grande splozione... CABRUM, ZIRIGUIDUM,
PRACATUM PRACATUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, PRACATUM,
PRACATUM, ZIRIGUIDUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, BUUUMMMMM!
E doppo questa poetica splosione la vita ha cominciato e cosí si sono rincontrati
una celula, altra celula e altra e altra e altre e é stato creato l’essere humano... é
vero... mi dispiace, ma voi seres humanos, non são grande roba... un incontro di
celule e basta....
Ha! Ma quello che é piu buffo é che é stato messo in voi, un cervello... CABRUM,
ZIRIGUIDUM, PRACATUM PRACATUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO,
PRACATUM, PRACATUM, ZIRIGUIDUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO,
BUUUMMMMM!
gnagnagnagna gna
Vi spiego... un cerebro é una macchina di ragionamento e raciocinio... ....
E loro due hanno messo questa machiana in voi pensando che... eravate inteligente
e cosí, il mondo sarebbe bien condoto da voi... e loro avrebbero le vacanze... férias
per tutta l’eternitá.... gnagnagnagna gna.... hahahahaha.. che muoio da ridere...
hahahahha....
Avete capito..... non... mmm ... scusatemi, ritorno súbito.
Toc toc! Ma, voi due... avete visto, la macchina non funziona e... beh - non c’é
niente da fare! Problema vostro... io me ne vado...
Ha, siete ancora li... vi spiego il divertento é che loro non volevano più lavorare e
voi date tanto da fare... che loro non hanno ne mesmo o domingo di pausa..
gnagnagnagna gna che merda hanno fato.... e che merda avete fato del mondo...
loro... lavorano come bestie. Beh.... non é problema mio... io hehe, me ne vado... me
ne vado, me ne vado, me ne vado.. FUI!!! 13
Após a cena do Arlecchino, começo a falar sobre a máscara do Capitano, um pouco de
seu caráter e ação. Mostro, então, os códigos das manifestações espetaculares populares
brasileiras que são necessários para se apropriar e dar vida a esta máscara.
A cena do Capitano é uma adaptação de um texto que trabalhei no Arlecchino Errante
Invernale (janeiro de 2009), este faz parte do acervo da Scuola Sperimentale dell’Attore,
porém, Ferruccio Merisi entregou a todos do workshop uma cópia dos textos trabalhados,
liberando o uso destes pelos alunos.
A ação da cena, contudo, teve adaptações, já que tive de reduzir o discurso do
Capitano, diminuindo suas elucubrações fantasiosas sobre sua valentia e poder, mas mantendo
um pouco de seu característico exagero na sua autodescrição.
13
O texto é de minha criação, inspirada na cena de Murcia e em improvisações realizadas em laboratórios
individuais na Scuola Serimentale dell’Attore. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que
acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.6 – ARLECCHINO: 4.6.3 –
ARLECCHINO – clip. 4.6.4 – ARLECCHINO – cena. 294
Na cena, como Capitano, descrevo como sou valente, minhas relações com o universo
demoníaco, minha valentia e minha beleza. Comento sobre o sucesso que faço com as
mulheres. Porém, dentro de meu discurso e faceta vangloriosos, algumas vezes, a porção
covarde “escapa” de meu controle, aparecendo diante do público, embora sempre me
recomponha, mostrando-me mais glorioso ainda.
Sou eu sou eu, sou o Capitão sou eu.. son Jo, son Jo, son Jo il capitan son Jo....
Ãh…. Quanta gente!! Quanta gente!!!!
Soy il Capitan della vale moribunda! - ai
Il demonico principe de las ordens eqüestres, figlo del terremoto, pariente della
muerte e muy amico e confidente del gran diavolo dell’inferno.... Jo il grandissimo
toreador, banderilhador, matador, ressussitador, domador, dominador y
dondolador dell’Universo!
Quando Jo nasci, Marte me entro ne los ombros, Ercules nel brasso dereccio,
Sansão nel sinistro, Atlas em lãs piernas, Mercurio en la cabeza, Vênus en los ojos,
Cupido nel corazon e Jupiter em todo el cuerpo...
E por isso me siento
Muito, muito, muy... povoado por dentro! ( isso pode pegar mal)
Quando camino ago tremar la Tierra, el céu si espanta, las plantas si secam, las
mujeres desmaian e los hombres... solo al mirarmi escominciam a escavar las suas
proprias sepulturas.....
Ma vós, Señora, Patrona mia, non temais jamais destas meraviglas.... perche in
vostra presenza Jo controleró tutta la mia folgorante terrabilita, tutta la mia terrible
folgarantitá....
Jo, valente e animoso, si orrendo y spaventoso, pur caliente e sospiroso, me faró por
vós pecheño, piccinino, morbidetto e agnellino .. come piace a te - mio tesor!
Percché.. son jo.. son jo, son jo , son jo il Capitan son jo…14
Afirmo que com Capitano adentrou-se em um outro mundo, não mais dos servos ou
dos nobres, mas aquele das máscaras que querem ou conseguem aproximar-se dos nobres,
cujas origens populares continuam escapando nas suas ações. Como Pantalone, máscara que
dá continuação ao espetáculo. Falo sobre Pantalone, sua máscara física e características, para,
então, falar das células das práticas espetaculares populares brasileiras que utilizo para me
apropriar e dar vida a esta máscara.
O discurso de Pantalone segue o seu tema principal: o amor pelas jovens. Como
Pantalone, começo cantando que sou o “dono do espaço” (son il Patrun), mas, depois,
confesso que sou “o dono”, embora a “Clariceta” seja a minha dona. Falo um pouco de nosso
relacionamento, queixo-me da falta de atenção da minha amada e termino a cena
“encontrando” o caminho para o coração das “jovens”: o ouro!
14
A dramaturgia é uma livre adaptação do texto trabalhado no Arlecchino Errante Invernale\2009, cedido, por
Merisi e Contin, aos alunos daquele workshop. A cena foi trabalhada por mim e supervisionada por Contin e
Merisi durante o evento. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese.
MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.5 – CAPITANO: 4.5.3 – CAPITANO – clip. 4.5.4 –
CAPITANO – cena. 295
Aqui, utilizo um pedaço do poema que é utilizado no espetáculo “Papaietta Poliglota”,
de domínio popular.
Reafirmo, na minha saída, que o grande problema é que sou sempre “mal”
compreendido pelas mulheres.
Poreto Pantalon sfortunao.
Oooohhhhh! Che bella cosa.... che bella cosa
Poter mirar, le galanterie d’una bella zovina...
E che comand é me che
E che ghe la mi ca che
O sa í che a e che e che
O sa í che a e che e che
E che comand é me che
E che ghe la mi ca che
O sa í che a e che e che
Son il padrum...
E sí.. mi son il padrum ma la Clariceta é la padrona del padrum...
O poreto Pantalon sfortunao...
Che la Clariceta no’ la me consola e no’ la me comprende, ma anzi, la se burletta
de mi e la se difende.
So bem parche la gha cosi tanta soperbia!
Parche la xé bella e zovene, e mi son vecchio e debole, e de natura docile...
La fa la serva a tutti, ma quando che passo mi la se sdrizza tutta
Con brutt’occhio e naso alzao
La fa cussi parche la sa che son innamorao
Oh le done.... é si... ghe vo l’oro con le done
Ostrega... ostrega!?
L’oro xé dell’amor La necessaria scorta
Con la chiave d’oro Si apri ogni porta
Ma poi... l’amor si fa da tirano
E grazie non fa che non ritornano in dano...
le done e l’oro quanto ne combinano
no no no ... no cussi non va
il vecchio Pantalon é sempre ma cciapa... no no no ... no cussi non va
il vecchio Pantalon ormai é sempre ma cciapa...15
Com a máscara do Pantalone, termino a parte das máscaras masculinas da aulaespetáculo. Começo, então, a apresentação das máscaras femininas.
Começo falando da máscara da cena que será apresentada em seguida: a Cortigiana.
Para falar da Cortigiana devo mostrar as duas facetas que a constituem: uma nobre, Nobile; e
outra servil, a Servetta. Para que o público entenda a complexidade da máscara da Cortigiana,
apresento as características e máscaras físicas das duas facetas que a formam. Primeiro falo da
Servetta, suas características, sua máscara física e dos códigos das práticas espetaculares
populares que utilizo para dar vida e apropriar-me desta. Depois, falo da Nobile, seguindo a
15
O texto é uma livre adaptação, feita por mim, de um monólogo de Pantalone extraído da peça “Bancarrota” de
Goldoni, com o acréscimo de músicas populares italianas, em dialeto bergamasco e friulano\veneto. É possível
ver o clip da cena ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO
CALEIDOSCÓPICA: 4.4 - PANTALONE: 4.4.3 – PANTALONE – clip. 4.4.4 – PANTALONE – cena. 296
mesma ordem explicativa. Após falar e mostrar as duas máscaras dell’arte que formam a
máscara da Cortigiana, mostro como elas se fundem através da cena.
O texto da cena que o público assiste foi criado a partir de cartas que comentam o
teatro que se apresentava como “commedia dell’arte” e como são as mulheres que realizam
este gênero de teatro. Os trechos foram extraídos do livro de Roberto Tessari “Commedia
dell’Arte: La Maschera e l’Ombra” (1981), que, para a cena, sofreram adaptações. A segunda
parte da cena é o texto que Contin e Merisi ocuparam, também, no espetáculo “Né Serva, Né
Padrona” e, posteriormente, integraram ao espetáculo “Papaietta Poliglota”. Como dito
anteriormente, é um texto extraído de um documento muito antigo, escrito por Perrucci e
divulgado por Tessari, desse modo, não faz parte do acervo da Scuola Sperimentale
dell’Attore e sim, já faz parte do domínio público. Por isso, decidi manter a cena nesta aulademonstração, porque é uma fala importante para o conhecimento da situação das atrizes da
commedia dell’arte.
Na cena, como Cortigiana, falo “Cos’é le donne e la Commedia dell’Arte”.
Si deve a storie come questa il fenômeno strano per cui la Commedia dell’Arte
continua a vivere nell’immaginazione di oggi, senza appoggiarsi tanto a testi, né a
una tradizione cosí vivente, ma solo a immagini e descrizioni.
Il modo in cui essa soppravive nella tradizione del teatro moderno si intreccia e si
sovvrappone alla sua storia.
La Commedia dell’Arte , tradizione errante che girou pelo mundo é oscurta dalle
leggende che si sono fissate e dai simboli che sono spuntati intorno ad essa.
Dalla pura immagine, per exempio, di un teatro che nasconde e supera i suoi limiti,
libero e chiuso dalla maschera. Perché pur essendone l’emblema la maschera
spinge magia e religine nella commedia e, sul vulto dell’attore, una dimensione più
ampia dell’umano16.
Cosi com’é successo con il Zanni bergamasco, con l’Arlecchino diavoletto e .. le
Donne...si le donne erano le streghe... oh le done.. le done.
Oh, che gusto per una donna che si possa pregiare del grazioso titolo di Signora!
Oh, che gusto per una donna... l’andar ad una gran città, si è, et esser tal volta
incontrata da nobili cavalieri, con carruagens da 4 o da 6 posti.
E vedersi condotta a preparate stanze, et ivi ricever subito regali, rinfreschi e
petiscos per far banchetti lauti e deliziosi...
Oh, che bella, anzi bellissima cosa, si è, ricevere onori grandi e gran presenti... e
alla fine tenere speranza, per la notte, d’aver l’onore d’una nobilissima
“consumazione”17.
Come si favela della famosa Comica Isabella Andreini... e d’altre Comiche molto
celebrate – come mi.
Che bella cosa far la commediante, che bella cosa far la commediante, ma poi toca
servire, ma poi toca servire, ma poi toca servire il mio padrone... (transformando a
canção emsamba)
MANDI... AXÉ A TUTTI!!! (fazendo um agradecimento e saíndo de cena)18
16
Inspirado nos escritos de Tessari do livro Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra. Pp.15-61 17
Inspirado nas cartas do jesuíta Domenico Otteneli, do livro de Tessari Commedia dell’Arte: La Maschera e
l’Ombra. P.22. 18
É possível ver o clip da cena ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO
CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.4 – COS’É “LE DONNE E LA
COMMEDIA DELL’ARTE” – clip. 4.2.4 – COS’É “LE DONNE E LA COMMEDIA DELL’ARTE” – cena. 297
As luzes se apagam e saio de cena.
298
ANEXO A – IMAGENS GRÁFICAS
IMAGEM GRÁFICA nº1 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres.
Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 59.
IMAGEM GRÁFICA nº2 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres.
Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 63.
299
IMAGEM GRÁFICA nº3 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres.
Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 65.
IMAGEM GRÁFICA nº4 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres.
Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 70.
300
ANEXO B – “ARLECCHINO E LA VALLE DELL’OMO”
Fragmentos do Espetáculo “Arlecchino e la Valle dell’Omo”.
Direção Geral: Ferruccio Merisi.
Texto e criação das Cenas do Bufão Murcia: Joice Aglae.
Data da apresentação do espetáculo: 26 06 2008
MURCIA E O VALE
Oração inicial (...)
Canto... inicial
All’ inizio era il buio... (cuspir fogo)
All’inizio era il Valle...
E il Valle fu il “Vale dell’Uomo”
(pegar a bandeja com as velas, tendo debaixo o pote com o sal)
4 miglioni d’anni fá.
Ascender 3 velas
Australopithecus…
Paranthropus…
Kenyanthropus…
Tutti e tre assai prolifici, padri di ben nove specie…
Acender 3 velas
Si dice oggi che eravate quasi scimmie
Eh, come se “scimmia” fosse “meno”…
Acender 2 velas
l’Uomo Abilis! e l’Uomo Rudolfensis
i primi a lavorare la pietra... grande passo avanti di civiltà...
(pegar a bacia com água)
due miglioni di anni fa!
E doppo,
Acender 2 velas
Homo Ergaster e Homo Erectus (duas pessoas sentadas juntas)
insieme, come allora: voi coabitavate
E tutto questa vita, ancora nel Vale dell’Omo, nella vostra Africa Orientale.
Pegar 2 velas
301
Viva. (brinde)
I primi a dominare il fuocco (passar mãos sobre o fogo), Erectus e Ergaster,... e i primi a caminare
sopra due piedi (colocar velas no lugar) davvero grande passo avanti di civiltà !!!!!
Pegar 2 velas
Viva. (brinde)
Acender velas
Sempre voi. i primi a uscire dell’Africa... attraverso il Medio Oriente verso la vostra Europa e
poi l’Asia...
(pegar uma vela) Ed ecco l’Homo Sapiens”, beata gioventù, quindici o venti …centinaia di
migliaia di anni.
Ma dov’è Neandertal?! (olhar para as velas e para as pessoas) Neandertal!!!!... che dicono
giovane come voi. (pegar 3 velas e ascender – levar para os Zanni e Arlecchino)
Neandertal????!!!!
Si dice che Sapiens ha vinto…
Neandertal kaputt.
Neandertal era una specie diversa o era una tua sottospecie? (urinar o sal)
Cenas....
Sapiens (passe de cabeça com o sal), colui che ragiona, per questo ha vinto... dicono… (fazer
círculo pequeno ao redor da vela central)
Pegar as ervas - ma non è più così certo che sempre hanno vinto i migliori.
Così ormai in tutto l’Universo dei viventi, “evoluto” significa solo sopravvissuto alla sfida
con l’ambiente.... E il Caso e la Crudeltà spesso aiutano sopravvivere più del patrimonio
fisico, più della intelligenza, più della scienza.
E cosí dopo di tutti voi venne e fu Re il Sapiens.
Caminhada no círculo - Che ha ingrandito il Vale dell’Omo fino al Vale di Neander, fino a
tutta la Pianeta Terra e oltre.... Valle di sangue, Valle di lacrima…Ma, voi sapete cos’é un
vale? Un vale é un posto dove c’é vita… Dove c’è vita! Dov’è finita la vita?
Ritual do Sal - fazer o círculo com o sal, por trás do público
Sale: Petraia d’anime.
Nel maré si crea
Nel sole si fa in pietra
“Pietre, cantate i destini!”
Destino svilupasi nel tempo – grande giudice e consigliere
Destino/tempo trasformatore...
302
“Sale: petraia d’anime!”
Che alzasi in muri
Che fortifica e fa fortezza
Sale del mondo: in corpo, carne, sangue, lacrime e sudori
Sale della vita
Vita in camminata in questo mundo
dove trova nido nel cuore del roccaforte salina
Ritual das ervas
Essere di sale e vita...
Essere di sale e forza...
Proteto di qualsiasi male rinvigorasi
Nell’incontro con il vento
ritrova suo camino in aira e sabia – salnitro.
Nell’incontro con la pioggia
ritrova sua liquifazione
ed in tempesta di auguri
scapa al tuo destino mare
- salasso del mondo –
Riprende la tua vita acqua e
Ricomincia un nuovo ciclo...
(olhando a água) Sapiens Sapiens, dove tu sei?
Circundando a bacia com as ervas
All’inizio era il Valle... l’Uomo Sapiens Sapiens l’ha coperta, tutta, con il proprio sangue, il
proprio seme, le proprie creature, le proprie invenzioni… e anche con l’ombra di tutto
questo…
l’ombra…là dove il cervello non vuole andare, perché ha paura di non sopravvivere…
Olhando as imagens na água e girando com os dedos - L’ombra che ti fa egoista, che ti rende
schiavo del tuo oro, giallo o nero che sia, che ti rende schiavista verso i poveri, che ti fa usare
la religione come una assicurazione ben pagata, che ti fa usare il potere come una
religione…L’Ombra…L’ombra che come un’immondizia non riciclabile ha coperto tutto…
(olhando a água) Sapiens Sapiens, dove tu sei?
Nel Valle della Salvezza, dopo la morte?!?!? Davvero?
Hai fatto tutto quello che volevi e, nel Valle delle Ossa ti sei pentito in tempo e ora riposi
nella perfezione della Valle di Dio?!!!
303
Scusate-mi... Scusate-mi... Scusate-mi... Scusate-mi
All’inizio era il Vale... adesso é il buio! (apaga a vela com a boca)
Canção –
PRIEGHERA
Donne-moi votre cerveau
Donne-moi votre cerveau brillant
en feu, en lumiére...
Dammi vostri cervelli
Dammi vostri cervelli luminosi
In luce, in fuoco, in brace, in cenere...
Dammi vostri cervelli in fuoco, in carbone...
Dammi vostri cervelli bruciato
In cenere e carbono
Dammi vostri cervelli bruciati di tanto pensare....
Di tanto pensare che pensa.
Io figlio del zolfo e del carbono, che digerisco l’indigesto ...
Senza renderti conto ti conosco all rovescio
“antropofagico” in natura,
Mangioti per fortificarmi... mangioti per fortificarti
Mangioti per fortificarmi... ti erutto per fortificarti...
Anche gli escrementi servono come concime...
E del concime puo revenire la vita... altra volta
Vita e morte - tutto si rincontra in me...
quello che é stato e quelo che sará...
Io, figlio del zolfo e del carbone...
Sputa in questa faccia che ti baccia!
(dançando)
Sputa in questa faccia che ti baccia!
Sputa in questa faccia che ti baccia!
Sputa in questa faccia che ti baccia!
Sputa in questa faccia che ti baccia!
(Parando de repente)
304
É sempre cosí... Ogni volte che vengo qui..
O é troppo presto o é troppo tardi...
oppure non parlo la lingua ...
(pega um celular)
Madre? Qui - terra, pronto al teletrasporto.
Salta no fosso.
305
ANEXO C – PUBLICIDADE 1
Publicidades (Web) do Curso “VIVA! Danzare per vivere” (de 16 a 22\junho\2008) e
do Evento “ARREIA” (23\junho\2008), expedido pela Scuola Sperimentale
dell’Attore.
306
307
ANEXO D – PUBLICIDADE 2
Matérias de publicidade do espetáculo, divulgado nos jornais da região, na época.
308 ANEXO E – PUBLICIDADE 3
308
309
ANEXO F –
CARTAZ 1
310
ANEXO G – PROGRAMA 1
311
ANEXO H- PROGRAMA 2
Toda a programação pode ser acessada, em
detalhes, no site do festival:
www.arlecchinoerrante.com
www.arlecchinoerrante.com 312
ANEXO I – “L´ARLECCHINO ERRANTE”
Espetáculo: “The Holy Fool”
Data: 21 009 2008
313
ANEXO J – IMAGENS “ALLA RICERCA DI UN ZANNI”
Mascara física continiana do Brighella
Desenho de Alice Mosanghini, a partir da imagem da atriz
Veronica Risatti
As imagens abaixo são da cena “Alla ricerca di un Zanni”
(Adaptação DireçãoInterpretação: Joice Aglae), construída com
a técnica de translocação caleidoscópica. A partir do desenho ao
lado e da comparação deste com as imagens abaixo, pode-se
perceber semelhanças do mesmo com as imagens criadas a
partir da técnica citada, com isso, pode-se pensar que a técnica
de transdução caleidoscópica também pode ser utilizada para a máscara dell’arte do
Brighella.
Fotos: Léo Azevedo
Outubro2009
314
ANEXO L – DVD
Foto: Verônica Rizatti