[Unlocked] Microsoft Word - PRÉ-TEXTO - RI UFBA
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[Unlocked] Microsoft Word - PRÉ-TEXTO - RI UFBA
JOICE AGLAE BRONDANI VARDA CHE BAUCCO! TRANSCURSOS FLUVIAIS DE UMA PESQUISATRIZ: Bufão, Commedia Dell’arte e Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas. Orientadora: Profª Drª Antônia Pereira. Salvador 2010 Escola de Teatro - UFBA Brondani, Joice Aglae. Varda che baucco!transcursos fluviais de uma peaquisatriz: bufão, commedia dell’arte e manifestações espetaculares populares brasileiras / Joice Aglae Brondani. - 2010. 314 f.: il. Orientadora: Profª. Drª. Antônia Pereira. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2010. 1. Imagem. 2. Imaginário. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. II. Pereira, Antônia. III. Título. CDD 153. 32 Dedico a Pedro José Brondani e Zenita Stefanello Brondani, meus pais e totens, por me ensinarem a viver, a sonhar e a amar. A Vanderlei Brondani, pela mão que sempre encontro estendida em sua forte presença e a Sidnei Brondani, pela força que me empresta - meus irmãos e heróis – cavaleiros da armadura brilhante. AGRADECIMENTOS A Érico José, pelo amor que transpassa nossas vidas e almas. Pela presença e ausência, pelas discussões e silêncios, pela força e delicadeza, pelas lágrimas e sorrisos, pelas alegrias e tristezas, enfim, por aquilo que vale a pena. A Antônia Pereira Bezerra, pela amizade e pacienciosa orientação. A Sônia Lúcia Rangel, pela poesia. A Maria de Lourdes Rabetti, pela atenção, força e amizade. A Daniel Marques da Silva, pelas inquietantes e enriquecedoras anotações. A Raimundo Matos de Leão, pela disponibilidade. Ao CNPQ, pela subvenção destinada ao desenvolvimento desta pesquisa, sem o qual a mesma não teria acontecido. Ao PPGAC-UFBA, por acolher esta pesquisa. A Léo Azevedo, pelo afeto que comove o olhar atento atrás da lente fotográfica. Pelo tempo dedicado (fotografias e filmagens), embarcando e acreditando no trabalho. A Giuliano Campo, pela confiança em apresentar meu projeto aos orientadores da Università di Roma Tre - Nicola Savarese e Raimundo Guarino. A Savarese, por me aceitar e a Guarino, por me receber como orientanda. A Claudia Contin, pelo tempo desprendido, flores e folhas, risadas e trabalho. A Ferruccio Merisi, pelas oportunidades. A Verônica Risatti, pelo belo encontro, pela amizade, fotografias, revisões de tradução e prossecchi. A Alice Mosanghini, pela crença e desenhos. A Lucia Zaghet, pela atenção e disponibilidade. A Alessio Prosser, pela compreensão e acolhida. A Dr. Davide Porporato, pelo interesse em dialogar com a alteridade. Ao Mestre Alabama, pelos muitos anos de apoio a esta pesquisa, pela generosidade e capoeiragem. A Peri Stefanello pelas ídas ao consulado. A Selvino e Inês Stefanello Rolon, por serem tios e amigos. A Cristina e Lorena Zani, pela companhia. Ao Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá (RS). Ao Ilê Axé Iyá Nassô Oka Terreiro da Casa Branca (BA). A Ekedy Sinha (Gersonice Azevedo Brandão). A Renato Wilians Carneiro, pela gentileza. Ao Ilê Axé Pony Solayo (BA). A Pai Carlos de Xangô (BA) e a Mãe Cutu (PR), pelo Axé. A Sérge e Cristina Pechiné, pelo Axé, apoio e traduções. Ao professor “Marquinho” e membros da Associação ACACI – Sacile, pela calorosa recepção e capoeira nos dias do inverno italiano. A “família Rabello”, em especial a Andréa Rabello, pelos dias de refúgio e amistosas companhias. A Diana Ramos, Fabiana Monçalu, Fernando Lopes, Flavia Gaudêncio, Jorge Baia, Maryvonne Coutrôt e Simone Araújo, pelas horas de ensaios, momentos de amizades e companheirismo. A Samuel André, pelos dias de luz. A Rosana Alves Brondani, Nica Alves e Enzo Alves Brondani, pelas alegres presenças. A Paulo e Cristina Rodrigues, pela força sem mesura. A Diego Nicolini, pelas imagens editadas. A Nair D’Agostini, pela maestria e amizade. A Inês Marocco, por me apresentar a Commedia dell’Arte. A Paulo Marcio Pereira, por andar em caminhos alternativos e me apresentar o teatro. A Beatriz Pippi, Gisela Biancalana e Adriana Dal Forno, pelos anos de ensinamentos e estudos. RESUMO A presente tese vem apresentar uma pesquisa que possui como ponto de partida as teorias sobre imagem e imaginário, em Bachelard, apoiando-se, também, na ideia bachelardiana de um Fundo Comum dos Sonhos que se perpetua e se renova através de um DNA imaginal que punge a realidade por meio dos impulsos criativos e atitudes lúdicas, agindo no corpo do pesquisator, através de um processo de imaginação e de, segundo Lecoq, um Fundo Poético Comum. Tais processos de pungências, na realidade objetiva, alastram-se rizomaticamente por toda a história da humanidade, não tendo limites de tempo, cultura, espaço e território. Advindo de uma esfera imaterial, mas sensível, o DNA imaginal conecta-se aos Bufões, às manifestações espetaculares populares brasileiras e às máscaras dell’arte e é, principalmente, através dele e da formação de circuitos musculares e energéticos, que é possível acessar as máscaras da commedia dell’arte, fazendo um transcurso pelas técnicas do Bufão, de translocação e transdução caleidoscópicas. Palavras-chaves: Imagem. Imaginário. Bufão. Commedia dell’Arte. Práticas Espetaculares Populares Brasileiras. Translocação Caleidoscópia. Transdução Caleidoscópia. RÉSUMÉ Cette thèse fait état d’une recherche qui repose sur les théories de Bachelard sur l’image et l’imaginaire. Elle s’appuie aussi sur son idée de Fond Commun des Rêves qui se perpétue et se rénove au travers d’un DNA imaginal qui aiguillonne la réalité au moyen des impulsions créatives et des atitudes ludiques et agissant dans le corps du chercheur par un processus d’imagination et d’un Fonds Poétique Commun developpé par Lecoq. De tels processus d’inspiration sur la réalité objective se répande de façon “rhizomorphe” durant toute l’histoire de l’humanité, sans limites de temps, de culture, d’espace et de territoire. Venant d’une sphère immatérielle mais sensible, le DNA imaginal atteint les Bouffons, les manisfestations spectaculaires populaires brésiliennes et les masques dell’arte. C’est principalement par ce DNA et la formation de circuits musculaires et énergétiques qu’il est possible d’accéder aux masques de la commedia dell’arte en faisant un passage par les techniques du Bouffon de translocation et de transduction kaléidoscopique. Mots-clès: Image. Imaginaire . Bouffons. Commedia dell’Arte. Manisfestations Spectaculaires Populaires Brésiliennes . Translocation Kaléidoscopique. Transduction Kaléidoscopique. SINTESI La presente tesi espone una ricerca che ha come punto di partenza le teorie relative all’immagine e all’immaginario, di Bacherland, sostenuta, inoltre, dall’idea bachelardiana di un Fond commum des rêves1 che si perpetua e si rinnova attraverso un DNA immaginifico che punzecchia la realtà per mezzo di impulsi creativi e attitudini ludiche, agendo nel corpo del ricercattore, attraverso un processo di immaginazione e di, secondo Lecoq, una Fondo Poetico Comune. Tali processi di punzecchiatura della realtà oggettiva, si propagano di modo “rizomatico” in tutta la storia dell’umanità, senza limiti di tempo, cultura, spazio, territorio. Provenendo da una sfera immateriale, però sensibile, il DNA immaginifico si connette ai Buffoni, alle manifestazioni spettacolari popolari brasiliane e alle Maschere dell’Arte ed è, principalmente attraverso questo e dalla formazione di fasce muscolari e circuiti energetici, che è possibile accedere le maschere della commedia dell’arte attraverso un percorso nella tecnica del Buffone, della traslocazione e della trasduzione caleidoscopica. Parole-chiave: Immagine. Immaginário. Buffoni. Commedia dell’Arte. Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasilian. Traslocazione caleidoscopica. Trasduzione caleidoscopica 1 A expressão encontrada na língua italiana para designar o que, em português, foi traduzido como Fundo Comum dos Sonhos é “primato superiore dei sogni”, mas preferiu-se deixar a expressão na língua na qual foi escrita. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .................................................................................................................10 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13 2. (UM) UNIVERSO (E UM) IMAGINÁRIO ..................................................................... 22 2.1. IMAGEM / IMAGINÁRIO: O MAR EM QUE SE MERGULHA .................................. 22 2.2. MANIFESTAÇÕES ESPETACULARES POPULARES: PERPÉTUO IMAGINÁRIO 37 2.3. CONEXÕES INUNDADAS: MÁSCARAS, CARNAVAIS E BUFÕES........................ 63 2.3.1. O bufão e algumas conexões ........................................................................................ 67 3. ATITUDES LÚDICAS....................................................................................................... 88 3. 1. O BUFÃO: CORPO-MÁSCARA – UMA DESCOBERTA............................................ 88 3. 2. O BUFÃO: UM ESPETÁCULO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS ................................. 104 3. 2. 1. Fato(s) do Brasil – um espetáculo satírico............................................................. 105 3. 2. 2. “A Prece”, “A Oração” e “Arlecchino e la Valle dell’Omo” ................................ 113 3.3. UNIVERSOS CONECTIVOS: O BUFÃO; O ZANNI E .. ............................................ 119 4. FESTATOLAS DE TRANSDUÇÕES – TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA DELL´ARTE ......................................................................................................................... 140 4.1. TRANSLOCAÇÃO: TÉCNICA MOTRIZ PARA A TRANSDUÇÃO ......................... 145 4.2. DE FESTAROLAS A TRANSDUÇÕES: ZANN PIEDINNI ........................................ 170 5. IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS.............................................. 189 5.1. SERVETTA “PAPAIETTA”, A CORTIGIANA ENAMORADA: MÁSCARAS FEMININAS DA COMMEDIA DELL’ARTE........................................................................ 192 5.1.1. “Né Serva, né Padrona” .............................................................................................. 205 5.1.2. Preparação do espetáculo para Papaietta ................................................................ 208 5.2. PANTALONE, IL VECCHIETO PICANTIN / O VELHINHO PICANTEZINHO ......... 209 5.3. THE HOLY FOOL: CAPITANO E BRIGHELLA ......................................................... 216 5.3.1. Brighella, o zanni trabalhador .................................................................................. 218 5.3.2. Capitano: o “grande” guerreador............................................................................. 223 5.4. ARLECCHINO, O ZANNI ESPERTO........................................................................... 230 6. CONCLUSÃO................................................................................................................... 239 REFERÊNCIA .................................................................................................................... 244 APÊNDICE A - FATO(S) DO BRASIL ............................................................................. 262 APÊNDICE B - A ORAÇÃO ................................................................................................ 265 APÊNDICE C - “ALLA RICERCA DI UN ZANNI”.......................................................... 271 APÊNDICE D - RELATÓRIO DE ATIVIDADES ........................................................... 274 APÊNDICE E - SOBRE PAPAIETA E TRANSDUÇÕES .............................................. 280 ANEXO A – IMAGENS GRÁFICAS................................................................................. 298 ANEXO B - “ARLECCHINO E LA VALLE DELL’OMO”.............................................. 304 ANEXO C – PUBLICIDADE 1........................................................................................... 305 ANEXO D – PUBLICIDADE 2........................................................................................... 307 ANEXO E – PUBLICIDADE 3 ........................................................................................... 308 ANEXO F – CARTAZ ........................................................................................................ 309 ANEXO G – PROGRAMA 1............................................................................................... 310 ANEXO H – PROGRAMA 2............................................................................................... 311 ANEXO I – “L´ARLECCHINNO ERRANTE”................................................................... 312 ANEXO J - IMAGENS “ALLA RICERCA DI UN ZANNI” ............................................. 313 ANEXO L – DVD ................................................................................................................. 314 10 APRESENTAÇÃO Esta tese intitulada “VARDA CHE BAUCCO! TRANSCURSOS FLUVIAIS DE UMA PESQUISATRIZ: BUFÃO, COMMEDIA DELL’ARTE E MANIFESTAÇÕES ESPETACULARES POPULARES BRASILEIRAS” vem apresentar uma pesquisa que foi engendrada ao longo de alguns anos. Anos estes que antecedem o período da mesma, dentro da instituição universitária – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia – pois teve seu início na imaginação de uma criança. Considerando uma imaginação que retumba e pulsa de maneira sutil e continua na sua silenciosa equação, quando ouvia meus nonnos⁄avós e genitori⁄pais falarem em dialeto italiano, navegava entre mundos brasileiros e italianos, num universo imaginário sem fronteiras e passaportes. Quando fazíamos brincadeiras, atrapalhávamo-nos com alguma ordem dada por eles, ou ainda, quando fazíamos travessuras, meu pai falava logo “Ma varda che baucco!”. Traduzindo de modo coloquial, “Varda che baucco” é uma espécie de advertência jocosa “Mas olha que maluco! Que coisa de louco! Mas, que loucura!” e escutá-la me fazia rir muito. Cresci ouvindo esta e outras expressões veneto-friulanas, como também ouvindo minha mãe falar da “Mãe Preta”, no caso, minha bisnonna⁄bisavó por parte da mãe, uma negra fugida dos arredores de Salvador, que encantou meu bisnono, recém-chegado das terras estrangeiras, e partiu com ele para o sul do Brasil. A partir desta “convivência” com Salvador e Itália, estes mundos longínquos integravam o grupo de cidades/países/lugares que visitava diariamente em minha imaginação. O tom jocoso da expressão advinda da região de Veneza, região na qual, segundo Fausto Nicolini (1993), a Commedia dell’Arte fez seu grande nicho na Itália, traduz, também, um pouco do que é esta tese: um transcurso que, no primeiro olhar, parece um emaranhado de conceitos enredados de forma “baucca”. Pois, para se apropriar das máscaras dell’arte, faz-se um percurso através da construção de uma técnica de bufão, depois, da edificação de uma técnica que traz como base a assimilação da própria cultura, para então apresentar um caminho de possível acesso e apropriação destas máscaras. Diz-se que o caminho escolhido é, de certa forma, baucco, porque se poderia, simplesmente, entrar em uma escola italiana de commedia dell’arte e seguir toda a sua formação, de acordo com as metodologias que estas apresentam. Mas investigam-se os processos criativos que se realizaram ao longo de um percurso e, esta atriz e pesquisadora, 11 esta pesquisatriz - cujo termo foi adotado por achar que ele dá conta desta natureza do ator de processos criativos, um ator que não se detém à atuação e se estende às questões teóricas que envolvem e adentram a pesquisa1 - foi comovida a estruturá-los e aqui os apresenta como tese. Não foi somente o desejo de aprender a commedia dell’arte, mas de apreendê-la através do próprio referencial cultural popular brasileiro. Talvez, por ter convivido, de certa forma, com as culturas, italiana e brasileira, na minha imaginação, as duas sempre estiveram relacionadas e faziam/fazem parte da minha convivência. Os transcursos que tento delinear aqui fazem parte destes engendramentos que se alimentaram na lembrança e na imaginação, aliados a movimentos de afetos que foram acontecendo ao longo de minha formação teatral. Todas estas afetações entre passado, presente e futuro, encontraram/encontram um espaço de sonho e de poética para se realizar, um espaço que se transforma/metamorfoseia-se em um corpo que atua e se realiza em impulso criativo. São impulsos que, aos poucos, vão-se deixando desvelar, mostrando suas vertentes rizomáticas, transbordamentos e capacidades de agregações. Neste processo, foi difícil deixar de lado alguns dados, algumas práticas espetaculares populares brasileiras, mas era necessário, se não limitar, ao menos, delinear uma área de atuação, sem descartar aquelas que não foram contempladas, mas também não abraçando todas as práticas espetaculares populares brasileiras e máscaras dell’arte italianas, pois seria um horizonte muito vasto. Para realizar um vislumbramento dos “recortes” desta tese, foi necessário adotar algum tipo de critério, não se desejava anular, reduzir ou negar experiências que colaboraram para o transcurso realizado, mas buscar um modo de qualificação. Então, todo o processo passou a ter como “norte” as profundas experiências sensíveis. Nesta perspectiva, a técnica do Bufão que foi criada traz a percepção da parte mítica e do universo dionisíaco que é inerente à máscara. Não seria possível viver a experiência mitificante e mistificante nas máscaras dell’arte se não soubesse de onde advinha a força misteriosa das mesmas. A segunda técnica que integra o transcurso de apropriação das máscaras dell’arte consiste em um processo de assimilação da própria cultura popular brasileira, para daí, a partir dela, apropriar-me da cultura da alteridade. 1 O termo “pesquisator” já tinha sido utilizado pela Drª Maria de Lourdes Rabetti, no ano de 1994 (no mês de maio). O termo consta no programa da leitura pública da peça “O dote” de Artur Azevedo (RABETTI, 1994, p.4-5). 12 A terceira técnica, na verdade, não é de commedia dell’arte, mas uma técnica de acesso e apropriação das máscaras da commedia dell’arte continianas, a qual, para acontecer, apoia-se nas duas anteriores. Esta técnica constitui o nó impulsionador desta tese, pois, foi o vislumbramento dela que deu início à busca de uma estruturação do transcurso desenvolvido por esta pesquisatriz, um caminho que “funde” as três técnicas apresentadas nesta tese. Nas máscaras dell’arte, a pesquisa reteve-se nas máscaras do Zanni, Servetta, Nobile, Cortigiana, Pantalone, Capitano, Brighella e Arlecchino (todas as máscaras são contextualizadas no Capítulo IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS) e nas manifestações brasileiras da Capoeira, Maculelê, Maracatu, Coco, Ciranda, Xaxado, Caboclinho, Frevo, Samba, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás2 (as práticas espetaculares populares brasileiras são contextualizadas no Capítulo FESTAROLAS DE TRANSDUÇÕES – TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA DELL´ARTE). Como pesquisatriz movida por afetos, sei que certos caminhos podem ser complicados, mas também sinto que, quando aspectos sensíveis são movidos, podem existir conexões que fogem de uma lógica racional, agindo no campo da subjetividade. É este aluvião subjacente do imaginário de uma pesquisatriz que tento emergir, estruturando-o em técnicas para a cena. Nada mais que memória e imaginação, este é o conteúdo imaterial que trabalho, transformando-o em material de cena e de estudo. 2 É necessário deixar claro que, nesta pesquisa, são enfocadas as “danças dos Orixás” e não as religiões afrobrasileiras (Candomblé, Umbanda e vertentes), das quais tais danças fazem parte. Mas é claro que serão realizadas algumas explicações destas religiões, para contextualizar as danças, quando necessário. 13 1. INTRODUÇÃO Ao iniciar as conjecturas que relatam o transcurso de desenvolvimento desta tese, devo anunciar que considero como primeiro pressuposto a fala de que este processo de pesquisa está submerso na subjetividade. Isto não significa que se trata de uma experiência sem profundidade, uma vez que diz respeito a um estudo objetivo e concreto dentro do que se propõe: uma possibilidade de acesso às Máscaras dell’Arte através de células de Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras, a partir de experiências vividas sensivelmente. Quando afirmo que esta pesquisa é submersa na subjetividade, tenho o desejo de sublinhar que a mesma foi movida por um primeiro impulso sensível e que a busca pela compreensão teórica dos afetos que moviam este impulso surgiu de maneira consequencial e necessária. Dentro destas expectativas, afirmo ainda que o mar em que esta se encontra mergulhada está, numa primeira e/ou última instância, nesta interlocutora (entre locução), pois foi quem inicialmente percebeu sensivelmente a ação deste imaginário. Escrevo como alguém que experienciou a ação do imaginário no próprio corpo, em atitude lúdica e imaginação. Quanto às especificidades concernentes a esta explanação, alerto para o fato de que: “Esta pesquisa flutua!”. Mais uma vez, devo chamar a atenção para uma expressão que utilizo e destacá-la como a exclamação advinda da constatação de que ela não possui uma âncora lançada em terra firme, ela é uma jangada flutuando em mar aberto e que, principalmente, não terminará com esta tese, continuará flutuando em novos mares e oceanos, redescobrindo-se em possibilidades e desdobramentos, por isso a ideia de não ancorar, mas de vaguear ou vadiar1. O processo criativo que apresento alimenta-se de subjetividade, movimenta-se num imaginário, um espaço tão movediço que somente aqueles que experimentam e se co-movem através dele podem comprovar seu furor. Um processo no qual as relações imagéticas são de grande importância, e suas inúmeras articulações são as fontes de comoção para o acesso à commedia dell’arte. Antes de prosseguir com as considerações sobre esta pesquisa e as dinâmicas 1 Algumas utilizações do termo vadiar, segundo o Dicionário Virtual Houaiss 1.0: passear de um lado para outro, vaguear; entreter-se com jogos, brincadeiras, divertir-se; jogar capoeira; nos candomblés de caboclo, dançar segundo o rito. 14 conectivas dialógicas entre a commedia dell’arte e as manifestações espetaculares populares brasileiras, é preciso especificar de quais manifestações espetaculares populares brasileiras, está-se fazendo referência e de qual commedia dell’arte e Máscaras dell’arte este estudo dá conta. Começo destacando que a prática dentro das manifestações espetaculares populares brasileiras que envolvem esta pesquisa estende-se ao Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Capoeira, Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás2. Tais manifestações espetaculares populares brasileiras que integram a pesquisa não foram escolhidas segundo preceitos ou padrões, foi o corpo, a musculatura, que as requeria como suporte. Para cada máscara que trabalhava, o corpo foi buscar, nos circuitos musculares que já conhecia, a força propulsora e energética que necessitava para fazer uso e apropriar-se das máscaras dell’arte - como se procurasse um caminho conhecido para chegar ao “novo” que se apresentava como experiência. Por este motivo, não é possível criar um elenco de justificativas para a eleição e uso de cada manifestação citada, como também não é possível justificar a ausência de outras. Certamente, se a pesquisa tivesse outras experiências dentro da commedia dell’arte para relatar e/ou se estendesse por um tempo maior, outras manifestações espetaculares populares brasileiras seriam utilizadas e elencadas. Como já dito, é o corpo que vai buscar o circuito que lhe serve como ponto referencial de musculatura, energia e ação. A escolha das manifestações brasileiras e das máscaras dell’arte que integram esta pesquisa são dados flutuantes concordando com Deleuze, quando este cita Hume, que o dado é “[...] o fluxo do sensível, uma coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções” (DELEUZE, 2008, p. 95). Com isso, não é possível fechar a pesquisa em um número fixo de manifestações, tanto brasileiras quanto italianas. Quero dizer que a pesquisa poderia estender-se por todas as manifestações espetaculares populares brasileiras e todas as máscaras dell’arte, mas o elenco que a integra é, somente, uma consequência das experiências adquiridas, tanto dentro das manifestações espetaculares populares brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Capoeira, Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás), quanto das Máscaras dell’arte (Zanni, Brighella, Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Nobile/Innamorata, Pantalone e Capitano). Como já mencionado, se houvesse tempo maior de experienciar, 2 Minha prática na área da dança começou na infância com a ginástica artística e o balé clássico, na adolescência com jazz, dança moderna e cursos de danças populares brasileiras. Posteriormente, a dança acompanha toda minha formação teatral (professora, atriz e diretora) como atividade paralela e, na Pós-Graduação, além de continuar a formação complementar em dança, participava das festividades populares, aprendendo dentro das próprias festas e com os populares. A capoeira já tinha tido contato com ela no Rio Grande do Sul, mas foi em Salvador, com o Mestre Alabama, que tive a prática sistemática desta. 15 certamente as conexões alastrar-se-iam por muitos outros caminhos. Sobre a commedia dell’arte, são muitas as escolas especializadas neste teatro que povoam o território italiano, onde cada qual desenvolve sua estética, estilo e formação de uma técnica. Algumas fazem a commedia dell’arte mais oitocentista, também conhecida como commedia à francesa, outras partem para a linhagem quinhentista ou medieval e, ainda, tem aquelas que trabalham com uma estética mais “veneziana”, que, na verdade, são as máscaras que pertencem ao carnaval de Veneza e não, necessariamente, fazem parte da commedia dell’arte. Esta pesquisa faz referência à commedia dell’arte da Scuola Sperimentale dell’Attore, realizada, redesenhada, defendida e difundida por Claudia Contin e Ferruccio Merisi, importantes pesquisadores (prático-teóricos) da área. Ambos se dedicam à commedia dell’arte mais próxima àquela feita nas praças medievais, de 1400, 1500, 1600, para a qual construíram um treinamento que requer muita aplicação, mas que se mostra muito eficaz para a técnica em que se empenham. Este treinamento é altamente codificado e com máscaras físicas totalmente engendradas do imaginário da cultura popular italiana, o qual se constitui de: golpes de máscaras, máscara física, movimentação codificada das máscaras físicas, improvisação com as máscaras, construção de canovacci (roteiros das peças), construção das máscaras em papel machê e, posteriormente, em couro e trabalho de voz específica para as máscaras. A escolha pela commedia dell’arte continiana tem a ver com uma simpatia pessoal pelo trabalho destes mestres3. Uma perspectiva que convocou meus afetos e conquistou-me de maneira sensível e muito objetiva, pois, através do trabalho destes pesquisadores, tive fortes percepções imaginativas da realização das conexões entre as máscaras da commedia dell’arte e as células de manifestações espetaculares populares brasileiras4. Neste momento, é necessário chamar a atenção para um ponto muito importante desta pesquisa, não se está buscando estabelecer correspondências, traçar paralelos ou fazer comparações entre as manifestações espetaculares populares de ambos os países que integram esta pesquisa, pois se trata de expressões artísticas culturais diversas e de campos diferentes (teatro, dança, luta e ritual). É justamente por se tratar de expressões artístico/culturais tão diversificadas que é impossível, para uma só tese, dar conta do imenso manancial que se forma. 3 Refiro-me a Contin e Merisi como mestres de Commedia dell’Arte, pelo conhecimento (“maestria”) destes dentro deste gênero de teatro. 4 É necessário dizer que foram realizadas experiências também com outras escolas e estilos de commedia dell’arte (Pantakin, Carlo Bosso, Lecoq) e, por fim, optou-se pela escola redesenhada por Contin e ensinada na Scuola Sperimentale dell’Attore. 16 Por esta pesquisa tratar de um percurso muito específico de relações conectivas que aconteceram e acontecem, primeiro, de maneira sensível, é que não se configura da urgência desta tese procurar vínculos de similaridades e correspondências entre as culturas5 destes dois países. Não se pretende equiparar as manifestações espetaculares populares brasileiras concernentes (conjuntamente ou cada uma delas) e a commedia dell’arte (o fenômeno teatral ou cada máscara), porque esta pesquisa navega e mergulha em outros tipos de mares, correntes e oceanos. Considerando os transcursos fluviais desta pesquisa, ter como abordagem questões aproximativas, comparativas ou de equiparações entre a commedia dell’arte e as manifestações espetaculares populares brasileiras provocaria um desvio muito grande do seu cerne. Nesta tese, tenta-se dar conta de um caminho de acesso às máscaras dell’arte muito específico, no qual esta pesquisatriz lançou mão de todo o acervo muscular e energético que possuía para realizá-lo. Não se está negando a importância de relações dialógicas de equiparações, aproximações e comparações, o que se percebe é que cada uma destas seria tema para uma nova pesquisa de tese, pois são outros universos que se abrem a cada conexão estabelecida. Aqui, as relações aconteceram e acontecem em outras vias conectivas, sendo prioridade as conexões musculares e energéticas, o que não significa dizer que relações de outras naturezas não serão convocadas quando há a necessidade destas para uma melhor compreensão das conexões primordiais desta pesquisa. Tal como aconteceu com o Bufão, o qual se tornou parte importantíssima da mesma, pois não se pode esquecer que, para compreender muito das máscaras dell’arte, é preciso compreender, também, o universo carnavalesco: reino do Bufão por excelência. E foi desta maneira que se percebeu a necessidade de entrar nas águas do oceano bufonesco. Tanto como as manifestações espetaculares populares brasileiras, as máscaras dell’arte que integram as experiências desta pesquisa também não tiveram um “processo de seleção”. Num primeiro momento, experimentei todas as principais máscaras dell’arte (Zanni, Brighella, Arlecchino, Pulcinella, Pantalone, Ballanzone, Capitano, Servetta, Cortigiana e Nobili), posteriormente, em intensos laboratórios específicos, experenciei o universo de algumas máscaras e foi a partir desses mergulhos profundos que as conexões foram fortalecendo-se. Como já dito, não foi possível adentrar de modo intenso em todas as dez principais máscaras da commedia dell’arte, faltando aqui, para completar, os mergulhos nas 5 Tomando como ponto de vista parcial, a compreensão de cultura da pesquisadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, a qual compreende cultura como o conjunto de crenças, valores, tradições, vivências, atitudes, visões e compreensões de mundo, que formam um povo. 17 máscaras de Dottore/Ballanzone e Pulcinella. Para tanto, seria necessário prolongar o período das experiências, contudo, como a pesquisa se encaminha dentro de um sistema institucional acadêmico, o qual segue regras e datas, deixarei estas duas máscaras, como também, tantas outras manifestações espetaculares populares brasileiras e conexões entre estas, para vadiagens além desta tese e/ou como encaminhamentos para pesquisas posteriores. Anterior, paralela e posteriormente, ao processo de apreensão das principais máscaras físicas da commedia dell’arte, segundo ensinamentos de Claudia Contin e Ferruccio Merisi, as máscaras de Zanni, Brighella, Arlecchino, Capitano, Pantalone, Servetta, Cortigiana e Nobile foram transpassadas por células das manifestações espetaculares populares brasileiras e, certamente, se houvesse tido tempo para executar um laboratório aprofundado de Dottore Ballanzone e Pulcinella, encontraria também muitas conexões rizomáticas entre a cultura popular brasileira e estas máscaras dell’arte. Com as máscaras dell’arte, aconteceu e acontece, a cada novo experimento, a impossibilidade de limitar a experiência a um número específico de máscaras e práticas espetaculares populares brasileiras para a realização das conexões rizomáticas. Então, viu-se que a solução era restringir esta tese às experiências realizadas, intentando mostrar um transcurso mais preciso e específico. Antes de prosseguir e adentrar as questões pertinentes ao desenvolvimento da pesquisa, é necessário fazer observações sobre algumas expressões que serão utilizadas ao longo das explanações. Cesare Molinare faz uma grande reflexão sobre a commedia dell’arte e como esta deve ser considerada em relação à sua natureza: Dado que a commedia dell’arte é um gênero teatral, talvez não seja um gênero tão forte como o nô japonês e nem mesmo como a ópera italiana, mas um gênero considerando o modo como este termo é usado na literatura, na qual se distingue entre romance, tragédia, épico, etc.: uma abstração e uma normativa. Uma abstração que procura reunir em uma mesma categoria fenômenos diferentes, porém, através alguns de seus traços assimiláveis; e uma normativa com tendência a definir estes traços pertinentes e os impor como necessários (1985, p.15).6 Nesta pesquisa, é adotada a visão de que a commedia dell’arte pode ser vista como um gênero teatral, então, ao longo da mesma, muitas vezes, a palavra “gênero” será empregada para se fazer referência a ela. Da mesma maneira, o termo mais utilizado para se reportar às máscaras da commedia 6 Tradução da autora: “Poiché la commedia dell’arte è un genere teatrale, non magari un genere forte come il nô giapponese, forse nemmeno come l’opera italiana, ma un genere nel senso in cui questo termine si usa in letteratura, dove si distingue fra romanzo, tragedia, epica e quant’altro: un’astrazione e una normativa. Un’astrazione che cerca di riunire in una stessa categoria fenomeni differenti, ma per qualche loro tratto assimilabili; e una normativa tendente a definire questi tratti pertinenti e a imporli come necessari.” 18 dell’arte será “máscara”, já que, para esta pesquisadora, tais máscaras trazem em si a ideia do arquétipo e de um imaginário que se concretiza naquele objeto (posteriormente, adentra-se à questão do imaginário), o qual funciona como uma espécie de ícone e “link”7 para este universo transcendente. A palavra “link” - termo emprestado da área da informática - é utilizada, aqui, como uma metáfora. Ela aparecerá, muitas vezes, coligada à palavra “objeto” (objeto/link) e serve para sublinhar a potência da máscara/objeto como um portal a este universo transcendente. Para esta pesquisa, a máscara/objeto quando acionada (portada, nominada ou na sua compreensão) funciona (em ideia) como um link, abrindo outro “hiperdocumento” - o universo (arquétipo) do/no qual ela foi engendrada e representa. A palavra link, fazendo-se valer das considerações de Bachelard8 sobre o uso cuidadoso de analogias e metáforas e reforçando este uso da última com o olhar de Maffesoli9, ela “empresta” sua capacidade de sintaxe e dinâmica auxiliando a compreensão do funcionamento da máscara dentro da commedia dell’arte. Contudo, sublinha-se que, para esta pesquisa, a Máscara constitui um grau de excelência tal que constitui uma categoria, não estando no mesmo grau dos personagens ou tipos. Ainda sobre a máscara, este estudo tentará dar conta das máscaras da commedia dell’arte intrincadas nas experiências que formam os transcursos desta pesquisatriz, pois são muitos os estudos sobre “Máscara”- olhares que a mostram de forma mais geral e abrangente ou que enfocam, somente, a relação entre máscara e ritual; ou ainda que se dedicam, exclusivamente, à máscara como fenômeno estético e teatral; ou os que se aprofundam nas relações exclusivas da máscara com o teatro oriental ou com festas populares da América Latina e do Ocidente. Alguns destes estudos servem como base de conhecimento na área, outros se dirigem sobre casos específicos e outros ainda, são considerados referenciais da commedia dell’arte, mas todos serão convocados na medida em que o discurso avançar e se fizer necessário introduzir a compreensão do universo que se apresenta diante das máscaras dell’arte que integram este estudo10. 7 Do dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0: substantivo masculino. Rubrica: informática elemento de hipermídia formado por um trecho de texto em destaque ou por um elemento gráfico que, ao ser acionado (ger. mediante um clique de mouse), provoca a exibição de novo hiperdocumento. 8 Para saber mais ler: “A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento” de Gaston Bachelard (1996). 9 Para saber mais ler: “Elogio da Razão Sensível” de Michel Maffesoli (2008). 10 Podem-se citar, aqui, alguns estudos sobre a máscara, com visões generalizadas, específicas de rituais, carnavalescas ou teatrais: “L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo” de Daniele Vianello; “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra” de Roberto Tessari; “La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni” de Alessandra Mignatti; “Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte” de Claudia Contin; “Commedia dell’arte: Le Jeu Masqué” de Michele Clavilier e Danielle Duchefdelaville; “Les jeux et les hommes – Le masque et le vertige” de Roger Caillois ; Tracce di teatro sciamanico tra Africa e 19 Embrenhar-se em uma busca exclusiva sobre a máscara ao longo da história seria, para esta tese, uma confrontação não justa, dado que se trata de um campo muito abrangente. Ainda se dirigisse o campo investigativo para o que a máscara representa em cada uma das duas culturas, o discurso não se tornaria menor. Quando se fala de máscara, nas duas culturas, formam-se inúmeras encruzilhadas e, neste caminho, acaba-se por abrir muitas outras janelas, o que continuaria afastando o discurso do objetivo central desta tese, que é o caminho de acesso às máscaras da commedia dell’arte através de células (movimentos, golpes, passos) de manifestações espetaculares populares brasileiras. A relação das duas culturas não se dá de modo comparativo ou por equivalências, busca-se detalhar um modo de acesso a um gênero teatral de uma cultura diferente, “através da própria cultura”. Como dito, não se trata de uma aproximação entre as manifestações espetaculares populares de ambos os países, trata-se de um modo muito particular de apropriação das máscaras da commedia dell’arte, diria até mesmo “antropofágico” - pois foi o meu corpo que, metabolizando as máscaras da commedia dell’arte após “ingeri-las”, fez-me perceber, através de mecanismos/metabolismos muito próprios, que era possível realizar aquelas máscaras tendo como referências musculares e energéticas as experiências que já eram inerentes ao meu corpo. Outro ponto importante que deve ser destacado é que, tanto as máscaras da commedia dell’arte quanto as danças, a capoeira e o maculelê, estas são vistas como manifestações espetaculares populares, certamente, que cada qual advinda da cultura de um país diferente e de áreas diversas (dança, teatro, luta, ritual). É preciso explicar, todavia, que não se trata de colocá-las na mesma condição, mas de considerá-las vindouras da mesma força criativa e é, nesta instância, que elas cruzam-se e conectam-se. Além disso, é preciso dizer que muitos são os teóricos que não consideram a commedia dell’arte como uma manifestação espetacular popular, uma vez que ela integraria o grupo das artes maiores ou superiores, também consideradas “eruditas”11. Segundo Guarino Mediterraneo. Le maschere e la danza come contatto con stati di coscienza “diversi” de Giovanni Azzaroni; “La maschera di Bertoldo. Le metamorfosi dell villano mostruoso e sapiente. Aspetti e forme del Carnevale ai tempi di Giulio Cesare Croce” de Piero Camporesi; “Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale” de Carmine Coppola; “L’Uomo e la Maschera” de Alfonso Renzo Degano; “Mistero buffo. Giullarata popolare” de Dario Fo; “Le Maschere Veneziane” de Danilo Reato; “I Mamuthones. Testimonianza diretta dalle tradizioni di Mamujada (Sardegna)” de Franco Sale; “Arte della Maschera nella Commedia dell’Arte” organização de Donato Sartori e Bruno Lanata; “As máscaras de Deus – Mitologias Primitivas” de Joseph Campbel; “ Festas: Máscaras do Tempo. Entrudo, Mascarada e Frevo no Carnaval do Recife” de Rita de Cássia Barbosa Araújo; “No Pulso do Ator: Treinamento e Criação de Máscara na Bahia” (tese Doutorado UFBA) de Isa Maria Faria Trigo; “Dal rito al teatro” de . Victor Turner; “Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e dei giullari” de William Willeford. 11 Como exemplo, pode-se citar Raimundo Guarino, o qual foi meu orientador na Univercità di Roma Tre e que, 20 (2005), a commedia dell’arte estaria neste grupo por apresentar uma grande complexidade, enquanto que dentre as artes menores estariam aquelas consideradas mais “simples”, como o circo. Nesta pesquisa, além de não se considerar a hierarquia de “arte superior ou maior” e “arte inferior ou menor”, também existe a posição pessoal contrária a tal hierarquia, pois, para esta pesquisadora, o popular não é visto como menor ou inferior e, muito menos, simples. O que é “da qualidade do popular” revela-se, cada vez mais, como uma estrutura de natureza muito complexa, como se pode ler no estudo do pesquisador Erico José Souza de Oliveira (2007). Para esta pesquisa, sem adentrar em questões sociológicas ou antropológicas e discussões sobre o que abarca o “popular”, o termo é adotado como advindo de um povo. O transcurso realizado, ocupando células de algumas manifestações espetaculares populares brasileiras para se apropriar das máscaras da commedia dell’arte, é repetido com novas combinações, a cada novo acesso às máscaras. São níveis e subníveis de conexões dialógicas que fazem parte de outras sutilezas, como energias e corporeidades que me permitem chegar à linguagem codificada de cada máscara da commedia dell’arte. É com este transcurso que as máscaras dell’arte ganham vida, através de um teor muscular, energético e qualidades de tensões e movimentos que estão dentro das possibilidades de cada máscara. O primeiro capítulo tenta dar conta das teorias que permeiam este mecanismo imaginativo, buscando conceitos e usando a metáfora como elemento importante para a compreensão de tais mecanismos. O segundo capítulo tenta colocar em evidência a cena, a técnica para a cena e a teoria da cena. Ele adentra o universo mítico do bufão, relata a construção da técnica para esta máscara e desvenda o pensamento que está por traz deste universo, conectando-se com o carnaval e as festividades populares brasileiras. O terceiro capítulo conecta o bufão à Máscara dell’arte e traz um panorama das manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa, sinalizando possíveis caminhos de conexões entre tais práticas e as máscaras dell’arte. O quarto capítulo traz o universo das máscaras dell’arte, principalmente das continianas, e intenta mostrar os encaminhamentos de acesso e apropriação das máscaras como estas podem ganhar vida através de códigos das manifestações espetaculares populares brasileiras. Este capítulo se relaciona diretamente com o APÊNDICE E, no qual estão em conversa de orientação, chamou minha atenção para o fato que a commedia dell’arte não é uma manifestação espetacular popular, pois se trata de uma arte complexa e requintada. Esta divisão entre “artes maiores” e “artes menores” é ideia muito difusa na Europa e Camporesi, no seu livro “Rustici e buffoni. Cultura popolare e cultura d’élite fra Medioevo ed età moderna.”, faz uma discussão detalhada sobre esta divisão, aconselha-se, para aqueles que se interessam pelo assunto, fazer a leitura da obra de Piero Camporesi, acima citada. 21 contidos os roteiros do espetáculo realizados na Scuola Sperimentale dell’Attore, cuja direção é de Claudia Cotin e Ferruccio Merisi “Papaietta Poliglota” e da Aula-Espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações: Máscaras dell’Arte e Cultura Popular Brasileira”, cuja direção é de minha autoria. Ainda, através de documentos e relatórios, os ANEXOS buscam ilustrar, comprovar, enfim, complementar algumas das conjecturas realizadas ao longo da tese que traz, ainda, como apoio à explicação e compreensão dos transcursos realizados, um DVD, o qual contém imagens que tentam mostrar um pouco dos processos e resultantes da prática desta pesquisa. Não resta senão começar as implicações que dizem respeito a este mar aberto em que me coloco. Não resta senão lançar-se e intentar desvelar os transcursos realizados. 22 2. (UM) UNIVERSO (E UM) IMAGINÁRIO 2.1. IMAGEM/IMAGINÁRIO: O MAR EM QUE SE MERGULHA Fruto de um devaneio1, esta pesquisa vem legitimada na ideia de imagem/imaginário, em Gaston Bachelard2, cuja exposição se dará ao longo do desenvolvimento da mesma. Este estudo tem como principal objetivo justificar um acesso às máscaras da commedia dell’arte, por meio de um trajeto particular realizado através do estudo das mesmas e de algumas manifestações espetaculares populares brasileiras. A intenção é de investigar este gênero teatral, o qual tem como elemento representante a máscara, ou melhor, a meia-máscara e, através de uma prática das danças do CavaloMarinho, do Coco, da Ciranda, do Samba, das danças dos Orixás, do Xaxado, do Caboclinho, do Frevo, do Maculelê, do Maracatu e da Capoeira, pinçar movimentos que sirvam como motor e propulsor das máscaras dell’arte – Zanni, Servetta, Cortigiana, Pantalone, Capitano, Brighella, Arlecchino e Nóbile - dando vida a estas. Para esta pesquisa, as máscaras da commedia dell’arte são vistas como ícones, são verdadeiros portais de acesso a todo um universo imaginário, o qual se concretiza no objeto/link “máscara” e se reafirma em uma máscara física muito específica. Cada máscara dell’arte é constituída do objeto/link e da máscara física, onde esta última se torna a complementação e o suporte para o primeiro se movimentar e ganhar vida. Cada máscara possui codificações de posturas, movimentos, relacionamentos e exigem do ator que deseja portá-las uma preparação específica e detalhada. O estudo e prática das máscaras dell’arte e das manifestações espetaculares populares brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Frevo, Capoeira, Samba, Xaxado, Maculelê, Cavalo Marinho, Dança dos Orixás e Caboclinho) que integram esta pesquisa permitirão a realização de um caminho de acesso à commedia dell’arte ímpar, através de células e micropartículas de ações, movimentos e composições pinçados das manifestações supracitadas. Este outro caminho percorrido pelo pesquisator é, na verdade, uma possibilidade de apropriar-se das máscaras dell’arte a partir de outras experiências já incorporadas por ele. Portanto, é muito importante que, antes de tentar realizar o tipo de conexão que se apresenta 1 Do dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0: verbo transitivo direto – 1 conceber na imaginação; sonhar. Gaston Bachelard utiliza o devaneio como a capacidade que o ser humano tem de “sonhar acordado”, ou seja, de conceber na imaginação, agir dentro de outra instância que não a realidade objetiva - Viola Spolin chama de “realidade objetiva”, a realidade compartilhada em sociedade. Para saber mais, ler: A terra e os devaneios do repouso, de Gaston Bachelard e O Jogo Teatral no Livro do Diretor, de Viola Spolin. 2 Para saber mais sobre a imagem e imaginário em Bachelard, ler: O direito de sonhar, de Gaston Bachelard. 23 nesta tese, o ator que se aventurar por este caminho realize a prática (danças, golpes) das manifestações espetaculares populares brasileiras a que se faz referência. Esta experiência de encontrar outro caminho de acesso às máscaras à italiana se concretizou através da generosa atenção de alguns mestres e colaboradores, como Mestre Alabama (Capoeira Regional e Angola - Salvador – BA); Mestre Biu Alexandre (CavaloMarinho de Condado – PE); Ekedy Sinha (Terreiro da Casa Branca – Salvador – BA); e outros anônimos das brincadeiras carnavalescas brasileiras e dos pesquisadores Arlecchino Claudia Contin e Ferruccio Merisi – idealizadores da Scuola Sperimentle dell’Attore3 (Pordenone-Itália). É preciso dizer que não foi a partir do contato com Claudia Contin e Ferruccio Merisi que esta pesquisa nasceu, ela já estava encaminhada e estes dois pesquisadores se tornaram a certeza de que estava fazendo um caminho seguro e consistente. Meu primeiro contato com um treinamento de commedia dell’arte foi ao estilo de 1800, muito mais próximo da forma francesa de fazer este gênero de teatro, um modo mais refinado. Este caminho inicial foi por volta de 1998 e o encaminhamento daquele treinamento, muitas vezes, fugia dos domínios de meu corpo, pois eram indicações estrangeiras ao meu conhecimento físico. Para tentar realizar os movimentos que me eram pedidos, utilizava alguns conhecimentos que já faziam parte de meu corpo4 e, dessa forma, conseguia dar vida às máscaras dell’arte - através de um “acervo” que já fazia parte de minhas vivências físicas e sensíveis, trazidos por lembranças imagéticas, se tratava de posturas e movimentos que fazem parte de algumas manifestações espetaculares populares brasileiras. Antes de continuar com as relações que formam a base desta pesquisa, é necessário esclarecer que esta se empenhará em relatar as conexões que se realizaram entre as máscaras da commedia dell’arte (Zanni, Arlecchino, Brighella, Capitano, Pantalone, Servetta, Cortigiana e Nobile) e as manifestações espetaculares populares brasileiras integrantes da mesma (Coco, Ciranda, Maracatu, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Maculelê, Samba, dança dos Orixás, danças do Cavalo Marinho e Capoeira), sem se ater à historicidade destas, mas recorrendo a estes dados sempre que se fizer necessário. As experiências vividas corporalmente, seja nas manifestações espetaculares populares brasileiras, seja nas máscaras dell’arte, foram intensificadas no estágio realizado na Itália, na Scuola Sperimentale dell’Attore (PN). Acredito que somente partindo da experiência vivida é 3 A Scuola Sperimentale dell’Attore realiza todos os anos um festival chamado “L’Arlecchino Errante”, o qual busca, a cada edição, a realização de diálogos entre a commedia dell’arte e uma outra cultura. 4 Como já mencionado, me dediquei à dança durante muito tempo, tanto popular, quanto clássica, passando depois, à prática e experiência teatral. 24 possível mostrar com maior nitidez e eficiência o caminho realizado por mim de apropriação das máscaras dell’arte. Os mecanismos físicos das manifestações espetaculares populares brasileiras, os quais eram muito mais próximos à minha vivência, trabalhavam em meu corpo e as lembranças/imagens os auxiliavam a encontrar aquilo que a máscara italiana exigia como suporte corporal e energético para portá-las. Com base em tal observação, as buscas pela compreensão da ação daquelas lembranças/imagens tornaram-se fortes impulsos para a pesquisa, chegando à conclusiva de que a instrumentalização do comico dell’arte através do treinamento da escola italiana é válida e necessária, e que o ator pode utilizar instrumentos mais próximos da própria vivência para acessar as Máscaras que compõem a commedia dell’arte. O treinamento criado pelas escolas italianas traz a corporatura das Máscaras, as quais, por sua vez, comportam traços da cultura, seja concreta ou do imaginário, em que foram engendradas. A utilização de recursos de experiências intrínsecas daquele que deseja “apropriar-se” e “se deixar apropriar” das máscaras deste gênero teatral, auxilia o corpo, tanto na fisicidade5, quanto na corporeidade6, a realizar tais apropriações, ou seja, o ator utiliza-se de recursos/mecanismos inerentes ao seu conhecimento/vivência para chegar a uma “nova” experiência – as máscaras da commedia dell’arte. Após a constatação da possibilidade de acessar as máscaras da commedia dell’arte através de movimentos pinçados das manifestações espetaculares populares brasileiras já citadas, surgiu a inquietação de saber como acontece tal conexão. O que intrigou e instigou, numa primeira instância, foi a reverberação entre as imagens/lembranças e as máscaras da commedia dell’arte. As Máscaras dell’Arte foram engendradas num tempo espaço longínquo e muito além das fronteiras territoriais e, nesta pesquisadora, encontraram eco no acervo imaginal e muscular vindouros de manifestações espetaculares populares brasileiras - tão populares e com ramificações tão carnavalescas e ritualísticas quanto as das máscaras italianas. A ideia de um pensamento rizomático, para dar conta desta natureza de conectividade em que a raiz principal se destrói nas extremidades e “vem se enxertar nela uma multiplicidade imediata” (DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 14), contempla esta pesquisa de modo muito satisfatório e coerente, pois esta se situa numa estrutura de pensamento que trabalha com a conjunção “e”, a qual alia forças para chegar a um resultado, que também não 5 “A fisicidade é o aspecto puramente físico e mecânico da ação física [...] a forma dada ao corpo, o puro itinerário da ação.” (BURNIER, 2001. p.55). 6 “A corporeidade, é a maneira como as energias potenciais se corporeificam [...] é mais do que pura fisicidade de uma ação [...] é a forma do corpo habitada pela pessoa” (BURNIER, 2001. p.55). 25 é considerado “o resultado”, pois é uma coligação que se encontra no meio da rede. As máscaras dell’arte que ganham vida através do processo de apropriação abordado nesta tese estão entre uma dinâmica conectiva das próprias máscaras all’italiana7 e das manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa. Estas máscaras, que ganham vida através das supracitadas manifestações, estão no meio de uma rede que se conecta por muitos lados, elas fazem parte de uma teia que não se sabe onde é o início, possuindo alianças, de um lado muito concretas e, de outro, totalmente subjetivas. Um exemplo deste tipo de conectividade é a máscara do Arlecchino e sua conexão com o frevo: ambas possuem ligações com o carnaval. Esta máscara possui, dentro de suas codificações de máscara física, posturas com os mesmos circuitos musculares de alguns passos de frevo – tornando-se uma conexão muito concreta. Por outro lado, possui também a conexão realizada na atmosfera festiva carnavalesca e no circuito energético – ao adentrarmos à máscara de Arlecchino, estas conectividades serão tratadas mais a fundo, mantém-se aqui o caráter de exemplificação. Foi nesta natureza conjuntiva que a ideia desta pesquisa foi se desenvolvendo e, nestes pensamentos/caminhos gramíneos, o devaneio ganhou potência e propiciou a atuação dos princípios da conexão e da heterogeneidade, da multiplicidade, da ruptura a-significante, da cartografia e da decalcomania - definidos por Deleuze e Guatarri como preceitos do “pensamento rizoma”8. Estes pensamentos gramíneos proporcionaram a constituição da teia formadora desta pesquisa – “ervas daninhas” que se alastram em dimensões e/ou direções movediças e transbordam em imagens. Desta inquietação, surgiu a necessidade de adentrar as questões que envolvem as reverberações entre tais manifestações espetaculares populares9. Porém, é necessário dizer que, ao optar pela compreensão de tais reverberações, se escolhe também um caminho movediço e escorregadio, no qual a coesão acontece na multiplicidade e subjetivação - esta é uma característica típica do pensamento rizoma10. Foi esta natureza de pensamento que executou as conexões realizadoras e motivadoras desta pesquisa, sublinhando, mais uma vez, 7 Utilizarei, neste momento, a expressão “máscaras all’italiana” para me referir as máscaras físicas sem a interferência propulsora das manifestações espetaculares populares brasileiras, somente com o treinamento italiano, advindo da cultura popular italiana. 8 Para saber mais sobre os Princípios do Pensamento Rizoma de Deleuze e Guatarri, ler “Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia” Vol. 1. 9 Como dito anteriormente, alguns teóricos afirmam que a Commedia dell’Arte não é uma manifestação popular, pois é altamente requintada e complexa. É necessário dizer que não vejo as Manifestações Espetaculares Populares como um resultado simplório ou menor, mas sim donas de uma espécie de complexidade que podem até aparentar uma falsa simplicidade - a commedia dell’arte é um bom exemplo dessa visão. 10 “A noção de unidade aparece unicamente quando se produz na multiplicidade uma tomada de poder pelo significante ou um processo correspondente de subjetivação” (DELEUZE; GUATARRI, 2000. p.17). 26 que: Ele [o rizoma] não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto [...], linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 14). É nessa definição de conexões de naturezas em movimento e metamorfose e de um “[...] sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados” (Ibidem, 2000, p.33), que esta pesquisa foi se encaminhando e que Bachelard, Deleuze e Guatarri se engendram, se liquidificam, se liquefazem e se ramificam no pensamento formador da mesma. Mas esse pensamento abarcador e ramificado não implica em falta de profundidade, ele é tão abrangente que pode conectar-se com uma forma de estruturação mais incisiva, sem perder a propriedade horizontal. O pensamento rizoma de Deleuze e Guatarri, aos olhos dessa pesquisadora, pode se conectar com o pensamento raiz de Bachelard11. É certo que a estruturação do pensamento raiz propõe uma forte unidade principal, uma espécie de pivô que suporta as raízes secundárias. Mas, e se considerarmos que estas raízes secundárias, no desenvolver do pensamento, evoluíram tanto que se tornaram tão fortes quanto o era a raiz central e esta, então, passou a ser mais uma das ramificações, fazendo parte de uma estruturação de pensamento que se alastra, também, horizontalmente. Deste modo, este arraigamento não pode ser pensado como única raiz/direção que irrompe e bifurca, criando, até mesmo, uma espécie de hierarquização ou unificação. Esta raiz deve ser pensada como gramínia, a qual se alastra de modo vertical e horizontal simultaneamente. Seguindo a forma do pensamento raiz de Bachelard, a verticalidade chega a níveis do inconsciente e este, por sua vez, está conectado com o devaneio, com o sonho, com a alma e com a realidade – formando uma espécie de rede, sem hierarquias. Por outro lado, com tantas conexões, é impossível pensá-las como uma imagem puramente vertical, pois, desta forma, estaria se colocando uma ordem hierárquica. A partir das várias conexões que se estabelecem com o inconsciente, devaneio, sonho, alma e realidade, começa-se a pensar numa forma imagética radiculada horizontalmente e, esta natureza de coligação de pensamentos, os quais podemos dizer, subjetivos, só pode ser visualizada como um rizoma, pois “[...] o rizoma é esta 11 Para saber mais sobre o pensamento raiz de Bachelard, ler: A terra e os devaneios do Repouso. 27 produção de inconsciente [...]”(DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 28). Todas as imagens trazidas por Bachelard que envolvem a raiz/árvore não são expostas numa escala de valores hierárquicos, mas sim como modos de validação de um pensamento e destes elementos (copa-galhos-folhas-caule-raiz), como importantes células que fazem parte de uma série de conexões que o fortificam. Para conectar o pensamento raiz de Bachelard e o pensamento Rizoma de Deleuze e Guatarri, tem-se que transformar a imagem vertical da raiz em uma imagem horizontal. Para tanto, deve-se lembrar que, quando Bachelard utiliza a imagem da raiz/árvore, é para falar da profundidade dos atos/pensamentos que aparentam serem superficiais, como também, da imagem que auxilia a compreensão da dinâmica entre sótão/porão, ou copa/raiz, ou fantasias/segredos/lembranças, como um espaço de movimento e troca de intensidades entre experiências e imaginação, sem dar uma valorização hierárquica. Ao utilizar uma imagem vertical, como a árvore/raiz, Bachelard não a utiliza como forma de hierarquização, mas como metáfora ou analogia para a compreensão de um funcionamento da dinâmica entre realidade e fantasia – como também o fazem Deleuze e Guatarri quando utilizam a imagem do rizoma. Por outro lado, Deleuze e Guatarri não negam ou se opõem de modo incisivo ao pensamento raiz/árvore, ao contrário, eles apontam a possibilidade da conexão da raiz ao rizoma. Num primeiro caso, eles vêm a raiz como uno e, para incluí-lo na multiplicidade, devem subtraí-la desta. Para esta pesquisadora, o caso não é de exclusão total, mas de um deslocamento da posição de uno para codividir uma conectividade múltipla, abortando o vértice e fazendo brotar novas ramificações, as quais se espalharão de modo gramíneo – insisto nessa coligação em que a raiz una se abre para dar espaços a novas conexões porque foi dessa forma que esta pesquisa se desenvolveu – ou, quem sabe, foi assim que ela foi percebida, primeiro era somente uma raiz e, na medida em que se adentrava ao campo prático, a mesma desabrochou em ramificações, tão amplamente que dar conta destas florescências se tornou muito difícil. Em outro momento, Guatarri e Deleuze (2000, p.31) afirmam que mesmo aquilo que é subjetivo possui, em algum momento, uma ligação mais profunda e essa profundidade pode ser ligada à imagem de uma raiz – a qual não precisa ser “uno”: O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça o mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias e suscite um canal despótico. 28 Com isso, parece muito oportuna a opção em conectar o pensamento rizoma e o pensamento raiz, pois da mesma forma que Bachelard utiliza a imagem da raiz/árvore como uma analogia para a compreensão das dinâmicas entre realidade e fantasia, pode-se utilizá-la como imagem metáfora que irá servir para a compreensão de uma ligação mais profunda com esse campo da não realidade ou do inconsciente. Ainda, é muito significativo para a compreensão da coligação raiz/rizoma o modo como Bachelard pensa a imagem e as conexões que utiliza para requerer seu “direito de sonhar”, constituindo mecanismos rizomáticos. O próprio se utiliza do transbordamento assinalado por Deleuze e Guatarri para mostrar a poética de seu pensamento em relação à imagem/imaginário - a própria escritura de Bachelard provoca, no leitor, o transbordamento suscitado pelo rizoma. Desse modo líquido e transbordante, Bachelard valida o inconsciente como material para o artista e nada transborda mais que este, nada é mais movediço e aquoso que o sonho, que o devaneio, enfim, que a imagem/imaginário. Este mecanismo “imagem/imaginário e rizoma” é o que comove o processo desta pesquisa, o qual se constitui de “tubérculos”, como uma teia sem centro, na qual “Todas as entradas desembocam na mesma altura da malha simbólica. Tudo é nó e conexão no tecido imaginal. Cada link, feito um porto, é ponto de chegada e de partida” (SILVA, 2003, p.11), constituindo conexões variadas que se formam, até mesmo, num grau de “partículas submoleculares”, ou seja, de pequenos ou mínimos fragmentos. Neste mecanismo “imagem/imaginário e rizoma”, a imagem acontece e o imaginário inunda, ambos agem e transformam a subjetividade deste universo em um corpo concreto: o corpo do pesquisator/pesquisatriz. No processo de pesquisator, a imagem poética funciona como motor que impulsiona a ação. Uma imagem desencadeia uma série de relações cíclicas e, de certa forma, espiraladas que, na busca de compreensão, não é possível saber onde é o começo ou o fim, pois as conexões, de alguma maneira, se repetem e se transformam- imagem/imaginário/imaginação/transformação/ação/imagem/imaginário/imaginação/transformação/ação. A imagem age no imaginário que transforma o corpo, o qual transformado age, provocando outra imagem, que por sua vez repete o ciclo; então, não se sabe mais o que é real e o que é imaginação – mas, se ambos se realizam num corpo, pode-se considerar a ambos reais. Contudo, para o artista que gera processos criativos, a mescla entre real e imaginário é uma condição natural, pois ele sabe que o segundo “[...] emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor” (SILVA, 2003, p.12) da ação, da 29 imaginação, novamente da ação e mais uma vez da imaginação e assim sucessivamente... É neste abscôndito, obscuro, ondulatório, imaterial e enigmático mundo do imaginário (em Bachelard) que este meu devaneio/pesquisa ganha força, num pensamento guiado muito mais pelo intuitivo que pelo raciocínio – isso quer dizer que o aspecto sensível guia os caminhos, realiza os engendramentos e a razão o auxilia na transformação deste instinto em explicação da ação, em palavras e conceitos – em tese. Apesar de o imaginário ser caracterizado como “(...) ao mesmo tempo, uma fonte racional e não racional de impulsos para a ação” (SILVA, 2003, p.13) ele ainda é considerado, pelas ciências, uma fonte subjetiva e “flutuante”, portanto, não tão “confiável” para fins que necessitam de resultados exatos - como uma tese. Mas a insegurança aparece no momento em que o sujeito que está neste lugar movediço, não se vê banhado nestas águas, encontrando-se trêmulo, com medo de ser levado por esse mar e frágil em suas certezas. Neste momento, percebe-se enfim que o “[...] ser humano é movido pelos imaginários que engendra. [confirmando que] O homem só existe no imaginário” (SILVA, 2003, p.7) – e permanecer na turbulência de ser resultado de um imaginário, de certa forma, amedronta. Por outro lado, o medo ensina a ser cauteloso e pode servir como um incentivo a olhar com mais atenção e mais além. Como consequência, esta pesquisa teve encaminhamentos que não foram vislumbrados através das certezas e, sim, das dúvidas, das turbulências e tempestades. Ela é composta por pensamentos que se movem ou derivam nas várias proporções do imaginário e totalmente engendrados pela memória e pela imaginação - partes de um complexo que não se dissociam. Num processo criativo, tanto a imaginação, quanto a memória se validam como verdades transformadoras. É ainda válido reafirmar que a memória com a qual se trabalha não está ligada somente à história de vida ou a um curto prazo temporal, mas sim a toda história que permeia a existência do ser humano e, quiçá além dela, já que por ter uma natureza líquida o imaginário inunda e trasborda facilmente. A memória a que nos referimos é muito mais do que lembranças: são adicionadas a estas, os sonhos e a poesia, gerando um fundo poético que contém a memória, abriga o devaneio e protege o sonhador e cuja potência é uma das mais fortes formas de integração para pensamentos, lembranças e sonhos do ser humano. Neste processo de pesquisatriz, trabalha-se com a força da memória junto à imaginação, uma espécie de reservatório/motor. Este reservatório/motor conta com a força propulsora desta memória enquanto portadora de partículas e submoléculas da história, tornando possível a atualização entre passado e presente através do imaginário e, assim, 30 “Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova” (BACHELARD,1989, p. 25). O corpo é despertado e alimentado por imagens que encontram eco no seu próprio interior, pois ele mesmo, o corpo, é resultado de um tempo que passou e traz consigo a memória de uma história numa espécie de DNA imaginal. Este funciona, nesta pesquisa, como elemento fundante e age como princípio, mais que como um conceito12, ele ganha a importância de uma analogia e imagem explicativa e ativa dentro da pesquisa, é um “cordão” de genes imaginários que percorrem toda a existência e que aqui, neste processo, se utiliza do corpo para mostrar sua ação concreta. Através da aceitação, concepção e entendimento de um DNA imaginal, o qual ultrapassa o espaço/tempo, torna-se possível atinar para um corpo que traz em si a história, em memória e imaginação: Tanto nossa alma como nosso corpo são compostos de elementos que já existiam na linhagem dos antepassados. O “novo” na alma individual é uma recombinação, variável ao infinito, de componentes extremamente antigos. Nosso corpo e nossa alma têm um caráter eminentemente histórico e não encontram no “realmente-novo que acaba de aparecer” um lugar conveniente, isto é, os traços ancestrais só se encontram parcialmente realizados. Estamos longe de ter liquidado a Idade Média, a Antiguidade, o primitivismo e de ter respondido às exigências de nossa psique a respeito deles (BACHELARD, 1989, p.25). O que se procura fazer, através do imaginário, é dinamizar e se comover com as lembranças de nossa alma. Porém, não somente as lembranças de nossa infância, também as remotas, os componentes antigos de nossa alma, os genes imaginais da história entremeados pela imaginação. Dessa forma, a história serve de alimento e de aliada da imaginação, é a base de trabalho para o pesquisator. Portanto, a partir desta compreensão de dinâmicas entre lembrança-memória–imaginação, é possível entender mais detalhadamente e a fundo a premissa de Bachelard em relação ao artista, quando ele afirma que para este “O fato não basta, o devaneio trabalha [...]” (1989, p.37). A imaginação valida a história, até mesmo aquela que não se conhece conscientemente, uma vez que é nestes espaços fugidios em que a lembrança falha, que ela completa/trabalha, confirmando outra premissa de Bachelard, a de que “[...] a imaginação aumenta os valores da realidade” (1989, p.23). O que nos proporciona muito mais liberdade para a criação artística. Mas são nestas extensões, em que a memória falha e a imaginação trabalha, que a ação dos genes imaginais é “sentida”. O DNA imaginal traz consigo fragmentos de memória de uma realidade passada e a imaginação dá conta daquilo que não se sabe racionalmente, ela 12 Não se está entrando no campo das neurociências, o “DNA”, aqui, funciona como analogia e/ou metáfora. 31 trabalha a partir das sensações desta memória, arrematando a imagem que se forma e fendendo a percepção sensível. O reservatório/motor comove o pesquisator através de sentimentos, lembranças e visões que se realizam, em alguma instância, no seu corpo. Para se realizar, a força que a imaginação possui é bem maior que a da razão e é desta força imaginal que o pesquisator se utiliza. O acesso à commedia dell’arte que proponho vem legitimado em uma realidade (física, corpo da pesquisatriz) e em uma virtualidade (imaginação). O reservatório/motor funciona como válvula de impulso, dessa maneira, a valorização da realidade através da imaginação faz com que a experiência vivida ganhe um expoente maior, que atravessa a história (no DNA imaginal – num imaginário) e se manifesta no corpo da pesquisatriz. O vislumbre do possível acesso às máscaras da commedia dell’arte, através deste caminho, aconteceu num momento em que a memória e a imaginação encontraram eco na alma desta que escreve (pesquisatriz) – foi fazendo tais máscaras físicas que meu corpo buscou, no seu acervo muscular conhecido, o suporte para dar a vida às mesmas, e estes movimentos que as vivificam são de danças pertencentes a manifestações espetaculares populares brasileiras. Claro que, num primeiro momento, as conexões não eram tão complexas, mas quando os universos se conectaram, percebi: apesar de se tratarem de duas culturas diferentes, de momentos históricos diferentes, de áreas artísticas diferentes – teatro, festa, dança, luta – havia uma conexão cognitiva entre elas e eu precisava descobrir como ela se realizava. Quando estava fazendo as máscaras dell’arte pela primeira vez, o corpo procurava a energia, a qualidade da ação e a vibração correspondente ou análoga àquela que me pediam, dentro das experiências musculares que já possuía. O movimento codificado da máscara all’italiana encontrava o seu eco naqueles pinçados das danças pertencentes às manifestações espetaculares populares brasileiras, como se uma imagem (codificação da máscara) se colocasse sobre a outra, e estas imagens vindouras de manifestações espetaculares populares diversas se encaixavam em muitos pontos, mostrando que possuíam circuitos musculares muito símiles. Entretanto, como é possível uma imagem encontrar eco na alma de alguém? Esta é uma resposta simples e, ao mesmo tempo, complexa: através do imaginário. Michel Maffesoli (2001, p.75) fala do imaginário como uma aura, para ele “O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não qualificável”, é uma força, um catalisador, uma energia, uma atmosfera, ou seja, não é possível vê-lo, mas se pode senti-lo, ele é da ordem do sensível e é também um espaço de 32 convivência e contato com o outro, fazendo parte do coletivo, aliás, o imaginário faz parte de um indivíduo e de um grupo, ele identifica o indivíduo ao grupo e vice-versa. É esta identificação plural e singular que faz com que a imagem/imaginário encontre eco naquele que se permite “comover-se” através dele. No devaneio, o pesquisator produz poeticamente nuanças que dinamizam, através de imagens comuns retidas em algum lugar do inconsciente (ou do cosmos, da atmosfera), identificações sensíveis que também entram em contato com a alma de seu receptor. A imagem promove o processo criativo tornando-se material concreto - ela agita a percepção sensível e comove o corpo. A dinâmica entre imagem/imaginação e memória constrói seus valores ativamente, os quais também são inconscientes e integram “elementos arcaicos de nossa alma”, utilizando mais um conceito de Bachelard (1990, p.88), de um Fundo Comum dos Sonhos. Mas o que são estes “elementos arcaicos da alma”, os quais fazem parte do Fundo Comum dos Sonhos? A meu ver - subjetividade pura, o que não significa dizer que esteja no campo do incompreensível, ininteligível e não conceitual, mas sim no das experiências sensíveis - é na combinação dos elementos arcaicos da alma que “as imagens se formam no espírito”, utilizando a expressão de Ítalo Calvino (1999, p.97) quando este escreve sobre a formação das visões de Dante. Pode-se dizer, também, que os elementos arcaicos da alma são genes que estão presente na constituição do DNA imaginal e que fazem parte do que Bachelard chama de “a priori onírico”. O “a priori onírico” é uma condição que acompanha o ser humano e é parte fundante de um Fundo Comum dos Sonhos. O que é, então, este Fundo Comum dos Sonhos o qual é constituído pelo “a priori onírico”, que é inerente à condição humana, que traz em si “elementos arcaicos da alma”, os quais auxiliam na formação das imagens no espírito e comportam o DNA imaginal? Segundo Bachelard, o Fundo Comum dos Sonhos é um espaço imaterial no qual passado, presente, fantasia, história, realidade e imaginação comungam. Ainda mais interessante é a natureza deste Fundo Comum dos Sonhos, além de estar presente em cada ser humano, ele está também fora dele. O ser humano tem em si este “a priori onírico”, traz consigo a recombinação de elementos antepassados, chamado por Jung de “caráter eminentemente histórico”13; ele aporta nas suas ações, de modo subjetivo, as pulsões mais antigas da alma, assinalado por Gilbert 13 Para saber mais, ler: Memórias, Sonhos, Reflexões, de Jung. 33 Durand como “trajeto antropológico”14, ou ainda ele faz parte e comporta a “aura”, este espaço singular e plural a que Maffesoli se refere - estas manifestações subjetivas de um passado além vida fazem parte da condição humana. Seja qual for o nome dado aos elementos que integram esta condição, foi a partir deste espaço imaterial que esta pesquisa se comoveu e se ramificou nas várias direções: Dionisio, Satiros, Charivari, Bufão, Carnaval, Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras e Máscaras dell’arte. Reafirmando, esta tese baseia-se no pressuposto de que: o ser humano tem em si um a priori onírico; que em nossa alma se encontram elementos arcaicos que agem em nós como força a partir da ação da imagem; que tais elementos recombinam-se ao infinito e apoderamse de nós, nos dando a possibilidade de habitarmos a imagem que nos comove. Não é fácil, contudo, para o pesquisator permanecer nesta dinâmica, é preciso apreciar a beleza de mergulhar num mar sem saber a direção exata a seguir e, muitas vezes, ao invés de mergulhar, simplesmente “flutuar”, deixar-se levar pelas circunferências ondulatórias que se formam na água ou pelas ondas e redemoinhos de um mar de imagens. Para o auxílio prático da ação do imaginário no corpo, alia-se ao Fundo Comum dos Sonhos de Bachelard, uma ideia desenvolvida por Jacques Lecoq, a do Fundo Poético Comum. Esta instância chamada por Lecoq de Fundo Poético Comum é um espaço tão imaterial quanto o Fundo Comum dos Sonhos, mas ele se torna concreto por se manifestar, agir, no corpo do ator, passando do imaterial ao concreto. Lecoq não chega a desenvolver profundamente o conceito do Fundo Poético Comum, ele afirma a sua existência e fala de sua natureza: Trata-se de uma dimensão abstrata, feita de espaços, luzes, cores, matérias e estão presentes em cada um de nós. Os elementos se sedimentam em nós através das nossas experiências e sensações de tudo aquilo que olhamos, escutamos, tocamos, degustamos. Tudo se imprime em nosso corpo e constitui o fundo comum do qual surgem ímpetos e desejos de criação (LECOQ, 1997, p.57).15 Ao lermos a citação acima, pode-se perceber a semelhança conceitual do Fundo Poético Comum de Lecoq com o Fundo Comum dos Sonhos de Bachelard. A união de tais ideias é, à primeira vista, muito oportuna, pois ambos se firmam na existência de um espaço 14 Para saber mais, ler de: A Imaginação Simbólica, de Gilbert Durand. Tradução da autora: “Il s’agit d’une dimension abstraite, fait d’espaces, de lumières, de couleurs, de matières, de sons, qui se retrouvent en chacun de nous. Ces éléments sont déposés en nous, à partir de nos diverses expériences, de nos sensations, de tout ce que nous avons regardé, écouté, touché, goûté. Tout cela reste dans notre corpos et constitue le fonds commun à partir duquel vont surgir des élans, des désirs de création”. 15 34 imaterial onde tudo se encontra. Bachelard indica a imaginação como grande ponto de conexão deste espaço com a realidade, já em Lecoq, para o trabalho do ator, tal conexão se dá na ação deste espaço sobre o corpo e na ação realizada por este corpo – os pensamentos estão de acordo, o espaço imaterial se manifesta no corpo e, para tanto, utiliza-se da imaginação (imagem em ação). A semelhança da natureza, compreensão, extensão e capacidade de atuação entre o Fundo Poético Comum e o Fundo Comum dos Sonhos, para esta pesquisa, é muito propícia. A dimensão abstrata presente em cada um de nós a que Lecoq se refere é muito análoga ao imaginário – este espaço coletivo e individual – e quando ele fala de “elementos que se sedimentam em nós”, entende-se como os elementos arcaicos da alma. A similaridade entre “dimensão abstrata” (Lecoq) e “imaginário” (Bachelard), como este espaço imaterial que funciona como reservatório/motor da ação/imaginação/ação, é mais uma das condições bases para esta pesquisa, visto que é neste espaço de conexões imateriais que as manifestações espetaculares populares, ou podendo ser chamadas também de expressões artísticas culturais, ou práticas espetaculares populares de países diversos, se realizam. Como já dito, não se trata de relações comparativas ou paralelas, mas de conexões entre diferentes manifestações espetaculares populares de países distintos e com naturezas artísticas diversas (teatro, dança, luta e ritual). É justamente por se tratar de expressões/práticas/manifestações artísticas/culturais/espetaculares tão diversificadas que este espaço imaterial se torna o principal suporte de conexão, pois é a partir dele que as outras vias de conectividades foram vislumbradas. Retornando a afirmação de Lecoq de que o Fundo Poético Comum é um “fundo comum do qual surgem ímpetos de criação”, é inevitável associá-lo ao Fundo Comum dos Sonhos e à função que o imaginário exerce como reservatório/motor para o ato criativo. Para Bachelard, o Fundo Comum dos Sonhos é um espaço impalpável, imaterial, porém, sensível - imagem/imaginário/imaginação – o qual faz parte do ser humano, podendo manifestar-se nele e fora dele. Para Jacques Lecoq, o Fundo Poético Comum é como uma força ou uma energia, a qual toma o corpo do ator, habitando-o, e todos os elementos que constituem esta força são vindouros de um espaço imaterial, onde tudo se encontra. Existe uma forte e, ao mesmo tempo, delicada conexão entre estes dois espaços, o Fundo Comum dos Sonhos possui uma dinâmica que aflora na imaginação e o Fundo Poético Comum precisa da imaginação para se realizar no corpo do pesquisator. O Fundo Poético Comum não acontece sem o Fundo Comum dos Sonhos, pois a poesis se dá no corpo do pesquisator através da ação do imaginário. Nesse caso, pode-se dizer que o Fundo Comum 35 dos Sonhos serve de reservatório/motor para o Fundo Poético Comum realizar-se. Neste processo, tal como numa rede rizomática, não se sabe exatamente onde é o início das conexões, pois o que se percebe sensivelmente é que o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum possuem uma dinâmica de correspondência recíproca, em que agem através do devaneio e devaneiam através da ação, ou seja, ambos sonham, devaneiam e agem recombinando os elementos da espiral imaginal, com a finalidade de transformar e “reviverse” no corpo do pesquisator. O Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum movem as energias e os afetos16, enquanto que os sistemas nervoso e muscular auxiliam no processamento de um material abstrato (imagens, sensações), para a transformação deste em um corpo (sensações, ações). A evolução e a intensidade da interlocução entre ambos acontecem da mesma forma que a dinâmica entre imagem/imaginário/transformação/ação, isto é, de forma horizontal, numa teia de conexões rizomáticas, que se repetem numa rede cíclica, sem entrada, sem saída, sem hierarquia e com muitas conexões, as quais se metamorfoseiam e se multiplicam. O Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum engendram-se dinamicamente e comungam da mesma natureza subjetiva. Mesmo que Lecoq fale do Fundo Poético Comum ligado ao trabalho de corpo do ator, ou seja, algo que poderia ser considerado como “material concreto”, tal corpo é trabalhado a partir de um espaço imaterial. Então, podese dizer que o Fundo Poético Comum é tão impalpável e subjetivo em seu nascedouro (dimensão abstrata) quanto o Fundo Comum dos Sonhos o é em sua totalidade. De outro ponto de vista, pode-se dizer que o Fundo Comum dos Sonhos, em última instância de seus manifestos, se transforma pela imaginação, no corpo do pesquisator, tornando-se, então, tão concreto quando o Fundo Poético Comum. A interlocução rizomática entre imagem/imaginário - Fundo Comum dos Sonhos/Fundo Poético Comum - constitui a principal dinâmica de pensamento desta tese. Com isso, chega-se à constatação de que toda esta pesquisa se desenvolve a partir de um universo abstrato, imaterial e subjetivo, mas que tem como forma de constatação um material muito concreto: o corpo/ação desta pesquisatriz. Mas como foi alertado no início, não existe a preocupação de se jogar âncora no mar do imaginário, mas sim de mergulhar/pairar, seguir estas águas incertas. Quando se fala em não lançar âncora, entende-se que há a consciência de que esta é uma pesquisa que se 16 Emprega-se a palavra “afeto” como referência às percepções dos sentimentos/emoções causados através dos estímulos trazidos nesta pesquisa, pois a própria palavra traz em si uma ação (afetar) e para este processo cabe muito bem seu emprego e referência. 36 metamorfoseia a cada nova conexão, a cada nova corrente marítima que passa a jangada/pesquisatriz se move, segue, paira, para, mergulha, volta à tona, olha em volta, conhece, reconhece e re-conhece o mar. Lança garrafas ao mar, espera a próxima corrente e novamente se move – nesse sentido, a âncora não é lançada. Neste campo de incertezas e correntezas, cria-se uma tentativa de imagem das ramificações de tais conexões. Não se trata de um esquema e, sim, como mencionado, de um intento de vislumbre imagético - uma garrafa ao mar. A flor e o pensamento - tentativa imagética da dinâmica rizomática desta pesquisa. A primeira imagem é um desenho realizado, aleatoriamente, no primeiro dia de aula da disciplina “Processos Criativos”, ministrada pela Profª. Drª. Sônia Rangel, em março de 2007. A segunda imagem é um intento de visualização da rede formadora da pesquisa, realizado sobre e a partir da primeira imagem, em junho do mesmo ano, na finalização do semestre: 1. 37 2. 2.2. MANIFESTAÇÕES ESPETACULARES POPULARES: PERPÉTUO IMAGINÁRIO “A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas[...]” Antonin Artaud (1993, p.21) Para não criar desconforto em relação a algumas expressões utilizadas ao longo deste discurso acerca das considerações sobre as manifestações espetaculares populares e o imaginário, é propício esclarecer que os termos “espetacular” e “popular” são vistos de um ângulo muito simples, sem grandes questionamentos semióticos, antropológicos ou sociológicos. Também, não se entrará em uma discussão etnocenológica do que é espetacular 38 ou teatral17. Para esta pesquisa, o espetacular é tido como um ato realizado para ser visto, o qual extrapola a ideia de cotidiano e possui uma consciência do olhar da alteridade. Enquanto que o popular é visto como uma manifestação advinda de um povo, não entrando na discussão sobre as divisões entre “grandes tradições” ou artes maiores, como são consideradas as artes eruditas e “pequenas tradições” ou artes menores, as artes populares – como já mencionado, para esta pesquisa, esta divisão não é relevante. A expressão “manifestação espetacular popular” foi adotada por considerar que esta abrange as atividades cênicas de muitas áreas, seja a dança, o teatro, o canto, os rituais, a luta ou a festa. Com isso, ela estaria abraçando todas as “atividades artísticas cênicas” que fazem parte dessa pesquisa, a qual trata da proposta de um possível acesso às máscaras da commedia dell’arte (aqui, faço referência em específico à de Claudia Contin e Ferruccio Merisi), através de células (movimentos, golpes, passos - circuitos musculares/energéticos) pinçadas de manifestações espetaculares populares brasileiras (coco, ciranda, maracatu, frevo, capoeira, maculelê, xaxado, caboclinho, samba, cavalo marinho e dança dos Orixás). Também já foi destacado que o interesse desta pesquisa é um transcurso muito específico de relações conectivas e que, apesar de ser uma possibilidade instigante e muito rica, não está entre os objetivos deste estudo, criar um vínculo de igualdade entre culturas18 de países diversos ou de correspondências entre as manifestações espetaculares populares destes. Certamente que, no momento em que as imagens se formavam (e se formam) e a imaginação trabalhava (e trabalha), paralelismos, comparações e aproximações se estabelecem, porém, compreende-se que são novos campos que se apresentam, os quais mereceriam estudos específicos e detalhados, não cabendo dentro desta tese, pelas próprias extensões destes novos campos abertos. Considerando somente os transcursos conectivos entre as Máscaras da Commedia dell’Arte e as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras que incorporam esta pesquisa, sem adentrar profundamente em outras questões, já se tem um grande “espaço” de estudo. Para tanto, entende-se que é preferível aprofundar-se nos objetivos a que se destina – o trabalho desenvolvido pela pesquisatriz para acessar as máscaras dell’arte – do que fazer observações superficiais em campos que não fazem parte das relações primárias aqui estudadas, o que não quer dizer que as relações secundárias e terciárias sejam sem 17 “[...] podemos dizer que qualquer ato em si pode ser visto como algo pleno de teatralidade, a partir da consciência de quem o pratica e do olhar de quem o presencia. Já a ação espetacular é aquela que provém de um evento invulgar, que foi elaborado para ser visto e admirado.” (OLIVEIRA, 2007, p.40). 18 Entende-se como cultura o conjunto de crenças, valores, tradições, vivências, atitudes, visões e compreensões de mundo, que formam um povo. 39 importância e que não poderão ser acionadas quando necessárias e relevantes. Este argumento contempla ainda os dados históricos das Manifestações Espetaculares Populares que integram esta pesquisa (coco, ciranda, maracatu, frevo, capoeira, cavalo marinho, samba, xaxado, caboclinho e dança dos Orixás, Zanni, Servetta, Brighella, Capitano, Arlecchino, Pantalone), eles serão acessados ao longo do discurso, conforme a necessidade de contribuição destes aspectos para que as experiências realizadas e o “caleidoscópio” das interconexões construídas com as máscaras da commedia dell’arte sejam compreensíveis. A partir destas exposições, iniciam-se as considerações sobre aquilo que se deseja falar mais atentamente – as conexões realizadas entre a Commedia dell’Arte e as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras que servem como ponto de partida para esta pesquisa prática. Este estudo investe em uma perspectiva do trabalho do ator e sempre que se faz referência a este, se está falando do jogo do ator e, com isso, se vê a necessidade de realizar algumas observações sobre a arte (ou necessidade) de “jogar”. O ser humano possui a atividade lúdica intrínseca a sua natureza, ela faz parte de uma linha evolutiva milenar que se alastra rizomaticamente pela existência humana. As manifestações espetaculares populares também são resultantes desta atividade e estão ligadas à busca incessante do ser humano pela sensação de sentir-se satisfeito ou de sentir prazer19. A satisfação e o prazer têm largas conexões com o jogo, a festa, o ritual, o cômico e o riso, pois são ações físicas e fisiológicas que resultam em sensações de prazer - também não é o momento de adentrar aos domínios do cômico e do riso, mas tais considerações são de grande importância e serão retomadas ao longo do discurso. As relações entre o jogo e a vida comum em sociedade ou, utilizando uma expressão de Viola Spolin para o cotidiano, a realidade objetiva20, são muitas. O dia a dia requer do indivíduo certo grau de seriedade. No entanto, para o ser humano (e não somente para ele), não é possível permanecer exposto a uma situação de tensão por longo período, é necessário que se tenha uma espécie de respiratório21, ou seja, um momento em que é proporcionada ao indivíduo a possibilidade de relaxamento e, até mesmo, de ter a sensação de igualdade e 19 Também não se adentrará a questão freudiana de pulsão, pois requereria uma introdução e um desenvolvimento neste campo que se distanciaria do objetivo da pesquisa, para esta é suficiente considerar que o ser humano busca em todas as suas relações a sensação de satisfação e prazer, em diversas graduações. 20 Para saber mais sobre a noção de “realidade objetiva” e sua relação com o jogo e o jogador ler: O jogo teatral no livro do diretor, de Viola Spolin. 21 Utiliza-se a palavra “respiratório” como um espaço no qual a tensão do dia a dia é dissolvida, um momento em que a pressão é afrouxada. É uma espécie de área de relaxamento das leis da realidade, sem perder o contato com a mesma. - Do dicionário virtual Houaiss versão 1.0: adjetivo.1 relativo à respiração; 2 que torna mais fácil ou possibilita a respiração; 3 que serve para se respirar 40 insubordinação às punições severas das leis sociais. Nesse sentido, o respiratório é, de certa forma, um espaço libertário e propício ao “prazer”. Esta insistente necessidade de sentir prazer pode ser satisfeita através da capacidade imaginativa/criativa inerente ao ser humano, pois a imaginação possui, conforme caminho mencionado anteriormente, a capacidade de trazer sensações ao corpo, entre elas a do prazer e da satisfação. Desta maneira, o respiratório se torna um espaço onde o imaginário/imaginação age, promovendo na realidade objetiva uma série de manifestações lúdicas, as quais propiciam certo “distanciamento” desta, mas não um total desligamento. Os engenhos lúdicos criados pela imaginação, os quais proporcionam tais sensações, podem ganhar tanta força que deixam de ser uma manifestação individual e se transformam em uma manifestação de um grupo, podendo passar ao patamar de uma manifestação espetacular popular. Estas manifestações espetaculares populares podem ainda serem vistas e referenciadas como “jogo”. O emprego do termo “jogo” para denominar tais práticas espetaculares populares vem em comum acordo com Johan Huizinga. O autor afirma que a palavra jogo para referenciar tais práticas, surge a partir de um “ato de concepção de inúmeras línguas”22 e abrange uma enorme variedade de relações, sejam elas entre animais, crianças ou adultos, abolindo limites territoriais, culturais ou raciais. Dessa forma, o conjunto de manifestações espetaculares populares que integram esta tese, sejam brasileiras ou italianas, é visto dentro de uma mesma categoria: a do “jogo”. Esta compreensão de jogo abordada por Huizinga, a qual serve a esta pesquisa, vem suspender barreiras territoriais e culturais que possam existir entre as manifestações espetaculares populares aqui estudadas, colocando-as no mesmo espaço imaterial e possibilitando as conexões destas a partir de uma mesma condição. Huizinga apresenta a justificativa de que a nomenclatura “jogo”, como inferência às manifestações resultantes desta capacidade de engenhar, não está ligada somente às questões de competição, mas também às de ludicidade. O autor traça um caminho oportuno e convincente sobre a origem da expressão “jogo” e mostra que, desde os gregos, ela esteve ligada, tanto à competição, quanto à festa. Ainda que fizessem distinção entre o jogo e a competição, considera-se que ambas pertencem aos mesmos domínios. Segundo Huizinga (1993, p.36): [...] na vida dos gregos, ou a competição em qualquer outra parte do mundo, possui todas as características formais do jogo e, quanto à sua função, pertence quase inteiramente ao domínio da festa, isto é, ao domínio lúdico. É totalmente impossível separar a competição, como função cultural, do complexo “jogo-festa-ritual. 22 Para outras informações sobre jogo e linguagem, consultar: Homo Ludens, de Johan Huizinga. 41 As reflexões de Huizinga sobre jogo – as quais contemplam as manifestações espetaculares populares de interesse para esta pesquisa – suscitaram, nesta pesquisadora, o entendimento de que, qualquer que seja a manifestação integrante do complexo “jogo-festaritual”, ela emerge de um engenho imaginativo e comporta uma complexidade de sensações, como visto anteriormente. Este caminho foi construído a partir da certeza de que as manifestações inclusas na tríade “jogo-festa-ritual” fazem parte dos domínios da ludicidade que, por sua vez, integra os domínios da imaginação (imaginário). Através da tríade de Huizinga, também se faz a conexão com o cômico e o riso, estes dois “elementos” podem integrar qualquer um dos itens da mesma, com diversos graus de inferência e inter-relação. Para avançar, gradualmente, nestas relações e nos mecanismos consideráveis para esta pesquisa, vê-se a festa como um elemento que interliga a tríade, assim também como jogo, já que se instaura como um evento temporário e cria, em certo grau, uma “dualidade na percepção do mundo e da vida humana” (BAKHTIN, 1999, p.5), trazendo o “princípio da vida material e corporal” 23 enfocado por Rabelais e reafirmado por Bakhtin como a grande força do popular. Além disso, a festa não é só um evento coletivo, ela é, também, um evento individual, podendo se instaurar no corpo de cada indivíduo, separadamente e com graduações diversas. Quando Bakhtin explica os princípios do cômico popular evidenciados por Rabelais como força e, de certa forma, como modo de viver a vida, pode-se perceber o quanto a festa é importante para a conexão da tríade de Huizinga e, especificamente, para esta pesquisa. Ao mesmo tempo em que ela é um elemento da tríade, nela, todos os três elementos podem estar contidos e/ou se instaurarem. No entanto, considerando-a como jogo, Bakhtin ressalta que nem sempre o contrário é possível, mesmo que ambos pertençam aos domínios do lúdico, nem sempre o jogo é festa. De acordo com Bakhtin (1999, p.16), para que o jogo seja festa é necessário que este tenha: [...] um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do espírito e das ideias. A sua sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa. Dessa forma, a imaginação, universo onde se forma a ideia e que engendra engenhos 23 “[...] imagens do corpo, da bebida, da satisfação de necessidades naturais e da vida sexual” (BAKHTIN, 1999, p.8). 42 lúdicos que interferem na realidade objetiva, é quem permite a “chegança”24 do “elemento a mais” - deste elemento que Bakhtin assinala como instaurador da festa no jogo. Este elemento advindo dos fins superiores da existência humana instaura no corpo e na atmosfera o clima de festa. Através deste elemento, os princípios da vida material e corporal se concretizam num corpo, o qual traz em si uma “ancestralidade festiva” (OLIVEIRA, 2007) 25 - um corpo prazenteiro que se emana e exala (-se em) festa. A noção de ancestralidade festiva trazida pelo pesquisador Érico José Souza de Oliveira vem fortalecer a tríade de Huizinga, pois reafirma a festa como ritual, compreendendo nela, não somente o carnaval, a comicidade e o riso, mas os ritos, os jogos e os fins superiores da existência humana - levando em conta as considerações anteriores que sublinham a potência do DNA imaginal e da imaginação em transformar o corpo e, através deste, então, fazer parte da atmosfera: exalando (-se em) elementos arcaicos da alma através da dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos, Fundo Poético Comum, imagem e imaginário). A partir destas colocações, pode-se chegar à conclusão de que o Fundo Poético Comum interage com as atividades lúdicas que se manifestam no corpo dos jogadores trazendo as sensações vindouras de um espaço abstrato em comum (Fundo Comum dos Sonhos). Então, conforme conexão estabelecida na tríade de Huizinga, o Fundo Poético Comum também se instaura e age na festa, no corpo prazenteiro daquele que exala (-se em) festa. Através desta conexão, jogo/lúdico/imaginação/pesquisator, o ator, seja em laboratório ou em cena, pode ser um corpo em festa que se exala e comunica-se de modo prazenteiro/festivo, e dessa maneira, o jogo do ator pode ser jogo/festa, desde que ele permita a chegança dos elementos vindouros de “uma outra esfera da vida”. Através dos princípios da vida corporal e material de Rabelais, da dinâmica recíproca do Fundo Comum dos Sonhos e do Fundo Poético Comum, o ritual, o jogo, a festa e o carnaval se caracterizam, não somente pela imagem ou pensamento abstrato, mas também pela imaginação - experimentação concreta no corpo deste material sensível. Melhor dizendo, o que propicia o estado de festa não é somente a imagem criada desta, mas é a tomada do corpo por esta – a imaginação. Quando o corpo é tomado pelo jogo/festa, ele traz em si os 24 Conforme Houaiss – Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa 1.0: subst. Fem. 1. Chegada (ação de chegar); 2. Dança de par praticada em Portugal no século XVIII, proibida como imoral; 3. Dança dramatizada com acompanhamento instrumental, baseada em tradições ibéricas, e cuja coreografia evoca as aventuras marítimas portuguesas e as lutas entre cristãos e mouros; 4. auto ou representação; 5. Visitas, tradicionalmente bem acolhidas, feitas pelos festeiros às residências por ocasião das festas de Natal e Reis. Vendo que “chegança” traz em si um sentido de ação, acolhimento, representação e festa,vê-se que é uma boa palavra para referenciar a instauração do elemento necessário à festa. 25 A noção de ancestralidade festiva do pesquisador Oliveira chama a atenção para um corpo que comporta a festa e o ritual. 43 elementos sensíveis de um “elo genético” (DNA imaginal) advindo de um estágio anterior ao da civilização humana. Conforme Bakhtin assinala, os princípios material e corporal devem ser considerados como universais, pois fazem parte dos fins superiores da existência humana – do Fundo Comum dos Sonhos. As manifestações espetaculares populares que fazem parte desta pesquisa são consideradas, por esta pesquisatriz, como festas/jogos ou jogos/festas e integram a tríade de Huizinga, portando genes imaginais vindouros da outra esfera da vida, aquela que é universal e que constitui o “a priori onírico” do ser humano. Estas manifestações espetaculares populares - engendros da atividade lúdica – se justificam na própria satisfação resultante de sua realização, em qualquer que seja o grau. O jogo não faz parte das necessidades urgentes da vida social (como comer, vestir, morar, etc.), mas das necessidades do ser humano que se justificam na sua gratuidade, e esta é uma das características fundantes do jogo e da festa: Visto que não pertence à vida “comum”, ele [o jogo] se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário; interrompe este mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. (...) Todavia, em sua qualidade de distensão regularmente verificada, ele se torna um acompanhamento, um complemento e, em última análise, uma parte integrante da vida em geral (HUIZINGA, 1993, p.11-12). Conforme a citação de Huizinga, o jogo integra parcialmente a vida cotidiana e, assim, tem-se outra característica fundante do mesmo: a sua natureza de evento contido na vida cotidiana e compartilhado por aqueles que o realizam. [...] o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana” (1993, p.33). As observações realizadas por Huizinga acerca do jogo são concernentes às manifestações espetaculares populares integrantes desta pesquisa, todas possuem uma finalidade lúdica e, apesar de se manifestarem na realidade objetiva, pertencem à natureza de evento temporário. Nelas, o indivíduo suspende a vida cotidiana e adentra um universo que move seus afetos e lhe proporciona a possibilidade da sensação de um corpo em festa prazenteiro. Neste evento temporário, o jogo estabelece-se como duplo da realidade, ainda que esteja contido nesta. Contudo, o que é importante salientar, é que esta dualidade, mesmo 44 que tenha finalidades tão diferentes – uma lúdica e outra de ordem social - não constitui universos opostos, mas sim complementares, o respiratório criado pela atividade lúdica auxilia a ordem/realidade e, com isso, realidade e imaginação se alentam numa dinâmica recíproca, mesmo mecanismo de funcionamento da lembrança/imaginação comentado anteriormente. Através do jogo/festa, e não só dele, o imaginário encontra um meio muito propício para permear o cotidiano e, assim, o DNA imaginal pode se perpetuar na existência humana, uma vez que este espaço da atividade lúdica auxilia o ser humano para que os sonhos, os devaneios e o inconsciente possam se “realizar”, em qualquer que seja a instância. Esta realização da capacidade imaginativa não tem como exigência ser parte do cotidiano, desta maneira, ela pode acontecer no espaço da fantasia, na forma de um evento, um universo muito mais propício às suas finalidades sensíveis. Entretanto, no jogo também existem regras, cada manifestação espetacular popular tem suas normas, embora, estas continuem a fazer parte dos domínios do lúdico, não surgem como “leis”, e sim como partes da interação entre os indivíduos, uma espécie de acordo temporário. Quaisquer que sejam as regras, o indivíduo compartilha-as a partir de uma livre decisão de interação com aquele universo, simplesmente pela possibilidade de realizá-lo, ou melhor, de sentir prazer, de se divertir/festejar. Mas a finalidade desta pesquisa não é a de validar a importância da inserção do jogo na ordem social. A pretensão que se tem é de constatar a inundação de um imaginário através da insistência deste em pungir o cotidiano ao longo da existência humana. Esta constância do imaginário leva a crer “[...] que a categoria de jogo [é] fosse suscetível de ser considerada um dos elementos espirituais básicos da vida” (HUIZINGA, 1993, p.34), pois tem-se que levar em conta que “A atitude lúdica já estava presente antes da existência da cultura ou da linguagem humana, portanto, o terreno no qual se inscrevem a personificação e a imaginação também já estava presente desde o passado mais remoto” (1993, p.156). O jogo, então, é um engenho lúdico que aporta genes imaginais, elementos de um “nível pré-histórico da atividade espiritual” (1993, p.154). Por estas características e observações, vê-se as manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa como atividades lúdicas que pungem a realidade objetiva e esta condição primária de “ser jogo” é que as une num mesmo espaço imaterial e que permite a conexão das mesmas, extrapolando os limites culturais, que conforme afirmação de Huizinga, na citação anterior, é uma característica específica do jogo. Para esta pesquisa, as asserções de Johan Huizinga em relação ao jogo, as 45 considerações de Mikhaïl Bakhtin em relação à festa e a um sistema de imagem criado por Rabelais, as afirmações de Erico José Souza de Oliveira sobre a noção de uma ancestralidade festiva e o corpo prazenteiro que comporta e emana a festa, vêm reafirmar a pertinência de um espaço como o Fundo Comum dos Sonhos (Gaston Bachelard) e da dinâmica deste com o Fundo Poético Comum (Jacques Lecoq) - formando um “sistema de imaginação”. Esta dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum também pode ser considerada como um “sistema de imaginação”. Claro que não se trata de um sistema de imagem, como o sistema criado por Rabelais, pois ele criou princípios e firmou um modo de compreender, ver e viver o mundo. Este “sistema de imaginação26” surge sem grandes aspirações, ele vem nominar o ciclo desta dinâmica recíproca e contínua entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum. Cada manifestação lúdica engendrada pode ser considerada fruto de um devaneio de um imaginário que se realiza, que se efetiva na dinâmica recíproca entre memória e imaginação. Assim, no jogo/festa, o corpo prazenteiro se instaura e exala-se em partículas submoleculares de elementos arcaicos da alma, os quais agem dinamicamente no indivíduo que a realiza efetivamente num corpo e desse para a atmosfera, como também naquele que, através da observação, se predispõe a sensivelmente se comover e se afetar com as ações destes genes imaginais, porém, partindo da atmosfera e da imagem para, em certo grau, sua sensibilidade, percepções e o seu corpo. Quando um corpo exala (se em) festa, a dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum não acontece somente naquele que joga/festeja mas também naquele que o observa, basta haver a predisposição do indivíduo para que ela também se instaure nele. Porém, é certo que, em grau muito diferente daquele que acontece no sujeito que age e se exala, o observador é muito mais passivo que o sujeito da ação. Durante o jogo, os corpos em imaginação também provocam no espectador, através da emanação (atmosfera), o contato com a ancestralidade festiva, é que a imaginação do corpo prazenteiro encontra, naquele que o observa, genes imaginais, provocando nele uma retumbância, uma espécie de eco – a emanação do sujeito em festa afeta e convoca o observador a habitar com ele as imagens, isso 26 Faço um destaque na palavra “imaginação” para utilizá-la como uma palavra-valise, a qual, segundo Deleuze, está na qualidade das palavras exotéricas, aquelas que trazem em si uma síntese disjuntiva, “[...] que operam uma ramificação infinita das séries coexistentes e recaem, ao meso tempo sobre as palavras e os sentidos, os elementos silábicos e semiológicos (‘disjunção’)” ( DELEUZE, 2007, p.50). Nesta condição de palavra-valise, para nominar o sistema estabelecido pela dinâmica recíproca entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum, a imaginação traz a compreensão necessária do funcionamento das imagens, para esta pesquisa, podendo ser uma imagem em ação, no indivíduo e na atmosfera e, também, ser a ação da imagem, no indivíduo e na atmosfera, dando a entender uma cíclica contínua, a qual não se sabe o início ou o “provocador” – mesmo mecanismo imaginário/imagem/transformação/ação/imagem... - citado anteriormente. 46 é possível porque o Fundo Comum dos Sonhos faz parte de todo ser humano e é neste espaço imaterial que acontecem as emanações e vibrações. A imagem encontra correspondência (eco, retumbo) no imaginário do observador. Através de elementos sensíveis, mencionados anteriormente, vindos de outra esfera, de uma dimensão abstrata, de um espaço imaterial e de um sistema de imaginação (imagem/ imaginário/ imaginação/ transformação/ ação/ imagem/ imaginário/ imaginação/ transformação/ ação/...), o espectador entra em contato com os aspectos ancestrais da sua alma e do cosmos e também se dispõe a uma atitude lúdica, a (sua) imaginação o invoca. O jogo/festa e, portanto, o imaginário, tocam àqueles que o realizam e o assistem, efetuando uma comunhão com a ancestralidade festiva presente em cada indivíduo e assim a tríade (jogo-festa-ritual) se renova e se atualiza. Com tamanha inundação, impossível não ver o imaginário como um espaço universal, o qual constitui um meio de relações de coletividade. Porém, como esta conexão de genes imaginais acontece em cada indivíduo, também o coloca como um espaço de individualidade. Com isso, o imaginário também contribui para a dialética da dualidade individuo/coletivo muito necessária ao homem, segundo Michel Maffesoli. Para o ser humano, é importante que ele se veja como indivíduo e coletivo. Contudo, a partir das colocações sobre o imaginário, fica claro que, na liquidez em que este se alastra e inunda, não há uma total individualidade, somente o compartilhamento o compõe, uma vez que se entende que, nas diversas graduações de células e partículas imaginárias que constituem um todo, o sujeito encontre a sua “individualidade”. As manifestações espetaculares populares, estas resultantes da atitude lúdica, são vindouras destes espaços de compartilhamento e individualidade. É nas diferenças graduais (células, partículas, moléculas e submoléculas) que a atualização do passado e o compartilhamento da história adicionada à imaginação se efetiva e se valida. Nas manifestações espetaculares populares o prazer resultante da pungência do imaginário comove o corpo do jogador e do espectador. O corpo que emana (-se em) festa transporta o homem a uma união cósmica, adjacência na qual o sujeito é levado pela sua cíclica vital prazerosa27. 27 Esta “cíclica vital prazerosa” que nomino, está ligada à busca incessante do prazer e pode ser relacionada ao que Maffesoli chama de orgiásmo e mítica erótica e Oliveira de religiosidade orgiástica e ancestralidade festiva. Estas compreensões da presença de elementos ancestrais na atmosfera festiva e nos corpos que fazem festa se coligam com o Fundo Comum dos Sonhos, o Fundo Poético Comum e com a tríade de Huizinga jogo-festaritual. Apesar de Maffesoli e Oliveira se dedicarem a questões culturais, antropológicas e sociais e este estudo ao trabalho do ator, os caminhos possuem identificações, porém, mais uma vez, se deve renunciar a um encaminhamento secundário (não menos interessante), para enfatizar questões que dizem respeito, diretamente, a 47 Esta cíclica vital prazerosa tem a ver com a busca incessante e contínua do prazer e está ligada à tríade jogo-festa-ritual de Huizinga, pelas considerações sobre jogo e festa já realizadas e, consequentemente, às manifestações espetaculares populares que pungem a realidade objetiva e integram esta pesquisa. Deste modo, pode-se considerar a tríade de Huizinga como um forte e vigoroso elo conectivo desta pesquisa, pois cada um dos três elementos que a forma constrói múltiplos elos de conexões com elementos vindouros de outra esfera e os três juntos ganham força ainda maior - de alastramento e de conexão. A tríade e suas conexões com os outros elementos vêm fortalecer a constatação da dinâmica do Fundo Comum dos Sonhos e do Fundo Poético Comum e confirmam as conexões rizomáticas desta pesquisa. Neste discurso em que tento explicar as conexões rizomáticas que formam o pensamento que integra esta pesquisa, não se pode deixar de sublinhar a subjetividade, pois ela é o agente maior deste trabalho, ela ocupa o lugar do inexplicável, preenche os silêncios entre os conceitos e as técnicas, não porque estes faltam, mas porque ela e o empirismo estão neste lugar do “indizível”. Segundo Deleuze, os vínculos subjetivos é que fazem o sujeito se ultrapassar, isto é avançar. Este avanço ou ultrapassagem acontece quando o sujeito “afirma mais do que sabe”, isto porque a subjetividade possui uma dupla potência: a de crer e a de inventar - “Crer é inferir de uma parte da natureza uma outra parte que não está dada. E inventar é distinguir poderes, é constituir totalidades funcionais, totalidades que tampouco estão dadas na natureza” (DELEUZE, 2008, p. 94). Ainda sob a crença, segundo David Hume, citado por Deleuze, esta “[...] é um sentimento, uma maneira particular de sentir a ideia. A crença é a ideia “sentida mais do que concebida [...]” (2008, p. 95). Com estas duas potências, a de crer e a de inventar, uma com poder de inferência e outra com poder de criar totalidades, a subjetividade e o empirismo avançam e neste progresso a ultrapassagem acontece, quando, através de uma sucessão de dados, nos quais o sujeito crê, ele conclui (inventa) outros - ainda aqui é preciso dizer que, segundo o filósofo David Hume, o dado não faz parte do plano concreto, ele é “[...] o fluxo do sensível, uma coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções” (apud DELEUZE, 2008, p. 104). Então, num indivíduo, o dado constitui uma espécie de reservatório ou de acervo, a crença é a percepção deste dado e a invenção é a comoção do dado. A partir das potências do próprio dado, da crença e da invenção, um novo dado se forma. esta pesquisa. 48 Foi exatamente dessa maneira que a subjetividade foi impulsionando o avanço desta pesquisa. Os dados eram e são as experiências (fisicidades e corporeidades) dentro das manifestações espetaculares populares (coco, ciranda, maracatu, xaxado, caboclinho, samba, capoeira, frevo, maculelê, cavalo marinho e dança dos Orixás – máscaras do Zanni, Arlecchino, Brighella, Pantalone, Capitano, Servetta, Cortigiana e Nobile), todos eram e são do fluxo do sensível e faziam e fazem parte das minhas crenças, a potência em crer e inventar é que me fazia ultrapassar os dados, comunicando-os entre eles e concluindo que através de um dado poderia chegar a outros. Este sistema subjetivo funciona porque, segundo Deleuze, o sujeito se constitui no próprio dado, isto é, ele se vê como parte do dado, é afetado pelo mesmo, passando a se constituir nele. Foi o que aconteceu com esta pesquisatriz que se envolveu nas percepções sensíveis do seu corpo, deixando que o conjunto de impressões, imagens e percepções tomassem conta do seu organismo e inventasse a possibilidade de acessar as máscaras da commedia dell’arte através do conhecimento prévio que sua musculatura já possuía. Nessa pesquisa, a conexão se dá de um modo ainda mais complexo, esta pesquisatriz possuía (e possui) dados A (manifestações espetaculares populares brasileiras) e dados B (manifestações espetaculares populares italianas – máscaras da commedia dell’arte), sendo assim, todas as manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa são dados, mas as conexões destes dados conhecidos constituem outros, o caminho conectivo entre todos os dados que constituem esta pesquisa é o “novo dado” – o resultante da dupla potência crer e inventar. Tento explicar ainda mais, pois a conexão é muito complexa, podendo se ramificar em direções múltiplas: cada dado A e B são constituídos de outros [cada manifestação espetacular popular (danças, lutas, máscaras)], cada um destes outros dados são constituídos de outros (passos, golpes, partituras) e cada um destes outros dados são constituídos de outros dados (cada movimento que constitui o passo, o golpe ou a partitura), e assim pode-se seguir a divisão ramificada, chegando a graus que se constituem em células e micro-células de A e B. São conexões que acontecem dentro de uma imaterialidade, mas que estão longe de serem superficiais, pelo contrário, a cada nova vivência no dado são novos vislumbres que se entreveem e que colocam esta pesquisatriz em desassossego, são novas imergências neste universo imaginário incomensurável, transbordante e rizomático, o qual inunda toda a humanidade desde a sua concepção de mundo (e quiçá antes dela), o qual serve de reservatório/motor para as atitudes lúdicas que pungem, acontecem e agem na realidade objetiva, as quais comportam e se conectam com a tríade “jogo-festa-ritual” e são resultantes da dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. 49 Conforme visto, a tríade de Huizinga também vadia por este universo imaterial e compõe um forte elo conectivo entre as manifestações espetaculares populares, brasileiras e italianas, que formam o conjunto de dados desta pesquisa, pois todas se conectam diretamente com, ao menos, um dos elementos formadores e, consequentemente, com os outros. A tríade “jogo-festa-ritual” está presente tanto nas máscaras da commedia dell’arte como no frevo, na capoeira, no maculelê, no maracatu, no coco, na ciranda, no caboclinho, na dança dos Orixás, no cavalo-marinho e no samba, comunicando-se com as instâncias pertinentes ao imaginário. Durante os eventos em que as manifestações espetaculares populares se realizam, a tríade “jogo-festa-ritual” se revigora, o jogo/corpo/festa/ritual aporta lembranças, memórias, pensamentos e afetos que transcendem o espaço/tempo e fazem o DNA imaginal retumbar, ecoar nos corpos prazenteiros e no cosmos. Na verdade, na tríade de Huizinga, tem-se outra cíclica. Conforme visto, todos os seus elementos transcendem a cultura e o tempo/espaço e constituem categorias que pairam em outra esfera que não a da realidade objetiva. A festa/jogo/ritual e o jogo/festa/ritual ou a festa, o jogo e o ritual, portam e trazem elementos arcaicos da alma. Desde os primórdios, o ser humano tem ligação com uma instância “divina”, mítica, mística e ritualística. O ritual o acompanha desde o nascimento da humanidade até os dias de hoje. Muitos foram os rituais inventados para explicar o inexplicável, para celebrar ou desejar uma boa caça ou colheita, para a morte e para vida, para lamentar ou festejar, para a passagem de uma etapa da vida à outra ou, ainda, ritos envolvidos nas tradições orais da cultura de um povo, fazendo parte da “transmissão do patrimônio mítico-cultural” através de representações, como nas culturas indiana, japonesa, balinesa e chinesa, nas quais a tradição oral possui uma forte conexão com o teatro, em que é o ponto culminante de eventos de pequeno, médio e grande porte. Também entre os índios das Américas, a tradição oral mistura costumes, história, saberes místicos e crenças míticas. Como, por exemplo, em algumas tribos indígenas brasileiras ainda são realizados rituais de passagem da fase infantil para a fase adulta, de iniciação à caça, de cura, comemorativos e outros28. Desde a Antiga Grécia que os rituais a Dionísio ou os rituais de fertilidade misturam- 28 Para saber mais sobre alguns destes rituais indígenas, ler: “Antropologia Indígena. Uma Introdução” de Carmen Junqueira.“Body art dei primordi: Lezioni di trucco e pittura corpórea”, “Viaggio di Arlecchino in Mato Grosso. Comunicati dai confini di guerra tra foresta e deserto” e “Nhits’ina = insieme: per un’ecologia dei rapporti umani. Festa teatrale conclusiva dedicata alle tribú Xavante del Mato Grosso”,in Progetto Sciamano 2004. Teatro interetnico e teatro Sociale, Org. Claudia Contin. 50 -se com encenações29. Vem desta “tendência” humana de representar o mito, a forte conexão do rito com o teatro e destes dois com a Máscara. O ritual, para Barthes, está coligado ao mito, ele é a “ferramenta” que auxilia o sujeito a “incorporar” o mito. Barthes qualifica o mito como uma fala e o rito como a ação desta fala30, ou seja, o mito é a memória, a lembrança e o rito é a atualização, a repetição desta memória no evento imediato, realizando neste, uma transcendência. Esta transcendência acontece porque o rito está ligado às “origens” da vida humana, presente nas suas crenças e hábitos. O rito porta e comporta o mito que a cada invocação se renova e se reinventa e, nesta repetição, tanto um quanto outro se fortalece. Ligada ao ritual está a máscara, ela está presente não só nos antigos rituais à Dionísio mas também nos de fertilidade, nos saturnais, nos carnavalescos e muito outros da Grécia e Roma antiga. A máscara é um objeto que contém intrinsecamente o sentido de incorporação (do mito), de transcendência, de ligação a uma instância superior - se adentrará tranquilamente nas questões concernentes à máscara. Esta transcendência, segundo Linn Mario Menezes de Souza31, acontece, também, porque o ritual comporta genes de uma origem primitiva e pode ser instaurado dentro de qualquer atividade ou ação, pois é algo que depende muito do indivíduo, podendo ser realizado individualmente (cada um cria os seus rituais, grandes ou pequenos32) ou ser uma manifestação de um grupo - da mesma forma que a festa, o ritual se instaura no corpo e na atmosfera. Para que o rito aconteça, não é preciso uma necessidade aparente ou coerência, ele em si, a sua realização é a própria justificativa – tal como o jogo e a festa. A cada repetição do ritual, ele se reafirma como rito e através dos genes imaginais que comporta, o ser humano retorna ao primitivo atualizando o passado e, a cada renovação, transgredindo o espaço/tempo. O ritual funciona, segundo o antropólogo social Victor Turner (1986), como um elemento de integração social e cultural, reforçando os valores comuns e superando conflitos. Porém, mesmo que sejam valores comuns a um povo ou superação de conflitos sociais, eles também podem ser referentes ao indivíduo (relação com o imaginário). Turner faz uma análise do rito de uma forma ampla, dentro do tecido social e do tecido cultural, constatando 29 Para saber mais, ler: La maschera teatrale nel mondo greco e roman.( Giovanni Calendoli). In : “Arte della Maschera nella Commedia dell’Arte”de Donato Sartori e Teatro Grego. Tragédia e Comédia, de Junito de Souza Brandão. 30 Vê-se a fala como um discurso, um significado, podendo ser uma imagem (BARTHES, 1982). 31 Mestre indiano que acompanhava Renato Cohen, aqui no Brasil, nas suas pesquisas entre teatro e xamanismo, o qual tive a oportunidade de conhecer e realizar pequeno estágio com ele, no Ecun 2002. 32 Afirmação de Linn, em conversa pessoal, durante um ritual de cura, realizado durante o estágio. 51 que o ritual faz parte das estruturas que o ser humano engendra para viver33, coligando-se ao jogo e a festa, também por esta característica e tanto quanto eles, não está dentro das necessidades básicas para a sobrevivência do ser humano, mas está entre as necessidades sociais e culturais deste. Para esta pesquisadora, na função “sócio-cultural” do ritual e na sua qualidade como elo conectivo entre passado e presente, é possível sentir/perceber que a cada realização/atualização de uma sambada de coco, de samba de roda, de samba, de cavalo marinho, de uma roda de capoeira ou maculelê, de uma dança de Orixá executada num terreiro ou pelos integrantes do cortejo de maracatu, de uma ciranda, de um xaxado, de uma dança de caboclinho, de uma frevada, a cada apresentação de teatro, a cada aparição e a cada feitura34 de uma máscara dell’arte, de uma roupa, figurino, da própria preparação do espaço ou ainda da elaboração do que é necessário para o rito/dado/manifestação espetacular popular se realizar o ritual se instaura. No caso, tudo pode se tornar parte do ritual – vai depender, como afirma Linn Mario Menezes de Souza, do indivíduo e da ação deste no evento. Na verdade, entendo o discurso do mestre indiano da seguinte forma: apesar do ritual ser caracterizado como um evento, ele permeia as pequenas ações objetivas do ser humano, ele, mais do que nenhum outro elemento da tríade, aparece subjetivamente dentro da realidade objetiva - o que Gilbert Durand nominou de “trajeto antropológico”, que é a capacidade de comportar nas ações da vida quotidiana, de modo subjetivo, as pulsões mais antigas da alma do ser humano. Em alguma instância, dentro dessas pulsões antigas, está o retorno aos primórdios: ao mito, a Dionísio, à religiosidade. Segundo Tessari (1984, p.88), o ritual e o ator que trabalha com a máscara possuem uma forte relação, pois “Na verdade, não deve ser menosprezado que, na vestição do cômico, o elemento que confere um valor de iniciação ao ato é a máscara, a qual, mais do que o figurino, re-invoca um gesto tão antigo cujo limiar é o extra-temporal, reconduzindo, não somente ao teatro Grego, mas ao fascinante mundo do mito” 35. Grotowsky sempre buscou no seu trabalho esta ação ritual, a qual comporta elementos 33 Para saber mais sobre o mito, ler: Dal rito al teatro de Victor Turner. Do dicionário virtual Houaiss versão 1.0: substantivo feminino. 1 Ato, processo ou efeito de fazer(-se); elaboração 2 O que se fez; obra, trabalho, produção, produto 3 Configuração física; forma, formato, feitio 4 Criatura, pessoa ensinada ou formada por outrem para seu serviço 5 Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil. 6-66 Processo de iniciação, no candomblé e em seitas afins dele derivadas ou por ele influenciadas. - Por todas estas possibilidades de compreensão e explicação, a palavra feitura, para esta pesquisatriz, vem contemplar o discurso sobre a ação ritualística. 35 Tradução da autora: “In vero, non va sottovalutato che, nella vestizione del comico, l’elemento che conferisce un valore di iniziazione all’atto è la maschera, la quale più del costume rievoca un gesto talmente antico da confinare con l’extratemporale, da ricondurci non soltanto al teatro Greco, bensì ancora nel fascinoso mondo del mito”. 34 52 arcaicos da alma. Quando ele dizia aos atores que no teatro a ação devia ser uma “ação ritual”, entende-se que estava se referindo a esta qualidade de ação que transgride o tempo/espaço comportando genes imaginais. Assim, quando Grotowski (1971, p. 22) falava do ator santo e pedia o sacrifício e a doação “[...] uma mobilização de todas as forças físicas e espirituais do ator”, ele aludia ao corpo que emana elementos vindouros desta outra esfera, que possui conexão com as questões primordiais da existência humana, para encontrar as ações rituais desejadas, através de práticas como “A autopenetração, o transe, o excesso, a disciplina formal [...]” (1971, p. 23) – todos, elementos do ritual. Ainda, quando Grotowski pedia ao ator que expressasse “[...] através do som e do movimento, aqueles impulsos que estão no limite do sonho e da realidade” (1971, p. 20), para esta pesquisa, ele estava pedindo que “sonhasse acordado”, que devaneasse, que fosse buscar no limiar do sonho com a realidade estas ações antigas que se renovam e têm esta pulsão de pungir a realidade e, então, nesse espaço imaterial e extra-temporal, os elementos arcaicos da alma afetam o sujeito e a imaginação acontece no sujeito. A tríade festa-jogo-ritual se instaura no corpo e no cosmos, nas palavras do pesquisador Erico José Souza de Oliveira (2007), no corpo prazenteiro que comporta uma ancestralidade festiva emanando (-se). Destas diversas formas e graduações, o ritual faz-se presente em todas as manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa, por ligações consequenciais da própria estrutura da tríade ou por conexões diretas e variadas que dizem respeito à natureza de cada manifestação, italiana ou brasileira. As considerações sobre imagem e imaginário como universos transbordantes e perpetuantes, o sistema de imaginação gerado pela dinâmica recíproca entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum e as considerações sobre jogo-festa-ritual foram necessárias para que se compreendesse o nascedouro das conexões entre a Commedia dell’Arte e as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras. Por todos os vínculos conectivos e considerações levantadas, pode-se também pensar na commedia dell’arte como uma manifestação espetacular popular resultante de uma atitude lúdica de um povo. Conforme visto, esta colocação não é uma simplificação, pelo contrário, é uma conclusão resultante de um complexo universo imaterial que transborda e punge a realidade objetiva. A Commedia dell’Arte está entre os dados que fazem parte desta pesquisa, mas este gênero teatral é formado por muitos elementos (também dados) – canovacci/zibaldoni/roteiros, lazzi/números/gags, máscaras, música – e cada um contém 53 características próprias. Por este motivo, o objetivo desta pesquisa não é dar conta de todos os elementos que constituem a commedia dell’arte, o que interessa, o qual é o elo de conexão enfocado, são as máscaras que a integram. As máscaras se ramificam, podem ser consideradas como parte deste imaginário popular que inunda, se atualiza e se perpetua de maneira fracionada, individual e compartilhada. Já foi mencionado que cada manifestação espetacular popular é um dado que contém outros dados, que contém outros e, sucessivamente, se desdobram - a cada vivência outros novos dados se formam. No caso do dado “commedia dell’arte”, a qual contém as máscaras dell’arte, as quais contêm outros dados - as partituras, por sua vez, contêm movimentos, que contêm micromovimentos e, assim, no macrouniverso do imaginário, as conexões são realizadas, primeiro, nos micromovimentos e nas subjetividades das ações, para avançar e realizar conexões mais largas, como em movimentos completos. Na variedade e multiplicidade das máscaras dell’arte, estão as diferenças graduais deste imaginário coletivo e individual, trazendo traços semelhantes e outros diversos – refirome, aqui, às várias máscaras de Arlecchini, Capitani, Pantaloni, Dottori, Brighelli, Servette, Nobili, Cortigiani, Zanni e Pulcinelli, todas vindouras deste imaginário coletivo e individual. A máscara é um “objeto” que interroga e suscita interrogações. Muitas vezes servindo como um portal, ícone ou elemento de rituais religiosos, de caça, de festa, de morte, de vida ou de cura, ela possui uma história tão antiga quanto a da aparição do ser humano na face da terra. Segundo o pesquisador Alfonso Renzo Degano36, estudando o período Paleolítico, encontram-se pinturas e desenhos rupestres de homens que se vestiam/mascaravam com peles e penas de animais ou folhas para rituais xamânicos ou de caça. No que diz respeito ao rito, de certa forma, Degano entra em acordo com Turner e afirma que, nas civilizações em que a máscara aparece como ritual ou elemento ritualístico, ela acaba possuindo uma função moral, ética, cultural e social insubstituível. Muito além de um objeto, em muitas culturas, as máscaras “[...] representam as concessões do mundo sobrenatural e as relações estabelecidas do homem com as potências superiores” (DEGANO, 2005, p.193)37. Esta coligação da máscara com as “potências superiores”, segundo Degano, acaba trazendo com ela uma “consciência” de uma “viagem metafísica”, estabelecendo a máscara objeto como um “trâmite” entre dois mundos (nesta pesquisa, este “trâmite” foi chamado de 36 Dr. Alfonso Renzo Degano é colecionador de máscaras de diversas culturas do mundo, com as quais realiza mostras e conferências “Maschere dal Mondo”. É historiador e professor nas Áreas de História e Geográfica na UTLE – Università della Terza e delle Libere Età di Fiume Veneto – Pordenone – Itália. 37 Tradução da autora: “[...] rappresentano le concessioni del mondo soprannaturale e le relazioni stabilite dall’uomo con le potenze superiori”. 54 “link”). Porém, tanto historiadores como Degano, quanto estudiosos do teatro como Taviani e sociólogos como Turner afirmam que toda essa capacidade ritualística icônica, de tramitação e link da máscara é o indivíduo que a concerne: reconhecendo-a como portal/ícone/link; habitando as imagens que se formam no seu espírito e deixando-se transformar/habitar por elas num sistema de imaginação. Para Giovanni Calendoli (SARTORI; LANATA 1984, p. 13): A máscara é, desde as suas mais remotas aparições, a refiguração de um vulto divino, humano ou animalesco, heróico, aterrorizante ou cômico, que um indivíduo pode impor ao próprio vulto apagando-o e assumindo os caracteres da máscara. Esta operação de transformação exterior, mas, também, interior, tem um conteúdo mágico e por isso se coloca originariamente no âmbito religioso, mesmo se as razões que determinam esta transformação possam ser muitas outras. A máscara, como objeto em si, aparece dotada de um poder mágico e religioso, porque é o instrumento que torna possível a metamorfose de um indivíduo, tornando-o diverso dele mesmo e concedendo-lhe outros poderes. A máscara contém a força necessária para produzir a metamorfose: é, sim, um objeto, mas um objeto carregado de uma energia secreta e obscura. 38 Quando Calendoli comenta que a máscara é um “objeto carregado de uma energia secreta e obscura”, compreende-se que ele está falando sobre as suas conexões imaginais, isto é, das conexões subjetivas, imateriais, míticas, religiosas, trata-se das forças que não possuem uma concretude, mas que podem ser percebidas e constatadas a partir dos resultados que provocam e pungem a realidade objetiva, como as máscaras, os jogos, os rituais, as festas, as transformações e metamorfoses provocadas no corpo que tem contato com estas forças. Calendoli também aponta para a relação, no caso da máscara dentro do teatro, com Dionísio, afirmando que esta é uma coligação impossível de não ser feita, pois na Grécia e na Roma Antiga, tanto a máscara da comédia quanto a da tragédia eram relacionadas com os rituais a este Deus e, com isso, a máscara no teatro sempre representará este mito, pois “a mesma duplicação da máscara em uma expressão trágica e outra cômica, corresponde, antes de tudo, à duplicidade deste deus que governa a vida e a morte, como também, o riso e o pranto” (SARTORI; LANATA 1984, p.13)39. 38 Tradução da autora: “La maschera é, fin dalle più remote apparizioni, la raffigurazione di un volto divino, umano o animalesco, eroico, terrificante o comico che un individuo può imporre al proprio volto, cancellandolo ed assumendone i caratteri. Questa operazione di trasformazione esteriore, ma anche interiore, ha un contenuto magico e perciò si colloca originariamente nell’ambito religioso, anche se le ragioni che determinano questa trasformazione possono essere assai varie. La maschera, considerata come oggetto in sé, appare dotata di una valenza magica e religiosa, perché é lo strumento che rende possibile la metamorfosi di un individuo, facendolo diverso da sé e conferendogli altri poteri. La maschera racchiude la forza necessaria a produrre la metamorfosi: è, si, un oggetto, ma un oggetto carico di un energia segreta e oscura.” 39 Tradução da autora: “Lo stesso sdoppiarsi della maschera in un’espressione tragica ed in un’espressione comica corrisponde anzitutto alla duplicità del dio, che governa la vita e la morte e perciò il riso e il pianto”. 55 Dionísio era um deus que se metamorfoseava e, de certo modo, deu forma à sua existência por intermédio da máscara e “consequentemente se tornou, também, o senhor da máscara” (SARTORI; LANATA, 1984, p.13) 40. Tendo relação com os rituais de fertilidade e solstícios, Dionísio era comemorado, também, como o deus das estações do ano, das metamorfoses da terra e da natureza e a máscara, elemento essencial ao culto e ritual dionisíaco, traz esta ideia de incorporação, duplicidade, metamorfose e transformação. Muitos são os olhares sobre a relação das máscaras e o ser humano, como também são muitas as relações entre a máscara e o teatro, umas mais céticas, outras mais fantasiosas e outras, ainda, religiosas. Claudia Contin possui uma relação ritualística, respeitosa e afetuosa com as máscaras da commedia dell’arte, relação esta que procura passar às suas alunas. Posso dizer que, através da convivência, percebi que, para ela, a máscara tem esta função de objeto/link, um ícone, um portal e sinônimo de metamorfose. Totalmente conectada à máscara que a escolheu, Claudia Contin leva Arlecchino pelo mundo e a máscara a faz conhecer outras dimensões das realidades objetiva e subjetiva. Quem vê l’Arlecchino Claudia Contin” (como se faz conhecer no meio artístico italiano) no palco, não vê uma mulher com roupas de homem, vê e sente a presença da máscara de Arlecchino 41. No decorrer da convivência, percebe-se que Claudia vê a máscara dell’arte como este objeto “mágico”. Mas, o que se percebe, também, é que, para que a mágica da metamorfose aconteça, para que a atmosfera e o público sejam afetados, o ator deve ter um corpo disponível e apto para servir como uma espécie de conector/canalizador deste espaço mágico imaterial com a realidade objetiva. Apesar de Contin e Merisi colocarem a máscara dell’arte como elemento “mágico” dentro da commedia dell’arte, eles não a colocam como objeto principal/único, pois ela se caracteriza pelo conjunto de elementos (canto, dança, música, lazzi: poesias, discursos eloquentes, canovacci – roteiros e improvisação). Nesta mesma linha de pensamento cujo tema é a complexidade da commedia dell’arte, não delegando a supremacia à máscara dell’arte, Taviani (SARTORI; LANATA, 1984, p.105) chama a atenção para a principal característica destas, dizendo que “[...] na Commedia dell’Arte, a máscara serve para delimitar sem definir”42. Isto é, na commedia dell’arte a máscara possui diretrizes de ação, porém, não são diretrizes castradoras e limitantes, elas permitem a integração de alguns traços individuais de cada ator, improvisações ou modo 40 Tradução da autora: “[...] conseguentemente divenuto anche il signhore della maschera”. É possível saber mais sobre as mudanças físicas e conceituais que Claudia Contin atravessou, nos artigos “Perseguindo Arlecchino” e em “Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte” . 42 Tradução da autora: “[...] nella Commedia dell’Arte, la maschera serve a delimitare senza definire”. 41 56 particular de estar dentro destas diretrizes. É uma representação de um arquétipo que faz parte de um universo imaginário coletivo e, também, individual. Posso dar como exemplo, muito atual, dessa “delimitação sem definição”: os Arlecchini, Marcello Moretti, Ferruccio Soleri e Claudia Contin, três dos mais importantes e reconhecidos Arlecchini da Itália, todos delimitados dentro do que é Arlecchino, mas sem uma definição de como deve ser, exatamente, um mais elegante e distinto, outro mais acrobático e ágil e outro mais grotesco e selvagem. O principal responsável por esta delimitação sem definição é o imaginário, este espaço imaterial coletivo e individual. Taviani fala das tentativas falidas do teatro moderno em criar novas máscaras a partir das antigas máscaras dell’arte, afirmando que o falimento deste mecanismo é inevitável, pois os cômicos dell’arte não criaram as suas máscaras a partir de uma observação da vida cotidiana para identificar os tipos que a sociedade continha e daí criar as máscaras – elas não observavam a vida cotidiana, faziam parte daquela vida. Tudo indica que um encaminhamento baseado na observação e criação racional não funciona para as máscaras, pois como falado anteriormente, elas fazem parte dos engenhos lúdicos deste universo imaterial que punge a realidade e que o fazem de maneira subjetiva - a máscara como categoria, não se institui de modo racional. As máscaras dell’arte não foram criações para o teatro “institucional”, elas eram, antes de mais nada, carnavalescas, ritualísticas e festivas, tinham e têm vida antes do teatro requerêlas para a cena. No evento teatral, as máscaras dell’arte encontraram mais um nicho para se repetirem e se fortalecerem, uma vez que o seu uso na vida cotidiana, cada vez mais, na Itália medieval vinha sendo proibido, principalmente em Veneza43, região na qual a commedia dell’arte e as suas máscaras tiveram interferência intensa na vida cotidiana e, quando se institucionalizou como “teatro”, eram das principais atrações das ruas, feiras, praças e festas. Apesar de muitos estudiosos afirmarem sobre a participação das máscaras dell’arte nos festejos populares, é preciso dizer que Taviani chama a atenção para o fato de que pode existir um pequeno qui-pro-quò. O Zanni, o Arlecchino e o Pulcinella possuem ligações diretas com rituais populares44 que preexistiam à commedia dell’arte, já as outras máscaras como a do Pantalone e Dottore não possuem uma ligação tão profunda e intensa com o ritual, se não 43 Danilo Reato, no livro “Le maschere Veneziane” (1988) traz um roteiro histórico dos decretos e leis de proibição do uso da máscara na vida cotidiana, em Veneza, desde 1339, até 1789, posterior a esta data, o segundo governo austríaco permitiu o uso de máscaras, somente no carnaval. Após a reintegração da região de Friuli e Vêneto à República Italiana, as máscaras já estavam sendo usadas, somente no período carnavalesco. 44 Italo Sordi, no artigo “Commedia dell’Arte e ritualità popolare. I personaggi” (SARTORI; LANATA, 1984) fala mais detalhadamente sobre estas ligações. 57 aquela inerente à máscara, estando mais ligadas ao evento teatral. As máscaras do Zanni, Arlecchino e Pulcinella possuem conexões ritualísticas carnavalescas. Conforme Italo Sordi, algumas tradições medievais carnavalescas e ritualísticas que estes faziam parte: um grupo de Zanni, vestidos de branco, em cortejos pelas ruas de Trento, dançando e arrastando um arado e o “incentivando” a trabalhar com pauladas; Hellequin que conduzia o cortejo dos Charivari, carregando as almas de crianças não nascidas ou mortas após o parto – tradição presente na França, Itália e Alemanha; em Trentino, Arlecchino era uma espécie de guardião do grupo de mascarados, mantendo o público longe do cortejo, de modo jocoso e brincalhão; também em Trentino, um grupo de máscaras guiado por um “Zannon” sai em cortejo carnavalesco para “conquistar” a cidade vizinha; esta mesma tradição acontece na região sul da Itália e é Pulcinella que comanda o pelotão das máscaras – posteriormente, serão vistas outras conexões ritualísticas destas máscaras. Além de cortejos ritualísticos carnavalescos, Zanni, Arlecchino e Pulcinella possueam conexões originárias, também, no teatro pré-commedia dell’arte – na fabula atellana, existe possíveis ascendências das máscaras dell’arte. A fabula atellana era um espetáculo farsesco da Roma Antiga, segundo Giovanni Calendoli, se trata de uma cultura tipicamente itálica com grande influência grega e também latina45, osca46 e etrusca47. Para Calendoli, a fabula atellana deu à máscara teatral uma nova função e estrutura dentro do espetáculo cômico profano, pois era muito diferente da função e estrutura que tinha dentro da tradição grega. A fabula atellana tinha como base quatro máscaras com nomes sem variáveis: Maccus (o faminto – o qual tende a ter conexões com Zanni e Arlecchino); Bucco (o falador, que poderia ter conexões com o Dottore); Pappus (o velho, que tende a ter conexões com Pantalone) e Dossennus (o corcunda malicioso, o qual tende a ter conexões com Pulcinella). Estas quatro máscaras, hipoteticamente, teriam servido de núcleo para o desenvolvimento da commedia dell’arte (dramaturgicamente e como estilo). Por um caminho evolutivo, a commedia dell’arte foi-se estruturando com 1º e 2ª Zanni, Pantalone, Capittano, Dottore, Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Pulcinella, Nobili e todas as outras máscaras que se desenvolveram, como Matamorros, Brighella... Nesse caminho evolutivo ao longo dos tempos, a “commedia dell’arte” foi adotando e sendo divulgada por muitos nomes como: commedia dei Zanni, commedia all’improviso, 45 Relativo à cultura do Lácio, antigo país da Itália, que pertencia à parte central da costa ocidental do mar Tirreno. 46 Relativo à cultura de Osca, a qual, posteriormente, passou a ser Huesca, cidade da Tarragona, antiga província a nordeste da Espanha. 47 Relativo à cultura da Etrúria, antiga província italiana, onde atualmente é a Toscana. 58 commedia mascherata, maschere all’italiana, commedia all’italiana e, depois de muito tempo, commedia dell’arte - cujo nome, após as companhias dell’arte se institucionalizarem, não foi mais trocado. Conforme comentários anteriores de Turner, Degano, Tessari e Taviani, a máscara traz sempre uma ritualidade inerente a ela e isto, consequentemente, faz com que a própria conecte-se com os outros dois elementos da tríade de Huizinga. A tríade tem ramificações carnavalescas e as máscaras dell’arte, como se viu, também têm esta conectividade com o carnaval, de um certo ponto de vista, poderia ser dito que as máscaras do Zanni, Arlecchino e Pulcinella possuem uma coligação maior e mais potente, por fazerem parte de rituais antigos. Contudo, não está se buscando uma hierarquia, está se procurando a constatação das conectividades. O mais importante é que, quando as máscaras dell’arte encontraram o carnaval, o adotaram como reinado, nicho e propulsor. Ainda sobre os caminhos percorridos pelas máscaras dell’arte, sabe-se que estas chegaram a uma grande fama, a partir de conhecidas companhias, como Gelosi, que se apresentavam nas cortes e grandes teatros, com peças de Gozzi, Goldoni e Moliére. Mesmo com grandes companhias que viajavam de um palácio a outro, de um país a outro para apresentarem às cortes os espetáculos de commedia dell’arte, as pequenas companhias e os giullari, buffoni, Zanni, Pulcinelli e Arlecchini solitários continuavam fazendo os cortejos carnavalescos, as improvisações em meio ao povo, nas ruas, festas, feiras e praças, vivendo e sobrevivendo neste universo imaginário e pungindo a realidade objetiva. A vida inter/entre teatro e ritual das máscaras as colocam em uma categoria de ícone. Elas são “objetos síntese”, pois a máscara objeto é uma realização concreta de um imaginário, de certa forma, ela é uma “sintaxe” do imaginário que a engendrou – é um arquétipo que encontra uma manifestação/representação concreta (objeto) e física (corpo do pesquisator). A máscara está ligada ao teatro, ao imaginário, ao ritual, à Dionísio, à festa, ao travestimento, ao jogo, à duplicidade, à incorporação ao carnaval e a muitas outras instâncias, mas o mais importante da máscara é que, mesmo tendo uma relação de anulação do vulto do ator ou do sujeito que a porta, ela, como diz Tessari, jamais esconde: revela. Mesmo dentro da burla, do carnaval e do travestimento, a máscara sempre tem, em alguma instância, a intenção de revelar. Na história da humanidade, o carnaval sempre constituiu um evento no qual ocorrem grandes realizações da atitude lúdica. A ação de travestir-se traz, também, o mascaramento e a máscara, principalmente quando esta ação está ligada ao carnaval - festa que pré-existia à commedia dell’arte, divulgada pelas companhias e estruturada como gênero de teatro. Se 59 seguirmos a coligação da commedia dell’arte com os rituais a Dionísio, então, chega-se a conclusiva que o carnaval sempre acompanhou as máscaras dell’arte. A commedia dell’arte, divulgada pelas companhias nas praças, teatros e cortes, levava a público máscaras mais refinadas, menos grotescas e selvagens do que aquelas que viviam nas ruas, montanhas e festas populares da primeira metade da Idade Média e dos rituais da Roma Antiga. Tudo indica que a mudança foi ocorrendo num processo crescente e, certamente, nem mesmo a commedia dell’arte feita pela companhia que serviu de base para a sua constituição como trabalho profissional era igual àquela realizada pelos “Gelosi” e outras companhias nas cortes reais da França, Itália e outros. Desde que a commedia dell’arte se profissionalizou e se tornou um gênero teatral, ela foi sofrendo modificações, de um século a outro, de uma companhia a outra, de um espetáculo a outro, de um diretor a outro, de um dramaturgo a outro. Para se ter uma ideia do que eram essas evoluções e variedades de estilos de commedia dell’arte, basta dar uma rápida olhada nas companhias e escolas presentes na Itália e França atualmente. Vendo espetáculos com direção de Strehler, Patrick Pezin, Ferruccio Merisi, Gianfranco di Bosio, Adriano Iurissevich, Jacques Lecoq e outros, ou ainda espetáculos com atuação e/ou direção de Franca Rame, Claudia Contin ou Dario Fo. Todos se afirmam como profissionais de commedia dell’arte e penso que é uma questão similar à dos grupos de manifestações espetaculares populares brasileiras: existe o Cavalo Marinho do Mestre Biu Alexandre, do Mestre Grimário e outros; na capoeira existe, primeiro, a subdivisão Angola e Regional, depois vem os estilos, a capoeira do Mestre Alabama, do Mestre João Grande, do Mestre King Kong e outros; existe o Coco da Selma do Coco, de Arco Verde e outros; existem tantos grupos de Bumba-meu-Boi (ou Boi-Bumbá) no Maranhão, no Amazonas e em outros estados ou até mesmo dentro de um mesmo estado; ou ainda, o exemplo das danças dos Orixás que estão vinculadas ao Candomblé, o qual tem subdivisões (Ketu, Nagô, Cruzada, Angola) que por sua vez se subdividem em vários terreiros, cada qual com suas regras, encaminhamentos ou festas. As danças realizadas pelos Orixás mudam, consideravelmente, de um terreiro para outro e de um seguimento para o outro. Outro exemplo bem abrangente deste fenômeno de “delimitação sem definição” é o Samba, que tem em cada estado brasileiro um estilo totalmente diverso e, mesmo dentro de um só estado como a Bahia, ele ganha diversas “ondulações”, porém, não deixa de ser samba. As máscaras dell’arte e a própria commedia dell’arte fazem parte deste espaço com delimitações, mas sem definições. Nem mesmo os italianos, dentro da própria cultura, elegeram um estilo como “a commedia dell’arte”, deste modo, resta a quem pesquisar, eleger 60 entre os estilos/grupos que a Itália (e França) oferece (oferecem) aquele que mais lhe convence e agrada. A meu ver, muitas das manifestações espetaculares populares brasileiras, conforme exemplos citados anteriormente, estão neste mesmo espaço de delimitação sem definição - é mar aberto, são territórios aquáticos. Penso que, para entender um pouco dos percursos evolutivos da commedia dell’arte, é preciso vê-la com um olhar menos focado em um só estilo e pensar que, tal como a dançados Orixás, o Samba, a Capoeira, o Cavalo Marinho e outras manifestações espetaculares populares brasileiras, ela também se desdobrou em várias versões de si mesma. Foi justamente por essas versões, que se tornam repetições, que ela se firmou como gênero, como “mito” e como tradição – é a repetição e a renovação que fortalece o mito, que ritualiza o mito, é a repetição/renovação que dá a oportunidade da “continuidade” do DNA imaginal. Com certeza estes impulsos de repetição do DNA imaginal nas atitudes lúdicas que pungem a realidade objetiva é que fizeram com que as máscaras dell’arte se propagassem pelas festas ritualísticas, carnavalescas e no teatro. Ao que tudo indica, “Todos parecem concordar com o fato de que as máscaras pré-existiam à commedia dell’arte: os comicos as haviam transferido para o palco, tolhendo-as do mundo diverso, colorido e multiforme do carnaval (...)”(MOLINARI,1985, p.16)48. Esta transferência de um meio para o outro já constituiu uma “versão” diversa daquelas máscaras que viviam nas montanhas, ruas, feiras e festas carnavalescas. A retirada delas do meio carnavalesco e passagem destas para os palcos fez com que fossem se modificando e perdendo algumas características da vida nas montanhas e ruas, dentro da festa e do ritual. Mas nem todos os atores, bufões e giullari tinham a sorte de conseguir um mecenas, patrocinador ou protetor e algumas pequenas companhias dell’arte continuaram a fazer as máscaras ao modo mais tradicional dos mercados públicos e pequenas cidades. Foram através destas pequenas companhias que as conexões destas com o ritual/jogo/festa não se afastaram. Para pesquisadores, este é um fato que não surpreende, pois muitas manifestações espetaculares populares brasileiras se mantiveram vivificadas graças a pequenos grupos que seguiram as tradições, mesmo em condições precárias de manutenção, ou graças a uma pessoa que a(s) manteve sozinha e o incentivo aos mais jovens na feitura da manifestação - como é o caso do Cavalo Marinho, de alguns terreiros, do samba de roda, do “Nêgo Fugido” (a qual não entra no grupo das manifestações que integram esta pesquisa, mas que é um bom exemplo dessa resistência, ou melhor, da 48 Tradução da autora: “Tutti sembrano concordare sul fatto che le maschere preesistevano alla commedia dell’arte: i comici le avrebbero trasferite sulla scena togliendole dal mondo variopinto e multiforme del carnevale”. 61 insistência das manifestações espetaculares populares em se manterem ativas). Este é um pouco o caso da commedia dell’arte feita pela Scuola Sperimentale dell’Attore, cuja idealização é de Claudia Contin. Pesquisadora detalhista, para estruturar seu trabalho prático, foi atrás das reincidências das máscaras da commedia dell’arte mais grotesca e é neste ambiente (ritualístico festivo e carnavalesco) que Contin acredita nas máscaras dell’arte. Da mesma forma, é através da festa e do carnaval que a conexão destas máscaras com as manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa se realiza, se fortalece e cria dinâmicas. Ao adentrar mais nas questões concernentes à máscara, lembro que, desde o início dos discursos que tentam desvelar os encaminhamentos desta pesquisa, se afirma que a máscara constitui uma categoria, podendo ser vista como unidade e totalidade, como um objeto, ícone e link, indo além da questão estética. Mas esta conclusão de reconhecimento da máscara como categoria, teve haver com uma colocação de Cesare Molinari, a qual diz que as máscaras dell’arte sempre suscitaram interesse no que diz respeito ao seu conteúdo, ao que ele representa e a sua nomenclatura. Isso fez com que, ao longo da história da própria commedia dell’arte, as máscaras fossem argumento para muita discussão e, segundo Molinari, tudo indica que os estudos mais prósperos, como também, aventureiros “[...] vêm abandonando o conceito de personagem e, ainda mais, o de “tipo”, para se referirem às máscaras muito mais como categorias capazes de sustentar ou de reassumir as diversas realizações concretas” (MOLINARI, 1985, p.16)49. Apesar de que, para Molinari, esta ainda não é a mais completa concepção do que é a máscara: seu conteúdo, representação e nomenclatura. Para esta pesquisa, ver a máscara como categoria reúne nela as qualidades necessárias para que ela funcione como objeto/link, ícone e portal, pois essa capacidade de reassumir realizações concretas tem a ver com a metamorfose que a máscara provoca no corpo do ator, com a conexão deste com uma outra esfera do cosmos, com a tomada do corpo por uma energia vindoura de uma outra dimensão, mas que também faz parte do ser humano, tem a ver com o Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum – conforme o filósofo alemão Immanuel Kant, a “categoria” reúne nela conceitos fundamentais do entendimento puro (unidade, pluralidade, totalidade), ela legitima as potencialidades cognitivas da razão, é capaz de representar formas a priori e de constituir os “objetos” do conhecimento, ela aponta 49 Tradução da autora: “[...]sono venuti abbandonando il concetto di personaggio e ancor più di “tipo” per riferirsi alle maschere piuttosto come categorie capaci di sottenere o di riassumere le diverse realizzazioni concrete.”. 62 condições de possibilidade apriorísticas50 do conhecimento e da legislação moral, inerentes à constituição universal do espírito humano. Por tudo isso, a concepção da máscara como categoria, vem ao encontro daquilo que é o “arquétipo” dentro da commedia dell’arte, tornando-se termos que auxiliam na compreensão do que é a máscara dentro do universo em que elas foram engendradas, do universo da commedia dell’arte e como se perpetuam dentro de uma tradição que é sempre renovada dentro da contemporaneidade51. Para continuar a desenvolver os transcursos conectivos entre manifestações espetaculares populares brasileiras e manifestações espetaculares populares italianas, é preciso conhecer um pouco da história destas máscaras antes de serem transportadas para a cena. Como dito, dentro do percurso de avanço na história e evolução das máscaras, o carnaval é evento de grande importância e, conectado intimamente a ele, está uma máscara muito integrada a esta festa/filosofia, como também ao ritual e ao jogo, a qual pode até ser considerada como um ícone do carnaval: o bufão – uma verdadeira concretização dos princípios material e corporal do carnaval. Além de permear o carnaval em todas as suas contingências, o bufão possui intensa conexão com as máscaras dell’arte, principalmente com o Zanni, Arlechinno e Pulccinela. 50 Doutrina (de tendência racionalista, criticista ou fenomenológica) que atribui um papel fundamental a conceitos e raciocínios a priori. Pode ser vista como uma convicção intelectual a respeito da existência de conhecimentos, princípios e ideias de natureza a priori. 51 Não convém, aqui, fazer um desvio para entrar nos aspectos estéticos da máscara no teatro, por não ser este o enfoque escolhido para seguir as conexões rizomáticas da máscara. Toda a “estética” que envolve a máscara e o teatro não está sendo desconsiderada, contudo, não está no centro do estudo. Certamente que, quando se fala nos aspectos grotescos, carnavalescos e da transformação/metamorfose do pesquisator pelo objeto/link que é a máscara, as conexões “tocam” os aspectos estéticos da máscara no teatro, mas tem-se a preferência pela abordagem “categórica”. E, a meu ver, a categoria, em sua totalidade, engloba a questão de estética da máscara, mas não a anuncia como instância primeira, mantendo-a presente como mais uma possibilidade de abordagem e ramificação. 63 2.3. CONEXÕES INUNDADAS: MÁSCARAS, CARNAVAIS E BUFÕES “Se lembrarmos que, na mitologia, Dionísio é uma divindade arbustiva, pode-se falar, nesse sentido, de um saber dionisíaco, isto é, um saber enraizado [...] Ele põe em jogo, de modo global, os cinco sentidos do humano, sem hierarquizá-los [...] Saber orgânico, ou saber corporal, considerando-se que o corpo era parte integrante do ato de conhecer e que isso era, igualmente, causa e efeito da constituição do corpo social em seu conjunto.” Michel Maffesoli (2008, p.162) Se o imaginário inunda, devo chamar a atenção para a dificuldade de se encontrar terra firme e de se obter certezas, mas como já mencionado, esta pesquisa não se move através de certezas e sim de dúvidas. Em certos momentos, durante o mergulho, têm-se a impressão de se encontrar “Venezas”, “Recifes” e, num mergulho mais profundo, até mesmo “Atlântidas”. No meio do oceano, se descobre que, neste universo líquido, nem mesmo o continente é terra firme: é miragem, uma imagem criada e projetada, idealizada em convicções – porém, se o ser humano só existe a partir do imaginário, então, este espaço idealizado em certezas também é nascente líquida, transborda e escorre igualmente. Embora remarcado tantas vezes, repete-se mais uma vez: considera-se o Fundo Comum dos Sonhos como uma condição inerente à existência humana, uma condição que na verdade é uma aluvião, a qual se mostra impossível a uma verificação fiel dos caminhos traçados e percorridos. Com isso, esta pesquisa não tentará reduzir tamanha inundação em um “caminho histórico cronológico” das máscaras à italiana ou das manifestações espetaculares populares brasileiras (coco, ciranda, maracatu, frevo, caboclinho, xaxado, dança dos Orixás, cavalo marinho, capoeira, maculelê e samba) e, sim, encontrar um caminho que contenha tais cronologias ou históricos, deixando em primeiro plano as conexões rizomáticas e líquidas que constituem a instância primeira desta pesquisa - a “personificação” e materialidade da ação dinâmica e recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. Com isso, seria difícil traçar um caminho cronológico histórico, pois rastrear um DNA imaginal que se ramifica rizomaticamente, engendrando-se nas mais diversas direções e originando incontáveis atividades lúdicas, se tornaria a construção de um labirinto inapropriado. Assim, é preferível vislumbrar um dos possíveis traços deste DNA, sem se preocupar demasiadamente com a cronologia histórica. É claro que as manifestações espetaculares populares, italianas e brasileiras, foram se materializando ao longo de um caminho cronológico, mas está se dando prioridade aos genes imaginais, os quais possuem a característica de transgredir o 64 espaço/tempo. Neste momento, será dedicada atenção às máscaras dell’arte, e o caminho que será realizado é de uma possibilidade de compreensão das possíveis ramificações de uma ínfima parte da teia formadora deste imaginário que engendrou as máscaras italianas, a qual foge de um raciocínio esquemático exato, mas deixa uma possibilidade de vínculo através de uma “lógica da percepção”, ou seja, guiada pela subjetividade. A busca de um caminho possível que atravesse a história desde os primórdios, como assinala Molinari e Taviani, pode ser uma necessidade própria do ser humano em estabelecer um caminho “mais concreto” dentro do espaço/tempo, de buscar uma “herança” ou uma referência. A busca para situar-se dentro da imensidão temporal por meio de datas é resultado do desconforto que representa ficar suspenso num universo sem parâmetros e tais referências temporais servem, então, para medir a situação/momento em que o ser humano se encontrava naquele instante da história, como também no momento contemporâneo à investigação. Os dados históricos, hipoteticamente, marcam períodos de uma jornada, dessa forma, estudando tais períodos, obtêm-se hipóteses de um passado longínquo e de um possível futuro - o que ajuda a vislumbrar uma possível perpetuação. É compreensível a ansiedade e curiosidade pelas datas, mas tentar-se-á fazer este “passeio” nos caminhos flutuantes da subjetividade e imaginação, nos quais, as datas se tornam “notas” e não texto principal. Antes de levantar considerações mais pontuais sobre máscaras, carnavais e bufões, lembro que a máscara, para esta pesquisa, é uma categoria. Ainda a respeito da máscara, não se trata de um simples objeto, é um objeto/link atuante sobre o ator através da imaginação. Agindo dentro dessa dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, a máscara não é um simples elemento do travestimento do ator, ele age em seu corpo inteiro– característica que, para Taviani, Sérge Martin, Cesare Molinare, Jacques Lecoq, Meyerhold e Pierre Louis Duchartre, é, sem dúvida, o diferencial da commedia dell’arte. Esta ação da máscara sobre o corpo, transformando-o, faz com que ele também se torne uma máscara, porque a máscara/objeto necessita de um corpo diferente do cotidiano para portá-la, necessita de uma gesticulação e energia em comunhão com ela - é o que Claudia Contin desenvolveu e trabalha para cada máscara/objeto um corpo e uma gesticulação muito específicos. Não se trata de cristalizar o corpo em uma postura, mas de habituá-lo a uma nova “realidade física” a qual é compatível, em termos de caráter e qualidade de movimento, com a máscara objeto. Quando Contin trabalha a máscara do Pantalone, ela começa ensinando a máscara física do velho avaro e libidinoso, cuja estrutura corporal apresenta uma corcunda, com uma tensão para cima, não para trás, quadril levemente projetado para frente, joelhos 65 dobrados e direcionados para fora e pés para fora. Apesar de ser a máscara de um velho, Pantalone não é um velho frágil e decrépito, pelo contrário, possui uma energia forte e muito dinâmica, ele é ágil, capaz de dar um salto mortal para pegar uma moeda, antes que ela toque o chão, mas pode desmaiar e ter um ataque do coração quando alguém lhe cobrar alguma dívida. A partir deste comentário, mas, principalmente, da prática que tive com essa máscara, pode-se perceber que a máscara física não impede o ator de realizar nenhum movimento ou ação, o ator que faz Pantalone deve redescobrir as possibilidades do seu corpo dentro daquela máscara física: como sentar, como correr, como saltar, fazer acrobacia, tendo a imagem de um corpo elástico, com uma forma e não com uma “deficiência”, deve fazer tudo como qualquer outro corpo, sem esquecer-se de manter a forma da máscara física, entre uma acrobacia e outra e entre (ou durante) uma ação e outra, quando estas lhe permite. Fica muito claro que, na máscara física, o ator deve desenvolver ainda mais as suas capacidades, não fazendo dela uma limitação e sim uma possibilidade de exploração. Todas as pertinências da máscara física ou de corpo todo, como chama Taviani, das máscaras dell’arte também são concernentes ao bufão. Sérge Martin e Jacques Lecoq afirmam que ela é uma máscara que comove todos os sistemas orgânicos do corpo. Molinare, Tavani e Fo também concordam com a visão do bufão como máscara, por tudo o que é pertinente à máscara, pela ligação com o ritual, com Dionísio, com o travestimento e metamorfose, com a duplicidade, por tudo aquilo que já foi comentado e que diz respeito à máscara como categoria e objeto/link. Na medida em que se avança nos discursos, o entendimento do bufão/máscara será desenvolvido. Como se deve começar de um ponto, então se investe sobre um nó da rede que se prolifera incrivelmente – os caminhos da commedia dell’arte, através das suas máscaras, desde as suas mais remotas procedências. As teorias mais difundidas sobre as possíveis origens da commedia dell’arte traçam um “fio” desde a Grécia Antiga até o apogeu deste gênero no Renascimento e daí para o que se tem conhecimento nos dias de hoje. Deve-se dizer que estas representações trágicas e cômicas que aparecem no séc.V a.C. em Atenas, Grécia, nas quais está a “base histórica da tradição ocidental” se tratam de formas já maduras da representação, ou seja, é preciso ir mais além e considerar elos muito mais antigos de conexões. Molinari faz um estudo iconográfico embasado em documentos e imagens de vasos e estampas, confrontando tais fontes e validando as imagens como fontes riquíssimas de documentação – o mesmo método que posteriormente utilizará para a commedia dell’arte. Neste estudo, Molinari mostra que, muito antes do evento teatral maduro do séc.V a.C., já 66 existia o elemento teatral (travestimento/mascaramento) nos rituais de cortejo a Dionísio dos ditos “povos primitivos” (MOLINARI, 2007, p. 03 -18). Desde os povos mais antigos da Grécia, existia um “personagem”, o Sátiro, que trazia consigo o principal elemento do teatro: o travestimento. Segundo Molinari, os Sátiros são máscaras de corpo inteiro, uma forma meio animal, meio gente, criaturas animalescas que “representam” os antigos espíritos da natureza e faziam parte dos cortejos à Dionisio. Segundo John Gassner, “Dionísio, criado à imagem do homem, tornou-se o protagonista de diversas funções da mente primitiva. Era conhecido sob diversos nomes como: o Espírito da Primavera, o Deus do Renascimento (“O Divino Rapaz” e “Brômio, Aquele do forte grito”), o Deus Touro ou o Deus Bode e o poder intoxicador da procriação em todas as coisas. Como deus do vinho, o mais comum de seus títulos, apenas exprimia um aspecto simbólico de sua divindade energética” (GASSNER, 1974, p.13). O ditirambo era o rito à Dionísio, conforme Pavis, composto por um coro cujo canto continha características líricas. Lígia Militz da Costa e Maria Luiza Ritzel Remédios afirmam que, inicialmente, este coro era cantado, somente com vozes (grupo de coreutas) e depois foi se desenvolvendo com a dança e a música (flauta). Segundo Gassner, quando o ditirambo evoluiu para além do canto, a dança não era um simples bailado, era uma espécie de “dança de abandono” ou ainda, como chama Junito de Souza Brandão, uma “dança vertiginosa” e os realizadores da mesma chegavam ao êxtase e ao transe. Gassner fala ainda que muitos dos coreutas se travestiam em peles de bode, representando os Sátiros e ofereciam ao deus Dionísio o sacrifício de um animal (geralmente o bode). Foi a partir do ditirambo que os primeiros elementos da tragédia se desenvolveram, quando no séc.VI a.C., segundo Pavis, Simonide de Céos (556-468 a. C.) apresentou não somente o coro mas também um solista (o corifeu) que dialogava com o coro. Mais tarde, com Téspis, grande diretor de ditirambos e com as edições de festivais, que teve início com Pisístrato em 535 a.C., o ditirambo evoluiu ainda mais e passou a contar, não somente sobre Dionísio, mas também a história de outros deuses e mitos e, posteriormente, temas “profanos”52 – era a tragédia e a comédia estruturando-se. Como afirma Gassner, “Tal como seus companheiros no Egito e na Síria, o povo grego primitivo estava mergulhado na magia e no ritual” (GASSNER, 1974, p.12) e aqueles que se travestiam em pele de animais representavam outros seres, tão mitológicas quanto Dionísio, porém, não se trata de deuses, as criaturas meio gente, meio animal, que dançavam 52 Para saber mais, ler: A Tragédia. Estrutura e História, de Lígia Militz da.Costa & Maria Luiza Ritzel Remédios. O Teatro Grego – Origem e Evolução e Teatro Grego: Tragédia e Comédia, de Junito de Souza Brandão. Mestres do Teatro, de John Gassner. 67 em “transe”, em contato com uma outra esfera, eram, como já dito, a “representação” dos Sátiros. Os Sátiros possuem uma forte ligação com Dionísio, segundo uma das variantes do mito, foram eles que, juntamente com as Ninfas, cuidaram do deua seguindo as ordens de Zeus. Segundo J. S. Brandão, os adeptos “[...] do deus do vinho disfarçavam-se em sátiros, que eram concebidos pela imaginação popular como “homens-bodes” (BRANDÃO, 2007, p. 10). Estes “homens-bodes”, que faziam parte dos coreutas e representavam os Sátiros, foram seguindo a evolução do coro, na tragédia, nos dramas satíricos, na comédia, tanto nos rituais religiosos quanto nos teatrais, a imagem dos Sátiros foi pintada às vezes como mitológica, outras como atores e/ou adoradores do deus do vinho travestidos (MOLINARI, 2007, p.19; 24). Para esta pesquisa, tanto a vertente mitológica quanto a do travestimento são possibilidades compatíveis, pois a instância ritualística, da qual as máscaras fazem parte, comporta todas as duas versões. Tais conexões ritualísticas e miméticas não possuem o objetivo de descobrir a “origem” de tais manifestações espetaculares, mas sim de considerar hipóteses sobre um transcurso destas - nada exclui tudo pode ser adicionado e considerado como possibilidade. Contudo, essa adição e tentativa de compreensão das ramificações e coligações subjetivas do Fundo Comum dos Sonhos nas “personificações” das máscaras dell’arte e ligação com as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras pode ser um bom exercício para a imaginação... 2.3.1 O bufão e algumas conexões “(...) che le anime nostre tornino in tutte le cose del mondo (...)”53 (GINZBURG, 1976, p.80) A Grécia Antiga foi, então, a grande “mãe fecunda” da civilização ocidental e suas engendradas atitudes lúdicas e imaginárias. William Willeford lembra, citando Thelma Niklaus, que “Em cada probabilidade, todos os mimos, os clowns, os guitti e os comediantes conhecidos na Europa derivam do Sátiro da antiga comédia grega, gênero que, por sua vez, provém dos ritos fálicos e das cerimônias em honra a Dionísio” (WILLEFORD, 1998, p.58)54. 53 Tradução da autora: “(...) que as nossas retornem em todas as coisas do mundo.” Tradução da autora: “Con ogni probalilità tutti i mimi, i clown, i guitti e i commedianti conosciuti in Europa derivano dal Sátiro dell’antica commedia greca, genere che, a sua volta, risale ai riti fallici e alle cerimonie in 54 68 Nos antigos rituais a Dionísio estariam, então, as “sementes” de várias outras manifestações espetaculares que fazem parte destas civilizações. Entre elas, as do bufão, uma “máscara” que em suas vertentes pode desaguar nas máscaras dell’arte, em diversas graduações, como também, na do clown, conforme assinala Dario Fo (198[-]. p. 15): Posso remontar a origem do clown, encontrar referência ou reclames, em tempos antigos na Grécia. No oitavo século antes de Cristo, descobrimos o primeiro exemplo daquilo que, com bastante fantasia, podemos aceitar como possível ancestral do clown. Trata-se do “bufão”, que em cima das carroças rodava pela Grécia Antiga [...] Uma corja de cômicos errantes, cujos descendentes podem talvez reencontrar-se em certos atores nômades da Magna Grécia e depois nos menestréis e nos jograis Medievais e ainda nos comici dell’arte do final do Renascimento [...]55. Com tal afirmação, pode-se considerar que Dario Fo apresenta o bufão como uma força engendradora, a qual traz em si embriões de muitas outras manifestações e linguagens cênicas e as quais alimenta, digere e se transforma, ao longo dos tempos. Como é que o bufão surge, de onde ele se metamorfoseia, qual é a sua possível “ascendência”? Com tudo o que foi falado sobre as questões que transpassam a máscara, fica subjetivamente implícito que o bufão também tem muitas conexões com o mito do Dionísio, com o ditirambo e com os sátiros – a imagem destes homens meio gente, meio animal que constituíam o ditirambo, fortalece a imaginação do coro de bufões. Dionísio, esse mito da metamorfose e transformação da terra e do tempo, da semente em planta e alimento, da morte e da ressurreição, é intensamente conectado com o Bufão, pois este incorpora tudo o que é pertinente ao mito do deus. O Bufão parece ser a continuidade da ação dos homens do ditirambo que se travestiam e incorporavam o mito. Porém, conforme a evolução e com tamanha força criativa, as transformações dentro da parte lúdica e de travestimento do coro foi acontecendo e não mais somente “homens-bodes” faziam parte dele, mas outros animais como o touro e o asno e, mais tarde, juntamente com a força carnavalesca, muitos outros tipos de travestidos faziam parte do cortejo. Para esta pesquisa, a afirmação de Fo pode ser muito pertinente, já que, o bufão é um ser em transformação, ou melhor, em metamorfose, o qual poderia se desdobrar em tantos outros personagens e Máscaras da história do teatro ou multiplicar-se incontavelmente – um onore di Dioniso”. 55 Tradução da autora: “Le origini del clown possono risalire, trovare riferimento o richiamo, in tempi lontanissimi nell’antica Grecia. Nell’ottavo secolo avanti Cristo, scopriamo il primo esempio di quello che, con apprezzabile fantasia, possiamo accettare come possibile progenitore del clown. Si tratta del “buffone” che su dei carri girava per l’antica Grécia. [...]Una genia di comici erranti, i cui epigioni potranno forse ritrovarsi in certi attori nomadi della Magna Grecia e poi nei menestrelli e nei giullari del Medioevo e ancora nei comici dell’arte dell’ultimo Rinascimento [...]”. 69 verdadeiro convite a exercícios imaginais. Retomando a citação de Dario Fo, na Grécia Antiga, os “cômicos errantes” tinham como palco de suas manifestações artísticas/lúdicas/ritualísticas: as ruas, feiras e campos religiosos. Entre estas manifestações ritualísticas estavam os coros de sátiros, os quais, conforme dito, possuem conexões largas com o bufão e, então, com a commedia dell’arte através do banquete, do bacanal, do carnaval e do corpo em mutação. Aqueles que “se faziam” sátiros tinham suas vestes confeccionadas de peles de animais, chifres e outros adereços, tudo para melhor personificarem estes seres fantásticos – com estas características, é claro que aquele que se fazia Sátiro era um ser em metamorfose ou metamorfoseado, travestido e mascarado. Na história, mais adiante, mais especificamente nos carnavais antigos das montanhas das regiões de Piemonte, Friule e Vêneto, existiu uma máscara que pode ser conectada, de alguma maneira, ao Sátiro, é a do “uomo selvaggio” - o primeiro registro desta máscara, que se tem notícia atualmente, foi em 1208, em Padova (REATO, 1988). No artigo “Arlecchino e L’uomo Selvatico. Rapporto Uomo–Natura in Antiche Tradizioni Carnavalesche”, Claudia Contin e Ferruccio Merisi (2002) descrevem um suposto e possível caminho e conexão entre o Arlecchino e as tradições antigas dos carnavais, passando pelos Sátiros, Sabba, Uomo Selvaggio, Charivari, os bufões e as lendas de Hellequin – aquele que conduzia as almas dos mortos errantes - até desaguar na Máscara do Arlecchino. Lembre-se que a ligação do Sátiro ao Uomo Selvatico e daí para o Bufão e para as máscaras dell’arte é apenas uma das tantas ramificações e desdobramentos deste universo imaginário. Segundo a descrição e as imagens desenhadas, os carnavalescos uomini selvaggi se desdobravam em várias versões, segundo época e região, mas sempre havia uma relação muito forte com a natureza, às vezes tinham vestes de pele de animais, coroa de loro, bastão de madeira, se apresentavam com um comportamento que oscilava entre ingênuo e hostil e tocavam docemente seus instrumentos (a lira ou a flauta) pelas ruas e palcos da cidade. A coligação entre Dionísio, o coro dos Sátiros, o ditirambo, o coro das tragédias, o qual, evoluindo juntamente com o teatro, se tornou também parte importante da comédia. Segundo Brandão, a Comédia Antiga é feita de dois elementos: o “kômos” e a farsa, sendo que o kômos pode ser profano ou dionisíaco (religioso). O kômos profano deriva de um hábito das cidades e aldeias de Hélade, em que um grupo de pessoas saía pelas ruas e casas pedindo doações e zombando dos moradores, para não serem reconhecidos se travestiam em peles de animais, dessa forma, eles constituíam uma imitação, paródia e sátira dos kômos religioso, o qual era um ritual em que um falo era carregado pelas ruas em procissão – o falo significava a 70 fertilidade. Aristóteles afirma que a Comédia Antiga continha muita improvisação e era oriunda dos cantos fálicos, afirmação esta que não vai contra o kômos e a evolução dos coros dos Sátiros e a Dionísio, pois os cantos fálicos faziam parte dos rituais de semeadura, de fertilidade e fertilização da terra. Não obstante, o deus da primavera e da fertilidade é Dionísio. Conforme observações realizadas, pode-se perceber que o kômos profano é muito próximo da farsa e é muito provável que o coro da comédia e, principalmente, o coro dos bufões sejam oriundos desta via dupla do kômos. A farsa une os dois kômos, o falo, o ritual, a zombaria, a paródia, a sátira e a extrapolação da realidade - muito interessante notar que um dos elementos mais obscenos dos coros da comédia (e, como conseqüência, também dos cortejos carnavalescos), o falo, advém da parte religiosa do kômos. Esta via dupla entre religioso dionisíaco e profano, zombaria que o Bufão porta com ele, é o que o torna tão ambivalente, inquietante, metamorfoseante, transformador, divino e diabólico. A farsa é, sem dúvida, um bom “ambiente” para o bufão se manifestar. Segundo Pavis, “Graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a angústia trágica, sob a máscara e a bufonaria e a “licença poética” (PAVIS, 2005, p.164) será dada mais atenção à farsa quando se adentrar no espetáculo “FATO(S) DO BRASIL”. Continuando na busca de uma possível estrada conectiva entre o teatro na Grécia Antiga e o medieval, encontra-se o estudo de Sandra Chacra (1983, p.28), que sinaliza uma possível via de coligação entre os gêneros trágicos e cômicos e suas respectivas representações, as quais se moveram da Grécia Antiga em direção a Roma Antiga. A partir da construção deste caminho, Chacra localiza um pouco mais o possível nicho da commedia dell’arte, indicando as comédias mascaradas da Roma Antiga, especificamente a comédia atellana, proveniente do coro grego, como um embrião deste gênero de teatro – esta conexão já foi assinalada anteriormente, mas se refaz este caminho de modo a procurar mais detalhes ou possibilidades de compreensão destas ramificações. Molinari realiza o mesmo caminho, porém, mais detalhado, especificando inclusive a movimentação e a caracterização dos coros satíricos, a evolução deste coro no ditirambo, na tragédia e nas três fases da comédia: grega antiga, do meio e nova; até chegar na celebração dos estilos populares: atellana, fescenino e o mimo. Molinari faz ainda a ligação da comédia atellana, a qual tinha como núcleo a trama entre as máscaras de um velho (Papus) e de um servo (Maccus), lembrando as máscaras do servo e do velho da commedia dell’arte (Zanni e 71 Pantallone) e a ligação do mimo com o estilo satírico e com o giullari, conhecido também como buffone - bufão. Fazendo um caminho muito interessante para esta pesquisa, Taviani apresenta uma tradição que era dos bufões e que passou a ser usada pelos comicos dell’arte, a fixação dos papéis. Deve-se lembrar que se fala da “fixação dos papéis” como nome adotado pelos atores para serem reconhecidos pelo público, ou seja, eles passavam a adotar na vida quotidiana o nome da máscara que utilizava na cena, mas, ao que tudo indica, era o próprio público que o nomeava pelo nome de sua máscara: A fixação do papel não caracterizava os atores dell’Arte: isso tinha caracterizado e continuava a caracterizar os bufões, para os quais não existia outro nome, senão aquele fictício. O nome duplo representa (como a máscara que os comicos tinham nas mãos) o caráter do ator de profissão, a distância entre a especialização cênica e a sua personalidade fora da cena (TAVIANI; SCHINO, 2007, p.31).56 A relação entre bufões e comicos dell’arte é bem detalhada e tratada por Tavian. Num caminho longo, ele mostra que, no decorrer da história teatral, muitos bufões se dirigiram à Commedia dell’Arte e passaram a endossar uma das máscaras deste teatro e até a integrar companhias. É muito difícil compreender e acompanhar as conexões dos coros dos Sátiros até a Idade Média, pois se trata de uma evolução rizomática que se prolifera em dimensões variadas. Com esforço pode-se vislumbrar um possível percurso destas atitudes lúdicas e ritualísticas. Molinari é outro estudioso que relata alguns acontecimentos desta natureza de relações entre Bufão e Commedia dell’Art (MOLINARI, 2007), levando o leitor através de um caminho evolutivo das vertentes teatrais. Tessari, Contin e Merisi, também realizam um caminho de relações e conexões entre Sátiros, Bufões, Zanni, Charivari, Hellequin e (outras) máscaras dell’Arte. Estes pesquisadores, porém, fazem o leitor percorrer um caminho mais místico, mágico e ritualístico. Certamente que todos os caminhos se conectam ao longo de um percurso, seja de modo direto e de tradição ou subjetivo e rizomático. Como assinalado anteriormente, se formos buscar os “antepassados” das máscaras do Zanni (Maccus) e Pantalone (Pappus), as informações dadas por Dario Fo, Sandra Chacra e 56 Tradução da autora: La fissità del ruolo non caratterizzava gli attori dell’Arte: essa piuttosto aveva caratterizzato e continuava a caratterizzare i buffoni, per il quale non esisteva altro nome che quello finto. Il doppio nome rappresenta, cioè, (come la maschera che i comici tengono in mano) il carattere dell’attore di professione, la distanza tra la sua specializzazione scenica e la sua personalità fuori scena. 72 Molinari são de que, considerando o desenvolvimento evolutivo da commedia dell’arte a partir destas máscaras, elas seriam tão antigas quanto o próprio teatro (e, consequentemente, a civilização ocidental), pois células de sua composição já se mostravam nas manifestações artísticas/lúdicas/ritualísticas da Antiguidade, não somente nas máscaras de Maccus e Pappus, Bucco e Dossennus, mas também em canovacci que continham o embrião do que seriam os roteiros da commedia dell’arte. É claro que, de acordo com documentos, a Commedia dell’Arte só teve registro oficial, segundo Mário da Silva (1978), Cesare Molinari (1985/2007) e Danilo Reato(1988), no século XVI, “na data simbólica de 1545” conforme diz Molinari - mas as companhias já existiam muito tempo antes desta formalidade, e as máscaras já viviam nas ruas, praças e festas populares. A data do registro é extraída de um documento oficializado em cartório, por atores que se uniram para constituírem um contrato profissional e assim promoverem a certeza (oficializada) da existência da primeira companhia de commedia dell’arte. Mas tal documento é válido como modo de certificação oficializada da história, como algo necessário para a posteridade. Porém, conforme afirma Molinari (1985, p.10) em suas análises documentais, a commedia dell’arte possui uma grande riqueza documental que não é literária: A commedia dell’arte é, talvez, um dos episódios melhor documentados da história do teatro ocidental, ao contrário do que acreditavam os antigos historiadores, ligados a um conceito literário do teatro. Para eles, a ausência dos textos escritos tinha, como consequência inevitável, a impossibilidade de ler ou de reinvocar o fenômeno teatral, teatro este, do qual o texto não é mais que um elemento e, frequentemente, nem mesmo o mais importante. Possui imagens: um corpus iconográfico excepcional, rico e extenso cujo valor documental deve ser, naturalmente, interpretado e validado singularmente, mas não é, por isso, menos significativo57. Realmente, o corpus iconográfico da commedia dell’arte é amplo e muito rico. Observando quadros, vasos e estampas que retratam carnavais e representações mais antigas que a documentação escrita, em documentos ou textos literários, principalmente da região de Vêneto, é possível reconhecer as máscaras que integram o núcleo da commedia (Zanni e Pantalone) e muitas outras variações e derivações destas. Para esta pesquisa, levando em conta o caminho percorrido pelos sátiros, pode-se considerar, com toda a certeza, que os coros satíricos, trágicos e cômicos fortaleceram a festa 57 Tradução da Autora: “La commedia dell’arte è forse uno degli episodi meglio documentati della storia del teatro occidentale, al contrario di quanto credevano i vecchi storici, legati a un concetto letterario del teatro. Per loro l’assenza di testi scritti comportava, come necessaria conseguenza, l’impossibilità di leggere o di rievocare il fenomeno teatrale, di cui invece il testo non è che un elemento, spesso neppure il più importante. Ci sono le immagini: un corpus iconografico eccezionale ricco ed esteso, il cui valore documentario va naturalmente interpretato e valutato singolarmente, ma non è per questo meno significativo”. 73 carnavalesca e se perpetuaram nela – o mesmo coro que na tragédia acompanha, narra e até compartilha da experiência trágica, também se oferece num banquete carnavalesco em meio a gargalhadas e orgias. O drama satírico era apresentado logo após a tragédia, continha o caráter farsesco e fazia a paródia dos heróis trágicos em situações ridículas e risíveis. O drama satírico se desenvolveu do ditirambo, misturando o religioso e o profano, como comentado anteriormente sobre a Comédia Antiga (agón e revista). O drama satírico, nos festivais de teatro da Antiguidade grega, era a quarta parte do conjunto de peças (as outras três eram tragédias) que um autor apresentava, onde a comédia era parte obrigatória dos festivais, rir da tragédia através de uma versão cômica era necessário. Segundo as narrativas de Molinari, ao descrever a evolução dos coros dos sátiros, da tragédia e da comédia, percebe-se que os princípios carnavalescos ditados por Bakhtin, como a grande força do popular, também eram fortes componentes do coro dos sátiros. Muitos são os documentos iconográficos e, até mesmo, considerados oficiais, que mostram os sátiros com características grotescas, como numa festa carnavalesca, com grandes ancas, ventres, falos ou como personagens que se apoderavam da caricatura humana, ou seja, um sátiro que tomava o homem como personagem a ser feito com grande teor caricatural, tudo muito próximo do coro dos bufões. É claro que fica mais acessível realizar a conexão entre sátiros, bufões e as máscaras dell’arte, se considerarmos o universo da tríade de Huizinga como primeiro espaço abstrato de conexões entre tais realidades lúdicas. A festa e o carnaval (cortejos festivos) são ambientes que propiciam e fermentam a atividade lúdica. Na festa carnavalesca, um caldeirão efervescente do Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, o coro satírico com a força popular se desdobra em mimos, giullares/bufões e máscaras dell’arte. Entretanto, para realizar estas conexões é preciso considerar, sem sombra de dúvida, a existência de duas instâncias, sejam elas dinâmicas e “estados” que se instauram: a primeira é a dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum; e a segunda é a festa carnavalesca, a qual aporta a tríade de Huizinga. Somente considerando estas instâncias, será possível vislumbrar as conexões rizomáticas entre os sátiros, os bufões e as máscaras da commedia dell’arte. A partir da constatação da existência destas duas instâncias, leva-se em conta que a festa carnavalesca foi o grande “fermento” das máscaras à italiana, pode até mesmo não ter sido o berço, se forem reputados os rituais religiosos como tal. Embora até nestes rituais, como vimos, pode-se encontrar a festa carnavalesca, já que não se está falando do carnaval tal como o conhecemos hoje e, sim, de uma força transformadora, um estado de festa/carnaval. 74 Esta força foi o ninho acolhedor e fértil para a propagação imaginal das manifestações lúdicas personificadas em máscaras. Sabe-se que, com o passar dos tempos, as estruturas sociais modificam-se, assim aconteceu com as representações e rituais da Roma Antiga. Os coros ritualísticos dos cortejos religiosos também se transformaram, como vimos anteriormente, e pode-se, certamente, encontrar nos “blocos” carnavalescos de hoje uma possível herança ou resistência da lembrança dos coros bufonescos antigos. É muito importante que fique claro que o coro bufonesco tem como ascendente o coro satírico, aquele que pertencia ao drama satírico, que vinha do ditirambo, onde se uniam o religioso e o profano. As características do coro do drama satírico são as mesmas do coro de bufões, mas ao invés de sátiros, bufões – seus descendentes. Através destas possibilidades de conexões, veem-se mais claramente as ramificações das máscaras dell’arte, não só como meros fenômenos deste gênero de teatro, mas como síntese de um imaginário que transborda o palco cênico e inunda muito mais além. Durante algum tempo: O estudo da commedia dell’arte foi afirmado como distinto ao da máscara (Tessari 1969), e é verdade, mas, somente em se tratando, especificamente, do fenômeno puramente teatral e, mesmo assim, tendo sempre a certeza que, de certo modo, as máscaras que permeiam o carnaval, as quais têm seus compostamentos contados nos livretos populares, são as mesmas da commedia dell’arte e não [somente] personagens do folclore italiano (MOLINARI,1985, p. 20).58 O que percebo que Molinare está afirmando é que estas máscaras que viviam nos carnavais não eram um simples folclore, e suas redes conectivas eram coligações muito antigas, por isso é necessário considerá-las antecedentes ao fenômeno da “commedia dell’arte” profissional e até mesmo medieval. Como resultante da atividade lúdica de um imaginário, as máscaras dell’arte não podem ser vistas apenas como personagens do folclore italiano, pois elas são a síntese de um imaginário, algo muito mais complexo e profundo. A máscara, como afirma Reato (1988, p. 07), é a: [...] mistura de verdade e mentira, de sinceridade e ilusão, das origens dificilmente rastreadas, à sua estréia privilegiada exclusivamente ritualística e, mantém na sua procedência histórica, o conceito transgressivo que está na base de qualquer forma 58 Tradução da autora: “Si è sostenuto lo studio della commedia dell’arte va tenuto distinto da quello delle maschere (Tessari 1969), ed è vero, ma solo se si precisa che è del fenomeno puramente teatrale che ci si sta occupando, e sempre tenendo presente che comunque le maschere che girano per le strade di carnevale, e di cui si raccontano le gesta negli opuscoli popolari come quelli citati sono proprio quelle della commedia dell’arte, e non personaggi del folclore italiano”. 75 de mascaramento [...] Ligado à máscara, está o travestimento, elemento obrigatório da festa popular, o qual celebra nesta forma de renovação das vestes, como observa Bakhtin, a necessidade do povo de renovar a própria imagem [...]59. Nestas observações, quando Reato fala da união entre mentira e verdade, ilusão e sinceridade, ele está reafirmando a função que a imaginação tem de potencializar/valorizar a realidade - já remarcada por Bachelard. Reato também chama a atenção para o fato de que o carnaval é um momento de renovação de um povo, uma renovação que se dá através do travestimento, que também é uma união entre verdade e mentira, realidade/imaginação. É através da renovação/atualização, que se percebe a necessidade de perpetuação do DNA imaginal e este encontra, na necessidade de atitude lúdica do ser humano, um campo propício. Nesta ação de travestir-se, de mascarar-se (dado que a máscara é um travestimento), a qual Bakhtin aponta como necessidade de um povo de se renovar, é que as máscaras dell’arte afirmam a sua tradição, uma tradição tão antiga que sempre se renovou e se perpetuou. Nesta renovação/evolução/perpetuação, após os coros ritualísticos da antiguidade, encontra-se um herdeiro tão metamorfoseado quanto o coro dos sátiros, o coro de bufões. É importante reafirmar que a máscara a que se faz referência não se trata somente de um objeto, mas de todo um corpo, adereços e comportamentos que a mesma suscita, isto é, ela representa a síntese de uma compreensão de mundo e comportamento, ela aporta outro universo, quem a veste, deve vestir, também, o seu universo. Numa visão mais ritualística, a máscara pode ser vista como uma espécie de “portal” para outra visão de mundo; ela seria o elo que permite a “chegança” do “elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente”. Nestes domínios do mascaramento, da imaginação, o bufão é um ser em metamorfose, em transformação e renovação. Talvez seja por este motivo que haja dificuldade em vislumbrar o caminho percorrido por esta máscara. Porém, é muito perceptível a “herança” que ele carrega dos sátiros e do próprio Dionísio, o deus das transformações da terra e do tempo, da metamorfose, da fertilidade, da vida e da morte. O Bufão traz consigo todos estes genes através de um DNA imaginal que se manifesta e atua (imaginação) no seu corpo. A transposição do período anterior ao Medieval para a Idade Média é muito obscura. Tem-se muito claro o que era a Idade Média, contudo, existem muitos espaços entre estes dois períodos em que se mantêm uma mestiçagem e uma comunhão. Tanto a Idade Média quanto o 59 Tradução da autora: “[...] mélange di verità e menzogna, di sincerità ed illusione, dalle origini difficilmente rintracciabili, ha al suo esordio prerogative esclusivamente rituali e mantiene nel suo divenire storico quel concetto trasgressivo che sta alla base di ogni forma di mascheramento [...] Accanto alla maschera il travestimento, elemento obbligatorio della festa popolare, celebra in questa forma di rinnovamento dei vestiti, come osserva Bakhtin, il bisogno del popolo di rinnovare la propria immagine [...]. 76 período anterior a esta são períodos muito extensos do tempo de nossa história e muito férteis em manifestações dos seus pensamentos e modo de viver a vida. Enquanto que o período anterior ao Medieval é visto como intensamente ligado ao ritual e ao mito, a Idade Média foi o período em que o misticismo primitivo foi suprimido e os rituais dedicados aos mitos foram sendo substituídos pelas festas cristãs. Como dito, não é de interesse deste estudo esboçar um caminho cronológico, mas sim uma possível segmentação e perpetuação de um imaginário que transborda. Nestes espaços abscônditos à caminho da Idade Média, os coros, os coreutas e corifeus se transformaram e se desdobraram, os mimos, os giullari, os bufões, os menestréis e ciarlatani se desenvolveram, a história foi evoluindo, as atitudes lúdicas foram pungindo a realidade, o imaginário se alimentando e o DNA imaginal se perpetuando nas mais variadas formas de manifestações. Em combinação com os sátiros, desdobrou-se numa outra especialidade, o mimo. Segundo Molinari, enquanto o sátiro se travestia parecendo um animal, o mimo se apresentava sem máscara, porém, os dois se utilizavam de todas as capacidades de seu corpo para se relacionarem com o público que os cercavam. Mas o sátiro também não portava “uma máscara”, todo o seu travestimento era a sua máscara, como o bufão. Posteriormente, na Idade Média, todos os atores que não utilizavam máscaras eram reconhecidos como herdeiros diretos do mimo e chamados de histrioni/histriões, embora essa fosse uma maneira generalizada de chamar os atores da época. Nos meios mais populares onde as fronteiras conceituais não existem, os atores que percorriam as ruas, bares e feiras fazendo suas representações eram chamados de giullari / bufões, menestréis e trovadores, dependendo das suas especificidades. E é neste meio efervescente e transbordante da Idade Média que é possível reconhecer a união do mimo e do sátiro. Segundo Molinari (2007, p.57), o modo de atuação mais difuso no período Medieval era o giullare, que se tratava de um ator que tinha em si um complexo de funções e possuía grande jogo com o público: [...] o giullare não prepara o espetáculo em lugar pré-estabelecido, mas o oferece [...] Mais ainda, ele entra nas casas, preferencialmente naquelas dos ricos, nas quais, sobretudo, alegra os banquetes, mas simplesmente, também, a vida quotidiana, se torna o scurra [palavra que possui a mesma raiz de scurrile: obsceno, vulgar], o bufão; e até na vida dos burgueses e mesmo dos camponêses, nas ocasiões de celebrações domesticas, como os matrimônios, batismos ou todos os acontecimentos, mesmo os fúnebres.60 60 Tradução da autora:“[...]il giullare non allestisce lo spettacolo in luogo determinato, ma lo offre [...] Di più, egli penetra nelle case, in quelle dei ricchi prevalentemente, di cui soprattutto allieta i banchetti, ma spesso 77 Nestas observações de Cesare Molinari sobre o modo como o giullare se apresentava, é fácil de perceber que esta figura a que ele se refere tem muita similaridade com o bufão, como ele mesmo esclarece - “ele se tornava o scurra, o bufão” - mais adiante ele fala um pouco mais sobre o jogo do giullare (giocco del giullare): E o ator, o giullare é aquele cuja atividade profissional consiste na distorção da forma humana e não somente porque ele se traveste de animal ou mulher, mas porque isso, por si só, comporta a corrupção moral, quer dizer, a hipocrisia e a bajulação, mas, também, porque ele usa o seu corpo, exibindo-o contra as normas naturais e sociais (2007, p.58).61 Nesta segunda observação, ficam mais claras as semelhanças do giullare com o coro satírico e os bufões e o jogo comum dos três com a zombaria, a obscenidade e o travestimento. A confusão do que é o giullare = jogral, é que se tem a lembrança daquele jogral após século X, próximo aos trovadores, cujas características eram a declamação de poesias, canções e músicas. Tal jogral após séc. X é uma das versões da evolução do giullare = bufão, entretanto, o bufão é um corpo em metamorfose, é a procriação e a fertilidade, ele se desdobra em muitas manifestações espetaculares populares, ele é a incorporação dos valores de Dionísio, em todas as suas possibilidades. Uma outra citação que diz respeito ao Bufão, mas que traz referências da conexão deste com o Sátiro e do coro satírico, por ter uma visão do corpo máscara e do jogo com a zombaria, a festa e o divino, é de Martin (2003, p.27): [...] os corpos são verdadeiras máscaras, a materialização das forças que portamos em cada um de nós, força das paixões, da violência, dos excessos aos quais somos capazes. Seres cômicos, primitivos, de natureza divina e animal, divertidos e fascinantes, mágicos.62 Nesta observação, Sérge Martin descreve um coro de bufões, mas, sem dúvida, poderia ser a descrição de um coro de sátiros, pois as semelhanças entre a sua descrição e as de Molinari em relação ao coro de sátiros são perceptíveis. São estas conexões, as quais anche semplicemente la vita quotidiana, diventa lo scurra, il buffone; e anche in quelle dei borghesi e addirittura dei contadini, in occasione di celebrazioni domestiche, come matrimoni, i battesimi, o tutti gli avvenimenti comunque fausti.” 61 Tradução da autora: “E l’attore, il giullare é proprio colui la cui attività professionale consiste nello stravolgimento della forma umana, e non solo perché esso si traveste da animale o da donna, ciò che di per sé comporta corruzione morale, cioè ipocrisia e adulazione, ma anche perché egli usa del suo corpo, esibendolo, contro la norma naturale e sociale.” 62 Tradução da autora: “[...] les corps sont de véritable masques de jeu devirent la matérialisation des forces que nous portons tous en chacun de nous, des passions, de la violence, de la démesure dont nous sommes capables. Êtres cosmiques, primitifs, de nature divine et animale, amusants fascinants, magiques.” 78 parecem frágeis e de ínfimas proporções que, ao considerar a tríade de Huizinga e a dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum como situações indispensáveis e inegáveis, tornam-se intensas e com muita força propulsora, como um reservatório/motor de uma série de atitudes lúdicas que pungem a realidade objetiva, um DNA imaginal que se perpetua, se repete e se fortalece. Molinari chama a atenção para uma característica, que não era uma regra geral, mas era muito comum. Segundo documentos, era mais costumeiro o giullare fazer seu jogo sozinho, do que em bando, raramente ele o estava. Sendo que os bufões se desdobraram dos coros satíricos, pode ser estranho considerar que os coros se desfizeram, que “coreutas” e “corifeus” se afastaram. Mas se pensarmos que tudo evolui, tal como o corifeu foi uma separação/evolução dos coreutas, a separação de cada integrante do coro de bufões também foi uma evolução necessária. Pode-se considerar ainda que esta separação não constitua uma divisão definitiva, isto é, trata-se de uma estratégia de sobrevivência do bufão. Se parar e analisar a situação do ponto de vista do bufão, chega-se à conclusão de que sua tática foi muito sagaz (como é de seu costume). Vindo da classe popular e portador da “cultura da classe popular” (CAMPORESI,1991), o Bufão sobrevivia da sua arte, ou melhor, ele dependia de alguém que o mantivesse, uma espécie de mecenas particular, de patrocinador e protetor. Desse modo, é muito mais difícil alguém se responsabilizar por alimentar, dar moradia e ter cuidados políticos sobre as ações de um grupo que de uma só pessoa. Era muito difícil para um rei, duque, conde, príncipe ou quem quer que fosse responsabilizar-se por um grupo de bufões, os gastos e as preocupações seriam multiplicados, então se chega à conclusão de que, quando o objetivo era “ser adotado”, a melhor estratégia era apresentar-se só. Porém, quando o objetivo era ganhar força aliada à diversão, os bufões se juntavam e o bando se formava, fazendo as festas de loucos, os carnavais, os cortejos macabros. Por mais que o Bufão se apresentasse só, ele não deixava de articular com a zombaria, a festa, o escárnio, a escatologia, o grotesco, a sexualidade, o religioso e o profano advindo do drama satírico e todas as forças que envolvem este universo bufonesco. A solidão do Bufão dentro da corte era o que protegia os nobres e clérigos de sua força carnavalesca e antropofágica, certamente, uma corte não poderia arcar com um bando deles sem se corromper e isso causava um certo desconforto e um medo cauteloso de se deixar levar e ser alvo da força bufonesca. Por este motivo era muito estratégico da parte do Bufão andar só para ser “adotado”, ele é o mestre da inversão, da corrupção e da loucura libertadora, quando um bando ganha espaço, a “folie” do carnaval se estabelece, é como a peste que se instaura, é impossível segurar ou limitar esta ação, por isso, também era muito estratégico da parte dos 79 mecenas adotar somente um Bufão. Onde está o coro de bufões, está a festa instaurada, o carnaval acontece, como visto, neles não se tem a máscara-objeto, pois ela está em todo o corpo, o imaginário o toma para si e o transforma/metamorfoseia completamente e intensamente. Desta maneira, o mascaramento do bufão é muito mais visceral e intenso, pois o corpo todo deve ser totalmente tomado pelo Fundo Poético Comum e assim também deve ser seu contato com o público. Segundo Molinari (2007, p.59), os giullari tinham três distintas formas de jogo com o público: [...] aqueles que transformam e transfiguram seus corpos com gestos e evidências imorais, desnudando-se ou vestindo máscaras horríveis; aqueles que seguem a corte dos grandes poderosos dizendo a desonra dos ausentes; e aqueles que cantam para celebrar os comportamentos dos príncipes e dos santos.63 A partir daí, é possível perceber porque a história dos bufões está tão ligada à da igreja. Considerando a sua ligação com os sátiros, é possível compreender a que tem com o divino, com o ritual. Mas há momentos em que, na sociedade, o único refúgio do divino se torna a religião, assim, nada mais natural que o bufão se infiltre nas instituições religiosas para tentar manter seu vínculo com o divino. Molinari afirma que “A história dos giullari e dos atores em geral é, aliás, por todo o medievo e mais além, a história de suas condenações” (2007, p.56). 64 No baixo Medievo, a igreja católica conseguiu afastar da população os rituais ditos “primitivos”, substituindo-os por celebrações católicas que, ao longo dos tempos, apagaram qualquer lembrança de conexão com estes. Também, foi na Idade Média que a igreja se estruturou como grande instituição e se fortaleceu como um dos pilares do poder social. Os bufões e toda a sorte de desdobramentos dos coros dos sátiros mantinham as conexões inerentes a eles com o religioso primitivo e o profano primitivo, mas, sobretudo, como o bufão é corrosivo às instituições de poder, pela sátira, pela inversão, pela corrupção, ele aportava prioritariamente o profano em relação à religião institucional. Foram exatamente estas características que fizeram com que as instituições eclesiásticas se interessassem e se empenhassem em dizimar estes artistas. Todavia, para se manterem informados e tornarem a ação dos Bufões e a reação dos 63 Tradução da autora: “[...] quelli che trasformano e trasfigurano i loro corpi con gesti e salti turpi, denudandosi o vestendo maschere orribili; quelli che seguono le corti dei grandi dicendo cose obbrobriose degli assenti; e quelli infine che cantano per celebrare le gesta dei principi e dei santi.” 64 Tradução da autora: “La storia dei giullari e degli attori in genere è del resto, per tutto il medievo ed oltre, la storia della loro condanna.” 80 clérigos conhecidas por toda a instituição eclesiástica e ascortes, fortalecendo a posição clerical, foram registrados documentos, enviados de uma cidade, região ou país para o outro, como forma de justificar e proliferar a ação católica de rejeição e dizimação destes artistas. Dessa maneira, as próprias instituições que os condenaram produziram muitos documentos sobre a presença de bufões em seu meio. Pode-se fazer uma comparação - muito desigual, é verdade, mas que permite vislumbrar a preocupação e ação clerical em relação aos bufões dizendo que foi uma espécie de “inquisição” dos bufões. Contudo, mais importante que a presença destes artistas no meio clerical e nobre, tais documentos mostram a força e o impacto que o jogo bufonesco/grotesco tinha sobre o público. Por tudo isso, é impossível falar nos bufões e não citar de suas condenações por parte das instituições vigentes na Idade Média. Se tomar o seu lema de vida “Dormir, comer e deixar o mundo rodar. E isto representa a honra do bufão” (MOLINARI, 1985, p.111) 65, já se pode ter uma breve ideia do “por que” que os bufões eram uma ameaça para as instituições religiosas: para eles a vida era saciar seus desejos vitais, descansar, comer em todos os sentidos, não só o alimento mas também o sexo, o vinho, o banquete, a orgia. Para os bufões, o mundo corre como num bloco carnavalesco que festeja a vida – posteriormente, veremos que “comer, dormir e festejar” também faz parte do “bem viver” dos Zanni, Arlecchino, Pulccinella e outras máscaras da commedia dell’arte. Agora é necessário dedicar mais atenção ao Bufão, esta máscara tão instigante que desperta naqueles que o veem a repulsão, a repugna, o medo, a paixão e a compaixão, o bufão é uma completa contraposição de sentimentos. Consequentemente, neste seu lema de vida já encontramos muitos quesitos que contradizem os das instituições religiosas: falta penitência, trabalho, temor a deus, moralidade e deveres sociais para com as instituições, por outro lado, sobra prazer. Segundo Sérge Martin, as principais características do bufão são: um “fiel servidor”, divertido, imprevisível, malicioso, irônico, sábio, conselheiro, revelador e provocador, cujas palavras e presença tocam a realidade como um “portal” da verdade, revelando toda e qualquer “falsa intenção” e desvelando a frágil estrutura da sociedade. Como visto anteriormente, Molinari assinala um estilo de bufão que se instalou nas instituições religiosas, era aquele que cantava “para celebrar os comportamentos dos príncipes e dos santos”. Porém, ao que tudo indica, pelos documentos e citações da presença dos bufões dentro da instituição clerical, ele não mudou seu aspecto, seu corpo-máscara e hábitos e, assim, com suas características, seria impossível haver a união da igreja católica e da bufonaria, uma das duas 65 Tradução da autora: “Dormire, magnare e lasciar correre il mondo. E questo rappresenta l’onore del buffone.” 81 partes teria que sucumbir... Com certeza, não seria o bufão, pois como se sabe “[...] o bufão nunca cai: ninguém jamais conseguirá culpá-lo ou fazer dele um bode expiatório, pois ele é o princípio vital e corporal por excelência, um animal que se recusa a pagar pela coletividade [...]”(PAVIS, 2005, p.35). Nem mesmo a igreja conseguiu exterminar com o Bufão, ela se tornou, ao longo de sua estruturação, uma instituição de poder baseada no medo, na castração do prazer e na penitência, porém, ela era conduzida por seres humanos - corruptíveis seres humanos! Mas, apesar de tudo, a igreja ainda era e é uma forte instituição de poder, então, o melhor para a sobrevivência de ambos foi o afastamento do Bufão do meio eclesiástico. Se através da zombaria o bufão revela as “verdadeiras intenções” das convenções e normas sociais, expondo a fragilidade das mesmas, para aquele que é alvo desta zombaria, o riso provocador traz consigo a crueldade, pois desnuda o “alvo” e denuncia a verdade oculta. No caso da igreja, não seria aconselhável para a sua reputação ter um Bufão transitando livremente em meio aos seus interesses financeiros, vendo os tantos “pecados condenáveis”, cometidos dentro da própria instituições e declarados como “caça às bruxas”, dízimos, temor a deus e tantos outros modos de camuflagem dos seus verdadeiros interesses em se “proteger” e se fortalecer como imagem do poder e de instituição. Os comentários desveladores dos Bufões seriam “verdade em demasia” para a instituição religiosa. Um exemplo deste desconforto causado na igreja pela presença de um Bufão é o caso de Domenico Scandella, conhecido como Menocchio, queimado pelo Santo Ofício em 1601, na região de Friuli, na Itália. Preciso explicar que estou me referindo a Menocchio como um Bufão a partir de minha leitura do livro “Il formaggio e i vermo. Il cosmo di un Mugnaio del ‘500”, de Carlo Ginzburg. Ginzburg não nomina Menocchio como Bufão, a única referência a Bufão que o autor traz está no item “10. Un mugnaio, un pittore, un buffone”. Neste item, o autor faz referência ao contato que Domenico Scandella teve com o pintor Nicola da Porcia que, ao que tudo indica, emprestou a Menocchio o livro “Decameron”, do qual este aproveitou muitos pensamentos e histórias. Segundo Ginzburg, do livro que lhe foi emprestado, Menocchio se nutriu de temas e assimilou expressões do Bufão Zanpollo, participante das intrigas do livro, incorporando estas características em seus discursos (GINZBURG, 1976, p.28). Para esta pesquisadora, ao se apropriar de temas e expressões bufonescas, Menocchio coloca-se em um posto muito próximo ao do bufão. Tendo uma visão de toda a sua história, discurso, modo de agir e de como se apropriou das ideias e palavras de Zampollo, considero que Menocchio pode ter-se servido do jogo bufonesco e, em alguns momentos, até mesmo, ser visto como um Bufão. Menocchio foi acusado pela igreja de bruxaria e os populares da região o viam como 82 uma espécie de bufão - até hoje ainda é assim, pois, na região de Friuli, quando visitei a cidade, as pessoas se referiam a ele como visionário e sábio popular. Menocchio criou e “proliferou” toda uma visão do universo e do homem, sua alma e sua relação com o divino. Com uma linguagem simplória, ele afirmava que o corpo do homem é feito de terra, água, ar e fogo e que todos fazem parte de uma mesma instância divina, a qual se apresenta em todos. Na morte, o homem retorna para sua origem e, após, vem ao mundo novamente com outra forma66. Tal qual Menocchio, muitos bufões que viviam, não nas grandes cidades onde, através da subversão e da sagacidade, conseguiam a proteção de algum nobre, mas nos pequenos povoados onde ficavam à mercê de uma opressão maior, de uma justiça que era manipulada pelos clérigos, muitos foram condenados e de muitos deles não se tem notícias, pois tendencialmente eram propagadores de suas ideias através da oralidade. É difícil chegar a linhas definitivas do que foi a Idade Média, segundo Margot Berthold (2001, p.185), o que a torna tão difícil de ser estudada é a sua dinâmica e a sua exuberância, definindo-a com certa poesia, afirmando que foi um período que: Dialoga com Deus e o Diabo, apóia seu paraíso sobre quatro singelos pilares e move todo o universo com um simples molinete. Carrega a herança da Antigüidade na bagagem como viático, tem o mimo como companheiro e traz nos pés um rebrilho do ouro bizantino. Provocou e ignorou as proibições da Igreja e atingiu seu esplendor sob os arcos abobadados dessa mesma Igreja. [...] Sua dinâmica desafiou a disciplina das proporções harmoniosas e preferiu a exuberância completa. Fazer uma moldura do período Medieval implica em um estudo detalhado e longo, então, na medida em que se adentra o universo bufonesco e das máscaras dell’arte, vai-se esclarecendo os meandros deste período. O bufão, apesar de sua condenação, seja por sua aparente loucura, seja pelo esconjuro religioso, ainda exercia o fascínio nas pessoas. Ele era visto como portador da verdade, já que tinha a “licença” de falar tudo a todos, sem ser alvo das leis hierárquicas - seu posto de figura incrédula permitia isto. Com sua aparência metamorfoseada e metamorfoseante, visualmente moribunda e agonizante, entre vida e morte, o bufão provoca sentimentos de compaixão, pois o veem como um pobre ser deformado, cujas deformações causam a repugnância. Um ser inacabado que traz na boca palavras lascivas e provocações amorais, num corpo que gangrena, mas que pulsa sexualmente. Um corpo deformado, aparentando estar em 66 Este tipo de pensamento em que se vislumbra um espaço onde tudo se encontra e de um retorna sempre à realidade objetiva, porém renovado, se assemelha muito ao conceito do Fundo Comum dos Sonhos e do DNA imaginal. 83 putrefação, ou gestação, pênis, seios e ventres inchados, um corpo que vibra sexualmente – morte e vida, passagens de mundos diversos unidos em metamorfose. Esse é o bufão que interessa para esta pesquisa, essa é a conexão do DNA imaginal vindouro dos sátiros e da via dupla dos coros satíricos que se vislumbra. O poder do discurso do bufão é perceptível, quando um bufão fala é como se o universo virasse ao avesso, ele herdou a maestria da retórica de sua união com o mimo. Mas a sua força não estava somente nas palavras, mas também nos afetos que ele comovia com seu corpo e que acompanhavam, disseminavam-se com estas palavras, como era da tradição do mimo e do sátiro, um corpo-máscara que se empenha num discurso. Para o Bufão, uma palavra não é apenas uma palavra, mas é uma comoção de afetos e emanação destes na atmosfera. Segundo Molinari (2007, p.59), “[...] a narrativa giullaresca/bufonesca é uma narrativa com fortes acentuações mímicas, ou melhor, é muito provável que o narrador se transformasse em “verdadeiro ator” [aspas da autora] a cada vez que o texto proporcionava isso” 67. Com tal poder de retórica, de teatro e meta-teatro, o bufão coloca o mundo ao avesso invertendo a ordem estabelecida. Para se lembrar do poder de retórica do bufão, basta se remeter às tantas peças teatrais que contêm troca de papéis entre bufões e reis. Se o Bufão percebe que pode tirar proveito da situação, ele subverte a ordem e se coloca na posição do rei, do duque, enfim, do patrão, daquele que o favorece e, assim, faz promessas de tratar muito bem seu “empregado”. Taviani e Schino relatam alguns casos desta natureza no livro “Il segreto della Commedia dell’Arte”, são acontecimentos que sucederam, não somente com bufões, mas, em sua maioria, com cômicos dell’arte, fatos que não pertenciam às cenas, mas à vida real. A utilização perspicaz da retórica era uma grande habilidade dos bufões, dentro e fora da cena. O uso da mímica, da ironia, da metáfora e do duplo sentido sempre convém aos discursos dos bufões, pois, com estas estratégias, ele traz tudo aquilo que é cerebral para o plano físico, de preferência, para o plano do “baixo ventre”, seu reino por excelência. Os bufões são agressivos por natureza - e chamo a atenção para o fato de que não se esta falando de uma agressividade no plano físico de combate, mas sim de uma agressividade moral, no sentido que eles burlam todas as normas da sociedade – eles não são seres imorais, mas amorais. Com seus grandes órgãos genitais, com seus intestinos e feridas à mostra, palavrões e obscenidades que se misturam a discursos filosóficos, existenciais e proféticos, 67 Tradução da autora: “[...] la narrazione giullaresca è una narrazione con forti accentuazioni mimiche, ed è anzi, probabilissimo che il narratore si trasformasse in vero attore ogni qualvolta il testo suggeriva.” 84 suscitam uma reflexão sobre as relações humanas e toda a sociedade. Segundo Balandier (1980), o bufão zomba e ri de tudo: do poder, da guerra, da fome, da riqueza, da pobreza, da morte, do Diabo, de Deus e do próprio Homem. Com sua gargalhada, o bufão exorciza tudo o que lhe poderia amedrontar e assim ele sobrevive a uma sociedade que lhe rejeita, repele e, ao mesmo tempo, se fascina com tamanha liberdade “Quem ri do inferno pode rir de tudo” (MINOIS, 2000, p. 249) 68. Com sua gargalhada estarrecedora, com a sua língua lasciva e sua fome de vida, o bufão não necessita de autorização ou aprovação, ele é “o provocador supremo”, o qual, segundo Martin, não permite psicologias e mantém interditada a presença de “psicólogos e psiquiatras”, ele traz a “impunidade da loucura suprema, da loucura universal, da rainha do mundo” (MARTIN; PEZIN, 2003) 69. É com a força desta loucura universal que o discurso do bufão acontece - e chama--se a atenção para o fato de que esta também vai de encontro a este espaço abstrato que é o Fundo Comum dos Sonhos, pois se trata de um lugar onde tudo acontece sem hierarquia ou peso. O bufão é um complexo de dinâmicas entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum, realizadas nas instâncias da tríade jogo-festa-ritual e seu discurso é impregnado desta loucura universal vociferante e profética, intermediada pela maestria da retórica herdada do mimo da antiguidade. Este é o bufão que interessa para esta pesquisa, uma máscara que é a imaginação, que constitui uma grande realização da atitude lúdica. Uma máscara que contém conexões com o primitivo e o divino, com o que o ser humano tem de mais elevado e mais grotesco. No discurso e comportamento do bufão, percebe-se claramente seu estilo de vida (dormir, comer e deixar o mundo girar) e a filosofia que a festa e o carnaval comportam – filosofia tão ressaltada por Rabelais como a grande força popular, uma força transformadora e renovadora, que permite a sobrevivência deste “popular”. O bufão festeja a vida no sentido mais ritualístico da festa, apesar das feridas, deformações e “deficiências”, ele apresenta ao público o seu corpo dilacerado, aberto e exposto para mostrar-se ao ser humano, servindo-lhe de imagem e semelhança, tal como Dionísio. Um corpo metamorfoseado e prazenteiro que emana e exala (-se em) festa. A sua presença invoca uma percepção da dualidade do mundo e da vida humana (vida e morte), ele traz nas suas entranhas e entranças o “princípio da vida material e corporal”, pode-se considerar até que o bufão foi o grande “gladiador” da força popular. Nele e através dele, a 68 69 Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Qui rit de l’enfer peut rire de tout.” Tradução de Christine Nicole Zonzon . 85 festa se fazia presente, emanava-se e exalava-se, provocando sensação similar, também, naqueles que o assistiam e se permitiam tal comoção. O corpo do bufão é corpo travestido e mascarado, no sentido mais ritualístico do mascaramento, ele é, na verdade, um corpo metamorfoseado pelo Fundo Poético Comum um caminho transcorrido pelo Fundo Comum dos Sonhos para se concretizar em corpo e perpetuar-se em imagem e energia. É natural que um ser com tamanha conexão com este espaço abstrato da ação do imaginário, do mundo dos ideais e dos fins superiores da existência humana, porte para aqueles que o veem algumas ínfimas partículas deste outro universo. Sendo o bufão tão próximo deste mundo ancestral e em profunda dinâmica com elementos arcaicos da alma, com seu corpo esfacelado e prazenteiro, ele comove a todos com uma ancestralidade festiva, seu elo ritualístico. É preciso dizer que, para o ator que se fizer bufão, a tríade de Huizinga “jogo-festaritual” é condição primordial, tanto quanto a imaginação. Os bufões instauram a festa, invocam o ritual e jogam com a realidade. Através de sua força, liberam outra consciência – é a força popular rabelaisiana. Como filosofia, o carnaval e o riso vêm ajudar a decifrar a realidade e o bufão como instaurador do carnaval e provocador do riso é, na verdade, o grande sábio da realidade. Com toda sua lascívia, liberdade e festa, o bufão incita todos a lhe seguirem no seu “bloco carnavalesco”. O bufão é um complexo de ações internas e externas, grande expoente da força popular, o qual desenvolveu e fortificou a força cômica e do riso, que “[...] passou a ser a característica essencial [do popular] [...] que evoluiu fora da esfera oficial, [...] e se distinguiu pelo seu radicalismo e liberdade excepcionais e pela sua implacável lucidez” (MINOIS, 2000, p.136)70. Este ser age com maestria também com o riso – uma manifestação que por si só já é complexa – que é apenas uma das “armas” que o bufão utiliza para vociferar ao mundo, sua gargalhada de gozo, prazer e loucura ataca e fere aqueles que se põem como seu inimigo ou opressor. O riso é uma ação física a qual provoca uma sensação sensível que atravessa a esfera daquele momento em que acontece, ele também realiza conexões com outras dimensões abstratas. Tantas são as culturas em que o riso faz parte de rituais de transição, sejam festivos, fúnebres ou de passagens etárias. Por tudo isso, na figura do bufão, encontramos uma gama de conexões com estas 70 Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] et devenu la caractéristique essentielle de la culture populaire, qui a évolué dehors de la sphère officielle [...]e s’est distinguée par son radicalisme et sa liberté exceptionnels, par son impitoyable lucidité’.” 86 esferas das instâncias superiores da existência humana, que não se pode contestar radicalmente àqueles que o associam a um Trickster – uma espécie de xamã ou feiticeiro – pois, de algum modo, ele pode ser reconhecido nesta linhagem de espécies de magos, já que fazem estas conexões entre universos diferentes e mais uma vez se constata a sua conexão com o ritual e o divino...71. Foram por todas estas conexões que o bufão instigou esta pesquisa em sua direção, impulsionada por um corpo/máscara que transborda e exala-se em jogo-festa-ritual, este estudo escorregou pelas entranhas/entranças bufonescas e viu-se o quanto era importante para o caminho prático desta pesquisa, o trabalho com a máscara do bufão. A partir de tal constatação, começaram os engenhos/engendros em direção à estruturação de uma técnica para se chegar a um corpo prazenteiro que exala (-se em) festa. Um corpo que comporta uma ancestralidade festiva e os princípios vital e corporal do carnaval. A procura prática para descobrir quais seriam os passos para criar um sistema de imaginação e “deixar-se habitar” por um bufão foi a questão norteadora deste primeiro exercício da atitude lúdica que envolve esta pesquisa. Porque, dentro da minha compreensão e diante da minha necessidade da experiência sensível como princípio ativador da estruturação do processo criativo, tanto no campo teórico (literal), como na ação para a construção da cena, percebia a necessidade de um corpo prazenteiro para as máscaras dell’arte. Muitos espetáculos de commedia dell’arte que assisti, eram corpos que usavam máscaras, mas não eram corpos travestidos/incorporados pela máscara/mito, e, na minha imaginação, as máscaras dell’arte necessitavam/necessitam deste lado mítico. Porém, as escolas de commedia dell’arte não passavam esta “técnica” ritualística, porque, na verdade, o mito se instaura através do rito, não da técnica. Para o mito se instaurar, ele precisa do rito e da crença, entretanto, a minha crença cênica necessitava de uma experiência sensível e, como não encontrei isso nas escolas de commedia dell’arte, fui buscar nas vertentes ritualísticas de minha cultura/convivência. Foi nas manifestações espetaculares populares que encontrei este corpo prazenteiro, foi na ritualidade brasileira que encontrei a ancestralidade festiva, e necessitava entender, na musculatura, como levar isso para as máscaras dell'arte. O bufão era a resposta, sabendo que ele é um trickster e que tinha conexões diretas com as máscaras dell’arte e vendo os Exús e 71 Aqui, sente-se a necessidade de colocar algumas questões que não serão respondidas nesta tese, pois se trata de outro desdobramento, mas que serve para alimentar especulações e outras possíveis conexões: Quanto à ligação com o ritual, o divino, a ancestralidade festiva, não seria esta, também, a função do “ator santo”? Emanar-se em jogo-festa-ritual até alcançar o público, porém, com muito mais ritual que festa? Não seria esta a grande questão do “teatro peste”? Provocar no público a febre festiva do transe carnavalesco? 87 Pombogiras como tricksters72, precisava, para alcançar o que queria nas máscaras dell’arte, passar pelo caminho das pedrinhas miudinhas traçadas pelo bufão. A partir desta constatação e da consciência de que nas escolas de commedia dell’arte, estas características não eram trabalhadas, pois é um caminho individual de cada ator, cheguei à conclusão de que eu deveria acessar as máscaras dell’arte, já com esta carga, pois elas herdam isso do uomo selvático, dos rituais de fertilidade, dos cortejos macábros, dos Sabba, conforme afirma Contin (1999) quando fala destas características dentro das máscaras dell’arte. Assim, fez-se necessário percorrer tal caminho, deixar-se habitar pelo Bufão, para portar sua “aura” ritualística, xamânica, telúrica e de trickster às máscaras dell’arte. A partir desta constatação, o transcurso para a técnica do Bufão foi sendo construído, ou melhor, foi sendo descoberto e deixando-se descobrir. 72 Monique Augras é doutora em psicologia pela Sourbone e professora da PUC-Rio. Autora do livro “Imaginário da Magia. Magia do Imaginário” (2009), cujo tema interessa a esta pesquisa, nas páginas 45 e 46 chega a conclusiva de que os Exus e Pombogiras, entre os Orixás ou Entidades, assumem, claramente, os papéis de Tricksters. O Trickster é marginal, possui característias xamânicas, divinas, mas também, festivas, brincalhonas, enganativas e vingativas. No seu estudo sobre o bufão, Sergè Martin (2003) chega à constatação de que Bufões e Tricksters são sinônimos, adicionando nesta mesma categoria o Xamã. 88 3. ATITUDES LÚDICAS “A imaginação constitui um reino autônomo, irredutível a outros modos de conhecimento. Mais ainda: Ao abrir a via imaginal de percepção do mundo e de nós mesmos, o reino das imagens nos cria.” Monique Augras (2009, p. 218) Após ter realizado o caminho teórico, apresentado as razões pelas quais se considera o Bufão, não como um personagem, mas como máscara (no seu sentido ritualístico e de possessão), e porque este se apresenta como parte importantíssima desta tese (pela sua relação com o ritual dionisíaco e com a commedia dell’arte, que será visto posteriormente) inicia-se o relato da experiência vivificada em relação à “possessão” do ator pelo Bufão – fazendo alegoria ao grande teor ritualístico e místico desta Máscara. Posteriormente, adentrar-se-á nos labirintos traçados pelo Bufão até chegar à commedia dell’arte, pois tal percurso faz parte do caminho realizado. Porém, primeiro daremos conta dos encaminhamentos realizados para a construção de um processo de descoberta, fixação e desenvolvimento do Bufão. 3. 1. O BUFÃO: CORPO-MÁSCARA – UMA DESCOBERTA “A partir do movimento de um bufão o mundo fica ao inverso. A partir de sua fala, começa uma grande reflexão. Desde que ele vive, clama pelo riso ou pelo silêncio. Um bufão come, dorme, respira, simplesmente pulsa, denuncia, transgride, solta flatos flamejantes, rápidos e certeiros. [...] Seus corpos deformados, estufados de conhecimentos instintivos nos impõem a lucidez. Talvez a revelação de um mundo sem deus nem diabo.” Serge Martin (2003, p. 27) Sobre a máscara do bufão, num primeiro momento, devo dizer que esta me seduziu, pois o Bufão não estabelecia nenhum diálogo sensível comigo, isto é, não me atraía como linguagem, como Máscara ou como poética. Ao longo do tempo em que fui tendo contato com esta máscara: através do estudo e da prática de outra máscara, a do clown, o Bufão começou a trabalhar em mim, movendo meus afetos e instigando-me, cada vez mais, a andar em sua direção e, neste trânsito, me mostrou o caminho para as Máscaras dell’Arte. 89 O bufão agiu em mim da mesma maneira como age naquele espectador que arrisca um olhar sobre ele, com toda a maestria, fascínio e malícia, revelando sua liberdade, amoralidade e gama de conexões. As imagens que se formavam em meus pensamentos, devaneios a partir das leituras sobre o bufão, o grotesco, o carnaval e todo o complexo cognitivo e conectivo que compreende o universo bufonesco me comoveram a uma tentativa de descoberta de acesso a esta máscara. O imaginário que se constituiu em conexões me incitava a ir de encontro a esta máscara capaz de suscitar percepções tão dialéticas. Primeiro, vieram as tentativas de “abocanhar” as imagens, simplesmente pegá-las e colocá-las no meu corpo, uma experiência que resultou num bufão vazio, ou melhor, não era um bufão, era um corpo carregado de acessórios, sem força e pleno de pudores – verdadeiramente, não se tratava de um bufão. A partir das minhas dificuldades, comecei a construir minhas incertezas acerca de uma técnica e possível acesso ao bufão. De acordo com minhas primeiras tentativas fracassadas, tinha a certeza de que não conseguiria acessar esta máscara através de um corpo com enchimentos e falas plenas de palavrões gritados ao vento. Precisava de um impulso interno, de uma vivência mais marcante e não apenas de uma proposta estética vazia. Necessitava de uma experiência física, as imagens que se formavam em minha mente deveriam se tornar imaginação, agindo em meu corpo. E, para tanto, primeiro, eu teria que “habitar” tais imagens, sentir-me totalmente integrada a elas e depois fazer com que viessem a “habitar” meu corpo, transformando-o, travestindo-o e metamorfoseando-o, deveria tomar posse e deixar-me apossar destas imagens. Com base nestas constatações, a busca pela Máscara do Bufão teve início e uma prática foi sendo encaminhada. Num primeiro momento, este percurso prático ou “treinamento” fez parte de uma busca solitária, todo o processo foi experimentado em mim, em dias e dias de prática individual e isolada e, apesar de ter sido um trabalho difícil, permitiu uma observação detalhada de mim mesma, fazendo-me compreender que a percepção física é uma necessidade para meu processo criativo. É como se as energias colocadas em movimento através dos sistemas muscular, respiratório e nervoso, auxiliassem meu cérebro a processar o material teórico absorvido através das leituras, como também, a seguir um caminho intuitivo e sensível. A imaginação fazia-me devanear e o Fundo Poético Comum fazia a conexão entre corpo e Fundo Comum dos Sonhos. Esse caminho percorrido solitariamente possibilitou a 90 compreensão das vias sensíveis que poderiam ser utilizadas com maior eficácia num trabalho posterior, com outros atores. Neste processo de descoberta da máscara do bufão, o impulso para a transformação e metamorfose do corpo se dá através da dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum, da mesma forma circular, espiralada e ramificada mencionada anteriormente. É preciso dizer que tal dinâmica, num processo de descoberta do bufão, é muito intensa, pois somos um conjunto de “coisas” (órgãos e fluídos), as quais também fazem parte deste Fundo Poético Comum. Partindo da dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, para construir o corpo imaginativo do ator e sabendo que o Bufão também faz uso do travestimento, utiliza-se, como apoio para este se tornar o corpo do pesquisator, um método de Jacques Lecoq (1997, p.55), o: Méthode des transferts, que consiste em se apoiar nas dinâmicas da natureza, nos gestos de ações dos animais, da matéria, para atingir uma finalidade expressiva, a fim de jogar melhor com a natureza humana. O objetivo é tocar um nível de transposição teatral, fora do jogo realista1. Para Lecoq, o Méthode des transferts possui duas possibilidades de encaminhamentos: a primeira é através de um caminho direcionado a uma “humanização das coisas”, isto é, humanizar animais, objetos, árvores, água, enfim, tudo que for da natureza, o ator deve chegar ao ponto de descobrir na dinâmica do fogo, a voz que vem dele, os sons e as palavras; a segunda, ao contrário, é deixar “entrar as coisas” no corpo, seja de natureza animal (chifres, patas, peles, etc), vegetal (galhos, folhas, etc), objetos (cadeiras, panelas...) ou formas abstratas (enchimentos). A primeira opção parece a descoberta dos elementos e da natureza, bem como suas dinâmicas, no corpo do pesquisator. Enquanto que a segunda opção é a integração de “acessórios” (chifres, patas, peles, galhos, folhas, cadeiras, panelas, etc e enchimentos) ao corpo. Entretanto, para esta pesquisa, a associação ao corpo de seios, falos, orelhas de burro, asas, barrigas, corcundas e outras deformidades, é realizada de maneira sensível, na verdade, são acessórios que vêm sublinhar as deformidades realizadas pelo Fundo Poético Comum, extrapolando a realidade. Tais disformias não são simples materiais e enchimentos acrescentados ao corpo, são exageros das deformidades já transformadas pela dinâmica Fundo Comum dos Sonhos/Fundo Poético Comum que, em um processo de 1 Tradução da autora: Méthode des transferts, qui consiste à prendre appui sur les dynamiques de la nature, des gestes d’action, des animaux, des matières, pour s’en servir à des fins expressives afin de mieux jouer la nature humaine. L’objective est d’atteindre un niveau de transposition théâtrale, hors du jeu realiste. 91 transformação/metamorfose do corpo, todo o material adicionado ao corpo real torna-se parte do corpo imaginativo do pesquisator. Os dois encaminhamentos do Méthode des transferts são eficientes para a criação de figuras fantásticas, alegóricas e carnavalescas - categoria na qual a máscara do bufão, no aspecto visual, pode ser identificada. Para Lecoq, este impulso vindouro da transferência das “coisas” para o corpo traz consigo uma “emoção dinâmica” e esta, por sua vez, promove percepções sensíveis, as quais possibilitam a transformação do corpo do pesquisator de um modo não racional. Lecoq (1997, p.57) chama toda esta dinamização de impressões sensoriais de “emoções dinâmicas” e explica: Mas existem coisas que não se movem e, no entanto, podemos, da mesma forma, reconhecer suas dinâmicas. São as cores, as palavras, as arquiteturas. Nós não podemos ver a forma ou movimento de uma cor, mas a emoção que nos causa pode nos colocar em movimento, em movimentação, em comoção [...]. A demanda mimodinâmica coloca em jogo os ritmos, os espaços e as forças dos objetos imóveis [...]. Mais que uma tradução, é uma emoção. O termo emoção etimologicamente significa “colocar em movimento” 2. Com certeza, o sentido de emoção sublinhado por Lecoq é o mesmo levado em conta para o trabalho desenvolvido nesta pesquisa, não se tratando de sentimentalismo ou psicologismo e sim de afetos que movem um corpo, deixando claro que a emoção é da atmosfera do sensível, chegando a agir de modo subjetivo. Todo este trabalho de comoção de afetos e transformação do corpo permite a constituição de alguns circuitos de sistemas de sensações, os quais imprimem seus traços característicos no próprio corpo transformado. Estes circuitos que se formam na (e com) a musculatura criam uma espécie de musculatura afetiva, a qual, segundo Artaud, é a correspondência física dos sentimentos3, carregando nas suas fibras os afetos e comoções que as transformaram. No caso desta pesquisa, a possibilidade da imagem de formação de circuitos traz a possibilidade de trabalhar com “correntes de energia”, com ponto de produção, sustentação e distribuição de energia pelo corpo. Também, uma corrente de energia pode ter seu percurso modificado - fator importante para a transformação e a composição física do 2 Tradução da autora : Mais il existe des choses qui ne bougent pas e dont nous pouvons cependent reconnâitre également les dynamiques. Ce sont des couleurs, les mots, les architectures. Nous ne pouvons voir ni la forme, ni le mouvement d’une couleur, cependent l’emotion qu’elle nous procure peut nous mettre en mouvement, en mouvance, voire en émouvance! [...] La démarche mimodynamique met em jeu les rythmes, les espaces et les forces des objets immobiles. [...] Plus que une traduction, c’est une émotion. Le terme émotion signifie étymologiquement: “mettre em mouvement. 3 Para saber mais sobre musculatura afetiva, ler: O teatro e seu duplo, de Antonin Artaud. 92 corpo do bufão e, posteriormente, para a modificação de células de Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras em máscara física da commedia dell’arte. Por haver esta possibilidade de deslocamento de pontos de tensão, o princípio de formação de circuitos também se tornou um dos pressupostos desta pesquisa. Tal processo auxilia o corpo a encontrar as conexões físicas e energéticas entre as diversas imagens/ações que se utiliza, sobrepondo circuitos e deslocando alguns pontos específicos, para que seja realizada a transformação do corpo do pesquisator, mantendo, circulando e misturando a energia descoberta em cada circuito. A técnica criada para a descoberta da Máscara do Bufão utiliza a formação e sobreposição de circuitos, para, posteriormente, através das transformações dos mesmos, o corpo do pesquisator vá se metamorfoseando no corpomáscara do Bufão. Mas como é a descoberta do corpo do bufão? Como é realizada a construção de circuitos e como fazer a sobreposições dos mesmos? A descrição a seguir é um relato do encaminhamento e da técnica construída, não se trata de um diário da prática realizada ou de ensaios datados, mas sim dos encaminhamentos e avanços em direção à estruturação da técnica. Antes de realizar o relato da técnica, é necessário fazer uma observação sobre as expressões xamã e xamânico, as quais utilizo para fazer referências ao Bufão. Já foram realizadas reflexões e comentários sobre a ligação do Bufão com o ritual, com a máscara e com Dionísio e como, através destas conexões, acontece a transferência de características entre eles. É importante explicar que não se está fazendo alusão ao xamanismo como religião, as expressões xamã e xamânico são utilizadas para sublinhar a ligação com os fenômenos e formas da natureza de maneira mítica e mística. Para esta pesquisa, o xamânico é referenciado como manifestações, ritos e práticas ligadas à natureza e ao plano espiritual, sobrenatural, energético e místico; e o xamã é o intermediário entre a realidade objetiva e toda esta dimensão abstrata4. Tomando esta compreensão do xamânico e do xamã, é possível ver os rituais dionisíacos - com o transe, os travestimentos em animais, as festas rituais relacionadas às transformações da terra e do tempo - como rituais xamânicos, onde, através destas conexões, o bufão se torna um Trickster5, um Exu e aquele que o incorpora, como um Xamã 4 Para saber mais sobre a conexão dos xamãs com a natureza e realidades, ler: Passes Mágicos. A sabedoria dos xamãs do antigo México, de Carlos Castañeda. ; A travessia das Feiticeiras. A jornada iniciática de uma mulher, de Taisha Abelar; Manual de Antropologia Cultural, de Angel-B Barrio. 5 Estudos específicos sobre Trickster (xamãs das aldeias indígenas da América do Norte e da África) e outros Xamãs (em Serge Martin e George Balandier com os Pajés, indígenas das aldeias da América do Sul) e a conexão destes com o Bufão, podem ser encontrados nas obras de Serge Martin em Le Fou Roi des théâtres 93 ou um Pajé. São muitos os estudos sobre o Bufão, nos quais este é referenciado como demônio, xamã/feiticeiro e/ou trickster6. Como esta tese, de modo subjetivo, tem referências sensíveis e compreensíveis nas manifestações espetaculares populares brasileiras, para mergulhar mais profundamente no universo de Dionísio, nas ligações e “personificação” deste mito na “representação” dos sátiros no ditirambo e nos coros da tragédia, comédia, sátira e, por fim, nos bufões, esta pesquisatriz buscou, ou melhor, foi levada pelas águas subterrâneas de Exu - um orixá tão múltiplo e polissêmico quanto o próprio deus Dionísio. O mergulho desta pesquisatriz nas leituras do universo dionisíaco e a convivência com os rituais de Candomblé7 e Umbanda8 fez com que os mitos de Dionísio e Exu se conectassem. Todos estes dados tiveram, ainda, como adicional a este impulso conectivo imagético, a prática sensível da técnica do Bufão - o que, pelos encaminhamentos escolhidos, geravam uma conectividade entre os universos de Dionísio, do Bufão e do Exu muito dinâmica. Na crença do Candomblé e da Umbanda, o mito do Orixá se faz presente pela incorporação e o “filho de santo” que o incorpora se torna, naquele momento ritualístico, parte integrante desta divindade, mas também a própria divindade. Uma relação muito (2003), Georges Balandier em Le pouvoir sur scènes (2006) e de William Willeford em Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e dei giullari (2005). 6 Alguns destes estudos específicos ou com temas relacionados: Le Fou Roi des théâtre, de Serge Martin ; Le pouvoir sur scènes de George Balandier ; Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e dei giullari, de William Willeford; Il formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del’500, de Carlo Ginzburg; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesche, de Claudia Contin e Ferruccio Merisi; Rustici e buffoni. Cultura popolare e cultura d’élite fra Medioevo ed età moderna, de Piero Camporesi; La maschera di Bertoldo. Le metamorfosi dell villano mostruoso e sapiente. Aspetti e forme del Carnevale ai tempi di Giulio Cesare Croce. La performance dei Mamuthones: tra rito e teatro. Ricerche e documentazione su una delle più misteriosa tradizione sarde, de Paola Pala; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo de Daniele Vianello; Il Mondo Secondo Fo. Conversazione con Giuseppina Manin,de Dario Fo; Il MonDologo di Arlecchino. Spetaccolo comico grotesco per anime perse. Materiali e Riti per la preparazione e l’uso delle Maschere. Storie tra Commedia dell’Arte e Maschere dell mondo de Claudia Contin; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico, de Eugenia Casini Ropa; I nomi del mondo. Santi demoni, folletti e le parole perdute, de Gian Luigi Beccaria. 7 O Candomblé, segundo o pesquisador Dr. José Carlos Pereira, é uma religião afro-brasileira que cultua deuses/orixás, os quais possuem sentimentos humanos (raiva, ciúme, vaidade, orgulho...) [características também dos deuses gregos e romanos] e tem seu ritual embalado por tambores (atabaques) e canções em língua africana (nagô, ioruba). O candomblé chegou ao Brasil junto com os escravos africanos e sofreu muita represália dos colonizadores portugueses, que os impediam de praticar sua crença, o que os forçou a desenvolver uma associação entre os santos católicos e os orixás – e foi desse movimento que surgiu o sincretismo religioso brasileiro. 8 A Umbanda, segundo o Dr. José Carlos Pereira, é uma crença brasileira nascida no Rio de Janeiro em 1920, resultado da mistura entre os rituais africanos e o espiritismo europeu. Para esta crença, o universo é povoado por entidades espirituais, as quais se comunicam com os homens através dos médiuns: “iniciados” no ritual umbandista, que incorporam estas entidades. Na umbanda de Candomblé, as entidades seguem três linhas: Preto Velho; Caboclo e Exu/Pombajira e a realização dos rituais destas entidades é semanal, já o “batuque”, festa aos orixás africanos, no qual o ritual segue os encaminhamentos do candomblé, são mais esporádicos e, na Umbanda espírita, o Caboclo é a entidade que coordena e impera nos rituais. 94 próxima da incorporação do mito nos rituais de Dionísio. Nestes, o mito de Dionísio era incorporado pelos Sátiros que se tornavam representantes do mito, mas também parte dele, incorporados por ele. Dionísio, através desse modo integrativo/interativo/geminativo entre deus e ser humano, estabelece uma comunicação, ele não é apenas um mensageiro, é o próprio elo comunicativo destes universos. Segundo a pesquisadora de História e Antiguidade, Maria Christina de Caldas Freire Rocha (UFRJ e UGF), Dionísio sempre fora um Deus estranho ao mundo dos deuses olímpicos tradicionais, ele fazia parte dos deuses populares, do campo, da agricultura e seu culto era praticado fora da cidade, somente mais tarde fora incorporado aos ritos praticados em Atenas9. Nos rituais a Dionísio, através da ingestão do vinho, os adeptos chegavam ao estado de entusiasmo e êxtase e, neste estado, entravam em comunhão com o deus e, consequentemente, também com sua imortalidade. Segundo Brandão, o homo dionysiacus (integrado em Dioniso) acreditava, através do processo de ékstasis/êxtase, “sair de si”, o que significa uma superação da condição humana e implica num mergulho em Dionísio e este no seu adorador: “O homem simples mortal, [...] “ánthropos”, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade [...]” (BRANDÃO, 2007, p. 11). É nesta comunhão de imortalidade/mortalidade que está a principal comunicação estabelecida por Dionísio entre os seres humanos e os deuses. Trata-se de uma comunicação entre a esfera do mortal com a esfera do divino, do imortal. Conforme assinala o antropólogo Jean-Marie Gibbal, Dionísio, deus da videira, do êxtase, da embriaguês, da alegria e da comunhão fusional, permitia a aproximação/comunicação entre deuses e homens e um conhecimento do divino pela participação. Essa fusão e conhecimento/comunicação aconteciam porque, durante o transe “báquico” (êxtase e entusiasmo), o possuído se identifica com a personalidade mítica do deus (GIBBAL apud FÉLIX; GOETTEMS, 1989). Mas, acredita-se que o movimento contrário também acontece; não sei se seria um conhecimento pela participação, mas sim, um prazer na ação, pois tanto Gibbal quanto Torrano, Brandão e Rocha sublinham a preferência de Dionísio pelos prazeres mortais: a festa, o sexo, a comida e o carnaval. Segundo Jaa Torrano, estudioso da Língua e Literatura Grega (USP) Dionísio sempre esteve situado nesta zona de “transmutação da forma sensível”, faz parte de sua natureza, pois se trata de um deus que nasceu duas vezes e teve sua gestação, tanto no ventre da mãe mortal 9 Para saber mais, ler: O Discurso Político no Édipo-Rei de Sófocles, de Maria Christina de Caldas Rocha In Cultura Grega Clássica. 95 [Sêmele: (segundo nascimento)] como na coxa de seu pai imortal (Zeus). Para o autor, nos rituais dionisíacos, a imagem sensível da dança “báquica” é a forma fundante e fundada do deus como unidade do ser divino e do ser humano (TORRANO apud FÉLIX; GOETTEMS, 1989). Segundo Lígia Militz da Costa e Maria Luiza Ritzel Remédios, Dionísio, nos seus rituais, é deus, como objeto de sacrifício é homem, sujeito do sacrifício (1988) e, neste ato de comunhão e comunicação entre deuses e mortais possibilitado por ele, está também o princípio do carnaval. No ritual dionisíaco, “[...] o homem se sente como deus ao rejeitar qualquer barreira e inverter os valores tradicionais” (PAVIS, 2005, p.22). É certo que entre os Orixás, não é somente Exu que possui este tipo de comunicação com o ser humano fazendo com que este participe da esfera do divino (e vice-versa), porém, é Exu quem incorpora os prazeres tão caros a Dionísio. Tanto quanto Dionísio é o deus da ritualidade festiva e do transe, Exu é o Orixá inebrioso da festa. Dionísio e Exu são vinho e cachaça em ritualidades festivas. Evoé10 e Laroiê11, saudações de evocações poderosas dentro das mitologias das quais fazem parte, deuses/orixás da fertilidade e da procriação, ambos possuem o falo como ícone de seu poder e personificação. Deuses/orixás/divindades próximas, semelhantes aos homens, em alguns de seus rituais pedem o sacrifício animal, na maioria das vezes, de um bode, figura na qual ambos possuem muitas representações no imaginário popular que punge a realidade. Tanto quanto Dionísio, Exu é o “deus” da ambiguidade, ele pode ser vingativo, apaziguador, sedutor, sensual, sexual, festivo e guerreiro, sombrio e solar, extremamente sério, mas também brincalhão, irônico e mentiroso. Como Orixá festivo, pode-se, sem adentrar profundamente às questões das conexões entre Dionísio e Exu, o que mereceria um estudo à parte, perceber que o Exu possui, até mesmo por extensão da festa, relações estreitas com o carnaval e, através dos domínios carnavalescos, uma conectividade ativa e dinâmica com a inversão da ordem e do poder. Isto o colocaria em conexão direta com o Bufão, tanto quanto com Dionísio, e esta conexão corre pelos lençóis subterrâneos que interessam à presente pesquisa. Nos ritos iniciais das festas de Candomblé, na ordem das oferendas, Exu é o primeiro. Como também, na ordem dos cantos de saudação aos orixás, a música do Exu é a primeira a ser tocada. Nos rituais festivos dos outros orixás, no candomblé Nagô, o Exu dificilmente participa, ou melhor, é incorporado. Porém, no terreiro, ele tem a sua representação, o seu 10 11 Saudação a Baco – deus da mitologia Romana, correspondente a Dionísio na mitologia grega. Saudação ao Orixá Exu. 96 “altar” e todos os filhos de Santo devem saudar o tambor e fazer reverência a ele, isto porque Exu é o orixá responsável pela comunicação entre os deuses e os homens, tal qual Dionísio, na mitologia grega. Exu é o “deus” que abre e fecha os caminhos do homem e as ruas, encruzilhadas e cemitérios fazem parte de seus domínios12. Como dito anteriormente, as relações entre Dionísio, Sátiro e Exu Orixá e Exu dos terreiros é muito semelhante. Os Sátiros que faziam parte do ditirambo eram os “herdeiros” diretos e, ao mesmo tempo, representantes de Dionísio, eram seres travestidos com o mito. Assim, os Exus que “descem” nos terreiros são os representantes de Exu, seres travestidos com o orixá/mito; por conseguinte, tanto os sátiros do ditirambo quanto os Exus dos terreiros possuem a conexão intensa com a tríade de Huizinga jogo-festa-ritual e muitos ainda trazem elementos imagéticos (quando representados em imagens desenhadas ou em esculturas) em imaginação do mundo animal, carnavalesco e festivo. É importante dizer que não se trata de uma correspondência entre Dionísio e Exu. O que aconteceu é que, para compreender melhor o mundo de Dionísio (representações, incorporações, mito e as heranças em um DNA imaginal), adentrei em uma experiência mais próxima da minha vivência - um ritual vivaz que continua a se desenvolver. Certamente que o universo do Candomblé e do Exu são estudos à parte e as considerações levantadas aqui são bastante resumidas, embora isso não queira dizer que sejam superficiais. Aqui estão expostas apenas as conexões mais rápidas de se estabelecer, mas pode-se perceber que há outras extensas e penetrantes, as quais fazem parte de uma imensa rede conectiva que se alastra em muitas direções. Como dito anteriormente, este é um modo de mostrar um vislumbre de uma das ramificações do imenso rizoma formador desta pesquisa, o qual se conecta através de dados subjetivos e de um sistema de imaginação. No momento, por tudo o que já foi comentado sobre o deslocamento do foco central desta pesquisa, deixa-se aberturas para outros novos e intensos estudos e relatam-se apenas as conexões primordiais, aquelas que, em uma primeira instância, comoveram esta pesquisatriz, como dado e imaginação. Foi muito importante para a compreensão das ambiguidades que fazem parte de Dionísio e que descendem ao Bufão através dos Sátiros, a observação e a frequência nos terreiros de Candomblé e Umbanda, nas festas dos Orixás, inclusive as de Exu. Através da 12 Para saber mais sobre Candomblé, ler: Irê Ayó. Mitos Afro-brasileiros, de Carlos Petrovich e Vanda Machado; Òrun Àiyé. O encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yoruba entre o céu e a terra, de José Beniste; Sincretismo Religioso & Ritos Sacrificiais. Influências das religiões afro no catolicismo popular brasileiro, de José Carlos Pereira. 97 leitura de estudos sobre o universo dionisíaco, bufonesco e das religiões afro-brasileiras e, principalmente, da prática do Bufão através da técnica criada, da frequência nestes rituais e visitas a médiuns, filhos e pais de santo, bem como a visita a “curandeiros” ou xamãs, é que foi possível perceber, mais profundamente e sensivelmente, as transformações do corpo a partir das relações com os elementos da natureza e com a atmosfera espiritual e transcendente do ser humano. O conjunto informativo da prática, da teoria e da frequência nos rituais de candomblé e umbanda propiciou a percepção sensorial e teórica das conectividades entre Dionísio e Exu, seus respectivos rituais e relações com aqueles que os incorporam, um de maneira imaginária e outro de modo vivencial – experiências que, nesta pesquisatriz, mantêm um diálogo recíproco e dinâmico. O Bufão conecta-se ao Exu (sob o olhar desta pesquisatriz) através dos mesmos sistemas que o ligam a Dionísio – são conectividades que extrapolam o espaço/tempo, as relações culturais e as barreiras territoriais. Além disso, são conexões, incorporações realizadas através de um DNA imaginal, onde a conectividade incorporativa acontece de maneira singular e plural, ele é o mito incorporado e faz parte do mito que incorpora – o indivíduo é ele mesmo, é ele no mito e é ele com o mito (ambiguidade inerente, também, à máscara). O mergulho nos universos de ambos os mitos, deus e orixá, serviu não só para a compreensão dos universos conectados, mas para melhorar os encaminhamentos da prática da técnica criada, pois a experiência de vivenciar, presenciar e compreender sensivelmente as transformações do corpo quando este entra em contato com a esfera espiritual, energética ou elementar, agiu de forma adicional e complementar. Devo dizer, ainda, que a maioria das considerações desenvolvidas até agora dizem respeito à questão “espiritual”, no sentido ritualístico e xamânico e se debruça sobre o lado mítico e místico da máscara bufonesca, zanesca e outras máscaras dell’arte. Mas, ainda assim, buscando a compreensão através da dinâmica entre a tríade de Huizinga, DNA imaginal e sistema de imaginação entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. Com isso, convém dizer que não se está fazendo afirmação de um caminho desenvolvido pelo ator profissional, aqui se está buscando entender como um imaginário, insistentemente, punge a realidade objetiva e vai-se perpetuando, mesmo se modificado, ou melhor, renovado. Esta insistência rizomática das atitudes lúdicas em pungir a realidade fez com que alguns de seus tubérculos fossem para o ritual, outros para os jogos, outros para um caminho mercadológico. O caminho das máscaras que povoavam os rituais de fertilidade ou bacanais pela Antiguidade e Idade Média e que, posteriormente, continuaram a viver nas montanhas, nas festas e danças 98 macabras13, nos carnavais, também se desdobraram em um caminho “mercadológico”. Segundo Testaverde (2003), o caminho das máscaras dell’arte é nebuloso e se subdivide em profissional e ritualístico. Em alguns momentos, o profissional e o ritualístico chegam a se cruzar, em outros, figuram tão longe um do outro que parecem compreender caminhos totalmente diversos. Mas esta dificuldade em descobrir como estes caminhos se encontram e codividem um mesmo contexto, faz parte do grande fascínio da commedia dell’arte. Pode-se tentar entender como uma estratégia da atitude lúdica, na qual o DNA imaginal insistentemente punge a realidade com uma necessidade de perpetuar-se e tornar-se representante deste imaginário. Num primeiro momento como imaginário e depois se fortalecendo e tornando-se mito, como artigo mercadológico, mais uma vez citando Testaverde, o Zanni arquétipo mostrou-se um grande empresário de si mesmo. Com o tempo, o ator começou a profissionalizar-se e tornou-se comico de profissão, posteriormente, não permaneceu somente como profissional da cena, mas, também, como profissionalizante - as companhias se formaram dando continuidade às máscaras, ensinando o ofício cômico e as máscaras dell’arte. Considero a hipótese de que a máscara dell’arte inseriu-se no mercado e este se aproveitou desta manifestação da atitude lúdica, a qual agradava e divertia e criou as suas estratégias de desenvolvimento e sobrevivência (modo como tantos outros mercados e manifestações da atitude lúdica se relacionam/funcionam). A organização pelo viés mercadológico não renuncia ao lado mítico e místico da máscara, mas também não o coloca à frente de tudo. Certamente que, depois que subiram aos palcos, as máscaras não eram (e nem são) mais as mesmas. Porém, o que se está tentando entender é como esta máscara feita por um comico profissional pode trazer consigo uma forte emanação energética festiva-ritualística através de uma compreensão de suas conexões com este universo imaterial e sensorial e da busca desta através de circuitos musculares. Para este estudo, a profissionalização do ator faz parte do caminho realizado pela máscara e pelo DNA imaginal para perpetuar-se e será desenvolvida na medida em que avançarmos no discurso. Dadas as observações e explicações realizadas, retorno aos encaminhamentos da técnica desenvolvida para a Máscara do Bufão. 13 Nas iconografias estudadas e pesquisas sobre commedia dell’arte, as danças macabras não possuem nomes diferenciais, elas são intituladas “danze macabre”. Algumas dessas iconografias e seus respectivos títulos podem ser vistos em: La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; Zanni Mercenario della Piazza Europe, de Anna Maria Testaverde; La Commedia dell’Arte au XVI siècle, en 1601... et en 1981. Le Recueil Fossard. Compositions de Rhétorique , de Pierre-Louis Duchartre. 99 A atenção ao trabalho sensível de descoberta do Bufão começa durante o aquecimento, o qual é direcionado para a autopercepção e produção de imagens internas a partir desta percepção. O alongamento não possui nenhum exercício diferente daqueles que se fazem habitualmente para alongar a musculatura: uma série de movimentos cujo objetivo é preparar o corpo, deixando-o pronto para exercícios mais dinâmicos ou que requeiram maior desenvoltura e empenho da musculatura. O que constitui a diferença significativa deste momento da prática é o modo como este alongamento é realizado. A necessidade de concentração é indiscutível, aproveitando o momento para trazer a percepção para o corpo, especificamente para os ossos e para a musculatura. Cada movimento deve conter uma compreensão imagética da sua organização enquanto esqueleto e enquanto musculatura, sentindo a união do osso com o músculo, cartilagens, fluídos, o esforço empenhado e o movimento. Porém, neste momento, a percepção ainda é técnica, busca a execução correta dos movimentos, pois é importante que o corpo seja bem preparado. Em seguida, passa-se à execução de movimentos mais livres, isto é, sem a atenção específica ao alongamento, mas aos ossos, cartilagens e fibras musculares, percebendo como se contraem e distendem-se na realização do movimento. Como se o ator adentrasse no universo/imagem de sua musculatura e estrutura óssea - neste momento, o corpo deve ser explorado, buscando sempre novas constatações de dinâmicas intramusculares. A partir daí, o corpo atinge uma dinâmica corporal de movimentos sem racionalizar, o corpo comove-se com a percepção e a imagem desta musculatura e estrutura em movimento. Tendo como base a movimentação da “estrutura” corporal, inicia-se a exploração e o adentrar das imagens/dinâmicas dos quatro elementos: terra, água, ar e fogo - trazendo as imagens/força/energia destes para habitar a musculatura e estrutura do corpo do pesquisator. Essa etapa é muito importante, pois como os bufões têm forte elo com a ritualidade, esta interação e integração com os quatro elementos são de extrema importância para, posteriormente, após passar por todas as outras etapas, retornar a esta força ritualística elementar e xamânica. Após a etapa do alongamento e a movimentação da “estrutura” corporal, exploração e “habitação” das imagens/dinâmicas da terra, água, ar e fogo, é imprescindível que o pesquisator traga para seu corpo os quatro elementos, com todas as suas dinâmicas, força, sons e densidades. Após passar pelos quatro elementos, sempre partindo da estrutura corporal e pensando fisicamente, a partir da dinâmica recíproca dos fatores, começa-se a exploração conjunta das imagens dos sistemas que constituem o corpo. Num primeiro momento, são explorados somente os sistemas respiratório e sanguíneo. O pesquisator explora as imagens 100 de um corpo muscular cujas fibras são permeadas por tais sistemas e eles, por si só, já possuem uma movimentação própria. Este processo de imagem, percepção e ação acontece de maneira dinâmica e recíproca, em que tais fatores se alimentam e se desenvolvem comovendo e transformando o corpo de modo sensível, físico e energético. Após a exploração sensível da musculatura com os sistemas respiratório e sanguíneo, passa-se à adição dos sistemas digestivo e intestinal. Como o corpo já passou pela dinâmica intramuscular anterior, agora a percepção volta-se para os volumes internos do corpo e metabolismo. É a percepção/imagem deste conjunto de órgãos, tecidos, “massas” e “fluídos” em movimento, que, nesta etapa, comovem o corpo. A percepção destes volumes internos em movimento adiciona uma nova dinâmica ao corpo e, também nesta fase, este continua a transformar-se. O que me levou para este caminho de observação e percepção sensível destes movimentos e volumes internos foi uma tentativa de entender o “baixo ventre”, tão citado por Backthin como valor pertencente à “filosofia carnavalesca”, através de uma compreensão física, de uma percepção dilatada desta parte do corpo e buscando a imagem e ação desta sobre o corpo, como impulso de transformação deste, bem como, da impulsão da ação deste no espaço e, posteriormente, em relação com o outro. A imagem e percepção de minhas vísceras - dos sistemas sanguíneo, respiratório, nervoso e todo o metabolismo digestivo - forneceram um bom material para o início do processo. Mas é necessário dizer que não basta somente a imagem destes volumes internos e sistemas como se vê nos livros, ou seja, como fotografias, sem movimentos, é preciso que a imaginação trabalhe a partir das sensações, percepções e da imagem destes sistemas em pleno funcionamento – também aqui o corpo é transformado e a musculatura começa descobrir a constituição dos circuitos. Passando por todas estas dinâmicas de constituição do corpo, vamos à etapa de incorporação de mais dinâmicas, buscando outros apoios imagéticos, físicos e energéticos para a transformação do corpo. Passa-se a uma metamorfose do corpo através de imagens de animais, dos mais belos e delicados aos mais grosseiros, asquerosos e nojentos. É preciso experenciar uma gama de imagens e transformações do corpo de modo que este seja inundado pelo mundo animal e seus instintos – o pesquisator trabalha transformando o seu corpo em vários animais: mamífero, ave, anfíbio, roedor, réptil, inseto e verme – os animais são escolhidos no ato do laboratório, sem pré-concepção. É importante dizer que, nesta pesquisa, não se tem o intuito de fazer a mímesis perfeita dos animais, o que interessa é a capacidade do pesquisator de se deixar habitar pelo instinto, energia, corpo e voz do animal. Para tanto, nos 101 laboratórios, se explora todas as situações de sobrevivência como a fome, a caça, a proliferação, o medo, ele como predador, ele como presa, passando pelas experiências físicas instintivas sem se preocupar com a mímesis, mas sim com a veracidade das ações, energias e situações. Também é muito importante que o pesquisator tenha consciência do circuito muscular/energético que se forma a cada transformação do seu corpo em um novo animal. Posterior à etapa dos circuitos corporais individuais dos animais, começa-se, então, a sobreposição de circuitos, buscando realizar a combinação de partes diversas dos circuitos dos animais e das dinâmicas dos sistemas. Este processo é demorado, pois é o próprio corpo que, num processo que busca não racionalizar, realiza várias combinações até que, através das inúmeras tentativas e encontros, compõe um único corpo e um único grande circuito, feito da conjunção e das transformações de pontos de tensões para aquele eleito. Esta descoberta-composição se dá de maneira crescente. Inicia-se com a sobreposição de apenas dois circuitos animais e a cada dia se adiciona outro, até que todos estejam no corpo, é a dinâmica de combinações, alternâncias e sobreposições, através da repetição casual das mesmas combinações de circuitos, que compõem, assim, o corpo do Bufão. Quando este corpo já está firmemente transformado, passa-se outra vez pelas dinâmicas dos elementos e sistemas, para sentir, com este novo corpo, as sensações dos sistemas em funcionamento, os fluídos e movimentos das vísceras e órgãos/hormônios/instintos sexuais e as dinâmicas do fogo, do ar, da água e da terra. O resultado do reencontro com este novo corpo latente é de uma intensidade grotesca e vital, infinitamente maior daquela encontrada antes, pois vem acrescido dos instintos, da dinâmica de movimentação dos sistemas que permitem a nutrição, digestão, deglutição e sobrevivência do ser humano e está somada à ligação com o mundo animal. Com tudo isso, a conexão com os quatro elementos ganha a força e dimensão destes. Com este corpo e energia, passa-se ao trabalho com o Carnaval, a festa e o ritual. Fazendo com que o corpo grotesco seja portador das partículas grotescas-festivas-ritualísticas de um Carnaval além tempo e espaço atuais. É através da vivência carnavalesca que os “princípios moral e vital” intensificam-se e disseminam-se, não só no corpo e voz do bufão, mas também através destes, pelo espaço, como a ancestralidade festiva. Após a construção corpórea energética do bufão, começa-se, então, a intensificação das deformidades físicas que surgiram durante a descoberta. Através do Méthode des transferts, adiciona-se ao corpo do pesquisator alguns apoios concretos para intensificar os aspectos grotescos que já foram adquiridos no processo de metamorfose anterior. Trata-se da adição de “aparelhos cênicos” que possam auxiliar no travestimento, como corcundas, 102 barrigas, falos, patas, peles, cascas de árvore, peitos, maquiagens, trapos e roupas. Tudo deve ter sido sugerido pelo próprio corpo metamorfoseado, nada pode ser colocado por simples função estética, para que não se torne uma espécie de prótese, um acessório acoplado ao corpo do ator e não uma parte do corpo bufonesco do ator. O corpo bufonesco, apesar de ter acessórios como falos, seios, intestinos, elementos animais e vegetais, deve ter uma unidade, isto é, tudo forma um só conjunto, nada pode parecer um objeto colocado na roupa. O pesquisator deve saber movimentar-se como se tudo fosse seu corpo e manipular qualquer acessório como parte dele, como faz com seus braços, pernas, dedos, cabeça, seios, etc. Após a transformação, o resultado obtido com esta técnica são bufões que se assemelham aos personagens pintados por Hieronymus Bosh, uma mescla entre humano, animal e vegetal. A indumentária completa do bufão cobre quase todo o corpo do pesquisator, é composta de acessórios, vestimentas e maquiagem que jamais exploram a sensualidade, mas o obsceno, a sexualidade, o instinto, a sátira e o farsesco. Com sua aparência grotesca, o bufão incita no público instintos contraditórios, tanto sexuais, por invadir o espaço com sua própria energia sexual, quanto de piedade, temor, medo, alegria e asco. Deve-se sublinhar que todo o trabalho de “metamorfose” do corpo traz consigo a voz, pois há um encaminhamento conjunto, de maneira uníssona. Da mesma forma que a percepção e a movimentação dos afetos internos (imagens, sensações e dinâmicas destas) transformam o externo (corpo), a voz também sofre alteração, sendo ela também um reflexo e resultado da ação da comoção destes fatores. O impulso trazido pelo Fundo Poético Comum concede um grande poder à palavra, pois esta vem carregada de uma potência concreta. A palavra não é somente a ação de falar, mas uma reação e extensão de toda a movimentação e comoção interna. A palavra, tal qual o corpo, emerge da ação da dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, portando consigo ondas propagadoras dessa dinâmica que, carregada de sentimentos afetados, causa assim uma afetação ao chegar ao ouvinte/espectador. Depois da descoberta e da prática para uma “fixação” na musculatura das dinâmicas do Bufão, é iniciado o trabalho com o manejo das linguagens que se fundem a esta Máscara paródia, derrisão, crueldade, injúria, loucura, desmedida, escárnio, simulacro, sátira, gratuidade, deboche, chiste, carnaval, banquete, escatologia, sexualidade e a relação com o poder, tudo isto através do jogo cômico e do riso. Sérge Martin afirma que, para o desenvolvimento do manuseio de tais linguagens, é preciso considerar como ponto de partida 103 uma complexa rede de conexões que se baseiam na ideia de que o jogo do bufão traz uma equivalência entre Jogo e Sagrado. Para melhor compreensão do universo bufonesco, Martin criou uma série de imagens gráficas, em que mostra os diversos vetores que dinamizam tal universo, partindo da premissa de que existem duas instâncias de primeiro grau em sua complexidade: o Jogo e o Sagrado14. A partir do Jogo e do Sagrado, Martin desenvolve reflexões sobre tal complexidade de conexões. Mostrando que estas duas instâncias superiores desenvolvem-se como se fossem opostas e equivalentes. Como se caminhassem de modo unificado e, ao mesmo tempo, independente, onde cada qual tem seu conjunto de valores e fatores, que convive como “oposto complementar de equivalência”. Também, a partir do Jogo e do Sagrado, outras linguagens se desdobram: “O Jogo se divide em duas capacidades: capacidade de imitação e capacidade de gratuidade - numa relação horizontal. Com o Sagrado é a mesma coisa: capacidade de violência e capacidade de seriedade – numa relação vertical, em direção ao céu ou às profundezas da terra”15. Estes vetores conectam- se e desdobram- se em outros vetores - Jogo: Imitação; Gratuidade; Paródia e Metáfora; Sagrado: Violência; Seriedade (a Seriedade pode ser compreendida como Razão); Desmedida e Sabedoria. Cada fator trabalha com sua oposição horizontal e em espelho à correspondência vertical de sua própria natureza. Para melhor compreensão, ver imagens gráficas em ANEXO A16. Desta experiência solitária de construção da técnica de descoberta do bufão e de desenvolvimento das dinâmicas sensíveis e das linguagens deste “universo”, surgiram algumas cenas, das quais se falará mais adiante, pois não se concretizaram em um espetáculo, 14 Vale grifar que estas duas instâncias instituídas por Martin estão intimamente ligadas à tríade de Huizinga. Também vale lembrar que o Jogo, no caso do Bufão, faz parte da realidade em que ele vive, não da realidade como compartilhamento social e o Sagrado é, na verdade, o ritualístico, o Divino em Dionísio, não é o sagrado em relação a igreja. Para esta pesquisatriz, o Sagrado chama um contrário, que é o Profano, colocando-se assim num âmbito de religião, enquanto que o Divino, não trazendo uma oposição direta, pode ser carregado de uma ligação com o ritual ou com a religiosidade, não com uma religião. Mas isto é uma questão de nomenclatura, não interfere no funcionamento do mecanismo imagético criado por Martin. 15 Texto contido nas imagens gráficas do ANEXO A - tradução da autora (MARTIN; PEZIN, 2003, p. 59). 16 As imagens gráficas criadas por Martin, as quais estão contidas no “ANEXO A” desta tese, podem ser compreendidas em suas dinâmicas, para tanto, pode-se utilizar a imaginação e entender o Bufão como um ponto de encontro de vários vértices de linguagens, sendo que estas correm em sua direção estabelecendo uma dinâmica de oposição, espelho e correspondência e equivalência. Ainda, pode-se imaginar um Bufão que equilibra na sua cabeça uma enorme pirâmide, de cabeça para baixo. Para fazer a pirâmide em 3D é necessário transformar a imagem do mapa (ANEXO A), fazendo as dobraduras necessárias para transformá-la em uma pirâmide – mas os fatores devem permanecer no interior da pirâmide, não no exterior, porque senão não acontece o jogo de espelhos entre os vetores. Fazendo tais dobras e sempre levando em consideração as movimentações de intercâmbio das forças internas, é possível descobrir um pouco da complexidade da dinâmica que envolve as linguagens do universo bufonesco. 104 porque a necessidade de uma nova tentativa de apropriação definitiva desta técnica apareceu de forma desafiadora e intensa – a de aplicá-la a outros atores. 3. 2. O BUFÃO: UM ESPETÁCULO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS “A eterna questão sempre sem resposta: Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? Eu respondo: Ao que me diz respeito, eu sou eu mesmo, venho de minha casa e retornarei a ela!” 17 Les bouffons – Texto e Direção de Sérge Martin (1983). A partir da vontade de enfrentar o desafio que irrompeu da curiosidade de saber como esta técnica agiria quando empregada em outrem, iniciou-se uma nova experiência e a técnica foi aplicada num grupo de nove atores18. Os laboratórios com o grupo de atores seguiram os mesmos encaminhamentos da construção da técnica relatada anteriormente. Levando em conta que estava trabalhando com um grupo e não mais com uma experiência solitária e por se tratar de um universo muito livre, no qual os instintos afloram – o que é censurado no convívio social – foi necessário que o grupo tivesse uma espécie de confiança cega, um pacto e uma licença entre todos, para poder se livrar das castrações e pudores cotidianos. No grupo, todos se conheciam e a maioria tinha trabalhado na minha pesquisa de mestrado (BRONDANI, 2006) e nos espetáculos que faziam parte desta, sendo assim, as pessoas já tinham entrosamento e confiança entre si e o pacto foi facilmente estabelecido, o que facilitou no encaminhamento do processo. A prática do acesso à máscara do Bufão com um grupo requer um desnudamento maior, um despojamento das fraquezas, temores, vaidades e outras barreiras psicológicas, geralmente relacionadas ao baixo ventre, à fome, em todos os seus expoentes. Livrar-se destas barreiras em laboratórios individuais, muitas vezes, é mais fácil que com outros agentes. Quando se trabalha o bufão em grupo, significa não só ultrapassar os próprios limites de castrações e barreiras de ação sobre si mesmo, mas também ultrapassar as concessões sociais 17 Tradução da autora : A l’eternele question toujours demeurée sans réponse: “Qui sommes-nous? D’où venonsnous? Où Allons-nous?” Je reponds: “En ce qui me concerne personnnellement, je suis moi, je viens de chez moi et j’y retourne! In (MARTIN, 2003, p.24) 18 Atores da Cia. Buffa de Teatro (Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fernando Lopes, Jorge Baia e Simone Araújo) e alunos da Escola de Teatro da UFBA que participaram do processo (Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio e Maryvonne Coutrot). 105 de contato com o outro, isto é, quebrar as barreiras de reação/proteção ao instinto do outro. É muito importante os atores trabalharem dentro de um espaço amoral19. No processo com o grupo, as etapas se tornaram mais lentas, pois as interligações entre os imaginários e imaginações de cada ator sobre si mesmo e com os outros se tornaram, ao mesmo tempo, mais complexas e muito mais Belas e, novamente, o Bufão me seduzia e me envolvia em seu universo. Ao longo dos laboratórios e vivências com este corpo deformado/transformado e em metamorfose, o pesquisator passa a gerir o turbilhão de forças e comoções que circulam em si de maneira muito consciente, como um atleta, ele está pronto para enfrentar o público num espetáculo e esta nova experiência resultou em um espetáculo: “Fato(s) do Brasil”. 3. 2. 1. Fato(s) do Brasil – um espetáculo satírico “Fato(s) do Brasil” foi o espetáculo resultante da aplicação da técnica de Bufão construída em um grupo. Para a criação do espetáculo, após o trabalho desenvolvido com a técnica, jogos e improvisações serviam como base para a construção das cenas, nas quais texto e ação foram inventados e construídos em conjunto. No palco, um coro de sete bufões20 surge em meio a gargalhadas e, valendo-se de sua arte, narram e vivem a saga do povo brasileiro, apresentando uma versão resumida desta história plena de castrações e orgias. A história do “descobrimento” do Brasil e a invasão deste pelos povos ditos “civilizados” serviram de enredo para os Bufões mostrarem a sua versão e visão desta “fábula”, explorando nuances e graduações do jogo cômico através do grotesco, do escárnio, do deboche, do sarcasmo, da ironia, da sátira, da burla, do chiste, do jogo de frases com duplo sentido, da carnavalização, do banquete, da escatologia e da sexualidade, originando um discurso insultuoso que subverte a própria cena. A dramaturgia, tanto do espetáculo quanto do texto, apresenta em seu conteúdo uma mistura de agressividade satírica, liberdade imaginativa, amoralidade, absurdo e licenciosidade. 19 É necessário sublinhar que o bufão age num contexto amoral, ou seja, moralmente neutro, que se mantém exterior ao julgamento ou qualificação moral, o que é diferente do caráter consciente daquele que é imoral. 20 No espetáculo, somente sete atores trabalharam: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot. 106 . Foto: Felipe Botelho Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Estabelecimento do Im/pacto com o público. Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot. Data: setembro/2006 Em meio a orgias e escatologias, os bufões “discutem” os valores éticos e morais daqueles que chegaram ao Brasil para colonizar, “explorar... deflorar... estuprar” - citando a fala dos próprios bufões no momento em que narram e vivem a chegada das naus portuguesas em território brasileiro. Logo no início do espetáculo, os bufões estabelecem um pacto com o público. No primeiro contato entre estes, o coro, de costas para o público, emite sons e grunhidos não humanos, depois, virando-se repentinamente gargalham de uma maneira desinibida, estabelecendo assim, num primeiro momento, um impacto, então, um pacto com o público, que ao ver tais figuras disformes e grotescas gargalhando, também se entregam ao riso. Este riso coletivo e sem motivo aparente colocava o público em uma predisposição para a proposta estética do espetáculo - totalmente fantasiosa – e criava a atmosfera necessária para este se desenvolver. A partir deste primeiro impacto, os bufões estabeleciam seus parâmetros e o público começava a compreender e compartilhar destes referenciais. Deste modo, os bufões podiam debochar dos “vícios sociais” sabendo que a platéia condizia com seus impulsos e também se permitia a fantasiar. 107 Foto: Léo Azevedo. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Os portugueses avistam terra firme. Elenco: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot. Data: setembro/2006. Em muitos momentos, os bufões utilizavam mecanismos conhecidos do jogo cômico e da sátira: o “transporte de termos da área semântica físico-corporal para designar atividades intelectuais”21; a “inversão tradicional dos termos”22 e o “deslocamento da palavra” – mecanismo este que, segundo Cleise Mendes, consiste na utilização da palavra, não em seu sentido metafórico [ou “moral” p/ Bergson(1980)], mas sim, em seu sentido literal ou físico – para Mendes o deslocamento da palavra passa a representar um espaço no qual é representada como “coisa concreta”. Essa característica constitui o contraponto lúdico da sátira, o que é muito importante, pois a ludicidade impede que a sátira se reduza a puro xingamento ou lição moral, porque trabalha com um imaginário fantasioso e relativo23. 21 Como, por exemplo: digerir uma ideia, ruminar um pensamento, mastigar um discurso, engolir a palavra, mascar a resposta, etc. 22 Como, por exemplo: usando um remédio que mata, um veneno que cura, trabalhar para repousar, descansar trabalhando, etc. 23 Para outras informações, ler “A Gargalhada de Ulysses. Um Estudo da Catarse na Comédia”, de Cleise Mendes, Doutora, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. 108 Foto 3: Felipe Botelho. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Dom Pedro I Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu e Maryvonne Coutrot. Data: setembro/2006. Todas estas convenções, para Mendes, acabam por estabelecer uma “grande convenção satírica”, a qual abarca um repertório de temas, motivos e procedimentos que expõem ao ridículo certos comportamentos para atacar personagens da vida pública e privada. Nesta grande convenção, todo o prazer vem submetido às regras do jogo cômico, do qual participam a fantasia, o exagero, o paradoxo, a incongruência e o contraste, além de que, o espectador passa a aceitar o vocabulário obsceno, os intuitos agressivos, o furor do escárnio, o deleite no baixo ventre e no grotesco e as formas de burlas e de chacotas, como elementos de uma criação artística. Em “Fato(s) do Brasil”, a utilização de tais recursos satíricos era muito recorrente24, os bufões se apoderaram de uma história conhecida por qualquer público e assim, ganhavam a cumplicidade dos espectadores rapidamente. Durante o espetáculo, os Bufões se revezavam na “incorporação” dos personagens e executavam uma ação e uma narração plena de ambiguidades e chacotas, propiciando no espectador a possibilidade do riso. 24 Pode-se citar o momento em que os bufões simulam um ato sexual em grupo e falam sobre as invasões dos franceses, espanhóis, holandeses, portugueses e a vinda dos africanos para o território brasileiro. 109 Foto 4: Léo Azevedo Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Chegada do Bispo Sardinha Atores: Andréa Rabello, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot Data: setembro/2006. Os bufões reviviam os acontecimentos delatando comportamentos que o espectador, inconsciente ou conscientemente, julga censurável no plano moral. Este ato de rir daquilo que é censurável pode ser considerado uma espécie de “vingança-social”, porém, para Mendes, a catarse cômica, em especial a do tipo satírico, não acontece somente pela explicação da “vingança-social” ou da interpretação psicológica do prazer inconsciente, ela acontece, também, pela necessidade de liberar e desbloquear - função própria da catarse. Para a catarse cômica acontecer, o espectador deve se envolver com o espetáculo e este envolvimento dependerá, segundo Mendes, em grande parte, das estratégias lúdicas da manipulação do discurso insultuoso, domínio do Bufão, por excelência. “Fato(s) do Brasil” tem um texto dramatúrgico totalmente firmado num vocabulário obsceno, agressivo e sarcástico e, na cena, as figuras dos bufões aguçavam o imaginário do espectador, o qual passava a perceber as burlas, ímpetos sexuais e críticas, num conjunto que ocasionava o deleite, o riso e o “gozo”. Numa sátira, como em “Fato(s) do Brasil”, o alvo é o “poder”, em qualquer grau que seja - utilizando o conflito crítico-social dos valores e das estruturas governamentais e institucionais como argumento e motivo do riso - o bufão é totalmente livre, ele não tem medo de deus, nem do diabo, quanto menos dos homens. Mestre irônico, o bufão arranca risos do público utilizando todos os recursos físicos e linguísticos. Como afirma Cesare Molinare (2007), ele herdou tais qualidades dos sátiros e mimos. 110 Foto 5: Felipe Botelho. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Bispo Sardinha é cercado pelos índios Canibais. Atores: Andréa Rabello, Jorge Baia, Fabiana Monçalu e Maryvonne Coutrot Data: setembro/2006. A técnica de deslocamento da palavra ou “representação indireta pelo oposto” (como denomina Freud25) é muito utilizada pelo Bufão e obriga o ouvinte a aguçar sua percepção e a manter ágil seu raciocínio, pois, para o Bufão, é interessante que o público mantenha sua atenção e energia voltadas para a sua ação. Apesar de estar presente, quando chamado para participar da ação dramática, o espectador jamais deve tentar colocar o Bufão em má situação, pois se tentar zombar dele, acabará sendo a vítima do próprio chiste – transformando-se em “desvio cômico” - como Bergson (1980) nomina este mecanismo de retorno do chiste para aquele que o lançou. Foto: Léo Azevedo Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Dom Pedro II narra as mudanças que aconteceram no seu mandato. Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio e Maryvonne Coutrot. Data: setembro/2006. 25 Para saber mais sobre o chiste e o cômico em Freud, ler: Os motivos dos chistes: os chistes como processo social. In Obras Completas: Os chistes e sua relação com o inconsciente. 111 O bufão é mestre no jogo da inversão do poder e o espectador não tem a percepção da própria situação, de seu discurso e de sua vulnerabilidade, ele mesmo fornece o material para o desvio da zombaria. Quando alguém tenta zombar do bufão, a ironia, arrogância e pedantismo retornam com mais força ainda para essa pessoa. Quando um locutor faz um chiste, cria-se uma expectativa em direção ao alvo e quando não o alcança, porque sofre o desvio cômico, o bufão consegue inverter o sentido do chiste, a expectativa do público retorna ao primeiro locutor com força zombeteira redobrada. Em Mistero Buffo, Dario Fo conta uma história cujo personagem é o Papa Bonifácio III. Uma vez ele mandou pregar, pela língua, na porta da igreja, sete bufões, como símbolo e lembrança para os demais, do que pode acontecer com quem caçoa da “santa madre igreja” (FO, 1997). Mas nem mesmo esta fábula foi capaz de calar os bufões ao longo da história. O bufão sempre teve e tem a “língua solta”, ele utiliza todas as “vertentes” do cômico e do riso, mas a sátira faz parte das mais elaboradas fontes de expressão desta Máscara. Foto 7: Felipe Botelho. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: encerramento com o público Atores: Andréa Rabello, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu e Flávia Gaudêncio. Data: setembro/2006. A história do Brasil, seus momentos e personagens históricos, serviram como base de compartilhamento para as anedotas, ironias e deboches. [...] é muito revelador constatar que: desde o início, a tentação cômica está presente; percebe-se que basta pouquíssima coisa para que uma face nobre vire ridícula; a 112 máscara da dignidade de cada homem é extremamente fina e; atrás, sempre perceptível ao olhar especialista, transparece a face grotesca. Ninguém escapa disso: cada um de nós tem seu aspecto ridículo e todo homem sério tem seu revés cômico (MINOIS, 2000, p. 271). 26 Mas o pacto entre os bufões e o público começava sutilmente, no próprio título da peça. A palavra “fato” tem muitos significados27, ela pode ser compreendida como: “roupa”, “vísceras de gado”, “pequeno rebanho, especialmente de cabras”, “coisa ou ação feita”, “acontecimento, sucesso”, “aquilo de que se trata” ou “o que é real” na situação – e todas estas possibilidades de compreensão se encaixavam na proposta satírica da história do Brasil contada pelos Bufões Foto 8: Felipe Botelho Espetáculo “Fato(s) do Brasil. Dir. Joice Aglae Cena: encerramento com o público Atores: Érico José Souza de Oliveira e Fabiana Monçalu Data: setembro/2006. No espetáculo, os acontecimentos enfocados davam uma noção dos períodos evolutivos da história brasileira, dando saltos cronológicos e chegando até a atualidade (considerando a data da estréia e permanência do espetáculo – setembro e outubro 2006). O propósito do espetáculo era de utilizar-se de uma história comum a todos para fazer valer os princípios da comédia, do carnaval, do banquete, do riso, da bufonaria e, principalmente, validar a técnica criada. Pela assiduidade do público e reações durante o espetáculo, parece 26 Tradução da autora : [...] il est très révélateur de constater que, dès le départ, la tentation comique est présente; on s’aperçoit qu’il suffit de très peu de chose pour faire basculer un visage noble dans le ridicule, que le masque de dignité de chaque homme est d’une extrême minceur et que derrière, toujours perceptible à l’œil exercé, transparaît le visage grotesque. Personne n’y échappe: chacun de nous a son aspect ridicule, et tout homme sérieux a un envers comique. 27 Significados extraídos do “Moderno Dicionário da Língua Portuguesa – Michaelis, 109ª Edição” e compreensões populares do termo. 113 que “Fato(s) do Brasil”28, aos olhos do grupo que fazia parte do mesmo e desta pesquisatriz, cumpriu com seus objetivos, sendo um espetáculo satírico e validando uma experiência de desenvolvimento de uma técnica. 3. 2. 2. “A Prece”, “A Oração” e “Arlecchino e la Valle dell’Omo” “[...] haja feiticeiras em nosso sangue ou não, o encanto permanece” Monique Augras (2009, p.14) O bufão faz valer o princípio do riso relativo. Se Bérgson coloca o riso como uma ação que pode intimidar e até humilhar, o bufão só o utiliza, nesses termos, se provocado. Como já mencionado, muitas vezes a ironia faz com que o comentário risível se volte contra o próprio locutor, porém, no caso do Bufão isso não acontece, pois a ironia só se volta contra o autor quando este compartilha dos mesmos valores, da moral, da índole ou atos de quem critica. O bufão não compartilha da índole humana e isso lhe dá a permissão para caçoar de todos sem ser alvo do retorno da zombaria. Reforçando sua maestria em inverter situações, se alguém tentar atingi-lo com deboches, certamente se tornará um alvo a ser destruído, um bode expiatório apedrejado por sarcasmos cuspidos que, segundo Balandier (2006), somente um Bufão, especialista do desvelamento das complexas relações sociais e cuja ação é a regulamentação dos processos da coletividade, pode ser capaz de realizar. A figura de um Bufão suscita reações orgânicas, diante de um estamos sempre em expectativa, têm-se calafrios na alma e um turbilhão de emoções percorre o corpo: “Um suspiro quando ele passa. Um arrepio se ele nos olha. Ele [o Bufão] zomba. E, geralmente, sem que a gente saiba o porquê. Ele parece ser mestre da sátira. E manuseia muito bem a ironia, conforme sinaliza a definição de bufão” (MARTIN, 2003, p.32).29 O bufão utiliza todos os tipos de riso, não é somente mestre no manuseio da ironia, mas também grande sábio em utilizar o terror e o humor pueril. O Bufão, com seus contrastes de comoção de afetos, chega até a despertar sentimentos de piedade, para logo após despertar o horror. O Bufão sabe envolver o público e, se necessário for, faz uso também do humor pueril (do absurdo, de jogos de palavras inocentes – como faziam os Bobos da Corte), como 28 Ver fragmentos do texto em APÊNDICE A e o clipe do espetáculo no DVD que acompanha a Tese. MENU: 1. BUFÃO: 1.1 - BUFÕES: FATO(S) DO BRASIL – Clipe. 29 Tradução da autora : «Un souffle passe dês qu’il bouge. Um frisson s’il nous regarde. Il raille. Et bien souvent sans qu’on puisse déterminer comment. Il semble être mâitre de la satire. Mais il manie tout aussi bien l’ironie comme le dit la definition de bouffon». 114 contraponto da ironia e de sua imagem horrenda. Dessa forma, ele passeia pelas afetividades do espectador, o Bufão é capaz de apedrejar e acariciar o seu alvo em uma só fala. Outro contraponto que faz parte do Bufão é o do divino, do sacro e do profano, advindos do ditirambo e acentuados no drama satírico, como falado anteriormente, a tríade jogo-festa-ritual, no Bufão, é intensa e sem fronteiras. Esta zona sem limites foi muito explorada na experiência solo, intitulada “A Oração”. Esta experiência foi apresentada para um seleto grupo, no segundo semestre de 200630. Posteriormente, em 2008 e 2009 este esquete foi apresentado em ensaios abertos no Brasil e Itália31 e em festivais da Europa32. Foto 9: Léo Azevedo Espetáculo: A Oração Direção/Atuação: Joice Aglae Data: Agosto/2009 A cena “A Oração” apresenta um grande teor ritualístico e certo grau de ironia, sarcasmo e “humor”. O humor faz parte de um bem-estar psicológico e o bufão sabe disso. O riso produz a capacidade saudável de rirmos de nós mesmos, uma ação necessária ao ser humano e que, segundo Freud33, faz parte do mais importante processo defensivo da vida psíquica. Numa situação de dor e aflição, se desviarmos e pouparmos a energia afetiva da autocomiseração para um comentário humorístico, o riso se torna possível e nos beneficia. Para o bufão, não há autocomiseração e por isso ele sempre se serve de tal benefício, pois ele ri de si próprio e dos outros. Ele ri de si mesmo porque sabe que não se deve ver como figura 30 Na disciplina “DAN 508 - Processos de Encenação”, com a professora Dr.ª Sônia Lúcia Rangel, “Uma prece” foi apresentada no final do semestre para a turma que cumpria a disciplina, como parte resultante do meu processo criativo. 31 Na Escola de Teatro da UFBA (BR) e Scuola Sperimentale dell’Attore – Pordenone (IT). 32 “Luxembourg street festival « clown streeta(rt)nimation” e “Clown in the House Festival”, ambos em Luxembourg/ 2009. 33 Para saber mais sobre o cômico em Freud, ler: O Humor (1927) In Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - Vol.XXI; Os motivos dos chistes: os chistes como processo social In Obras Completas: Os chistes e sua relação com o inconsciente.. 115 séria, pois aquele que se vê dessa forma, torna-se frágil, um alvo muito fácil de ser desmontado. Ele ri dos outros e não tem medo do riso. Enquanto os seres humanos se levam a sério e se afastam daquilo que é verdadeiramente importante nas suas vidas, o Bufão ri e retorna às suas ligações com o divino (Dionísio), com o ritual, com o mito. Mas o Bufão sabe que o Jogo e o Sacro são partes de um todo. No seu Jogo, invoca o ritual, retoma seu lado xamânico e, através de profecias, verdades, falsidades e invenções, ele amedronta e até acha engraçado os Homens apavorados ao ver aquele ser grotesco escarrar possibilidades de um futuro obscuro ou decodificar um passado e/ou presente. Em “A Oração”, Murcia - meu Bufão34 - entra em uma espécie de círculo ritual feito com velas e faz um discurso carregado de imagens, ironias sutis e leves obscenidades. O texto foi escrito a partir de poemas de Antonin Artaud, encontrados após sua morte35, e de Augusto dos Anjos, tendo, ainda, como inspiração os rituais indígenas e de candomblé. A cena tem como argumento um apelo ao ser humano, a sua inteligência e a sua fraqueza diante de um ser como o Bufão36. Foto 10: Léo Azevedo Espetáculo: A Oração Direção/Atuação: Joice Aglae Data: agosto/2009. “A Oração” serviu como base para que eu desenvolvesse outra experiência. Durante meu estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore, precisamente no final do mês de maio/2008, 34 Por tudo o que foi falado sobre o Fundo Comum dos Sonhos, o imaginário, as atitudes lúdicas e a imaginação espaços coletivos, mas também individuais, espaços delimitados, mas sem definições – posso me referir ao Bufão como “meu”, pois estou falando deste lugar que me permite falar como plural e como singular, prefiro até usar “meu Bufão” para poder falar de características que podem não ser plurais e estarem dentro daquilo que é somente “meu”, sendo assim, não coloco como geral uma característica que é pessoal. 35 A maioria destes cadernos de Antonin Artaud se encontra na Bibliothèque Nationale de France. Segundo Serge Malausséna (revista Licences 2002/2003, nº2), estes cadernos (ao todo 406) tinham desaparecidos do quarto de Artaud no dia 06 de março de 1948, dia da sua morte, aos poucos foram sendo encontrados e catalogados. 36 Ver o texto em APÊNDICE B e clip do scketch no DVD que acompanha a Tese. MENU: 1. BUFÃO: 1.3 – BUFÃO: A PRECE\Murcia – clip. 116 o diretor Ferruccio Merisi convidou-me para fazer parte de um espetáculo e pediu que eu fizesse uma cena sobre o argumento “Valle”, o trabalho entraria no espetáculo “Arlecchino e la Valle dell’Omo”37, um espetáculo cujo argumento seria os caminhos da Humanidade. Fazendo a pesquisa sobre as várias possibilidades de interpretação da palavra “vale”, encontrei muitas expressões religiosas: vale de lágrimas, vale de ossos, vale da morte, vale de sangue, vale de almas, vale de espinhos, etc. Vendo estas interpretações de passagens bíblicas e frases proféticas, pensei que seria um bom tema para ser desenvolvido por um Bufão e comecei a trabalhar, em laboratórios individuais, na construção do texto e da cena, a partir de “A Oração”. A cada ensaio a cena crescia e intensificava o jogo ritualístico do Bufão, fortificando sua união com o Divino, com o Uomo Selvaggio e com Dionísio, retornando as suas ligações com o lado mítico e místico do universo e retomando seu posto de trickster. Quando a cena foi mostrada a Merisi, ele aprovou e pediu que eu inserisse uma dança na cena e alargasse os círculos que fazia com velas, sal e ervas, pois o ritual tinha que envolver o público, que deveria ficar fora do círculo das velas e dentro dos círculos de sal e do de ervas. Pediu, também, uma canção de despedida e que eu dominasse totalmente a cena, pois ela seria entrecortada por várias outras e não poderia perder-se ou diluir-se dentro delas. Os ensaios do espetáculo começaram e o espetáculo foi sendo estruturado: Arlecchino (sem a máscara de couro) e o Bufão tinham cenas que serviam como base evolutiva do espetáculo, enquanto que os outros personagens intervinham contando e vivendo passagens da História. O Bufão estava em cena desde o início do espetáculo, dormindo com um maço de ervas em uma das mãos (alecrim, arruda e louro) e na outra uma vela. Na peça, ele era um personagem que transcendia ao tempo real, vendo toda a evolução do Homem e tentando, através de rituais, protegê-lo dos próprios atos e ensinando-o a ser mais “humano” – uma espécie de sábio viajante dos tempos, perdido na loucura da humanidade. O espetáculo começava com o “filósofo” arlecchinesco, em meio a crânios, ossos de animais, carcaças, pedaços de antenas, balanças de ferro e um barril. O filósofo comentava e refletia sobre os caminhos da Humanidade. Em um determinado momento, o Bufão acordavase com uma oração e depois uma canção, dava um “passe/benção” com ervas no palco/mundo. Então, fazia um brinde à divisão das trevas da luz e, usando a vela, cuspia fogo. Colocava a vela no centro do palco, acendia outras velas [uma para cada espécie da evolução do homem (Australopitecos, Parantropos, Neandertal, Homo Sapiens)] e as distribuía pelo 37 Ver fragmentos do texto do Bufão Murcia no espetáculo “Arlecchino e la Valle dell’Omo”, em ANEXO B e publicidade do espetáculo em ANEXO G – evento do dia 26 de junho/2008. 117 palco, desenhando um círculo que passava diante dos pés do público, chegando até quase o fundo do palco, sem abranger Arlecchino e os dois Zanni. Toda a ação era acompanhada por um texto, com muitas pausas para que acontecessem as outras cenas. Após o círculo de velas pronto, o Bufão retornava a ação urinando sal em um vaso. Ele utilizava este sal para fazer um círculo ao redor da vela central e, depois, um círculo maior que passava pelo lado de fora do círculo feito com as velas e por trás do público, mas sem abranger Arlecchino e os Zanni. Posterior a uma série de intervenções, com uma vasilha cheia de água, pegava as ervas, tirava algumas folhas, jogava na água, mexia como se visse imagens do passado e do futuro ali dentro. Permanecia vendo as imagens, enquanto aconteciam outras cenas, até que reiniciava a ação com uma dança “xamânica” das ervas, ao redor do público, seguindo o círculo de sal e falando em italiano macarrônico38. Em seguida ao ritual com as ervas, o Bufão se dirigia ao fundo da sala e como se olhasse a Terra de longe, cantava a imagem que via (trechos da música Asa Branca, de Luiz Gonzaga, traduzida para uma linguagem bufonesca macarrônica, misturando português, italiano e dialetos itálicos). Depois, fazia um discurso e, num gesto de despedida, mas também de condenação, fazia o número de “engolir fogo” com a vela do centro do círculo e se dirigia até onde estava Arlecchino, que não o via. Arlecchino filosofava sobre as pulsões Humanas e os caminhos escolhidos pelos homens, terminando por dormir. O Bufão acompanhava as reflexões olhando para o firmamento e, quando Arlecchino dormia, ele se virava para o público começava a bailar e a pedir aos espectadores os seus cérebros (texto de “Uma Prece” transformado). Após, percebia que não havia mais nada a fazer naquele resto de mundo, que não adiantaria tentar novamente e decidia voltar para seu universo – que não se sabia qual – num salto no espaço, desaparecia (caía num fosso). Após o desaparecimento do Bufão, o filósofo acordava e recomeçava sua reflexão, chegando à conclusão de que não havia mais nenhum Homo Sapiens no mundo e, em meio a 38 O modo de falar macarrônico (ou do italiano - maccheronico) é um modo particular de se fazer entender sem falar corretamente a língua na qual se está exprimindo e era uma técnica muito usada pelos cômicos dell’arte que percorriam cidades e países com língua e dialetos diversos. Ainda no teatro, segundo Tinhorão, tornou-se uma linguagem que busca um efeito burlesco, extravagante, cômico, muitas vezes falado ou escrito de forma errada e imprópria, com uma mistura de palavras vulgares, dialetais ou “pseudolatinas”, isto é, flexionadas à maneira do latim. No Brasil, a linguagem macarrônica teve uma versão, segundo Tinhorão, na imprensa carnavalesca de 1880. Para saber mais, ler: “A Imprensa carnavalesca no Brasil. Um panorama da linguagem cômica”, de José Ramos Tinhorão. 118 uma movimentação giratória, entoando uma espécie de “mantra” feito com jogos de palavras “rovescio, rovesciar / inverso, reverso”, transformava-se em Arlecchino (Claudia Contin), colocando máscara, chapéu e retirando a capa que escondia a casaca de Arlecchino. Transformado, Arlecchino se refugiava dentro do barril e pedia para que as almas ali presentes voltassem às suas tumbas, porque o espetáculo da humanidade havia terminado. Durante o espetáculo, as atrizes e professoras da Scuola Sperimentale dell’Attore, Veronica Risatti e Lucia Zaghet tinham cenas em que representavam e viviam muitos trechos da evolução da humanidade, muitos como Zanni. “Arlecchino e la Valle dell’Omo” foi uma bonita experiência, a direção de Ferruccio Merisi havia criado um caminho do nascimento até a destruição total da humanidade, de forma poética e intensa – Bufão, Zanni, macacos, Homo Sapiens, poetas, filósofos e Arlecchino – todos envolvidos na “contação da fábula Humana”. Foto 11: Verônica Risatti Laboratório individual Atuação: Joice Aglae Data: fevereiro/2009. Além deste percurso reflexivo sobre a Humanidade, Merisi propiciou a mim, especialmente, um vislumbre de como Bufão e Máscaras dell’Arte conviviam como companheiros de palco e, além disso, proporcionou-me a compreensão de como o DNA Imaginal presente no Bufão proliferou-se e propagou-se nas Máscaras da commedia dell’arte Italiana. Vendo e vivendo as Máscaras dell’Arte e o Bufão no mesmo espaço físico e artístico (palco e cena), foi possível compreender e identificar características que se repetiam nas máscaras do Bufão, Zanni e Arlecchino, como uma repetição/renovação. 119 3.3. UNIVERSOS CONECTIVOS: O BUFÃO; O ZANNI E ... “Os bufões dominam incontestavelmente os territórios da licença, da obscenidade, da contravenção, do travestimento físico bestial. Quem é, então, esta figura diferente, portador de uma bagagem técnica específica, que goza de uma especial imunidade da terra dos confins? Quem são estes personagens ambíguos ao limite entre a desordem e a norma, entre o sacro e o profano, entre o inferno e o paraíso? Trata-se do progenitor do cômico profissional, ou de uma figura autônoma que continua presente paralelamente aos comicos profissionais?” (VIANELLO, 2005, p.49) 39 A ligação entre os bufões e os comicos dell’arte aconteceram de várias maneiras e os instintos que regem os bufões passaram a fazer parte e a reger, também, as Máscaras dos servos da commedia dell’arte. Em “I Fratelli Buffoni”, Molinari faz observações sobre a ligação de alguns bufões e a Máscara de Arlecchino, mostrando que o desdobramento do Bufão em Zanni e, daí, para os outros servos da commedia dell’arte, não se deu somente pelas vias ritualísticas e carnavalescas, aconteceu, ainda, através dos próprios atores, de uma via, também, mercadológica. Muitos dos melhores atores que adotaram a máscara de Arlecchino e Capitano faziam, anteriormente ou paralelamente, o Bufão ou adotavam o Jogo Buffonesco como estratégia para viver. Tristano Martinelli fazia, certamente, o bufão, pois aproveitava de todas as ocasiões para fazer o próximo rir, sobretudo se este próximo fosse rei e duques. Não esperava subir em cena - mas não sei até que ponto houve confusão nos papéis: as suas cartas bufonescas não eram sempre arlequinescas, no sentido que nem sempre continham quiprocó, grandes piadas ou espirituosidades e, sobretudo, aquela demonstração de estupidez que deveria ser própria do segundo Zanni. Além de tudo, devia se tratar de um estranho Arlecchino, irônico, agressivo, capaz de temperar o espírito com qualquer absurdo vagamente metafísico. De qualquer maneira, se fazia o bufão, não estava, certamente, disposto a renunciar a ser homem: a máscara do Arlecchino servia para continuar a interpretação fora de cena, mas, antes de tudo, para dar a medida exata para não correr muitos riscos a sua arrogância natural. Em suma, fazer o bufão não é uma humilhação, mas uma defesa, ou melhor, uma arma, um truque que lhe permite tratar de igual para igual com os príncipes da terra e, também, um pouco com o rei do céu [...] (MOLINARI, 1985, p.110).40 39 Tradução da autora: I buffoni dominano incontrastati i territori della licenza, dell’oscenità, della contraffazione, del travestimento físico e bestiale. Chi è, dunque questa figura diversa, depositaria di uno specifico bagaglio tecnico, che gode di una speciale immunità da terra di confine? Chi sono questi personaggi ambigui al limite tra il disordine e la norma, tra il sacro e il profano, tra l’inferno e il paradiso? Si tratta del progenitore del comico professionista, oppure di una figura autonoma che continua ad essere presente parallelamente ai comici di mestiere? 40 Tradução da autora: Tristano Martinelli certamente faceva il buffone poiché approfittava di tutte le ocasioni per far ridere il prossimo, soprattutto se questo prossimo era costituito da re e duchi. Non aspettava di salire in scena, ma non so fino a che punto ci fosse confusione di ruoli: le sue lettere buffonesche non sono sempre arlecchinesche, nel senso che non sempre contengono quiproquo, battute grosse o grossolane e soprattutto quell’esibizione di stupidità che dovrebbe essere propria del secondo Zanni. Altrimenti doveva trattarsi di uno strano Arlecchino, ironico e aggressivo, capace di condire il suo spirito con qualche assurdo vagamente metafisico. Comunque, se faceva il buffone non era certamente disposto a rinunciare a essere uomo: la 120 Chamo a atenção para o fato que, quando Molinari afirma que Tristano Martinelli “fazia, certamente, o bufão, pois aproveitava de todas as ocasiões para fazer o próximo rir, sobretudo se este próximo fosse rei e duques”, ele está referindo-se a uma técnica que era própria do bufão e que requeria uma sagacidade muito grande, a qual somente um bufão poderia ter. Dessa forma, ele não está afirmando que Tristano Martinelli, conhecido como Arlecchino, era um bufão, quando ele diz “fazia o Bufão”, entende-se que Molinari está fazendo referência ao Jogo Bufonesco. Segundo Molinari, fazer o jogo bufonesco possibilitava ao ator um jogo muito mais ágil e astuto em relação ao poder e, certamente, era este jogo que possibilitava a sobrevivência das companhias e dos atores. O Bufão sempre inverte o poder, ele toma conta da ação, pois pode “tratar de igual para igual com os príncipes da terra”, agindo num espaço e no outro, transgredindo aquele que o observa e nunca se colocando como alvo do jogo. Ele até pode fazer um discurso dirigindo-se a si próprio, levantando questionamentos sobre a própria conduta e se “autopunindo” por alguma ação, mas na verdade as sua palavras são direcionadas a segundos e terceiros. Ele coloca-se como um espelho e faz questões sobre si mesmo, para que estas cheguem aos verdadeiros receptores. Esta sagacidade e subversão, própria do Jogo do Bufão, em certo grau, se propagou pelas Máscaras da commedia dell’arte. Inicialmente, nos cortejos dionisíacos, na comédia atellana e na commedia dell’arte feita nas praças e ruas da Idade Média, todos os servos, zanni e bufões eram esfomeados e subversivos. Quando o Bufão e o Zanni saíram dos rituais e misturaram- -se aos carnavalescos, eles sofreram adaptações (ou desterritorialização) de comportamento, de linguagem e características físicas. Posteriormente, no decorrer do movimento teatral, desenvolvimento e refinamento das máscaras, as máscaras dos servos foram desenvolvendo características individuais, uns mais gentis, outros mais estúpidos, uns trabalhadores, outros nem tanto e assim outros imaginários concretizaram-se em Máscaras, mas a fome continuou como uma das características principal desta classe servil, mesmo de modo refinado. A herança passada do Bufão para os servos da commedia dell’arte, pode ter acontecido, como observa Molinari e Tessari, através dos próprios atores e do jogo bufonesco, mas também aconteceu através da intrínseca ligação xamânica destas máscaras41. Como maschera di Arlecchino gli serviva per continuare la recita fuori scena, ma prima di tutto per velare di quel tanto che bastava, per non correre troppi rischi, la sua naturale arroganza. Fare il buffone insomma non é un’umiliazione, ma una difesa, o addirittura un’arma, un trucco che gli permette di fatto di trattare da pari a pari con i principi della terra, e un poco anche con il re del cielo [...]. 41 Para saber mais, ler: Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte, de Allardyce Nicoll; Storia del Teatro, de Cesare Molinari; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; LO SCAFFALE RACOLTA DE TEATRO. Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte.”; 121 comentado anteriormente, as Máscaras possuem estreita ligação com o ritual, com o divino e com a natureza e relacionam-se com deuses do céu ou da terra. Este vínculo é muito perceptível no Bufão e estende-se às Máscaras da commedia dell’arte, principalmente na do Zanni, pois é uma das primeiras máscaras dell’arte da categoria dos servos e, justamente por estar em suas origens, herdou muito do Jogo do Bufão. A Máscara do Zanni foi o primeiro imaginário e atitude lúdica que se concretizou em forma de máscara objeto e máscara física e, também, durante muito tempo, foi a máscara mais divulgada e conhecida. Das muitas expressões usadas entre o fim de quinhentos e o final de seiscentos para designar aquilo que hoje chamamos de commedia dell’arte, a mais próxima à comédia das máscaras e talvez a mais antiga, é “commedia degli Zanni”. Zanni, como veremos, era uma das máscaras da commedia, cujo nome passou a designar toda uma classe de personagens. (MOLINARI, 1985, p.13).42 É importante ressaltar que Molinari usa “para designar aquilo que hoje chamamos de commedia dell’arte”, cooperando para a compreensão de que a commedia dell’arte não é um estilo cristalizado, uma vez que foi sofrendo modificações e já foi conhecida por muitos nomes, inclusive, com o nome de sua principal máscara - na época em que esta era assim considerada. Posterior ao Zanni, veio Arlecchino, Brighella, Pulcinella e todos os outros servos da commedia dell’arte: Certamente, hoje o Zanni não é muito conhecido do grande público, porque não entrou no folclore dos nossos carnavais, mas é muito importante, porque é uma das máscaras mais antigas da commedia dell’arte, juntamente com a do Capitano. É a figura base quinhentista do “carregador”, do “trabalhador-braçal”, da qual, mais tarde, derivam servos mais famosos como Arlecchino e Brighella (CONTIN, 1999, p.44).43 O Zanni é o “[...] carro de frente de um arquétipo-popular-sertanejo que cada um de nós, no fundo, sabe ainda distinguir” (CONTIN, 1999, p.44) 44. Ele herdou muito do bufão, porém, é menos selvático em sua imagem e, até mesmo, menos grotesco. Também, é menos “Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale, de Carmine Coppola; Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesch, de Claudia e Ferruccio Merisi.7 42 Tradução da autora: Tra le tante espressioni usate fra la fine del Cinquecento e la fine del Seicento per designare ciò che noi oggi usiamo chiamare la commedia dell’arte, la più vicina a commedia delle maschere, e forse la più antica, é “commedia degli Zanni”. Zanni era, come vedremo, una delle maschere della commedia, il cui nome passa poi a designare un’intera categoria di personaggi. 43 Tradução da autora: Certo oggi lo Zanni non è molto conosciuto al grande pubblico, perché non è entrato nel folclore dei nostri carnevali, ma è molto importante perché è una delle maschere più antiche assieme ai Capitani della Commedia dell'Arte. E' la figura base cinquecentesca del "servitore-facchino", dell’"uomo-difatica", da cui più tardi deriveranno servitori più famosi, come Arlecchino e Brighella. 44 Tradução da autora: [...] fa capo ad un archetipo-popolare-contadino che ognuno di noi - in fondo - sa ancora individuare. 122 agressivo ou lascivo em direção ao público, seu principal “foco” é saciar sua fome descomunal e se livrar das bastonadas dos patrões. Quando sobe ao palco, o seu alvo está na trama e na cena. Trabalhador braçal, com grande afinidade com os trabalhos ligados a terra, ele está sempre envolvido em tramas para saciar sua fome milenar. Segundo Claudia Contin (1999, p.45): Zanni é uma máscara de origem bergamasca [...] A ocupação típica do Zanni é aquela dos roceiros, habituados a trabalhos pesados: cortar lenha, cavar e colher nabos da terra [...] Zanni tem as mãos cheias de calos enormes, grandes e duros [...] Sendo um tipo do interior, certamente Zanni não é um estúpido, mas também não é muito culto [...]Uma outra característica do Zanni é a sua pobreza crônica: ele é o ponto mais baixo da escala social proposta aos Caracteres da Commedia dell’Arte. Esta pobreza se manifesta, não somente nas roupas modestas e rasgadas, mas, sobretudo, no apetite do Zanni. A voracidade do Zanni é famosa: ele possui uma enorme fome, que não é somente uma fome biológica, mas uma fome atávica, profunda, de “gerações”, uma fome que provém da carência alimentar dos seus antepassados, uma fome que (pode-se dizer) lhe foi passada com o leite materno, uma fome “cromossômica”... e, consequentemente, insaciável.45 O Zanni não tem uma fome somente biológica é, também, cromossônica e instintiva, passada através do DNA imaginal e potencializada nos banquetes carnavalescos. Mas certamente toda essa carga, cromossômica e imaginal, passa pelo biológico, pois se reaviva em um corpo. Quando este DNA imaginal se dinamiza em imaginação, os músculos revivem esta fome e o corpo a sente biologicamente, instintivamente, sensivelmente. Para esta tese, a questão biológica dos sistemas formadores do corpo humano e a comoção dos afetos através da musculatura e dos fluidos, como foi visto na preparação da técnica do Bufão, é muito importante, uma vez que é, a partir da dinamização deste corpo e espaço abstrato, do sistema de imaginação, que o Bufão se constrói. Assim, para entender o universo carnavalesco (rabelaisiano, pantagruelano, bertoldiano) é preciso que o ator tenha muita consciência da parte biológica de seu corpo, para que possa controlá-lo e explorá-lo. As Máscaras são originárias de um imaginário, vindouras de um Fundo Comum dos Sonhos, portadoras de genes de um a priori onírico inerente à condição humana. Este lugar impalpável, mas sensível e, daí então, concreto, é também um elo xamânico entre Bufão, Zanni e as outras máscaras dell’arte. Este espaço sem fronteiras temporais ou espaciais, este 45 Tradução da autora: “Zanni è una maschera di origine bergamasca [...] Il mestiere originario di Zanni è quello del contadino, abituato a lavori pesanti: a spaccare la legna, a scavare e a zappare, a cavare le rape dalla terra. [...] Zanni ha le mani piene di calli esagerati, grossi e duri [...] Nel mostrare questi calli da lavoro, Zanni è molto orgoglioso [...] Essendo un tipo campagnolo, Zanni non è certamente uno stupido, ma non è neppure molto colto: [...] Un'altra caratteristica dello Zanni è la sua povertà cronica: egli è al punto più basso della scala sociale proposta dai Caratteri della Commedia dell'Arte. Questa povertà si manifesta non solo nel vestiario dimesso e stracciato, ma anche e soprattutto nell'appetito dello Zanni. La voracità di Zanni è famosa: egli possiede una fame enorme, che non è solo una fame biologica, bensì una fame atavica, profonda, "generazionale", una fame che gli arriva dalle carenze alimentari dei suoi stessi antenati, una fame che potremmo dire - gli è stata trasmessa col latte materno, una fame "cromosomica"... e dunque insaziabile”. 123 lugar onde tudo se encontra, somente alguém que possui em si as mesmas características, alguns genes em comum com este espaço e, consequentemente, em constante dinâmica com o mesmo, é capaz de compreender e inteirar-se com o funcionamento dele, da terra, dele com a terra, com o universo, com o cosmos, com o Homem e com tudo aquilo que faz parte do Homem, com o seu lado místico, mítico e selvagem e sua conexão com os animais, a vegetação, o sol e a lua. Nas mais variadas tradições, as feiticeiras, bruxos, pajés, curandeiros, tricksters e filhos de santos possuem uma relação com o tempo muito especial, viajam pelo passado, presente e futuro como se não houvesse barreiras temporais e são sempre ligados à natureza e a este espaço chamado, pela maioria das crenças religiosas, de “espiritual”. Como já mencionado, não interessa a esta pesquisa entrar em questões que dizem respeito à religião, o importante é a relação que estes “xamãs” possuem com os universos concreto e sensível. O xamã é o elo entre o mundo da realidade e o espaço sensível, imaterial e energético. Estes dois mundos também são tocados pelo ator cada vez que ele se deixa habitar pelos dados sensíveis que fazem parte de sua arte/profissão. No ator que faz uso da máscara, esta integração de dinâmicas é ainda maior, por tudo o que a máscara significa dentro do teatro46, toda esta conexão é potencializada ainda mais quando o ator que encarna as máscaras do Bufão, do Zanni, Pulcinella, Capitano, Arlecchino e outras máscaras dell’arte invoca delas este lado xamânico, abrindo os espaços conectivos entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. O Bufão e o Zanni, pela própria trajetória destas máscaras, as quais já foram comentadas, fazem parte desta categoria de máscaras xamãs, desta integração dos mundos e 46 Para saber mais, ler: Tracce di teatro sciamanico tra Africa e Mediterraneo. Le maschere e la danza come contatto con stati di coscienza ‘divers’ In Progetto Sciamano 2005, de Giovanni Azzaroni; Pulcinella, de Anton Giulio Bragalia; O Teatro Grego – Origem e Evolução, de Junito de Souza Brandão; Les jeux et les hommes – Le masque et le vertige , de Roger Callois ; As máscaras de Deus – Mitologias Primitivas, de Joseph Campbell; Materiali e Riti per la preparazione e l’uso delle Maschere. Storie tra Commedia dell’Arte e Maschere dell mondo In Progetto Sciamano 2005, de Claudia Contin; Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale, de Carmine Coppola. L’Uomo e la Maschera. In Progetto Sciamano 2005!, de Alfonso Renzo Degano; La maschera più piccola del mondo. Aspetti psicologici della clownerie, de Alessandra Farneti; .Le corps Poétique, de Jacques Lecoq; LO SCAFFALE RACOLTA DE TEATRO. Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte. “L’ombre de Dionysos. Contribution a une sociologie de l’orgie , de Michel Maffesoli; Pulcinella. Il filosofo che fu chiamato pazzo, de Romeo de Maio; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni’, de Alessandra Mignatti; Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte, de Allardyce Niccol; La performance dei Mamuthones: tra rito e teatro. Ricerche e documentazione su una delle più misteriosa tradizione sarde In Progetto Sciamano 2005, de Paola Pala; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico In Progetto Sciamano 20, de Eugenia Casini Ropa; Arte della Maschera nella Commedia dell’Art, de Donato Sartori e BrunoLanata (org); Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra, de Roberto Tessari; Zani Mercenario della Piazza Europe, Anna Maria Testaverde (org.); Dal rito al teatro, de Victor Turner; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo, de Daniele Vianello. 124 compreensão das transformações da Terra, do cosmos e do Homem, de modo intenso. Muitos foram os Bufões e os Zanni perseguidos pela igreja e acusados pela inquisição. Um exemplo muito conhecido, e já comentado anteriormente, cujo destino foi a fogueira da inquisição, é Domenico Scandella, o Menocchio - imortalizado por Carlo Ginzburg no livro “Il formaggio e i vermi”. Ao longo do livro, Ginzburg refere-se a Menocchio como uma espécie de Bufão, por toda sua história, modo de enfrentar a Igreja, de falar a verdade através de metáforas e de expor sua visão de mundo sem receio. Menocchio era um simplório morador do interior da região de Friuli, norte da Itália, contudo, um visionário, alguém com uma sabedoria telúrica, com uma compreensão enorme e profunda das metamorfoses do mundo, por viver ligado às transformações da terra, das plantações, da “química” realizada na cozinha para preparar alimentos e por saber conhecer o ser Humano. Para Ginzburg, Domenico Scandella era um sertanejo que possuía uma inteligência instintiva e emocional, própria de um Bufão. Mas há também quem o coloca na categoria de Zanni, como Ambrosio Artoni no seu artigo “Le radici medievale e folcloriche della maschera zannesca. Percorsi testuali e iconografici” integrante do livro “Zanni Mercenario della Piazza Europea”, de organização de Testaverde. O mesmo aconte no livro “La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni”, no qual Alessandra Mignatti cita Menocchio usando-o como exemplo da relação que o Zanni tem com a terra, com a lua, com a natureza do subsolo, com os vermes e toda a variação de vegetação que cresce sob a terra. Para Mignatti, Menocchio era um Zanni, um homem sertanejo curioso da vida e do mundo, não tinha uma aparência grotesca, nem era lascivo no discurso como o Bufão, nas suas palavras, percebia-se mais uma curiosidade que um enfrentamento, uma simplicidade, não necessariamente agressiva no tratamento com as pessoas - um padre, um médico e uma pessoa comum, eram tratados da mesma forma - e, principalmente, Menocchio não se travestia, e essa ausência do travestimento bestial, penso que possa ser a principal razão pela qual Mignatti o vê como Zanni e não como Bufão. O que esta pesquisatriz acredita, a partir das leituras e reflexões, é que Menocchio foi, então, um Zanni da realidade objetiva que ajuda a fixar o arquétipo e o mito da “máscara zannesca”. Verdadeiramente, para esta tese, tendo em vista a questão do travestimento bestial, Menocchio é considerado um Zanni, mas a sua inteligência e ação de enfrentar a igreja – poder institucional maior na época em que viveu - é típica de um Bufão, tanto é, que esta o condenou à fogueira da inquisição. A única resolução a que se pode chegar é que talvez a observação de Molinari sobre Tristano Martinelli sirva, também, para o caso de Menocchio: quem sabe ele também seria “um Bufão que não queria abrir mão da forma humana, da 125 aparência do homem” e, para tanto, permaneceu como humano, mas da forma mais próxima possível da sua natureza, como um verdadeiro Zanni. Para esta tese, o Zanni é como se fosse uma metamorfose a mais do Sátiro em direção à forma humana: de Dionísio ao Sátiro, ao Bufão, ao Uomo Selvático, ao Zanni e daí para as outras máscaras dell’arte. Talvez este pensamento seja reflexo de uma compreensão do comentário de Molinari - aquele em que afirma que Tristano Martinelle “se fazia o bufão, certamente não estava disposto a renunciar de ser homem” – o qual acabou sendo de grande importância para os encaminhamentos desta tese, pois reafirma a concepção imaginativa de que os bufões eram seres deformados, animalescos e bestiais e que os Zanni eram grotescos, das máscaras dell’arte, a mais próxima dos bufões, mas mantinham a forma humana, mesmo que com algumas deformações. A aproximação de Menocchio, tanto do Bufão como do Zanni, fez com que a imagem trabalhasse em um caminho estético evolutivo. Mesmo que se possam encontrar iconografias de Zanni deformados e grotescos47, ainda assim, eles estão muito mais próximos da forma humana que as iconografias de Bufões48. Apesar de terem a forma humana, os Zanni continuam tendo a relação com o divino, com o mítico, com o místico e com todo este universo trazido pelo Bufão das suas ancestralidades, fazendo dos aspectos xamânico, grotesco e carnavalesco seus principais pontos conectivos. São muitas as relações e os caminhos de interligação entre o Bufão e o Zanni. Um deles é a exploração do próprio nome da máscara “Zanni”, pois esse nome traz consigo uma série de ritos sagrados e profanos e do submundo da terra que se conectam íntima e intensamente ao universo do Bufão. Alessandra Mignatti, em La Maschera e il viaggio, faz um estudo aprofundado e detalhado das várias nascentes do nome Zanni, o qual encontra eco em muitas manifestações populares da Itália, antes mesmo da antiguidade pré Idade Média. Sabe- -se que o Zanni, como Máscara e imaginário, é nato em Bergamo. Esta máscara é um arquétipo dos interioranos bergamascos, que desciam das montanhas para trabalharem nas cidades como carregadores, e este êxodo é um fato verídico, pois existem muitos documentos que confirmam a informação migratória daquela região. Mas o Zanni, como Máscara, é muito mais complexo que uma sátira de uma situação econômica. Segundo Anna Maria Testaverde 47 Pode-se citar como exemplo as iconografias de Jacques Callot, na Bibliothèque National de Paris. Algumas delas podem ser vistas nos livros: La Commedia dell’Arte au XVI siècle, en 1601... et en 1981. Le Recueil Fossard. Compositions de Rhétorique (1981) com apresentação de Pierre-Louis Duchartre; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni (2007) de Alessandra Mignatti e Zani Mercenario della Piazza Europea (2003) com a organização de Anna Maria Testaverde. 48 Pode-se citar como exemplo as iconografias que estão no livro Serge Martin (2003): “ Le Fou Roi des théâtres”. 126 (2003, p.11), a Máscara zannesca e suas características são interpretadas como uma “rifunzionalizzazione in proiezione rappresentativa”, isto é, uma “refuncionalização em projeção representativa” ao interno de um processo que sinaliza a passagem do ritual ao teatro. Alessandra Mignatti (2007) enumera muitas manifestações populares italianas relacionadas ao Zanni49, algumas trazem esta relação de modo evidente e, em outras, de modo indireto e até mesmo quase invisível no contexto atual. A origem do nome Zanni sempre despertou muita curiosidade e um dos estudos com maior repercussão foi o de Riccoboni (1730)50, o qual faz uma coligação do nome Zanni com a palavra latina Sanniones - Sanniones ... Sannio ... Zanni. Segundo Riccoboni a palavra Sannione, é sinônimo de “Bufão”, e estes Sanniones estavam presentes tanto na comédia Attelana quanto entre os Mimos da Antiguidade (Sannio). Sandra Chacra (1983), no seu estudo sobre a improvisação, também cita as fábulas Atellanas como possível nicho das Máscaras dell’arte. Porém, Luigi Riccoboni faz um estudo mais detalhado deste possível entrelaçamento e seu percurso. Muitos outros estudos, como o da própria Alessandra Mignatti, afirmam que Zanni é uma corruptela dialetal de Giovanni (Giovanni – Gianni – Zanni). Carlo Dati51, nos seus estudos, traz um dado no qual afirma que na Espanha, em léxico antigo, os bufões das farsas eram chamados de Giovanni, informação que, para esta pesquisa, é muito importante, porque re-encaminha o pensamento para o vínculo entre Bufão e Zanni. Como se pode perceber, a Máscara do Zanni contém muitos segredos e labirintos. Essa figura de um servo vestido em trajes brancos, espada na mão e grande nariz adunco, de modos rústicos, rudes, em alguns momentos, até mesmo animalescos, pouco civilizados, mas também ingênuo e ignorante, no sentido de ignorar a vida citadina, tem conexões com a história da humanidade desde a Antiguidade – considerando os rituais a Dionísio e todo o percurso já mencionado. A ligação do Zani com o universo dionisíaco, bufonesco e subterrâneo ou demoníaco (aos olhos das religiões cristãs) pode ser vista de modo muito interessante e cheio de entrelaçamentos e desdobramentos. Beccaria (1995) faz um grande panorama das transições 49 Por causa dos vários dialetos italianos, pode-se encontrar, também, Zani, Zan, Zane, Zoán, Cian, Gian, Duan, Juvanne/Zuanne. 50 Este livro poce ser consultado na Bibliothèque National de Paris ou na Biblioteca Nazionale Centrale de Firenze. 51 Carlo Roberto Dati trabalhou no Antico Archivio Storico della Accademia della Crusca (Firenze-IT) durante muitos anos, nesta função realizou uma importante compilação de documentos e cartas de descrições contextuais históricas, intitulada “Smarrito” (1667), a qual pode ser consultada na Collezione Magliabechiana da Biblioteca Nazionale Centrale de Firenze. 127 dos nomes e palavras perdidas ou transformadas pelo tempo ao longo do percurso da humanidade, buscando principalmente aqueles cujos significados originais foram sendo esquecidos ou omitidos por imposições clericais. Mignatti (2007) propõe ainda este caminho da busca por explicações e coligações em tempos remotos e línguas diversas, fazendo um passeio em outros idiomas, dando a importante percepção de que o nome Giovanni é popular e, em muitas línguas, é o nome mais comum entre as pessoas. Não é preciso ir tão longe para se certificar disso, basta observar na cultura brasileira: Giovanni é João. Continuando nas pesquisas de Mignatti, em alemão, entre outras etimologias, Giovanni é Hans e Hans pode ser um modo de dizer “indivíduo, pessoa, alguém” (um “João qualquer”, um “Fulano”). Quando o nome Hans vem coligado a um outro ou a um adjetivo, tornando-se composto, pode ganhar outros significados. Desde o séc.XV, nas terças-feiras gordas de carnaval, na Alemanha, o personagem Hans aparece fazendo par com Gütel, e os dois formam o casal de bufões das festas carnavalescas. Os irmãos Grimm, em seus contos, utilizam muitas composições deste nome: Hans Hagel – Zandiluvio; na versão francesa deste mesmo nome (Giovanni - Jean – Jan), Janhagel é uma espécie de diabo que está sempre procurando algo para beber, mas também é usado para falar de alguém que não pensa ou que é um pouco louco. Este mesmo nome faz referência à tempestade, ao granizo e à saraivada, o que tem muito a ver com a natureza e os rituais de fertilidade dos campos. Outro nome alemão é Hans-narr-wurst, cujo significado é de loucura e de louco. Ou ainda, Hanswurst, personagem que corre pelas ruas durante o carnaval batendo uma salsicha, tem uma conotação vulgar e também pode ser coonhecido como Hanswort – Zansalsiccio. Existe ainda Jan Posset ou Johan Bouset, que é usado para indicar uma pessoa qualquer, em alguns casos se refere, especificamente, a um “corno”, por outro lado, “bouse”, em francês, é excremento bovino, o que, por conseguinte, dá outro significado ao nome. Jean-fesse / Hans Arsch, nome com referências vulgares, pois fesse é nádega em francês, mas aqui é usado para designar a parte que fica muito próxima às nádegas, o ânus. Sem falar em Hans Ulrich, que é a “personificação” do vômito. Mignatti traz tantas nominações de personagens com cunho vulgar que utilizam o nome Hans, Jean, Johan, João, Giovanni, Zanni ou Zan, que não caberia a esta tese enumerálas, mas se pode encontrá-las nos estudos de Mignatti, Beccaria, Tiraboschi, Testaverde, entre outros. Entre os exemplos realizados por Mignatti, vale ressaltar uma relação muito peculiar e que, posteriormente, será muito importante. Mignatti vai buscar no Deutshes Wörterbuch, 128 importante dicionário diacrônico iniciado pelos irmãos Grimm (1877), onde se encontra Hans Knochenreich, uma espécie de demônio, relativo à morte, ou ainda na Nave dei folli, de Brant, Hans é alguém que ajusta a onda, de acordo com a idade e a força de quem deve arrastar, parecendo ser a “própria” Morte. Aproveita-se esta ligação com a loucura para citar rapidamente outra cadeia relacional: Zanni – Hans - Nave dei folli - loucos – Bufões – Sátiros – Dionísio – mundo subterrâneo – demônios – inferno. Como dito, as relações do Bufão e do Zanni com o universo “infernal” são bastante estreitas, e entrelaçam-se através de vários caminhos. O nome Giovanni, na Itália, sempre foi muito popular, pois foi muito divulgado pelo cristianismo na figura de San Giovanni, que na forma dialetal bergamasca, transforma-se em Zanni. Os compostos com o nome Zanni viraram, inclusive, sobrenomes. No séc. XIII, os sobrenomes Zambellus, Zambonus, Zambenedetti e outros deste tipo eram muito difusos. A desconfiança, segundo Mignatti, é de que estes sobrenomes foram sendo fixados pelas próprias famílias de commicos. Giovanni/Zanni, também na Itália, ganha adjetivos bastante vulgares ou terríveis e é utilizado para nominar alguém ou alguma coisa por uma característica específica. Em torno do nome Zanni, encontram-se muitas curiosidades interessantes, que auxiliam, em algum grau, a compreender o universo desta Máscara. Em muitas partes da Itália, o nome Giovanni é dado ao verme que vive na fruta. Algumas regiões como Emilia Romagna, Toscana, Piemonte e Verona possuem muitos ditos populares52 do tipo “Em São João, cada cereja tem o seu Joãzinho” e, em algumas regiões, como a do interior de Verona, a cereja (mora) tem também o sentido de “moça” e Joãzinho pode ser interpretado como o feto ou o caruncho; todas estas duas possibilidades são interessantes, uma é um ser em formação e a outra é a maculação da imagem. Estes ditados populares também trazem a recordação de que, na Itália, a festa de San Giovanni se interliga a antigos rituais, entre eles, os de fertilidade. Estas festas não acontecem somente na Itália, muitas são as realizadas no Brasil no período de junho e julho (festas de São João), vindouras de uma tradição antiga de festejos ao solstício e à fertilidade. 52 Muitos provérbios populares se utilizam desta nominação. Em piemontese “A San Giuvan ogni ciresa a l’a l’so Giuanin”; na campanha veronese “A San Doan ogni mora ga’l so Doanin”. 129 Antônio Tiraboschi53, grande estudioso das tradições orais, principalmente, dos dialetos italiano, catalogando canções, histórias e superstições e a estudiosa das tradições dell’arte, Alessandra Mignatti, a qual cita os estudos de Tiraboscchi, trazem a informação de que em uma parte da região bergamasca, acreditava-se que era exatamente na noite de San Giovan que os vermes entravam nas frutas, para torná-las não comestíveis. Mas de onde vem essa crença popular? Como São João se iguala a vermes? Como “San Zanni” se relaciona com este mundo verminoso? Para esta tese, este labirinto é muito valioso, pois se coliga com a técnica criada para o Bufão, a qual busca muitos impulsos no mundo subterrâneo, na terra e nas imagens de vermes. Muito interessante, também, é muitas formas dialetais derivadas de Giovanni – Zanni – Zan – Cian – Gian se relacionam com o mundo verminoso e subterrâneo do Bufão. Por exemplo, o nome dado à sanguessuga em dialeto ladino-moenese é Zangheta. Em dialeto genovese, Zänello é o nome dado ao verme da castanha, enquanto que Zambèl significa situação enganosa. Ainda em genovese, Zanzugol é uma pessoa sem caráter e “zanella dei fossi” significa cova ou valeta dos mortos, uma conexão interessante para a Máscara em questão, já que Zanni tem muitos ligames com o mundo dos mortos. No dialeto de Abruzzo e Molise (Zan = Cian ou Gia), o verme dos legumes se chama ciambene, enquanto que giammichiellu é o nome do vaga-lume, também uma conexão interessante, pois mesmo este é um inseto que produz luz. É conveniente ressaltar que São João Batista, veremos mais tarde, tem uma relação muito estreita com os insetos. Nesta mesma região, ciambrone é “minchione”, um modo vulgar de nomear o pênis e ciambambele é o nome dado ao pênis do porco – conexões com a grande fome e com a sexualidade do Zanni. Na região toscana, a palavra “zana” é empregada no sentido de brincadeira, chacota, divertimento, mas também para nomear uma espécie de cesta de forma oval, feita de vime, que se transforma em berço, uma espécie de moisés, o que também é uma boa versão para o Zanni, uma vez que, em muitas iconografias, Arlecchino aparece com uma gerla (espécie de cesto corniforme que se carrega nas costas) cheia de crianças. Em outras pinturas, o próprio Zanni utiliza a zana para carregar coisas e, como já dito, ele tem a fome sexual exacerbada, 53 Os estudos de Antonio Tiraboschi (1838 – 1883), tais como “L'anno festivo Bergamasco”, “Canti popolari bergamaschi”, “Il gergo dei pastori bergamaschi”, “Vocabolario bergamasco”, “Il Vocabolario dei dialetti bergamaschi antichi e moderni”, “Raccolta dei Proverbi Bergamaschi”, “Gli usi di Natale e di Pasqua nel bergamasco” e “Fiabe bergamasche” - podem ser consultados no Archivio della cultura di base no Sistema Bibliotecario Urbano, de Bergamo. 130 uma fome carnavalesca, que, consequentemente, tem muito a ver com a fertilidade. Outra ligação que não se pode esquecer é que, nos cortejos dos Charivari, o cortejo da noite dos mortos dos carnavais medievais, os Bufões e o próprio Hellequin guiavam uma grande zana cheia de espíritos de crianças mortas54. Na região calábria, “zanna” ganha sentido de troça e zammara é o nome de um instrumento que os Zanni aparecem tocando em muitas iconografias, é uma espécie de flauta feita de bambu, tradicional das regiões campeiras e com uma melodia “encantatória” – o que re-encaminha ao poder fascinante das flautas dos Sátiros. Tiraboscchi, entre as várias utilizações da palavra Zanni e de derivações desta, encontrou zana como fome ou meretriz e zanàt como esfomeado – estas três derivações se integram muito bem ao caráter do Zanni. Em suas pesquisas de campo, na região bergamasca, Tiraboschi também encontrou o nome de “zannóne” para um viajante vagabundo ou, quando utilizado no feminino, para se referir a uma moça namoradeira e assanhada. As derivações da palavra Zanni são muitas e variadas (podendo citar, novamente, os estudos de Tiraboscchi, Mignatti e Beccaria), algumas com relações muito interessantes para esta pesquisa. Contudo, deixa-se um pouco de lado estas curiosidades e faz-se um salto para a poesia de Dante Alighieri (1265-1321). Na sua obra mais famosa: a “Divina Comédia”, traz um personagem muito conhecido, o qual protagoniza o canto XXII do inferno. Nesta passagem, o diabo Alichino aceita o desafio de Ciampolo que, para se salvar, desafia-o em uma corrida e o vence. Alichinio, enraivecido, começa uma discussão e, depois, uma briga corpo a corpo com outro diabo e terminam caindo no lamaçal do inferno. Enquanto os diabos se debatem no lamaçal sem conseguirem sair dali, Ciampolo fica feliz, pois conseguiu escapar, mais uma vez, do caldeirão. Mas quem é Ciampolo? Quem é este personagem que engana o diabo Alichino? Ciampolo é um personagem que vem de outra história, ainda mais antiga que a “Divina Comédia” e não tão conhecida, mas que Menocchio a guardou na memória: trata-se da história de dois buffões – Zampolo/Ciampolo e Taiacalze/Tagliacalze. Zampolo, depois de morto e de ter estado no paraíso, conversado com São Pedro, vai até o inferno procurar seu amigo, Taiacalze, e o reencontra. Taiacalze, antes do reencontro, para fugir dos caldeirões da cozinha infernal, faz uso de todas as suas técnicas bufonescas e de ator, obtendo sucesso nas suas expectativas e escapando dos caldeirões infernais. Ao se encontrarem no inferno, em frente a Belzebu, os dois dançam, fazem evoluções bufonescas e 54 Algumas iconografias dos Charivaris podem ser vistas em: Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomonatura in antiche tradizioni carnevalesche In Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mon, de Claudia Contin & Ferruccio Merisi. La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni , de Alessandra Mignatti. 131 acabam ganhando, também, a amizade do Demônio. Mais uma vez a imaginação trabalhou unindo duas histórias distantes, detalhes contados por Menocchio enriqueciam a história do Bufão ou Zanni em visita ao inferno. Muitas são as derivações da palavra zanni e muitas são as versões e histórias que contam as idas e vindas dos servos da commedia dell’arte ao inferno e ao céu. Muitas das relações de Zanni com os deuses celestiais fazem parte da herança deixada por San Giovanni e as relações do santo com os vermes e o mundo subterrâneo. San Giovanni é festejado em junho, a comemoração de seu nascimento coincide, na Europa, com o dia do solstício de verão - para nós, o solstício de inverno com as festas juninas (pipoca, pau-de-sebo, balão, fogueira...). Esta ligação do santo com o verão europeu é muito importante, pois, antigamente, era quando se iniciavam os ciclos de fertilidade. Apesar da origem católica cristã, San Giovanni tem muitas ligações com crenças populares da Itália que, por sua vez, possuem fortes relações com os rituais pagãos de fertilidade. É difícil de desvencilhar São João Batista da imagem do santo católico, mas até mesmo este santo tem conexões com a Máscara do Zanni. Dentro das figuras santas, São João Batista foi um mensageiro, um profeta, um visionário - um xamã. Para quem quiser acompanhar o percurso detalhado de São João Batista, basta se dirigir à Bíblia, no Novo Testamento, no capítulo dedicado ao “último profeta e primeiro apóstolo”, como São João Batista é lembrado em muitos rituais católicos, mas para quem deseja ter uma leitura mais dinâmica e relacional com a máscara do Zanni da vida de San Zeovan, Mignatti (2007) a faz de forma interessante e incitante. Na história, São João se exilou no deserto, sofreu tentações, foi posto a prova, um exemplo perfeito de guerreiro que vive entre o Bem e o Mal, entre as trevas e a luz, sozinho no deserto como um “Uomo selvaggio”, vestido com peles e vivendo fora dos domínios da cidade, comia gafanhotos e mel (este comportamento de João Batista também é citado no texto teatral de Oscar Wilde “Salomé”). Se pararmos para pensar em uma relação muito especial, o mel é uma substância muito utilizada em rituais pagãos. E não precisa nem ir até a Europa para lembrar disso, na própria cultura indígena brasileira, o mel tem propriedades curativas e xamânicas e, no candomblé e na umbanda, é muito utilizado para atrair boas energias. Já na Europa, na Idade Média, quando os reis se enraiveciam com os seus bufões, como castigo, estes eram banhados em mel, depois cobertos de penas e expostos em praça pública para serem linchados pelo povo, que cuspiam em suas faces, jogavam coisas e os insultavam (WILLEFORD, 2005). Sem falar que, na Itália, na região das montanhas, principalmente em Piemonte, o urso, cujo 132 alimento é o mel, é um símbolo do carnaval (ARTONI apud TESTAVERDE, 2003). Assim, mais uma vez, nesta pesquisadora, as informações levam a uma conexão deste San Giovanni com o carnaval. O gafanhoto também tem uma forte significação e aumenta a crença em “San Zanni”. Um inseto que integra as sete pragas do Egito. Imagina a crença que o povo tinha no poder sobrenatural de um homem que se alimenta de uma praga, de uma força destrutiva, “San Zanni” a deglutia e digeria, fazia dela seu alimento, isto é, transformava a destruição em vida. Este processo digestivo é uma inversão de força (ou poder) típica dos bufões e, mais uma vez, a imaginação trabalha nas conexões subterrâneas. Mignatti e Tiraboscchi citam, ainda, uma outra ligação de San Giovanni com insetos, na região de Bérgamo existe uma crença que envolve o santo e as formigas. Esta manifestação de “entrelaçamento” vai do dia 15 de agosto (ferragosto - é a festa de “assunção de Maria”) até 29 do mesmo mês – dia do martírio de San Giovanni. São formigas voadoras que, a partir do dia de ferragosto, começam a se dirigir ao Monte San Giovanni, no Valle Caleppia, para fazerem seus últimos vôos de invasão da igreja no dia 29, tomando-a por dentro e por fora e ali morrerem. Não se sabe como esta lenda nasceu, nem porque estas formigas vão até esta igreja neste período do ano. Há muitos documentos, como notícias de jornais, cartas e livros, dedicados aos costumes bergamascos que falam dessa lenda55. Para esta pesquisa, esta ligação de insetos e vermes com “San Zanni” é bastante significativa, por todos os ligames com o mundo subterrâneo que já foram mencionados, também no estudo e processo da técnica criada do Bufão e que se estendem em um DNA imaginal ao Zanni. Outra crença interessante que faz a ligação de Zanni com o mundo subterrâneo, citado por Mignatti, vem de uma espécie de tratado, de cunho católico, feito no séc. XI por Michele Psello, no qual este faz uma espécie de apanhado das formas que o Diabo pode se manifestar. No seu período de estudo, Michele encontra um monge que relata sobre a multiplicação dos demônios através do próprio sêmen que, caindo por terra, transforma-se em vermes, e estes mesmos vermes originais também saem nos excrementos. Esta pesquisa sobre as formas que o demônio pode se apresentar ou tomar, também é realizado por Beccaria (1995) e a forma de verme, também nos seus estudos, é comum estar ligada ao demônio. Mais uma vez, os vermes tornam-se equivalentes ao demônio (e a imaginação age nesta pesquisatriz, ainda mais), e, num pensamento lógico, os insetos gerados destas larvas 55 Alguns destes documentos podem ser lidos no Archivio della cultura di base no Sistema Bibliotecario Urbano, de Bergamo, juntamente com os escritos de Tiraboscchi. 133 devem ser vistos como herdeiros desta carga originária e, outra vez, o Zanni toma esta igualdade infernal. Lembrando, ainda, que Giovanni é o termo dialetal utilizado para não dizer o nome do diabo. Existe outra história, relatada por Mignatti, ligada ao mundo subterrâneo, na qual o agente é uma árvore de nozes. Esta árvore parece morta durante todo o ano e, de uma hora para outra, na época das festas juninas, se enche de folhas, flores e depois frutos – o mais curioso é que o verme da castanha e da noz é chamado de Giovanni, como também o são, os vermes das outras frutas, conforme os ditados populares citados anteriormente. Na crença popular bergamasca, as nogueiras são tidas como árvores do diabo, pois é aquela que, nos rituais de sabá, as feiticeiras dançam em torno, inclusive, aparece no centro de algumas iconografias encontradas nas paredes das casas de Bergamo, cujas datas são do séc.XV e possuem como tema, o ritual de feitiçaria e danças macabras56. Como já foi dito, o período das festas juninas é um período que assumia, na antiguidade, um significado muito especial, já que era uma temporada de muitos ritos e, na maioria destes, existia uma forte relação de comunhão entre seres humanos e plantas (BECCARIA, 1995). Tais rituais e crenças tinham forte influência sobre os moradores das montanhas, em cujo âmbito, segundo Piero Camporesi (1993), o feijão e a fava tomam uma dimensão ritualística, eles são grãos ícones da fertilidade. O feijão possui uma forte ligação com o mundo popular, tanto da festa, quanto da morte. Ele é um dos principais alimentos dos populares e não só na Itália antiga. Feijão, comumente, é um alimento popular e, no Brasil, é forte presença entre as classes mais baixas, trabalhadores rurais ou braçais. Ele é um alimento rico em ferro, o que fortalece o organismo, e toda esta força é retirado do solo, das profundezas da terra. O Feijão, na feijoada, conquistou o “senhorio”, é uma comida rústica que acabou conquistando “estômagos requintados”, ganhou a conotação de festa e a importância de patrimônio cultural – exemplo de inversão carnavalesca. Na Itália, também, o feijão e o nabo, os dois juntos simbolizam o órgão genital masculino: [...] fruto de raiz sem medida, da polpa branca e leitosa, fincada como um falo rico em sêmen, na quente, negra e úmida terra, devia ser semeado de acordo com a liturgia pré-cristã, com o corpo nu e acompanhando a semeadura com preces e 56 As pinturas não trazem nomes específicos para os rituais e danças e nos arquivos bibliotecários da cidade de Bergamo, são citadas apenas como “Danze Macabre” ou “Saba”. Algumas destas pinturas podem ser vistas em: Zani Mercenario della Piazza Europea, organização de Anna Maria Testaverde; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo, de Daniele Vianello; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti. 134 fórmulas propícias para que a raiz cresça bonita e grande. Rito de religião telúrica, 57 inferior e genital, coligado magicamente à geração (CAMPORESI, 1993, p. 19). Piero Camporesi é um grande estudioso da cultura popular italiana primitiva e medieval, principalmente da obra de Giulio Cesare Croce, criador de Bertoldo, um personagem, ou como ele chama uma máscara grotesca e carnavalesca da mesma época de Gargantua e Pantagruel. Bertoldo, tanto quanto os personagens de Rabelais, reúne em si os princípios vital e moral do carnaval. Bertholdo tornou-se tão concreto que atingiu o patamar de Máscara, trata-se de um Zanni ou de um Bufão, ele está neste mesmo lugar de Menocchio entre o Bufão e o Zanni. Porém, Menocchio foi uma pessoa da realidade objetiva que intensificou o arquétipo do Zanni, enquanto Bertholdo foi mais uma atividade lúdica que pungiu a realidade objetiva, perpetuando um DNA imaginal. Bertoldo é extremamente ligado aos rituais telúricos conectados à terra e ao cultivo desta e dos legumes “símbolo da continuidade fecunda da vida além da morte, em uma civilização ligada à terra” (CAMPORESI, 1993, p.21) .58 Estes legumes que se nutrem da terra e nutrem o homem de modo visceral e “espiritual” fazem parte de apenas um dos ligames da relação do Bufão e do Zanni com a terra e com todo este universo subterrâneo, como também com esta religiosidade telúrica na qual a vida e a morte do homem conectam-se com a dos animais e plantas. Este telurismo pode ser visto em iconografias, nas quais o Zanni aparece em danças macabras de rituais mágicos ou então marcado pela presença da lua, que é um símbolo muito importante do telurismo, pois com suas fases ela simboliza nascimento e morte em um ciclo contínuo e tem grande influência na fecundação da terra. Uma das imagens mais estudadas e que ilustra esta conexão telúrica do Zanni é a xilogravura intitulada “Frota d’um padre, e d’um servo. Intitolata Zannin da Bologna” que pode ser vista na Biblioteca Alessandrina em Roma. Trata-se de uma imagem muito simples, mas se estudada cuidadosamente, como o fez Mignatti, e levando em conta a época e o contexto em que foi criada (séc.XIV), pode-se perceber nitidamente as características da ligação telúrica do Zanni com o universo: do lado esquerdo está o patrão com seu campo seco e sobre o patrão, o sol; do outro lado, o Zanni, 57 Tradução da autora: [...] frutto dalla radice smisurata, dalla polpa bianca e lattescente, conficcata come un fallo ricco di seme nella calda, nera e úmida terra, doveva essere seminato secondo la liturgia agraria precristiana a corpo nudo, accompagnando l’interramento con preghiere e formule propiziatorie perché la radice cresce bella e grande. Rito di religione tellurica, inferica e genitale, collegato magicamente alla generazione [...]. 58 Tradução da autora: “Simbolo della continuitá feconda della vita oltre la morte in una civiltá legata alla terra.”. 135 com plantas e sobre ele a lua, com todas as suas fases e entre os dois, no solo, uma planta com a palavra “inveja” escrita sobre ela. Para esta tese, é muito interessante a ligação que as religiões telúricas têm com a lua, um símbolo de fecundidade, mas também de morte e de todo este sistema metamórfico e dialético de vida e morte, o qual representa através de suas fases que se repetem infinitamente. Muitas pinturas mostram a ligação entre vida, morte e natureza com o Zanni. Em Cassiglio, cidade nos domínios de Bergamo59, podem ser vistas muitas pinturas com este argumento. Por exemplo, nas paredes de uma casa do séc. XVIII, pode-se ver a pintura intitulada Danza Macabra: um urso, um macaco e outro animal não identificado, o qual lembra um bode ou um leão ou, para esta tese, um Bufão com seu travestimento bestial, cada qual ao lado de uma árvore (Seriam nogueiras? É difícil de identificar). No fundo, estão duas velhas acorrentadas a um esqueleto - a Morte. Ela ferirá com uma flecha um cavaleiro, ao lado deste está um Zanni, um Brighella, que dança ao som de um alaúde e sem medo da presença da Morte. Pinturas similares a esta, com Zanni, Bufão, Morte e animais, são vistas por toda a cidade de Cassiglio, em casas e igrejas. Mas não se consegue identificar qual dança ritualística o Zanni destas pinturas está fazendo, se a de San Giovanni, de San Vito, do Tarantismo ou qualquer outra. As danças rituais, geralmente, têm como característica o transe, o distanciamento da realidade, o deixar-se levar para outra dimensão. É por esta característica xamânica que, em pinturas cujo tema é a commedia dell’arte e danças macabras ou ritualísticas sejam o argumento, sempre são os Zanni ou outros servos que estão a dançar. Mas o transe e a Máscara estão presentes em muitas culturas - lembrando que não se está falando da máscara somente como objeto, mas também de uma máscara física, pois cada Máscara dell’Arte tem um corpo específico, tal qual o Bufão - mas isso será visto mais adiante. Um exemplo disso na cultura brasileira é o Candomblé, ritualidade em que as entidades e orixás possuem uma dança, uma gesticulação, um corpo e uma energia específica. Neste patamar de corpo Máscara, depois de todas as explicações da ligação do Bufão e do Zanni com as religiões telúricas e com o carnaval - como visão de mundo – fica mais simples realizar a conexão do Bufão, do Zanni, da Servetta, enfim das Máscaras dell’Arte com as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras. 59 Esta mesma pintura pode ser vista em: La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignati. 136 Retornando um pouco, nesta conexão entre Homem, animal, vegetal, mundo real e mundo subterrâneo, muitas são as conexões que podem ser feitas entre o Bufão e o Exu – algumas delas foram mencionadas anteriormente. O Exu, Orixá do submundo, no sentido de estar sob a terra, pode auxiliar na compreensão desta ligação mítica da máscara com aqueles que a faziam, primeiro como ritual ou como escolha de vida e, depois, mais tarde, como profissão, onde mesmo na cena ainda possui uma conexão com o seu lado mítico e místico. Ainda que, para o ator, seja necessário acioná-lo com veemência. Dionísio, Exu, Bufão e Zanni possuem conexões com este universo de inversão de poder, de mundo, de carnaval, todos estão ligados à sobrevivência instintiva, à fertilidade, às várias fomes, ao subterrâneo e, também, são seres resultantes de uma comunhão entre os mundos animal, vegetal e humano, seres metamorfoseados e metamorfoseantes. O Brasil não teve o Uomo Selvaggio ou o Sátiro, mas possui outras representações deste universo telúrico xamânico, e esta pesquisa escolheu e foi escolhida pela conexão de um DNA imaginal que atravessa o tempo e as fronteiras territoriais, conectando-se ao Exu. É preciso chamar a atenção para o fato de que o Exu sofre uma grande rejeição principalmente pela sua relação com as religiões católicas que realizam sua correspondência, no sincretismo, como o demônio, porém, mais ainda, como a personificação do mal, pois para o catolicismo ou cristianismo, essa é a usa imagem. Porém, na técnica do Bufão criada, os corpos são grotescos, podendo, até mesmo, serem demoníacos, pois adquirem forças nas ligações telúricas, metamorfoseantes, instintivas e animalescas, mas não relacionadas com um suposto Mal. Reafirma-se, então, a posição adquirida para esta pesquisa, pois não se pode deixar de falar sobre a ligação do Bufão e do Zanni com o universo infernal. Não é somente através da lua e da conexão com a terra que a Morte relaciona-se com estas Máscaras, ela também se conecta através da figura do próprio Diabo, como mencionado muitas vezes neste percurso. Muitas são as histórias que envolvem Zanni e/ou Arlecchino e diabos, são histórias que contam as aventuras destes Ciampolo, Taliacalze, Arlecchino, Arlequin, Alichino, Hellequin, Herlequin no mundo infernal. Como comentado, Zanni e Arlecchino aparecem na literatura de Dante. Também aparecem em Danças Macabras e em rituais selvagens de fertilidade. Arlecchino/Hellequin participava da noite dos mortos dos carnavais, guiava os carros-berços dos Charivari e tornase uma figura importantíssima dentro destes cortejos. Os cortejos fúnebres carnavalescos eram eventos comuns nas festas carnavalescas, as quais aconteciam durante todo o ano, porém, eram mais intensificadas em fevereiro. No decorrer da história, o carnaval foi sendo 137 restrito ao seu período mais intenso – fevereiro. Mas mesmo assim, inconscientemente, as expectativas carnavalescas e o seu espírito têm início no mês de dezembro, na expectação do reinício do ano e, com isso, de uma nova vida. O carnaval acaba sendo a “continuação” do “Ano Novo”, o qual também tem toda uma significação muito interessante. O “Ano Novo” é o início de um novo ciclo de vida, é uma reinauguração do tempo e renovação da vida (data que o cristianismo e catolicismo deram uma nova interpretação, através do nascimento de Jesus). Um ano morre, para nascer um outro. Em Nápole, ainda existe a tradição de, ao som dos fogos de fim de ano, jogar pela janela velharias, como símbolo de desfazer-se do passado e promover o recomeço de uma nova vida. A perspectiva de uma nova vida, em dezembro, dá início ao movimento de instauração do caos, para depois estabelecer uma nova ordem... crença da Antiguidade. Este movimento de caos tinha o auge em fevereiro, no carnaval e depois da noite dos mortos, quando a inversão da ordem era suprema, recomeçava-se o ciclo da organização (quarta-feira de cinzas e quaresma). Faz parte das tradições antigas acreditar que a ordem só poderia ter o seu renascimento depois de sua total destruição. Na evolução deste ciclo de renovação da vida e reorganização do cosmos, em Etrúria (IT), o Ano Novo era o início das comemorações do Carnaval, de Februus, divindade etrusca, cujo ritual começava no final de dezembro e finalizava na metade de fevereiro e significava a purificação dos vivos e o retorno dos mortos. Destas antigas comemorações é que surgiram os cortejos dos Charivaris, da noite dos mortos no carnaval – os Charivaris também possuíam vertentes na Alemanha e na França. Muitas festividades fúnebres traziam a “presença” dos mortos através da utilização de máscaras. Na região de Bergamo, em Valverde, antigamente, existia a tradição de que, nos cortejos fúnebres, os familiares travestiam-se com as roupas dos mortos, simbolizando o próprio defunto ali presente – vida e morte unidas no cortejo. Em alguns cortejos, além das roupas, os entes também endossavam a máscara mortuária do defunto sublinhando a sua presença “vida” no seu próprio funeral. Em alguns lugares, sempre nas redondezas de Bérgamo, esses cortejos repetiam-se na noite dos mortos do Carnaval, que coincidia com o fim do Tríduo dos Mortos, feito pela igreja católica, que, ao que tudo indica, tem origem nesta celebração a Februus. Fazia parte desta celebração, a romaria com velas acesas, o costume era de fazer o cortejo pelas ruas da cidade, em favor das almas dos mortos, “limpando-a” e iluminando-a para que a vitória sobre os inimigos acontecesse. Mas está é uma das conexões, o cortejo dos Charivari possui várias coligações com vários outros rituais dedicados a Marte, a Februus e outros deuses. Mais tarde, 138 a igreja adestrou, catequizou e deu novo nome a este rito, é a “Purificação de Maria”, comemorada pelo calendário católico no dia 02 de fevereiro. As conexões rizomáticas dos rituais pagãos e católicos esparramam-se como ervas daninhas e o tapete gramíneo é imenso... Conforme visto, o Zanni possui muitas conexões com as festas Juninas, e ainda incorpora o Carnaval e a Morte, é considerado o xamã das plantas e animais, um representante do mundo subterrâneo, é “[...] aquele mágico paralelo que une a fertilidade humana, animal e vegetal [...]” (MIGNATTI, 2007, p.94)60. O Zanni é, como o clown, herdeiro de um DNA imaginal vindouro além Bufão. Toda esta ligação entre o Bufão, o Zanni e o reino dos mortos, da terra, da semeadura, das plantas, da fertilidade, durante o carnaval ganham mais força. O Bufão ganha a liberdade da obscenidade através dos caminhos ritualísticos, quando o corpo nu e a fertilização da terra com o sêmen humano faziam parte do ciclo de fevereiro. Através deste rizoma é que a obscenidade se fortalece como instrumento do Bufão, do Zanni e de outras Máscaras dell’Arte. A obscenidade também se foi tornando instrumento da inversão da ordem através desta ligação com a terra, não porque o obsceno é transgressor da moralidade, mas porque o ato de fertilizar a terra, vindouro dos rituais antigos, faz parte de uma força telúrica que integra homem, animal e vegetal. A sexualidade faz parte da fertilização do cosmos e na festa carnavalesca potencializa-se e transforma-se em uma das principais forças do popular, conforme indica Backthin. No caleidoscópio das Máscaras dell’Arte, Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras e diversos Rituais, torna-se difícil fazer um caminho em linha reta. É preciso constatar algumas das diversas conexões de uma Máscara para justificar os caminhos escolhidos para criar uma técnica como a dos Bufões, totalmente ligada ao telurismo e ao jogo-festa-ritual. Como, também, para esclarecer os procedimentos de apropriação de um gênero de teatro específico, no caso, a commedia dell’arte, através de células de Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras. Utilizando estas como ponto de partida para a compreensão de universos e, daí então, a criação de uma técnica de Bufão e de uma possibilidade de acesso às máscaras dell’arte. Após o relato da técnica criada para o Bufão, da compreensão do seu universo e do desdobramento deste no Zanni, começa-se a relatar o caminho percorrido para a apropriação das máscaras dell’arte. Para tanto, a ordem que se seguirá será a do conhecimento prático adquirido ao longo do estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore e de outras experiências 60 Tradução da autora: [...] quel magico parallelo che unisce la fertilità umana, animale e vegetale [...]”. 139 solos realizadas e não uma cronologia histórica das Máscaras dell’Arte ou das Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras. 140 4. FESTAROLAS E TRANSDUÇÕES1 - TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA DELL’ARTE “Toda investigação do imaginário social-histórico redunda em fascínio” Monique Augras (2009, p.13) Tentar rastrear os transcursos rizomáticos engendrados pela imensidão líquida do imaginário é muito complicado. Principalmente, porque este é constituído de forma não hierárquica, o que coloca todos os seus elementos formadores (afluentes) numa mesma situação. Tentar organizar uma apresentação destes “afluentes” implica em colocá-los numa ordem o que, se faz necessário lembrar, não tem a ver com hierarquia. Estarei fazendo, neste primeiro momento, uma apresentação das práticas espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa, deixando as máscaras dell’arte (Zanni, Servetta, Cortigiana, Pantalone, Capitano, Nobile, Arlecchino e Brighella) para o momento posterior. Contudo, as máscaras poderão ser citadas para marcar algumas de suas relações com as práticas espetaculares populares brasileiras apresentadas. É conveniente ainda lembrar que uma relação mais detalhada da relação dos códigos será mostrada no capítulo seguinte. O modo como percebi que poderia acessar as máscaras dell’arte foi através de uma percepção sensível, um caminho subjetivo que minha musculatura descobriu antes que eu racionalizasse sobre esta possibilidade. Foi quando cursava a graduação em teatro na Universidade Federal de Santa Maria, numa aula prática de commedia dell’arte com a Drª. Inês Marocco, em que estávamos aprendendo a movimentação da máscara do Arlecchino e onde seguia todas as suas indicações. Em determinado momento, quando estava praticando a caminhada desta máscara (cujo passo é duplo, avançando com dois passos seguidos com cada perna, mantendo os joelhos semiflexionados e o baricentro baixo), minha musculatura acessou o mesmo circuito muscular que utilizava para realizar o “avanço” da capoeira regional, e para a forma da movimentação (ângulos dos joelhos, cotovelos e quadril) e postura que o corpo permanecia quando parava, minha musculatura foi buscar suporte nos circuitos da dança do frevo. Transdução, na física, é um processo pelo qual uma energia transforma-se em outra de natureza diferente e na genética é a transferência de ADN (Ácido Desoxirribonucléico - ou DNA, como é conhecido) entre bactérias tomo emprestado esta nominação de um mecanismo da física e da genética, utilizando, mais uma vez, a força da metáfora, defendida por Bachelard e Maffesoli como grande potência para o aprendizado e compreensão. Utilizo o termo, justamente, para tentar compreender e explicar o mecanismo imaginativo que se realiza neste trabalho. 1 141 Na minha imaginação, parecia que a máscara de Arlecchino, ao invés de caminhar seguindo a partitura dada, caminhava/dançando um passo que misturava frevo e capoeira e tudo indicava que aquela mistura funcionava, pois a máscara, aos olhos da professora e da turma, tinha ganhado vida. Foi assim que, posteriormente, devido ao envolvimento com o universo da máscara e os desdobramentos deste trabalho, reaproximei-me das máscaras dell’arte e fui compreendendo o que tinha acontecido naquele momento – minha musculatura acessava experiências vivificadas para, antropofagicamente, fazer o novo que lhe era proposto. Isto é, para fazer a movimentação da máscara do Arlecchino (o novo), minha musculatura convocava os circuitos musculares que já conhecia (a capoeira e o frevo) e que se aproximavam ou se igualavam, em alguma instância, daquilo que “o novo” lhe exigia. Olhando pelo lado da praticidade, não tem nada de novo ou absurdo neste processo, pois a musculatura realiza, uma certa “economia”, utilizando-se daquilo que já é inerente a ela e que tem controle para alcançar o “novo” que lhe está sendo proposto. A partir do momento em que compreendi o processo pelo qual passei quando estava aprendendo a máscara do Arlecchino e misturei a esta frevo e capoeira, tracei como objetivo a aprendizagem de outras práticas espetaculares populares brasileiras. Não pensei quantas, nem quais, mas sabia que o caminho para me apropriar das máscaras dell’arte era me apropriando, primeiro, das práticas espetaculares populares brasileiras – da minha própria cultura popular. Este caminho foi sendo realizado tranquilamente: aprendendo vivências cirandeiras, conhecendo cavalo-marinho, saudando caboclinho, maracatuando em lança, sambando em terreiros, frevando em coco, xaxando capoeira e maculelê. Cada experiência ao seu tempo, com o prazer de fazer festarolas, mas com a seriedade de um explorador curioso e apreensivo em compreender as transduções conectivas de um espaço abstrato e sensível que trabalha em uma memória muscular comovida por afetos. A primeira das manifestações espetaculares, com a qual tive contato foi o frevo. Ainda cedo, antes mesmo de começar a fazer teatro, num curso de danças populares. Esta dança, posso assim dizer, foi o primeiro eco das vibrações dos elementos arcaicos da alma, que se pronunciou conectando-se, de modo subterrâneo, mas intenso, com as máscaras dell’arte e foi a primeira das práticas espetaculares populares brasileiras apreendidas, daquelas que formam o conjunto que integram esta pesquisa. O frevo foi criado em Recife e trata-se de uma dança ágil e que requer muito vigor físico do dançarino. Segundo a pesquisadora Ana Valéria Ramos Vicente (2008), o termo “frevo” foi publicado pela primeira vez em 1907, e sua consolidação como expressão – no âmbito da dança – deu-se paralelamente à emergência de uma nova classe social advinda do 142 final do sistema escravista e composta por diferentes representantes das classes menos favorecidas (antigos escravos, capoeiristas, trabalhadores de canaviais, empregados, etc.). Vicente comenta que a música do frevo é uma resultante da mistura entre polcas2, dobrados3, quadrilha4 e maxixe5, tocado em compasso binário ou quaternário e andamento rápido. Já a dança do frevo, continua Valéria Vicente, surgiu do diálogo desta música bem misturada e o jogo dos capoeiristas, no final do séc.XIX, na cidade de Recife⁄Pernambuco. Na sua pesquisa sobre o frevo, Ana Valéria Ramos Vicente faz um panorama do desdobramento da capoeira até o frevo, elencando e ilustrando os passos da dança (PP. 82 - 84). A pesquisadora ressalta que, mais tarde, com a criação de Escolas de frevo, a dança acabou recebendo influências do ballet e danças cossacas6, o que causou variações de passos com ponta de pé e agachamentos. Segundo Valéria Vicente, Recife sempre teve tradição de desfile de bandas durante os carnavais - para a pesquisadora, esta é uma tradição muito influenciada pelo movimento social da mestiçagem das classes subalternas do período pós-escravismo. Foi nesta movimentação de desenvolvimento das classes sociais que a diversão carnavalesca das ruas, possuindo um trajeto peculiar, aos poucos se foi tornando uma grande manifestação popular brasileira. Foi neste percurso de desenvolvimento e fortalecimento do carnaval (meados do séc. XIX) que, segundo Vicente, as disputas entre as bandas que desfilavam ficaram mais “calorosas” e, então, grupos de capoeiristas passaram a acompanhá-las para fazer a segurança e defesa destas. A consequência era que, sempre que duas ou mais bandas encontravam-se, as brigas eram inevitáveis. Devido a estes encontros e disputas físicas, a presença de capoeiristas junto às bandas foi proibida, desse modo, eles acompanhavam-nas, disfarçando seus golpes em uma dança muito vigorosa e cheia de vitalidade. 2 Dança e música em compasso binário, originária da Boêmia, país celta da Europa Central (região da República Tcheca), no séc. XIX foi difundida por toda a Europa e Brasil, cuja parição influenciou algumas danças, como o vanerão, no Rio Grande do Sul e o frevo em Pernambuco. Para saber mais sobre as polcas e a relação com o frevo, ler: Entre a ponta dos pés e o calcanhar: Reflexões sobre o frevo na criação coreográfica do Recife, na década de 1990: cultura subalternidade e produção Artística, de Ana Valéria Ramos Vicente. Samba de Gafieira: Corpos em contato na cena social carioca, de Ana Maria de São José. 3 O dobrado é uma marcha militar em ritmo rápido, tanto a marcha como a própria música que serve de fundo e ritmo cadencial para esta marcha, chama-se dobrado (VICENTE, 2008). 4 Dança popular realizada em festejos juninos, é dançada em pares e possui influência das danças das cortes francesas - esta dança possui uma relação com o samba de gafieira (SÃO JOSÉ, 2005). 5 O maxixe, de acordo com São José, é considerado a primeira dança social brasileira. Resultante da mistura de polca e do lundu, com sons de percussão típico do lundu, o maxixe é dançado em par, com passos muito sensuais. Foi muito popular no Rio de Janeiro, no final do séc. XIX (SÃO JOSÉ, 2005). 6 Os cossacos eram um povo com características nômades ou seminômades, que habitava o Sul da Rússia, Ucrânia e Sibéria, cuja dança exige bastante vigor e bom preparo nas pernas por parte dos dançarinos, pois possui muitos passos de agachamento e joelhos flexionados, muitos deles incorporados ao frevo (VICENTE, 2008) 143 Com o passar do tempo, o disfarce da capoeira deixou de ser a “válvula impulsionadora” para a execução desta dança, que acabou firmando-se como estilo próprio. Com a passagem dos carnavais, o frevo foi ganhando algumas variações e, na década de trinta, já se desdobrava em Frevo de Rua (frevo feito somente com orquestra), Frevo-Canção (frevo com voz e orquestra) e Frevo de Bloco (apresenta, também, uma orquestra de madeiras e cordas e é conhecido, também, como marcha de bloco). Alguns dos acessórios do frevo, como a sombrinha, também é uma adaptação advinda dos tempos em que o frevo firmou-se como expressão. Quando os capoeiristas acompanhavam os desfiles das bandas, por causa do sol forte, alguns deles usavam guardachuvas e aproveitavam-nos, também, como objeto para executar evoluções individuais dentro da dança. Com o passar dos carnavais e com a legitimidade do frevo como dança, o guardachuva virou uma sombrinha colorida, utilizada como um acessório da dança7. Mas foi sem acessório e sem música que o frevo agiu em minha musculatura para dar vida à máscara do Arlecchino, a dança emergiu e realizou-se como tal. Mais adiante, desenvolvendo o trabalho com as máscaras dell’arte, percebi que o frevo não é conectado somente com a máscara de Arlecchino, mas também possui relações conectivas com a máscara do Zanni, da Servetta e da Cortigiana, servindo, ainda, para ações do Pantalone, Capitano, Brighella, enfim, com quase todas as máscaras dell’arte. As máscaras sempre me fascinaram, e a commedia dell’arte era mais um universo destas máscaras. Meu primeiro interesse era habitar e deixar-me habitar por esse universo e, para tanto, deveria encontrar um meio de comunicar-me, conectar-me com ele. No momento em que a máscara do Arlecchino encontrou a força do frevo, a sensação da máscara ganhando vida através do meu corpo e este se transformando a partir do contato com um universo abstrato imaginário e sem fronteira constituem uma lembrança/dado/afeto presente, até hoje, na minha musculatura. Foi este primeiro dado que me impulsionou em busca deste acesso através de experiências mais próximas à minha con/vivência. Esta transdução entre células das manifestações espetaculares populares brasileiras e máscaras dell’arte é resultante de um percurso muito específico, cujo período mais intenso e de estruturação foi o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia e intercâmbio com a Università di Roma Tre e Scuola Sperimentale dell’Attore. O que deve ficar muito claro é que esta técnica, a qual chamo de 7 Para saber mais sobre Frevo, ler: Do Frevo ao Manguebeat, de José Telles; Entre a ponta dos pés e o calcanhar: Reflexões sobre o frevo na criação coreográfica do Recife, na década de 1990: cultura subalternidade e produção Artística, de Ana Maria Vicente. 144 “transdução caleidoscópica” não é uma técnica de commedia dell’arte, mas um possível acesso às máscaras da commedia dell’arte, em específico, as de Claudia Contin8. Nas minhas buscas em diversos mares, conheci a commedia dell’arte desenvolvida por muitos profissionais e escolas diversas. A commedia dell’arte de Claudia Contin é aquela que me fascina, por portar, mais que as outras, um pouco do universo grotesco e carnavalesco das máscaras dell’arte e, principalmente, por conservar um ligame com o lado xamânico das máscaras. Nesta commedia dell’arte era (é) onde minha musculatura trabalhava (trabalha) junto com a imaginação. Quando tive a experiência mais intensa com a Scuola Sperimentale dell’Attore e fui desenvolvendo minhas dúvidas e aprofundando meus mergulhos no universo das máscaras dell’arte, comecei a perceber que o acesso criado para me apropriar das máscaras à italiana alargava-se cada vez mais, os dados geravam novos dados e assim se proliferavam de modo espiralado e torrencial. Com o “mestre” Arlecchino Claudia Contin, em sala de aula, apreendi a movimentação, corporeidade e fisicidade das máscaras dell’arte de modo “puro”, isto é, segundo a técnica criada por ela, sem intervenção de movimentos das praticas espetaculares populares brasileiras. Com Ferruccio Merisi, aprendi a encontrar a voz e ação vocal destas máscaras. Mas meu trabalho de acesso as máscaras dell’arte através das práticas espetaculares populares brasileiras seguia numa corrente subterrânea. Enquanto apreendia as partituras e movimentos codificados das máscaras dell’arte com Claudia Contin e Ferruccio Merisi e exercitava-me com a professora Verônica Risatti9, minha musculatura e, principalmente, meu querer, identificavam nos movimentos das máscaras as semelhanças energéticas e musculares com movimentos das manifestações espetaculares populares brasileiras. Não era um “querer racional”, mas sim sensível, enquanto executava os movimentos codificados das máscaras da commedia dell’arte, minha musculatura lembrava-me que aquele movimento era similar a um outro movimento do samba, do coco, da ciranda e assim por diante – da mesma forma que aconteceu quando fiz a máscara do Arlecchino com Marocco, não era um raciocínio sobre o movimento, mas uma atividade muscular e imaginativa. Depois de ter absorvido as corporeidades e fisicidades das máscaras dell’arte e de receber continuamente a ação dos dados na minha musculatura, através do processo de 8 Faz-se necessário lembrar que tive experiências com a commedia dell’arte difundida por Lecoq, Scuola Pantakin (Venezia), Renzo Sindoca (Venezia) e de Carlo Bosso (Paris), porém, prefiro fazer referência à commedia dell’arte de Contin, com a qual tenho maior afinidade e tive uma experiência na Scuola Sperimentale dell’Attore, mais longa e intensa. 9 Verônica Risatti fez parte da Scuola Sperimentale dell’Attore de 2003 a 2009, trabalhando como professora e atriz do grupo da Scuola. Formada em Teatro pela Universidade de Bologna, ela era a responsável por me exercitar e fixar o material trabalhado por Contin e Merisi, de forma que a movimentação se tornasse autômata e, ao mesmo tempo, orgânica. 145 imaginação, comecei o trabalho de transposição dos circuitos das máscaras físicas e da movimentação destas, com células de movimentos deslocados das manifestações espetaculares populares brasileiras, de modo mais lógico e racional. Porém, chegou um momento em que, conhecendo a máscara dell’arte, seu caráter e seu modo de agir e conhecendo as possíveis combinações das codificações recriadas a partir de células de movimentos extraídos das práticas espetaculares populares brasileiras, minha musculatura e imaginação, com estes dados, agiam numa combinação caleidoscópica. Mas este ritmo dinâmico de combinações de dados foi possível, somente, porque desenvolvi uma habilidade em trabalhar com os códigos extraídos das práticas espetaculares populares brasileiras. Tal habilidade desenvolvida também passou por um processo, cuja importância, para a técnica de transdução caleidoscópica de acesso às máscaras dell’arte, é de primeira magnitude – tão essencial quanto o processo de Bufão. Se o processo de Bufão auxiliou à compreensão do lado xamânico da máscara, a convivência e prática das manifestações espetaculares populares brasileiras (dentro de seus contextos), auxiliam (dentro de uma realidade mais próxima) a compreender o corpo que se emana em festa, a entender a ancestralidade festiva, a sensibilizar-se com as atmosferas e energias abstratas de uma força além tempo e fronteiras territoriais. Já a prática da codificação e decodificação dos movimentos das manifestações espetaculares populares brasileiras dá a possibilidade de criar uma exatidão muscular e de conhecer uma conexão entre o lado festivo e xamânico e o lado técnico do teatro e das máscaras. 4.1. TRANSLOCAÇÃO10: TÉCNICA MOTRIZ PARA A TRANSDUÇÃO “Claude Lévi-Strauss foi um dos primeiros a chamar a nossa atenção sobre a multiplicidade dos “códigos sensoriais”, através dos quais a informação pode ser transmitida e sobre como estes podem se combinar e “traduzir” um no outro.”11 Victor Turner (1986, p. 30) 10 A translocação, na genética, é um tipo de mutação cromossômica na qual ocorre a relocação de um fragmento de cromossomo em outra posição no mesmo genoma – mais uma vez, tomo emprestado uma nominação de um mecanismo da genética, utilizando a força da metáfora (Bachelard e Maffesoli) para tentar a compreensão e explicação do mecanismo imaginativo deste trabalho. 11 Tradução da autora: “Claude Lévi-Strauss fu uno dei primi a richiamare la nostra attenzione sulla molteplicità dei “codici sensoriali” attraverso i quali l’informazione può essere trasmessa, e su come essi si possono combinare e “tradurre” l’uno nell’altro.” 146 Na verdade, tal como o processo e técnica criada para o Bufão, a própria habilidade em geminar as células das práticas espetaculares populares brasileiras, constitui, em si, uma técnica: translocação caleidoscópica. A técnica de translocação caleidoscópica é constituída, somente, dos (dados) movimentos das práticas espetaculares populares brasileiras, e a técnica de transdução caleidoscópica constitui-se da técnica de translocação mais os dados das máscaras dell’arte. Esta primeira técnica de translocação caleidoscópica com as células deslocadas das práticas espetaculares populares brasileiras tem a finalidade de servir de base e força motriz para a técnica de transdução caleidoscópica. Como a translocação caleidoscópica é o próximo processo para a técnica de acesso às máscaras dell’arte, relatarei, primeiro, os encaminhamentos desta, fazendo algumas interferências, quando necessário, sobre as práticas espetaculares populares brasileiras em questão. Chamo a atenção, que, conforme foi feito com a técnica do bufão, os relatos porvindouros não constituem um diário de ensaio, mas os encaminhamentos desta técnica. Primeiro, por período indeterminado, teve o período de conhecimento vivificado de algumas Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras, daquelas que me interessavam, instigavam-me e que estavam ao meu alcance a possibilidade de conhecê-las e praticá-las. Como aconteceu com o frevo, cujo primeiro contato foi em um curso de dança e, posteriormente, fui conhecê-lo nas ruas de Recife durante o carnaval, aconteceu, também, com algumas outras práticas espetaculares populares brasileiras, como o Cavalo-Marinho, o Xaxado, o Maracatu e o Caboclinho. Para fazer o reconhecimento do Frevo, Maracatu, Caboclinho e Cavalo Marinho, em campo, em terras pernambucanas, tive um excelente mestre de cerimônias, o Doutor Érico José Souza de Oliveira, eterno apaixonado por sua terra e com uma incrível capacidade em mostrar as coisas belas de sua cultura, com um olhar crítico, mas, ao mesmo tempo, passional. Foi ele quem me levou para frevar nas ruas, acompanhar cortejos de Maracatu e Caboclinho e apresentou-me Mestre Biu Alexandre e seu Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE). Para a Capoeira Regional, Maculelê e noções da Capoeira Angola, segui os passos do Mestre Alabama de Salvador/BA. Na Capoeira de Angola, também tive contato com o professor Marquinho (Marcos André Alves de Albuquerque) de Recife – atualmente, responsável pelo Centro Capoeira Angola Itália de Sacile, seguindo sempre os passos de seu mestre João Grande. Para o Samba de Roda e Sambas diversos, não tive nenhum mestre, nem mesmo de cerimônia, fui apreendendo participando das rodas de samba no final das rodas de 147 capoeira, nas festas e festejos populares e com as ressonâncias de minha alma. Desta mesma forma espontânea e ao sabor de festas, foram apreendidos o Coco e a Ciranda. Como mestre de cerimônias das Danças dos Orixás, contei com a apresentação calorosa da querida colega Silvia Rita. A continuação desta apreensão foi nas pacientes tardes em companhia da Ekedy Sinha (Gersonice Azevedo Brandão) e nas noites no Ilê Axé Iyá Nassô Oka, Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho/BA, além das diversas mães e filhas de santo deste mesmo terreiro e de outros terreiros de Candomblé; Candomblé de Angola e do terreiro Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá, de Santa Maria/RS. Este último terreiro no qual convivi por muito tempo participando dos rituais de Caboclos, Exus e Pombogiras12, Pretos Velhos e Êres, intitula-se Terreiro de Linha Cruzada13 e, apesar de ter ligações com a Umbanda, não possui práticas comuns ao espiritismo, sua relação com a religiosidade e ritos é com o Candomblé. Muito dos termos utilizados no terreiro, os cultos, as festas e a presença dos Orixás são advindos do Candomblé, porém, a Linha Cruzada tem, também, a presença das entidades - seres espirituais da Umbanda que não fazem parte do Candomblé, a não ser no Candomblé de Angola, cujo culto ao Caboclo é acentuado. Neste terreiro de Santa Maria/RS, as festas dos Orixás são chamadas de Batuque e são realizadas eventualmente, enquanto que o culto às “Entidades”, Caboclo, Preto-Velho, Exu e Pombogira, são semanais. Os Caboclos e Pretos-velhos falam numa mistura de Iorubá com português, já os Exus e Pombogiras (também chamadas de Exu-mulher) falam em uma linguagem bem específica e própria, a qual não é iorubá. Este tipo de rito religioso que encontrei em Santa Maria/RS possui muitas similaridades com os ritos do Candomblé de Angola. Mas estas questões concernentes às religiosidades afro-brasileiras, denominações e diferenças, não dizem respeito ao núcleo desta pesquisa, portanto, encaminho aqueles que anseiam por mais informações sobre diferenças entre religiões afro-brasileiras, para os estudos de René Ribeiro (1982), José Carlos Pereira (2004), Raul Giovanni Lody (1977) e Deolindo Amorim (1993). Dessa forma, em campo, seguindo mestres de cerimônias e mestres da prática, fui apreendendo as práticas espetaculares populares brasileiras, que estavam ao meu alcance: Frevo, Maracatu, Capoeira, Maculelê, Dança dos Orixás, Coco, Ciranda, Xaxado, Cavalo Marinho, Caboclinho e Samba. Também é encontrado a nominação “Pombagira”, esta variação acontece, a depender do terreiro. A Linha Cruzada, segundo o Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá, de Santa Maria\RS, surgiu por volta de 1950 e está entre os ritos afro-brasileiros mais jovens do Rio Grande do Sul. O nome “Linha Cruzada” foi dado, devido à mistura de entidades da Umbanda - Caboclos, Pretos-Velhos, Pombogiras - Orixás do Batuque (como o Candomblé é chamado no Rio Grande do Sul) e a Jurema. Ao entrar num terreiro de Linha Cruzada, tive a sensação de estar num encontro de várias manifestações ritualísticas brasileiras, pois além das imagens da Jurema, entidades e Orixás, também é possível encontrar imagens de santos do cristianismo. 12 13 148 A partir das convivências comecei um exercício destas, não somente indo a campo (festas, festejos e rituais) e seguindo cursos, mas com uma disciplina própria, fazendo uma prática esquematizada em sala de trabalho. Como um bailarino ou um músico que, para dominar uma dança ou um instrumento deve exercitar-se, eu tinha que dominar os movimentos das danças e golpes que integram o conjunto das práticas espetaculares populares brasileiras desta pesquisa. Para desenvolver uma possível agilidade dentro dos movimentos de tais manifestações espetaculares, somente praticando-as, era necessário criar uma rotina de trabalho, exercitar-me, orquestrar-me, treinar ou ensaiar – qualquer um destes nomes quer dizer, para esta pesquisa, uma prática assídua esquematizada e uma organização desta prática de modo objetivo e⁄ou subjetivo. O circuito energético forma-se a partir do circuito muscular - Artaud já assinalava esta capacidade de formação e conexão de tais circuitos quando fazia referência ao ator como “atleta afetivo” (conforme mencionado anteriormente) – é como se a musculatura trouxesse, impressa nela, energias. Por consequência da dinâmica entre o circuito muscular e o energético, são comovidos afetos que tocam uma “experiência ancestral” (MAFFESOLI, 2008)14 e emanam certa “ancestralidade festiva” record/ativa das práticas espetaculares populares brasileiras. Para esta pesquisa, é muito importante ter a experiência em campo, pois estas emanações ancestrais, a cada renovação ganham mais força e multiplicam-se de maneira facetada e, certamente, a atmosfera em que estas manifestações são habituadas a se realizarem já está impregnada destas partículas, as quais agem, também, naquele que se está iniciando nas práticas espetaculares populares em questão, como sujeito da ação ou como público. Posso dizer, também, que a presença frequente ou em massa destas pessoas que habitualmente se emanam em festa e ritualidade e que produzem e reproduzem nelas estes circuitos musculares e energéticos ajudam, de alguma forma, em diferentes instâncias, através da convivência e, então, do dado sensível, a fazer com que a musculatura conheça, compreenda e apreenda tais possibilidades. Estando em campo, penso que a intuição e a subjetividade agem em lençóis subterrâneos, com maior eficiência. Com a intuição coloca-se em jogo uma “visão central” que, justamente, não indireta, mas, antes, enraíza-se profundamente na própria coisa, dela se nutre e, portanto, dela frui [...] É preciso, com efeito, lembrar que o conhecimento remete, em parte, para o “nascer com” (cum-nascere) e que, portanto, implica uma forma de convivência (MAFFESOLI, 2008, p. 133). 14 Termo utilizado por Maffesoli para fazer referência à atuação da intuição dentro do pensamento/ação intelectual. 149 Para esta pesquisatriz, o convívio com aquilo que se procura conhecer é fato necessário e nenhum outro modo de conhecimento é tão eficiente quanto o da convivência. Uma experiência que tenho muito clara sobre os afetos que esta convivência move ou os genes imaginários que se comovem com a imaginação foi a primeira vez em que estive jogando em uma roda de capoeira. Durante muito tempo pratiquei os golpes e jogo em dupla, sob os olhos e comandos do mestre (Mestre Alabama), mas quando este me mandou jogar na roda é que senti os dados sensíveis se comoverem em imaginação. Num momento, estava na roda de capoeira e, num outro momento, percebi naquele espaço algo que ultrapassava a sala e até mesmo as pessoas ali presentes. Os dois capoeiristas no meio da roda se assemelhavam, em alguma instância da tríade “jogo-festa-ritual”, com dois gladiadores ou dois conquistadores de tribos diferentes - seres com ressonâncias energéticas de elementos vindouros de outro espaço/tempo, as quais se reconheciam nas vibrações dos corpos que se emanavam em festa-jogo-ritual. A própria capoeira possui intensa ligação com as três instâncias da tríade de Huizinga. Atualmente, a capoeira é difundida pelo mundo como luta, dança e jogo, tendo como estilos principais a Angola e a Regional. A meu ver, a capoeira pode ser considerada uma arte marcial15 com um diferencial em relação às outras: o acompanhamento musical – atabaques, pandeiro, berimbau, agogô, palmas e voz (atualmente, percorrendo diversas rodas de capoeira, encontrei incorporados à música outros instrumentos, como o bumbo, a caixa e outros). Segundo Evani Tavares Lima, não há uma opinião em comum sobre a origem da capoeira, sabe-se que era praticada nas senzalas e quilombos, porém, nos tempos do missionário jesuíta, José de Anchieta (1534-1597), tinha-se notícias de uma prática que se aproximava muito à da capoeira, entre os indígenas e, segundo a pesquisadora, tal informação traz imprecisões e dúvidas sobre a origem e miscigenação desta. Desde o século XVI que Portugal enviava escravos vindos da África para o Brasil e, dentro das senzalas, as primeiras notícias da presença da capoeira no Brasil acorreram no século XVII, quando aconteceram os primeiros movimentos de fuga de escravos, entretanto, não existe documentoção destes movimentos de rebeldia por parte dos escravos. Os capoeiristas, na grande maioria dos golpes de ataque e de defesa, utilizam pernas, pés, cabeça e, ocasionalmente, braços e mãos. A capoeira de angola é caracterizada por um jogo denominado “baixo”, “lento”, matreiro, cheio de malícias, disfarces, malandragem e ludibriações. Segundo Lima, a capoeira angola trabalha no corpo-espírito, pela caracterização 15 Conforme assinala o anteprojeto de regulamentação da capoeira, de 1980 “Capoeira: arte marcial brasileira”, o qual pode ser encontrado na biblioteca de música da UFBA. 150 do não enfrentamento direto e pelo grande teor ritualístico. A capoeira angola traz com ela a forte presença da “mandinga” - expressão que pode fazer referência ao jogo difícil, mas também traz a ligação ancestral e mítica entre os capoeiristas e com a própria capoeira. A capoeira também se conecta ao samba de roda, samba-duro e samba de caboclo, os quais, nesta arte, são tipos de ritmos para embalar o jogo. Mas estes tipos de samba também são cantados ao final da roda de capoeira regional, como forma de saudar e comemorar a capoeiragem. A capoeira regional, estruturada por Mestre Bimba, o qual introduziu um treinamento sistemático e criou uma metodologia de cordas para as graduações dos capoeiristas, possui golpes baixos e altos, o tempo de execução dos golpes é mais rápido, em relação à angola, e sua principal característica é o enfrentamento direto e o elemento acrobático16. A capoeira regional traz com ela um teor ritualístico, em menor grau que a angola, mas que se pode perceber nas ladainhas17 e na presença dos sambas – conforme comentado anteriormente. Apesar das duas modalidades de capoeira possuírem golpes em comum, os nomes e alguns detalhes de movimentação destes podem variar de um grupo para outro18. Dentro da minha prática de acesso das máscaras dell’arte, a capoeira é conectada, intensamente, com as Máscaras do Zanni, Arlecchino, Cortigiana e Capitano, mas participa, também, das ações de outras máscaras dell’arte. Este efeito de transposição de atmosfera que aconteceu quando estive no centro de uma roda de capoeira, por exemplo, não aconteceu quando joguei maculelê. Conforme Popó do Maculelê19 (Paulino Aloísio Andrade) em entrevista dada a Maria Mutti (1978, p. 9) o “maculelê é dança e luta ao mesmo tempo, defesa e ataque misturado ao ritmo nego (definição de Popó, sempre que falava no ritmo do maculelê)”. Feito com bastões, chamados de grimas, o maculelê possui três possibilidades de surgimento. As duas primeiras versões, ouvi de dançadores/lutadores de maculelê, com quem 16 Para saber mais sobre Capoeira, Capoeira Angola e Capoeira Regional, ler: Capoeira Angola como treinamento para o ator, de Evani Tavares Lima; Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo; A arte da resistência: atividade que mistura luta e dança busca independência In Problemas Brasileiros, de Telma Egle; A capoeiragem baiana na corte imperial (1863-1890) In Afro-Ásia, de Carlos Eugênio Líbano Soares; Capoeiras e intelectuais: a construção coletiva da capoeira ‘autêntica’. In Estudos Históricos, de Simone Pondé. 17 A ladainha, segundo Evani T. Lima, é o momento de maior introspecção e teor ritualístico da capoeira (2008, p. 31). 18 Alguns dos principais golpes da regional, alguns deles se repetem na angola, são eles: aú (conhecido comumente como roda ou estrela), armada de costas, ponteira, benção, cabeçada, chapa, martelo, martelo cruzado, queixada, chibata, macaco, meia-lua, meia-lua de compasso, gancho, rasteira, vingativa, cruz, esquiva, rabo-de-arraia, queda de rins, rolamento, passo a frente, semipulo e tantos outros. Grande parte destes golpes pode ser vista nas ilustrações ao longo do livro de Evani Tavares Lima “Capoeira Angola como treinamento para o ator” (2008). 19 Popó do Maculelê nasceu em Santo Amaro/BA e foi quem, segundo Maria Mutti e Zilda Paim, difundiu e deu fama ao maculelê. 151 praticava capoeira nas aulas do Mestre Alabama. A primeira delas possui uma característica mais mitológica: diz a lenda que Maculelê era um negro fugido, o qual foi acolhido e curado de todos os ferimentos da fuga por uma tribo indígena. Como Maculelê não era da tribo, ele não tinha permissão para acompanhar os índios em todas as suas atividades. Um dia, uma tribo rival atacou a tribo em que Maculelê estava e, não havendo índios para defender a tribo, Maculelê, lutando com bastões e facões, venceu heroicamente os guerreiros da tribo invasora. Desde então, a dança/luta/jogo que ganhou seu nome é realizada como um modo de honrar e contar o feito de Maculelê. A segunda versão possui uma característica mais simbólica. A versão diz que o jogo/dança/luta maculelê teve origem como um ato de resistência dos negros, simbolizando a luta destes com os feitores das grandes propriedades escravocratas. A terceira versão está no livro de Maria Mutti intitulado “Maculelê”, no qual a pesquisadora e jogadora/dançadora/lutadora de maculelê, entrevista Vavá de Popó (Valfrido Vieira de Jesus, filho de Popó) e deixa esta versão documentada. Vavá diz que o maculelê era feito nas senzalas, durante a noite, servindo como treinamento para os escravos rebeldes, porém, a luta era disfarçada em dança e, como cantavam e comemoravam em língua africana, os senhores pensavam que aquele era o modo dos escravos saudarem os deuses africanos. Na entrevista a Maria Mutti, Vavá deixa claro que o maculelê tradicional é feito com grimas, não com facão e que o maculelê com facão é uma recriação recente. O maculelê é realizado em quatro tempos e se caracteriza pela exigência de vigorosidade dos jogadores. Cada jogador possui uma grima em cada mão e se enfrentam num jogo de golpes de bastões que se cruzam, batendo no alto em um dos tempos e executando movimentos ágeis nos outros três tempos20. Quando os jogadores/lutadores/dançadores fazem o maculelê com facões no lugar das grimas, exige muito mais habilidade destes21. Quando joguei maculelê pela primeira vez, tive dificuldade em me deixar habitar pela prática e na medida em que fui aprendendo, a imaginação trabalhava e esta dança/jogo/luta foi ganhando força. Ainda não sabia como utilizaria esta prática espetacular popular brasileira na minha pesquisa, mas sabia que, se ela estava apresentando-se, deveria apreendê-la. Posteriormente, a imaginação trabalhou e o maculelê foi utilizado em cenas com as máscaras do Pantalone, Zanni e Capitano. 20 Maria Mutti, ao longo do livro “Maculelê”, traz fotografias do jogo\luta de maculelê, feito nas ruas de Santo Amaro/BA. 21 Para saber mais sobre o Maculelê, ler: Maculelê, de Maria Mutti; Relicário Popular e Isto é Santo Amaro, de Zilda Paim; Olelê maculelê, de Emília Biancardi Ferreira. 152 Enquanto aprendia algumas práticas espetaculares populares brasileiras com mestres, outras eram apreendidas em festas e festejos populares, seguindo mestres anônimos, como foi o caso do coco e da ciranda, cujas práticas estão, respectivamente nesta ordem, nas bases das máscaras do Pantalone e da Nobile ou Enamorada (como também é conhecida). O Coco, também conhecido como Coco de Roda ou Samba de Coco (apresentando, ainda, outras variações de nomes), é uma dança que possui origenes contraditórias. Feita em três tempos, a sua maior dificuldade está no próprio ato de executá-la por horas, exigindo dos dançadores certa resistência física. A dança pode ser feita em roda, em fila, em pares ou soltos pelo salão ou pátio, relacionando-se livremente. Os dançadores executam um sapateado específico e relativamente “simples”, batem palma marcando o ritmo, trocam “umbigadas” com os dançadores vizinhos e respondem ao coco cantado pelo “coquero”22 – mestre cantador que canta o verso improvisado ou decorado. Mesmo tendo uma “pisada” marcante, o coco não exige nenhum tipo de veste ou sapatos específicos, podendo ser dançado com sapatos, chinelos ou descalços. Segundo o pesquisador Leonardo Dantas Silva, no livro “Alguns documentos para a história da escravidão” (Recife: Massangana,1988), o Coco é originário das cidades litorâneas do Brasil. Primeiro surgiu como um canto executado pelos colhedores de coco e, aos poucos, foi desenvolvendo-se, também, como ritmo dançado. Já a pesquisadora Mariana Cunha Mesquita do Nascimento (2005), afirma que o Coco é uma das danças mais tradicionais do nordeste brasileiro, trazendo a informação de seu surgimento, ao citar Evandro Rabello, nos quilombos, especificamente no Quilombo dos Palmares, por volta do séc. XVII. Nascimento afirma que os negros deste quilombo, para quebrar a casca do coco, apoiava-o no chão e depois batiam neste com um outro e, como eram muitos a quebrar cocos, uma batida foi-se sobrepondo a outra e o ritmo foi sendo construído. Quando o ritmo foi levado para a senzala, as batidas dos cocos foram substituídas por palmas e uma “pisada” especial. Sendo uma dança não muito complicada, ela une canto, palmas, pisadas e umbigadas, todos, segundo Nascimento, elementos advindos das tradições africanas. Baptista Siqueira (1978) também fala da presença do coco de roda entre os descendentes africanos, seguindo os caminhos do samba, o autor fala deste encontro do samba com o coco e comenta rapidamente a influência ameríndia contida neste último. A pesquisadora Mariana Nascimento chama a atenção para o fato de que, no século XX, o coco tornou-se muito popular e tinha-se por costume, entre as pessoas mais simples, 22 Baptista Siqueira, no livro Origem do termo samba (1978), traz algumas fotografias do samba de coco. 153 chamar os moradores das redondezas para “pisar o coco” depois da construção de uma casa, com a finalidade de aplainar o terreno de terra batida - festejando a moradia e aplainando o terreno. Apesar de ter tido grande popularidade, no decorrer do séc. XX, com o processo de urbanização e industrialização, gradativamente, o coco foi perdendo força e se tornando menos popular. Atualmente, restam poucos grupos de coco no litoral brasileiro. Mas a autora sublinha um outro componente que contribuiu para o declínio da popularidade do coco, ela afirma que o prestígio do coco foi terminando, não somente pelo processo de urbanização, mas para abrir espaço para outro ritmo que estava crescendo na época: a ciranda23. Apesar de a ciranda ter tido seu apogeu após o coco, ela também teve o mesmo destino dele. Mesmo sendo uma dança praieira e comum de ser realizada nas festas populares, são poucos os grupos específicos de ciranda. Segundo Mariana Nascimento, diferente do coco, a ciranda não possui suas possíveis “origens” nas danças africanas e, sim, nas danças européias. Afirmação compartilhada por Maria de Souza (2008), mas que, ainda assim, traz a lembrança de danças célticas e indígenas que possuem características semelhantes à ciranda. Tanto quanto o coco, a ciranda não tem uma data específica de festejos, ela é realizada durante todo o ano e sem limites de idade ou de participantes para realizá-la, quando uma roda de ciranda se torna muito grande, os cirandeiros fazem outra menor no seu interior. Maria Souza conta que, na ilha de Itamaracá, em Pernambuco, a ciranda tem início sempre para o sentido anti-horário. Para a realização de uma roda de ciranda, necessita-se da presença do mestre cirandeiro, cuja responsabilidade é a entoação do canto das cirandas que embalam a festa, seja improvisando ou fazendo cantigas decoradas. A ciranda não possui grande variação instrumental, são quase sempre os mesmos (tanto em Pernambuco quanto no Ceará ou na Bahia), sendo os mais comuns o bombo ou zabumba, o mineiro ou ganzá, uma espécie de chocalho (chamado de maracá ou maracaxá) e a caixa ou tarol. A pesquisadora Maria de Souza traz a explicação da possível origem do nome ciranda, citando Evandro Rabello (apud SOUZA, 2008, p.59-60): A origem do nome ciranda se assemelha com a forma de união dos participantes como descreve Rabello, pois do árabe çarand (tecer) para o espanhol zaranda 23 Para saber mais sobre Coco, Samba de Coco, Coco de roda, ler: O coco praieiro: uma dança de umbigada., de Altimar de Alencar Pimentel; Alguns documentos para a história da escravidão e Pernambuco Preservado, Leonardo Dantas Silva; João Manoel, Maciel Salustiano. Três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, de Mariana Cunha Mesquita do Nascimento; Origem do termo Samba, de Baptista Siqueira. 154 (peneira) pareceu assumir a forma que hoje conhecemos. Uma outra procedência do nome teria sido associada ao fato de as mulheres trabalharem em serões o que daria, por extensão, seranda e, aí, ciranda. Mas, além das considerações sobre a possível origem do nome desta prática espetacular popular brasileira que a pesquisadora Maria Aparecida de Souza (2008, p.53) vai buscar com dedicação, está o destaque que a pesquisadora dá a um aspecto da ciranda que, para esta pesquisa, é muito interessante: A partir do momento em que o canto é iniciado o tempo corre e o que foi narrado deixa de estar numa posição estática e assume sua natureza dinâmica, mobilizadora. Numa roda de ciranda o ambiente do dançador redimensiona tempo e espaço e, aí também, o cirandeiro refaz um movimento que o ancestral desconhecido lhe legou: a tarefa de perpetuar o prazer de bailar com a comunidade. Mais adiante, a pesquisadora ressalta, dentro da ciranda, a questão da extensão histórica e da transmissão que remete a uma memória de longa duração, indicando, ainda, um caminho de continuidade da sociedade envolvida em um espírito coletivo. Além da questão coletiva que permeia esta dança, encontra-se, no discurso de Maria Souza, o aspecto ancestral e cósmico da dança, o que, para esta pesquisa, é um dos fatos que fazem a conexão rizomática com as máscaras dell’arte. Este mesmo aspecto ancestral citado por Souza não diz respeito somente à ciranda, mas a todas as práticas espetaculares populares que integram esta pesquisa24. Conforme dito, o Coco e a Ciranda, na minha prática, estão na base das máscaras do Pantalone e da Nobile, como a Capoeira e o Frevo estão na base das máscaras do Zanni e do Arlecchino. Esta última possui, ainda, uma forte ligação com a Dança dos Orixás – mais adiante falarei da composição desta máscara dell’arte. Apesar de cada máscara dell’arte possuir maior intensidade de conexão com uma, duas ou três, das práticas espetaculares populares brasileiras, na medida em que uma máscara ganha vida através de ações, outras práticas espetaculares populares brasileiras são requeridas para a realização de ações. O interessante é que, em algum momento, muito dos estudos já realizados sobre as manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa tocam neste aspecto ancestral de tais práticas – é o DNA imaginal que percorre a história sem fronteiras ou 24 Para saber mais sobre a Ciranda, ler: Ciranda na Ilha: Um rito espetacular, herança de Mestre Baracho e Lia de Itamaracá, de Maria Aparecida de Souza; Antologia pernambucana de folclore 1, de Mário Soutomaior e Waldemar Valente(Org.); Danças folclóricas, de Américo Pellegrini Filho; João Manoel, Maciel Salustiano. Três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, de Mariana Cunha Mesquita do Nascimento. 155 limiares e se faz presente, pungindo insistentemente a realidade e se fortalecendo na renovação. Outro exemplo da presença desta ancestralidade cósmica e festiva está no maracatu, prática espetacular que faz parte da base da máscara do Brighella e serve a ações das máscaras da Cortigiana, Servetta e Capitano. Complexo, o Maracatu possui duas variantes: Maracatu de Baque Solto ou Rural e Maracatu de Baque Virado ou Nação. Na minha prática, o Maracatu de Baque Virado é muito mais utilizado, porém, não posso deixar de sublinhar a figura do Caboclo de Lança do Maracatu Rural, a qual, sem dúvida, merece um estudo conectivo mais aprofundado e detalhista num momento posterior a esta tese. O Maracatu é uma prática espetacular popular tipicamente pernambucana e, conforme anunciado ao citar o Caboclo de Lança, tanto o Rural quanto o Nação possuem estreitas ligações com o rito religioso (o Nação com o Candomblé e o Rural com o Culto da Jurema). Apesar do maracatu Nação ter a ligação maior com o Candomblé, todos os dois maracatus trazem a fusão com elementos indígenas, principalmente, na presença da figura do Caboclo: no maracatu nação, o Caboclo de Pena e no maracatu rural, o Caboclo de Lança. Segundo a pesquisadora Roseana Borges de Medeiros (2005), os maracatus Nação são mais antigos que os maracatus rurais. Alguns deles possuem aparições datadas e documentadas em 1863, todavia, segundo Leonardo Dantas Silva (2002), como se trata de uma prática advinda de escravos, os quais mantinham os costumes da tradição oral e não escrita, é possível que os Maracatus sejam muito mais antigos do que seus registros. No século XIX, os Maracatus não eram bem vistos e, somente no decorrer do século XX, conquistaram prestígio (foi, também, no século XX, segundo Medeiros, que os maracatus rurais foram criados). Segundo Medeiros, o maracatu Nação possui forte ligação com os terreiros de Xangô (como o Candomblé é chamado em Pernambuco, principalmente em Recife), tendo nos babalorixás dos terreiros nagô, os representantes dos reis negros vindos da África. O Maracatu Nação é formado pelas figuras do Rei e da Rainha, uma Dama de Honra, que acompanha a Rainha e outra que acompanha o Rei, um Príncipe e uma Princesa, um Duque e a Duquesa, um Ministro, um Embaixador, um Conde e uma Condessa, Damas de Paço25 (são elas que levam a Calunga – divindade espiritual ligada ao Candomblé), Vassalos, Porta-Estandarte, Escravo (é ele quem carrega o guarda-sol do casal real), Caboclo de Penas, Baianas e outras 25 Segundo o Dicionário Virtual Houaiss 1.0: Paço: substantivo masculino; 1- habitação suntuosa para a realeza ou o episcopado; palácio; 2- Derivação: por metonímia - conjunto de pessoas que habitam esse palácio; 3edifício onde se reúne o conselho ou a câmara municipal. 156 figuras como os corneteiros e animais. São as danças destas figuras representadas no cortejo do Maracatu Nação, suas fisicidades e corporeidades que fazem parte da constituição do grande reservatório/motor que possibilita o acesso às máscaras dell’arte através das técnicas de translocação e transdução - ambas as técnicas serão explicadas mais adiante, aqui, faz-se necessário esclarecer quais as práticas espetaculares populares brasileiras que incorporam estas duas técnicas. Seria um discurso muito prolongado descrever a dança de cada uma destas figuras, então remeto o leitor interessado por estas, aos estudos de Maria Alice Amorim e Roberto Benjamin (2002). Ainda, aos leitores que desejam mais informações sobre o maracatu Nação e seus cortejos, remeto-os, sobretudo, aos estudos específicos do maracatu rural de Roseana Borges de Medeiros (2005), Ana Valéria Vicente (2005), Mariana Cunha Mesquita do Nascimento (2005) e Severino Vicente da Silva (2005). Também, faz-se importante mencionar o acervo do Museu do Homem, no centro da cidade de Recife e a importância de visitar e ver os desfiles dos maracatus26. As danças das figuras do Maracatu são utilizadas como força motriz da técnica de transdução. Por exemplo, a dança da figura do Porta-Estandarte geminada com a do rei e da rainha é utilizada na composição da máscara física do Brighella. Já em um momento de locomoção específica desta mesma máscara (quando está bêbado), emprega-se a dança do rei e da rainha. Outro exemplo é a dança dos escravos e das baianas, utilizadas em ações das máscaras da Servetta, Cortigiana e, também, Brighella, enquanto o passo do cavaleiro é utilizado para ações da máscara do Capitano. Esta mesma relação é estabelecida com o Cavalo Marinho. Formado por muitas figuras, com momentos de interação com o público, outros de total entrosamento técnico, improvisação e descontração somente entre os brincantes, é uma prática espetacular que mereceria um estudo muito específico. Porém, mais uma vez, adentrar tal universo seria perder-se nele e fazer uma pausa ou desvio demasiado longo no processo de compreensão dos encaminhamentos das técnicas que compõem esta pesquisa. Em linhas gerais, segundo o pesquisador Erico José Souza de Oliveira (2007), o Cavalo Marinho é uma prática espetacular que abarca figuras e fragmentos advindas de outras manifestações espetaculares populares da região Nordeste do Brasil. Como é o caso dos Galantes, figuras muito próximas do folguedo da Marujada e, também, dos Reisados, ou da 26 Não poderia deixar de indicar a apreciação e visitação aos próprios cortejos desta pratica espetacular - a melhor das possibilidades para uma compreensão mais detalhada, não só das danças e figuras do Maracatu de Baque Virado, mas também da estrutura e identidade dos grupos que fazem esta prática espetacular popular brasileira. 157 figura do Boi e toda a trama que o envolve, um trecho claramente ligado ao folguedo do Bumba meu boi. Somente por estes dois exemplos já se pode vislumbrar a vastidão de conexões que o Cavalo Marinho desencadeia. Para esta pesquisa e, principalmente, para este momento desta pesquisa, detenho-me em ocupar as danças dos Galantes e do margüio, momento em que o público pode interagir na brincadeira, juntamente com os brincadores27. Os Galantes fazem parte, segundo Oliveira, de um momento religioso da brincadeira do Cavalo Marinho, com suas danças e cantos de louvação, eles saúdam os Reis do Oriente. Algumas das danças dos Galantes são realizadas com arcos enfeitados com fitas – no caso da utilização destas danças nas técnicas de translocação e transdução, os arcos são substituídos por objetos da cena ou a evolução é feita sem nada nas mãos. Também aqui para os leitores que anseiam por mais informações sobre os Galantes, a estrutura das suas danças e sobre o próprio Cavalo Marinho, vejo a necessidade de reencaminhá-los para estudos mais específicos, como os realizados pelos pesquisadores Erico José Souza de Oliveira (2007), John Murfhy (1994), Mariana Cunha Mesquita do Nascimento (2005) e Alício do Amaral Mello Júnior e Juliana Teles Pardo (2004). A dança dos Galantes com todas as suas evoluções, na minha prática, é muito propícia às ações da máscara de Pantalone e, também, para ações com a máscara dos Nobili e Capitano – todas as três máscaras utilizam a dança e evoluções realizadas pelos Galantes, cada qual dentro do seu caráter. O “margüio”, nesta pesquisatriz, além de servir às ações das máscaras do Pantalone, Capitano, Nóbili, serve às máscaras de Arlecchino e Zanni. Conforme já anunciado, o Cavalo Marinho não faz parte da composição de nenhuma estrutura das máscaras físicas da commedia dell’arte, mas da composição de ações de muitas delas, mesmo caso do Caboclinho, do Xaxado e do, já comentado, Maculelê. O Caboclinho é também uma manifestação espetacular popular pernambucana, cuja dança carrega o mesmo nome da manifestação. Segundo Ana Valéria Vicente (2005), o Caboclinho comporta e representa a herança indígena do povo brasileiro. Durante o carnaval de Recife, os Caboclinhos desfilam ao som de uma percussão feita por eles, com arcos e flechas e flautas. Porém, com o desenvolvimento do carnaval e a vontade de renovação e de ser mais vistoso aos olhos da alteridade, movimento natural da competição entre grupos, fez com que os grupos de Caboclinhos adicionassem à música que acompanha os desfiles, gaitas, surdos e ganzás. 27 O pesquisador Erico José Souza de Oliveira, nas páginas 251 e 252 do livro “A roda do mundo gira: Um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado – PE)” explica mais detalhadamente o momento do margüio na brincadeira do Cavalo-Marinho. 158 Segundo Valéria Vicente, as danças do Caboclinho estão ligadas às danças indígenas das tribos da região da Paraíba e Pernambuco, nelas também está a ligação com os cultos de pajelança, chamado pelos seguidores de Catimbó, e possui relações estreitas com o Candomblé de Angola e com o samba de Caboclo (LODY, 1977), onde o culto da Jurema, entidade indígena, é muito forte. O caboclinho, na minha prática da técnica de transdução, é utilizado nas ações das máscaras do Zanni, Capitano e Cortigiana. Também o xaxado faz parte de ações de algumas máscaras dell’arte, sem fazer parte da base de nenhuma delas. Na verdade, o xaxado é uma dança pouco utilizada, por não possuir grande variedade de ritmos e passos. Segundo Câmara Cascudo (1972), o nome Xaxado vem do som das alpargatas de couro que os cangaceiros arrastavam no chão no ato da dança. Sendo uma dança que se expandiu por todo o nordeste através dos cangaceiros, o xaxado possui um ritmo cadenciado pelo som das alpargatas e pancadas de rifles no chão e é uma dança tipicamente masculina. Esta dança, na técnica de transdução, serve muito às ações das máscaras do Zanni, Brighella, Capitano e Pantalone. Seguindo as referências das manifestações espetaculares populares brasileiras que utilizo neste momento da pesquisa, introduzo, também, o samba - outro imenso universo, com tantas variantes, que se torna difícil vislumbrar os limiares do discurso. Para as máscaras dell’arte, utiliza-se muitas variações do samba: samba de roda; samba dançado por passistas das escolas de samba, também chamado de samba de quadra; outros passos que vêm do samba que se dança em par, também conhecido por samba de gafieira e muitos outros. Com tamanha inundação, vejo como melhor possibilidade de organização e compreensão, na medida em que avançar nas explicações, reencaminhar o leitor a estudos mais específicos do samba. Indiscutivelmente, o samba está ligado ao ritual e à festa. Baptista Siqueira (1978) faz um estudo sobre o samba, perseguindo a origem do termo. Em documentos da fase de catequisação dos índios28, encontram-se referências deste termo entre os índios Cariri, Tapuias e de língua tupi, descobrindo que este sempre teve relação com a festa ou com reunião de pessoas. Diz ainda que, o termo “samba” é a junção de três outras palavras: S igual a “sua”, amb igual a paga (troca) e a igual a “gente” – o que resulta nua espécie de “troca entre pessoas”. Seguindo seu estudo, Siqueira lembra que, entre os índios de língua tupis, as danças em grupo sempre tinham relação com rituais ou cerimônias relacionados às práticas 28 Estes documentos se encontram na seção de livros raros da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 159 herdadas de seus ancestrais, com isso, a conexão do samba com o ritual e a festa se faz real. Seguindo esta mesma linha conectiva, vale lembrar que Ana Maria de São José chama a atenção para a pesquisa do Dr. José Adriano Fenerik (Depto de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), lembrando que existem depoimentos que afirmam a origem do samba dentro dos terreiros de macumba. São José assinala, ainda, que a palavra samba, advém da relação com semba, palavra de origem angolana que faz referência a um movimento específico da dança, a umbigada, muito presente no samba de coco (ou coco) e no samba de roda. Ainda no seu estudo sobre o samba de Gafieira, São José (2005, p. 113) adentra o samba de roda, fazendo a relação e a descrição dos passos desse samba29 que possui forte interação com o Batuque, a capoeira e o ritual – o samba de roda é realizado no final da roda de capoeira como modo de agradecimento, louvor e de festejar os feitos dos antepassados – e, nesse ponto, o samba reencontra o ritual e a ancestralidade. Tanto Baptista Siqueira quanto São José fazem um rápido panorama das várias influências que o samba recebeu de cada região do Brasil, o que cooperou para o desenvolvimento de vários estilos de samba, tanto na música quanto na dança. A ligação do samba com o ritual e a festa (e, portanto, com o jogo) vem desde a sua ligação com a cultura indígena e também com a cultura afro-brasileira, no samba de coco, no samba de caboclo, no samba de roda, no samba duro e nas várias outras misturas ocorridas no transcurso desta manifestação espetacular popular brasileira, conforme assinalam Siqueira(1978), Leopoldi (1977) e São José. A palavra samba também tem conexões dentro do candomblé, conforme assinala René Ribeiro(1982) quando comenta sobre os Xangôs de Recife (como são chamados os Candomblés) e fala do culto afro denominado Ketu, dizendo que estes são aqueles que se intitulam Shamba. Esta mesma afirmação sobre os cultos Ketu e o Shamba é mencionada quando Ribeiro fala das festas de Ibejis30, ou melhor, do Shamba de Ibejis. Na técnica de transdução, o samba de roda é muito utilizado em ações do Pantalone e Brighella, mas serve às ações da Servetta, Cortigiana e Capitano. Outro tipo de samba que utilizo muito é o samba dançado nos desfiles de carnaval nas regiões do Rio de Janeiro e São Paulo, também conhecido popularmente como samba de 29 Não está, entre os objetivos deste estudo, elencar os movimentos que fazem parte do samba de roda, samba de gafieira ou samba de quadra, para os que anseiam mais informações, como nomenclaturas e explicações dos passos, reencaminho para: Samba de Gafieira: Corpos em contato na cena social carioca, de Ana Maria de São José. 30 Segundo René Ribeiro (1982, p. 140-144), a festa de Ibejis, no Candomblé Ketu, é referente ao culto dos gêmeos, crianças, Ibeji e Hojo, seres da floresta e grandes conhecedores de magia. 160 quadra ou, conforme assinala São José, samba no pé. Este tipo de samba é totalmente ligado ao carnaval e caracteriza-se por uma dança ágil e sensual. Segundo Leopoldi, que analisa os encaminhamentos tomados pelas escolas de samba ao longo de cada ano para a preparação do desfile e festa do carnaval, este samba possui uma ligação muito específica com o ritual, ele vê os procedimentos das escolas de samba, antropologicamente, como rituais de uma sociedade e reafirma o carnaval como evento ritualístico31. O samba de quadra possui movimentos muito mais expansivos que o samba de roda e está na base da máscara física da Servetta e da Cortigiana, mas também pode servir a ações das máscaras da Nobile, Capitano, Zanni e Arlecchino. O samba é utilizado em vários dos seus desdobramentos, principalmente, o samba de roda e o samba de quadra, a não escolha por apenas um estilo de samba se dá porque esta pesquisa não fixa ou refuta um estilo, ela segue um fluxo subjetivo de dados que utiliza o reservatório inerente para acessar as máscaras dell’arte sem realizar uma seleção racional32. Outra prática espetacular popular brasileira que também possui uma imensidão de desdobramentos e que segue os mesmos mecanismos de “não seleção”, são as danças dos Orixás33. O Candomblé é tão complexo dentro de seus desdobramentos que devo dizer que aqui, mais do que em todas as outras práticas espetaculares populares que integram esta pesquisa, o princípio da “não seleção” é quase condição para que a técnica de transdução aconteça. Isso porque, durante muito tempo, visitei terreiros de diversos segmentos do Candomblé: Terreiro de Linha Cruzada, Batuque, Umbanda, Candomblé de Angola, Xangô, Nagô e Ketu. Em determinado momento da técnica de translocação, as danças oriundas de mais de um terreiro se misturaram. Devido aos desdobramentos e conectividades diversificadas do Candomblé, prefiro falar nas danças dos Orixás sem especificar de que terreiro ou linha estou falando. Não é um modo de generalizar, mas de não se deter em questões sobre espaços e territórios entre linhas e terreiros diversos, uma discussão que não faz parte do nosso objeto de estudo. Cada Orixá possui sua dança e uma gama de passos diversos, podendo, ainda, diferenciar-se e de terreiro para terreiro. Apreendi muitas danças diferentes, desde as 31 Para saber mais sobre Escola de samba e ritual, ler: Escola de Samba, ritual e sociedade, de José Sávio Leopoldi. 32 Certamente que, neste momento da pesquisa e da produção da tese, foi necessário um recorte, pois continuo e continuarei apreendendo outras práticas espetaculares populares brasileiras e sempre que solicitadas, integrá-lasei às máscaras dell’arte, através da técnica de translocação e transdução. Como afirmei anteriormente, não jogo uma âncora, o processo de pesquisa e apropriação das máscaras dell’arte através de células de práticas espetaculares populares brasileiras continuará vadeando em muitos mares. 33 Os Orixás mais importantes, segundo a tradição Ketu de Candomblé, são 16: Exu, Ogum, Oxóssi, Xangô, Omolú, Ewá, Logum Edé, Oxumaré, Ossain, Oxalá, Êres/Ibejis, Iansã, Oxum, Iemanjá, Obá e Nanã. 161 estilizadas (utilizado por grupos folclóricos e ligados à dança contemporânea) até os mais ritualísticos, realizados dentro dos próprios terreiros de Candomblé, com quem não tem a dança como profissão, mas a devoção ao Candomblé, à Linha Cruzada, ao Xangô, ao Batuque, ao Candomblé de Angola, à Jurema – para esta pesquisa, todo o acervo apreendido no decorrer de anos, serve de reservatório e motor para as técnicas de translocação caleidoscópica e transdução caleidoscópica. Conforme explicado, não utilizo somente as danças dos Orixás de um determinado terreiro. Fazem parte de meu reservatório e motor danças apreendidas em terreiros de Linha Cruzada, Candomblé de Angola e Ketu, sem nenhum tipo de resistência ou preferência, aquilo que a máscara dell’arte requer energética ou fisicamente, a imaginação vai buscar no acervo muscular incorporado. Como exemplo deste mecanismo, posso citar a máscara do Arlecchino, enquanto que, para as pernas e pés, esta máscara requer frevo e capoeira, para o tórax, ombros e braços, os quais possuem posturas bem específicas, ela requer uma movimentação advinda de uma dança de Iansã da Linha Cruzada - também conhecida nesta linha como Pombogira34. As danças dos Orixás são muito utilizadas por mim, para as máscaras dell’arte e, também, para a técnica de translocação caleidoscópica, pois possuem uma variedade de corporeidades e fisicidades muito grande, com gestos expressivos e cheios de uma comunicação “além da razão”. Tais danças, segundo a pesquisadora Suzana Martins, possuem uma forte ligação com outra esfera da realidade, por se relacionarem de modo incomum com o tempo. É na dança e no ritual que passado, presente e futuro relacionam-se, é como se codividissem o espaço/corpo/atmosfera do local e daqueles que estão ali presentes – em diferentes graus, a depender da capacidade de disponibilidade de cada um. Nos festejos em homenagem ao Orixá, ritual e festa codividem o mesmo espaço fisico e imaterial. No ritual e nas próprias danças, é possível perceber o dado sensível que se perpetua e se renova - é o DNA imaginal transgredindo as leis comuns de tempo e espaço: Seguindo a sequência de gestos que correspondem às qualidades e características de cada um deles [dos Orixás], os religiosos (“nós, rodantes” Janail Peixoto, 1992) continuam a se locomover, em sentido anti-horário, o que significa “voltar ao passado”, aos ancestrais. “A música, o ritmo, a dança são extensões dessa expressão. 34 Na Linha Cruzada, a Pombogira também é chamada de Exu Mulher, pois é o feminino da força de Exu. Esta relação entre a Pombogira e Iansã é comum em algumas linhas, no Candomblé Nagô, por exemplo, Iansã é muito próxima aos Exus. Considerada a senhora dos Eguns (ou Eguguns espíritos perdidos) é ela quem guia tais espíritos. Tal como os Exus, ela também atua como mensageira entre as almas e os homens - e outra vez, através de Iansã ou Pombogira, as conexões podem se enredar ao infinito... Arlecchino – Pombogira – Exu... e daí para o Zanni, Bufão e Dionísio. Para saber mais sobre a relação de Iansã e Eguns, ler: Iansã do Balé Senhora dos Eguns, de Sebastião Guilhermin; Oya: Um louvor à Deusa Africana, de Judith Gleason; A dança do vento e da tempestade, de Rosa Maria Susanna Bárbara. 162 Suprimiram as fronteiras territoriais, contrariaram o sentido do tempo cronológico; o tempo deles não gira no sentido do relógio, mas, como roda ritual, busca um contato mais profundo com a ancestralidade” (LIGÉRIO apud MARTINS, 2008, p.43) Gilbert Durand (1963) também ressalta esta relação com o tempo dentro das estruturas ritualísticas, afirmando que a necessidade de “pará-lo” e celebrá-lo faz parte da sua formação ritual. Segundo Durand, a dança, nestes rituais, ganha um caráter ambíguo: além de representar o antepassado, ela também ganha a força de uma dança da vitória sobre o tempo, pois através da supressão deste, ela possibilita a sua perpetuação e, dentro dela, acontece o encontro com o antepassado e o ancestral. A pesquisadora em sociologia Rosa Maria Susanna Bárbara (1995) fala que as danças dos Orixás expressam o equilíbrio dinâmico do universo, pois os Orixás possuem relações com o universo e todos os seus elementos, dessa forma, suas danças “[...] simbolizam as energias da natureza [e], expressam esse eterno e alterno ritmo, que continua em ciclos infinitos [...] As danças das divindades tornam-se, assim, a síntese do ritmo humano, do nascimento, da morte e dos ciclos cósmicos da criação e da destruição” (BÁRBARA, 1995, p. 72-73). Bárbara (1995, p.73) toca num ponto muito importante para esta pesquisa, o que talvez tenha sido o início do processo de imaginação caleidoscópica do interesse por esta prática espetacular popular brasileira e as máscaras dell’arte: Através da dança, o corpo sai da sua própria individualidade física e insere-se num movimento mais amplo que interessa à coletividade, à natureza, à divindade e ao cosmo todo. Distante da dança sagrada é um modo de fundir-se num único corpo vivente com as energias da natureza. Penso que foi esta qualidade de movimentos que abrangem a coletividade, os quais, como já comentado anteriormente, possuem genes/partículas vindouros do Fundo Comum dos Sonhos, de um universo imaginário líquido que transborda e punge a realidade objetiva, que foram os agentes conectivos destas danças ritualísticas e as máscaras dell’arte. É nesta gestualidade ancestral que atua com uma transgressão ou supressão de quaisquer fronteiras temporais e territoriais, que percebi sensivelmente a atuação do processo de imaginação, sentindo a possibilidade de utilizar tal gesticulação ancestral para o acesso das máscaras dell’arte. Para esta pesquisatriz, mais que conseguir acessar as máscaras dell’arte, o interesse está em conseguir uma qualidade específica de movimentação para as máscaras acessadas. Procura-se uma qualidade inerente à máscara, intenta-se reencontrar o aspecto ancestral dionisíaco destas, em outras palavras, o aspecto xamânico que toda máscara deve 163 portar e que Claudia Contin tanto sublinha dentro de sua visão e prática das máscaras dell’arte. Para esta pesquisa, estes genes que se repetem, renovam-se, transformam-se e propagam-se rizomaticamente, que se emanam nos movimentos que integram as manifestações espetaculares populares brasileiras sem controle, nem limiares, podem ser um dos principais agentes do acesso às máscaras dell’arte que proponho. São movimentos que possuem uma capacidade de identificação fasciculada ou, até, de uma conexão submolecular de desdobramentos de um DNA imaginal, reunindo características novas e ancestrais. É necessário dizer que esta pesquisa não trata da atmosfera destas manifestações espetaculares populares ou sensações provocadas por estas, mas busca compreender como um processo imaginativo ocorre na musculatura de um corpo prazenteiro que (se) emana em ancestralidade festiva (OLIVEIRA, 2007) a partir destes dados sensíveis. Da mesma forma que nas danças ritualísticas dos cultos a Dionísio, os Sátiros representavam e incorporavam o mito, o mesmo acontece nas danças do Candomblé, segundo Roger Bastide (1978, p. 22), “[...] a dança constitui a evocação de alguns episódios da história da divindade que são fragmentos do mito e o mito tem que ser representado ao mesmo tempo em que contado para adquirir todo o poder evocador” e este mito é contado e incorporado nos elementos do ritual: movimentação, música, canto, travestimento, ser travestido e toda a estrutura que comporta o ritual. Mas a utilização das danças dos Orixás não está na busca da incorporação do mito do Orixá, para esta pesquisa, a movimentação das danças é válida pela conexão com o Fundo Comum dos Sonhos e, então, pelo processo de imaginação e Fundo Poético Comum. As danças dos Orixás estão dentro das práticas espetaculares populares brasileiras que possuem a conectividade com uma atmosfera cósmica que ultrapassa limiares comuns à realidade objetiva, como espaço/tempo/cultura. Algumas imagens das danças dos Orixás que utilizo podem ser vistas nos estudos de Suzana Martins (2008) - dança de Iemanjá; de Rosa Maria Bárbara (1995) - dança de Iansãdo vento, da guerra, do afastamento dos Eguns, da borboleta, no xirê; de Karliane Macedo Nunes (2008) - imagens do gestual dos Exus e de Marlene de Oliveira Cunha (1986) imagens da gestualidade dos Orixás no Candomblé de Angola. Ainda mais adiante, serão inseridas no corpo textual desta tese, imagens dos movimentos deslocados das manifestações espetaculares populares brasileiras e entre elas estarão alguns códigos das danças dos Orixás. As danças dos Orixás, na técnica da transdução, são utilizadas de modo muito específico e, como dito, interagem, em graduações diferentes com todas as máscaras dell’arte. As danças de Ogum, Xangô, Oxóssi e Omolú são muito utilizadas nas ações das máscaras do 164 Capitano e do Zanni. As danças de Ogum, Xangô, Iansã, Iemanjá e Oxum servem muito às máscaras da Cortegiana e da Servetta. Pantalone utiliza a movimentos de Oxalá e Nanã e, dessa maneira, quando necessário, as máscaras requerem os movimentos deslocados das danças dos Orixás. Os exemplos acima são conexões que podem ser estabelecidas mais rapidamente dentro deste pensamento gramíneo que se ramifica torrencialmente e incontrolavelmente. Mas foi deste prévio conhecimento que as técnicas de translocação e transdução foram engendradas, seguindo uma torrente de dados, deixando-os agirem em minha subjetividade para, então, tentar apreendê-los35 e compreender o mecanismo do processo de imaginação pelo qual os dados estavam passando. Realizado um rápido panorama das manifestações espetaculares populares brasileiras que integram o grupo das práticas espetaculares desta tese, sem adentrá-las em detalhes, pois, como já afirmado diversas vezes, não se trata de relações comparativas e, além disso, adentrar nos pormenores de cada prática espetacular popular brasileira seria uma suspensão no pensamento dos encaminhamentos que compõem esta pesquisa, prossigo no intento de explicar o funcionamento das técnicas de translocação e transdução. Primeiro intento tornar inteligível a técnica de translocação, força motriz da técnica de transdução. Todas as três técnicas que compõem o acesso às máscaras da commedia dell’arte (bufão, translocação e transdução) funcionam pela comoção de dados sensíveis, através de um sistema de imaginação e dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. Dentro deste processo fluvial, torrencial e aluvial de aprendizado pela dúvida e incerteza, apreensão e comoção de dados, pouco a pouco, fui esquematizando uma prática para deixar os movimentos deslocados das práticas espetaculares populares brasileiras com formas bem definidas, realizando um trabalho detalhista, voltado para as questões plásticas e estéticas dos movimentos, mas sem perder os circuitos energéticos que cada movimento cria tentando trazer com os circuitos musculares, os circuitos energéticos inerentes ao movimento de cada manifestação espetacular popular. A técnica de translocação, a qual é a força motriz da transdução, requer uma prática sistemática dos dados apreendidos, conforme dito, não somente na presença e convivência em 35 Para saber mais sobre as danças dos Orixás, ler: Em busca de um espaço: a linguagem gestual no Candomblé de Angola, de Marlene de Oliveira Cunha; A dança do vento e da tempestade, de Rosa Maria Suzana Bárbara; A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo, de Suzana Maria Coelho Martins; Xetro, marrombaxetro, caboclo! A construção do corpo caboclo nos candomblés da cidade de Cachoeira – BA, de Sérgio José de Oliveira. 165 campo, a qual se deve sempre revolver, mas em laboratórios individuais, em sala de ensaio. Neste sistema de trabalho em sala, com o tempo, cada movimento deixa de ser uma dança ou um golpe e torna-se parte de uma partitura esquematizada e desenhada. Através deste trabalho, os movimentos começam a ser pensados/conhecidos como possibilidades de representação e ação - criando uma “linguagem” muito específica. Esta “linguagem” corporal proporciona-me um modo muito particular de contar/viver uma história, possuindo uma presença de corpo com desenhos/formas definidos e uma linha de ação muito “colorida” em termos de ritmos e energias, através da ideia da formação de circuitos musculares e energéticos. Isto é, quando codifico um golpe de capoeira, mantenho na musculatura a energia com que este golpe é dado quando se está jogando capoeira. Ou, ainda, um passo de frevo deve manter o circuito muscular e energético das pernas, mesmo quando geminado com uma movimentação dos braços da ciranda que, por sua vez, também manterá seu circuito muscular e energético. O que acontecerá é uma geminação dos circuitos, em algumas instâncias, estes dois circuitos complementar-se-ão, compartilharão e comungarão de pontos energéticos e musculares, formando um novo circuito resultante de tal enredamento. Repito que a escolha pelas manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa não segue nenhum critério se não o de já assimilar, na musculatura desta pesquisatriz, o que torna a técnica criada para possibilitar o acesso às máscaras dell’arte muito mais específica. Ainda, as danças, golpes e movimentos deslocados não são utilizados tal qual acontecem durante os eventos em questão, mas passam por um processo de apreensão, codificação e decomposição/decodificação, para serem relocadas em partituras de ação. A codificação é a transformação de cada movimento ou passo das danças ou golpe das lutas em uma sequência de movimentos muito bem organizados fisicamente e a decomposição/decodificação consiste em esfacelar este código ainda mais, transformando-o em células, cada célula se torna uma peça que formará as imagens criadas pelo sistema caleidoscópico. Por exemplo, o golpe de capoeira cujo nome é “queixada” pode ser um código, porém, para ser realizado, é necessária uma série de movimentos, assim, o golpe é decomposto em códigos ainda menores (movimento da perna esquerda e direita, braço esquerdo e direito, pé esquerdo e direito, quadril, mão esquerda e direita, cabeça), desse modo, cada movimento executado por uma parte do corpo para a execução do golpe constitui uma célula/componente do código. O momento de codificação é de dedicação e paciência por parte do pesquisator, que deve, primeiro, exercitar-se por um período significativo, ao menos até obter certa autonomia 166 dentro destes códigos, misturando-os em uma sequência a ponto de executá-los sem raciocinar, deixando-se levar pela lógica dos movimentos e fluxo das energias (ex.: um passo de maracatu é seguido de um passo de frevo, que é seguido de um passo de ciranda, depois por um golpe de capoeira...). Dessa forma, o corpo vai aprendendo a associar ritmos e movimentos de dinâmicas diversas e os circuitos vão-se coligando em uma linha contínua de ação, realizando o transpassamento de um circuito para outro e criando as imagens caleidoscópicas. O exercício contínuo desta prática faz com que o pesquisator adquira uma capacidade na execução dos diversos ritmos e agilidade na realização dos códigos e na ação de geminálos. Quando o pesquisator chega à habilidade de geminar tais códigos, é porque os dados estão começando a agir de modo autônomo. Da codificação para a realização da decodificação, é uma questão de tempo, pois a própria musculatura, na prática do esforço nas questões de fisicidade e corporeidade de cada movimento que compõem um passo ou golpe, começa a realizar a decodificação dos mesmos. Porém, as duas etapas não podem ser realizadas ao mesmo tempo, pois na codificação o “foco” é aberto, isto é, a atenção é direcionada para o código completo, como um todo e, na decodificação, o foco é direcionado para cada movimento que forma o código. Também é importante que, num primeiro momento de apreensão e demarcação dos códigos, os exercícios das danças e golpes que compõem as práticas espetaculares populares brasileiras que integram o grupo que serve como força motriz para a transdução, sejam realizados dentro dos seus contextos rítmicos e musicais: frevo com frevo, caboclinho com caboclinho, cada dança de Orixá com o seu toque. Posteriormente, quando os códigos já estiverem fixados e bem definidos, aí então, faz-se o exercício de conjugação dos circuitos utilizando um só ritmo musical. O ritmo utilizado por esta pesquisatriz é o samba, pois dentro dele é possível encontrar a noção de base de todos os outros ritmos das manifestações espetaculares populares brasileiras que fazem parte desta pesquisa36. Já no momento de transpassamento e geminação dos circuitos, da mistura de passos de práticas diferentes (pernas do “margüio” do cavalomarinho e braços do caboclinho), nem sempre utilizo o samba, às vezes, utilizo batuque de Candomblé e, outras vezes, o trabalho é realizado sem música – tudo depende da ação dos dados, não há uma receita para a ação da subjetividade. 36 Faço esta observação, partindo da minha experiência de pesquisatriz, sem afirmar o samba como ritmo contentor de outros ritmos, foi uma escolha pessoal. 167 Devo fazer uma importante observação, mesmo que as manifestações espetaculares populares brasileiras utilizadas nesta pesquisa, inicialmente, sejam embaladas, cada qual por seus ritmos e músicas e, numa segunda fase, seja utilizado um único ritmo para embalar a coligação dos circuitos, não se trata, em nenhum momento, da estruturação de coreografias de dança. Trata-se de um exercício de contínua produção e transição entre os vários tipos de energias produzidas pelas práticas espetaculares populares brasileiras sem racionalizar, mantendo o grau de improvisação e subjetividade, muitas vezes inerentes às próprias escolhidas. Também é necessário esclarecer que o uso de um único ritmo musical não é para simplificar o trabalho, ele serve como “argamassa”, como impulsionador e ligame dos fluxos de energias e circuitos musculares, deixando que tais circuitos hajam num processo de não racionalização. Neste momento de laboratório individual e exercício em sala, a música representa um retorno à festa e ao ritual37, servindo como elemento recordativo do processo de instauração de ambos no corpo do pesquisator. Além de representar esta record/ativa ao ritual e à festa como eventos que se instauram, a música serve, também, para a transformação destes dois eventos em “material técnico”. Conforme Angel-B Espina Barrio (2005), nos capítulos dedicados a “Antropologia Social. Sistemas Religiosos” e “Etnografia”, é preciso considerar a música e a dança como aspectos que sempre acompanharam o ser humano, nem sempre as duas estão presentes conjuntamente, mas ambas estão relacionadas ao ritual, à festa e, em muitas culturas, a uma alteração de estado de consciência, sem contar no aspecto lúdico (do jogo) que todas as duas apresentam. Tornando ainda mais nebulosa a tentativa de explicação do funcionamento das técnicas de translocação e transdução, é preciso considerar dentro dos mecanismos que as compõem, espaços como “terras de ninguém”, são os “espaços entre-circuitos”, cuja gerência é de total subjetividade – ali, onde a memória falha, a imaginação trabalha. Muitas vezes, um circuito necessita realizar algumas pequenas modificações para se conectar ao outro, como por exemplo, para transpassar de um passo de coco para um golpe de maculelê, é preciso mexer nos circuitos que se formam no final do passo de coco e no início do golpe de maculelê. O mesmo acontece com códigos que já foram decodificados, sempre que se geminam dois circuitos diferentes é preciso fazer algumas pequenas modificações nestes, por exemplo: para conectar as pernas do margüio do cavalo marinho, com braços e tronco de uma 37 Certamente que a música ao vivo é muito mais ritualística, com as vibrações dos instrumentos e/ou vozes, mas não se pode negar que a música, mesmo eletrônica, possui seus meios de manter o ritual e portar a estados de consciência diversos, ainda mais quando existe já a predisposição a esta transposição de atmosfera, adquirida em campo e auxiliada pela imaginação. 168 das danças de Omolu, é necessário que haja uma modificação nas extremidades de cada um dos circuitos, no das pernas do cavalo-marinho que, ao invés de se conectar ao tronco e braços habituais, vai se coligar com uma nova estrutura muscular e energética de tronco e braços. Esta etapa de translocar os códigos/células das práticas espetaculares populares brasileiras, deslocando-os para se relacionarem com outros códigos/células de manifestações espetaculares populares brasileiras, que não os de costume, requer uma dedicação e prática sistemática. O processo de decodificação exige que o pesquisator trabalhe no detalhe de cada código. Quando a decodificação dos passos e golpes estiver definida na musculatura, começase a realizar a translocação das células. Este processo segue o mesmo encaminhamento do trabalhado realizado nas combinações das corporeidades e fisicidades dos animais na formação do corpo do bufão - num processo aleatório, sem pensar, mas deixando que as combinações aconteçam seguindo um fluxo dinâmico de energias que se movem e comovem o pesquisator: pés e pernas de caboclinho e tronco, braços, mãos e cabeça de uma dança do orixá Oxóssi; pernas e pés de cavalo-marinho, tronco, braços e mão de dança do orixá Ogum... Assim, as células vão sendo conjugadas, geminadas = translocadas. No processo de translocação, a intenção é chegar numa dinâmica orgânica de combinações caleidoscópica, de modo que, através da prática sistemática, o próprio fluxo da prática estabeleça sequências, as quais podem servir como partituras. Na translocação caleidoscópica, as imagens que se formam são compostas por células oriundas de diferentes manifestações espetaculares populares brasileiras (conforme tentativa de explicação realizada) e constitui a chave para o possível acesso às máscaras dell’arte que proponho nesta tese. Somente passando pelo processo de translocação é que o pesquisator chegará ao processo de transdução. Somente com os códigos muito precisos e notadamente decodificados é que ele poderá formar as imagens caleidoscópicas, que se movem e recriam na musculatura as máscaras físicas da commedia dell’arte. O trabalho que o pesquisator realiza, de certa forma, neste tipo de acesso às máscaras dell’arte, é a de um montador de um grande quebra-cabeça, utilizando e reproduzindo as peças no seu próprio corpo. São as pequenas modificações nos circuitos - trabalho realizado pelo sistema de imaginação - que permitem que os códigos/células se geminem compondo um corpo harmonioso. Certamente que, nestas minúsculas ou pequenas modificações na rede dos circuitos musculares, acabam modificando, também, um pouco do circuito energético dos códigos. Contudo, estas modificações estão em níveis secundários, o que acontece, em nome desta 169 comunhão, é uma adequação em ambos os circuitos, para a passagem do fluxo energético de um código a outro. Mesmo com estas modificações, os genes primordiais vindouros de uma outra esfera devem estar contidos e latentes no cerne de cada célula que compõem o código. Através da musculatura, o pesquisator tem as ferramentas necessárias para manter pontos energéticos e emanantes de cada código/célula, de modo a formar um único e novo circuito, tão potente energeticamente quanto aqueles que o originam. Os novos circuitos possuem uma riqueza em possibilidades de modulações energéticas, pois abarcam células de manifestações espetaculares populares diversas que se conectam reinventando o “novo”. No final do processo de translocação (e também no de transdução), percebe-se que as pequenas modificações realizadas nos circuitos resultam em ondulações, graduações e modulações energéticas que indicam ainda mais riqueza e possibilidades para as imagens caleidoscópicas. O processo caleidoscópico não é estático, os circuitos agem de modo contínuo, muitas vezes se sobrepondo parcialmente ou deixando os “espaços entre-circuitos”, para a realização das pequenas modificações e transformação dos diferentes circuitos em um só. Sabe-se que é delicado relatar uma ação que “é” constante transformação e metamorfose, mas este modo de conexão é a base prática para o acesso das máscaras dell’arte – também, por isso, é importante para o pesquisator passar pela técnica do bufão, outra base prática desta pesquisa, pois, como visto, ele também é transformação e metamorfose. A prática sistemática da translocação, além de ser chave para as máscaras dell’arte, constitui, ela própria, uma técnica que pode ser levada à cena. Ela pode ser encaminhada de modo racionalizado ou de modo improvisado. Para a criação de ações e cenas, dá-se continuidade ao exercício de trasnlocação de células deslocadas das várias manifestações espetaculares populares brasileiras de modo improvisado, deixando-se levar pelo fluxo dos movimentos, embalados pela música. Posteriormente, acrescenta-se o texto, já contido na memória ou improvisado, o importante é que o argumento esteja muito claro para que não seja necessário parar para pensar durante o processo. O texto deve ser mais uma peça a formar as imagens caleidoscópicas, talvez não chegue a ser uma peça, mas um fluido a mais, adicionado às imagens que transpassa e trabalha junto com elas. Também aqui, a prática com o mesmo texto falado é realizada muitas vezes, deixando, num primeiro momento, a música embalar os códigos que deslizam no fluído literal que é o texto. A repetição acaba por, algumas vezes, fixando algumas das geminações realizadas, e estas insistências podem ser tomadas como uma parte da cena já estruturada, servindo-se a 170 cena. Pode-se, ainda, deixar partes do monólogo para serem improvisadas no ato da apresentação, ou a coligação das células e códigos podem ser estabelecidas de modo racional. Neste último caso, o fluxo natural da movimentação deve ser estabelecido posteriormente, com a repetição exaustiva da série das ações recriadas, buscando a pulsação energética e de emanação através da musculatura, acionando os circuitos de modo a comover as energias e forças oriundas de cada código. É muito importante a coligação dos circuitos das células vindouras de diferentes manifestações espetaculares populares brasileiras seguindo um impulso e fluxo natural, mantendo em cada código e célula a sua pulsação e energia originária, pois este combustível permitirá ao público, diante da cena, perceber os dados sensíveis que se movimentam sob as ações desta. É exatamente neste vislumbramento de “dança das energias” que começa a translocação caleidoscópica da cena intitulada “Alla ricerca di um Zanni”. Penso que os encaminhamentos acerca de ambas as técnicas possam ser mais esclarecedores se seguirem o transcurso através do processo de translocação caleidoscópica para, depois, relatar nova navegação na cena de transdução caleidoscópica, mostrando como a terceira técnica é quase uma consequência da segunda. 4.2. DE FESTAROLAS A TRANSDUÇÕES: ZANN PIEDINI38 “[...] O diálogo é reduzido ao mínimo funcional e deixa livre trânsito à fantasia gestual do ator [...] O Ator aqui se torna o narrador de uma ação, encarnando, ao mesmo tempo, seus personagens.” Jean-Jaques Roubine (2002, p. 30) A cena “Alla ricerca de um Zanni” é nata num processo metamorfoseante, passando da experiência e técnica do Bufão à técnica de translocação, até chegar à técnica de transdução e, então, à cena estruturada com a Máscara do Zanni. Zanni foi a máscara que acompanhou o processo de endossamento de todas as outras que me foram ensinadas e, algumas delas, confiadas pelos mestres Contin e Merisi. Um fato curioso é que, enquanto estive na Scuola Sperimentale dell’Attore, eles confiaram a mim muitas outras máscaras, menos Zanni e Arlecchino – aquelas que sempre afirmei serem as mais importantes dentro da minha pesquisa. No seu livro e espetáculo “Gli Abitanti di Arlecchinia”, Claudia Contin fala da necessidade de paciência para chegar às máscaras dell’arte, de como elas trabalham em 38 Nome da minha máscara do Zanni, sugerido por Ferruccio Merisi, devido a uma série de pequenos acidentes que tive envolvendo meus pés - “João Pezinhos”. 171 você e que, nem sempre, os bons mestres dão ao aluno aquilo que ele quer no momento. E foi nestes muitos mergulhos, passando pelas máscaras da Servetta, Cortigiana, Nobile, Pantalone, Brighella e Capitano, que Zanni e Arlecchino foram ganhando força e estruturando suas cenas de transdução, num processo pleno de modulações. Através deste processo de passagem de translocação à transdução e de Zanni à Arlecchino, obtive uma compreensão dos transcursos das máscaras dell’arte, principalmente, de como a máscara do Zanni abre os caminhos para as outras máscaras e de como estas máscaras conectam-se com o universo bufonesco e carnavalesco. A cena “Alla ricerca di un Zanni” teve como primeiro elemento, o texto. Na verdade, o texto não foi escolhido, ele que se escolheu, pois sua presença entre a prática das máscaras dell’arte era insistente. Trata-se de um texto totalmente inserido na cultura popular brasileira, reescrito das histórias de Chicó, personagem da peça “O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. Na cena com a técnica de translocação, utilizo uma compilação e livre adaptação do texto de Suassuna, traduzido em italiano por L. Lotti: Guaraldi, 1992. Primeiro foi realizada uma adaptação, depois, com o tempo, o texto de Suassuna foi servindo de guia, ao serem acrescentadas expressões de dialetos italianos e também do português. Em novembro de 2007, a Dr.ª Maria de Lourdes Rabetti convidou-me para fazer uma participação em um seminário que seria apresentado no dia 12 de dezembro de 2007. O seminário faria parte do Curso “Drammaturgia Teatrale”, desenvolvido pelo Dr. Roberto Tessari no DAMS di Torino (UNITO), durante o acadêmico 2007/08 e dedicado às “problemáticas histórico-críticas da Commedia dell’arte”. O seminário oferecido pela referida doutora se intitulava “Semminario Temi della storia del teatro brasiliano: la commedia e l’invenzione della tradizione” e minha participação seria uma “Demonstração prática de trabalho de pesquisa sobre o personagem–tipo na peça ‘Auto da Compadecida’ de Ariano Suassuna”, cujo personagem-tipo escolhido foi Chicó. Foi este primeiro estudo do personagem Chicó que originou a cena intitulada “Alla ricerca di un Zanni”. Estava trabalhando na cena para apresentar no referido seminário, quando fui fazer o primeiro curso de commedia dell’arte com Contin e Merisi (no Teatro Ostia, província de Roma/IT) exercitando-me com a técnica de translocação, apropriação das máscaras dell’arte continianas e estruturação da técnica de transdução, durante esses processos, foi nascendo o desejo de trabalhar o texto nessas técnicas. Enquanto tudo acontecia, o texto ecoava em meus pensamentos e imaginação. 172 Em janeiro de 2008, retomei as atividades de commedia dell’arte com Claudia Contin, Ferruccio Merisi e Veronica Risatti, na sede da Scuola Sperimentale dell’Attore, em Pordenone/IT. Durante o trabalho prático em grupo e em laboratórios individuais com a professora Veronica Risatti, passando pelas máscaras dell’arte, o texto das histórias de Chicó trabalhava em mim, de forma sutil e continuada. Estranhamente, perpendicularmente ao trabalho com a commedia dell’arte, aquele texto continuava a pedir-me que fosse trabalhado, que continuasse explorando suas possibilidades, pois a narração das histórias “vividas” por Chicó assemelha-se muito aos monólogos dos Zannis: conversas e sonhos mirabolantes, plenos de fantasia. Então decidi escutar aquele impulso da atitude lúdica e transformar o texto das histórias de Chicó em um monólogo da técnica de translocação, para depois transformá-lo em um monólogo de Zann Piedini. Foi assim que surgiu a cena Alla ricerca di un Zanni com a técnica de translocação, a qual ganhou este nome, por que foi (e é) um mergulho de exploração da técnica de translocação e do caminho a ser percorrido para a realização de uma cena do Zanni, a partir de códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras. Os laboratórios foram realizados de forma individual, trabalhando só em sala de aula. O primeiro passo foi trabalhar a cena a partir da improvisação com as células das manifestações espetaculares populares brasileiras - técnica de translocação. Desse modo, a história foi criando pulsação, expressa através de uma movimentação que se autogerenciava e se autofixava de acordo com a lógica que o corpo criava utilizando tais códigos. Com uma prática sistemática da técnica de translocação, a cena foi-se estruturando e (em algumas partes) fixando-se, de forma espontânea e precisa. Foto: Veronica Risatti “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: 23\junho\2008 A primeira vez que a cena “Alla ricerca di un Zanni” foi apresentada em público foi no evento “Arreia”, em junho de 2008, produzido pela Scuola Sperimentale dell’Attore, na sua própria sede, em Pordenone (ver texto integral e publicidade do evento no APÊNDICE C E ANEXO C). Foi após esta apresentação que Contin e Merisi demonstraram interesse em 173 dirigir um espetáculo dentro da minha proposta de mistura entre máscaras dell’arte italianas e práticas espetaculares populares brasileiras – foi o início dos trabalhos para o espetáculo “Papaietta Poliglota”. Após esta primeira apresentação, Alla ricerca di um Zanni foi apresentada outras vezes, na Itália, em Luxemburgo e no Brasil. Intento, através da inserção de algumas imagens do referido monólogo, auxiliar na compreensão da técnica de translocação. Faz-se necessário dizer que, em qualquer lugar que seja apresentado o espetáculo, o texto é em italiano macarrônico39 (misturando português, expressões de dialetos italianos e italiano clássico). Desde o início, esta cena foi trabalhada desta maneira e, por este motivo, a tradução literal da cena é uma tarefa difícil. Também, a meu ver, a tradução perde o sentido, uma vez que a apresentação deste trabalho é com esta linguagem e é desse modo que a cena está no espetáculo e no DVD40: “Eccomi qua! In questo mondo ci sono di storie... credi che uma moglie vuol benedire il suo can per veder se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so com’è questa gente, ãh? Ma non c’è niente di stragno. Io stesso ho avuto um cavallo benedetto.” De costas para o público, em um passo da dança de Oxaguiã – “Eccomi qua”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubrro\2010. Forma de comunicação muito utilizada pelos bufões e cômicos dell’arte, cuja explicação mais detalhada, já foi dada anteriormente (no segundo capítulo). 40 Com isso, faço um breve resumo da situação da cena, cujo texto serve como exemplo - Nesta frase, o personagem comenta como o mundo é cheio de histórias. Após, conta que uma senhora quer benzer seu cachorro, para ver se ele não morre, afirmando que não vê nada de estranho nessa atitude, pois ele mesmo já teve um “cavalo abençoado”. 39 174 Girando de frente com um passo de samba; braços com a postura da ciranda – “in questo mondo ci sono di storie”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009. Passo do margüião do cavalo-marinho, aproximando-se do público – “credi”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009. Passo de ciranda e mãos da dança dos Orixás (Ogum) “che una donna” - “vuole benedire il suo cane”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009 “Passo à frente” da Capoeira regional, braços e mãos da dança dos Orixás (Iemanjá) (cabeça faz o golpe de máscara) – “per vedere se l’animale non muore”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009 175 Parada sobre os calcanhares do samba ou da dança do Exu (Zé Pilintra) - “Beh!”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009 Passo de frevo – “dico cosí perché non so come è questa gente”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009 Passo de frevo com mãos de dança dos Orixás (Oxumaré) – “Éh!?”. Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009 Ginga da capoeira com mãos da dança de Oxumaré – “ma non c’è niente di strano” – Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009 176 E, dessa maneira, em um caleidoscópio de células/códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras, toda a sequência foi sendo engendrada, sendo que a sua estrutura é constituída de uma porção rígida e outra flexível (OLIVERA, 2007), isto é, partes bem recodificadas e fixadas e outras com espaço para improvisações com os códigos. Um exemplo da estrutura rígida que constitui esta cena é a “presença” de um preto velho41 e de um Exu da Calunga42. Na medida em que praticava a técnica de translocação, minha memória muscular trouxe, insistentemente, a mímesis corpórea43 de um trabalho desenvolvido durante muito tempo em um terreiro de Linha Cruzada em Santa Maria⁄RS, incluindo, na sequência, a mímesis de um Preto Velho e de um Exu. Estas inclusões não estavam previstas no elenco das manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa, mas como, muitas vezes, durante a prática da improvisação com os códigos/células das manifestações espetaculares populares brasileiras, estas memórias musculares se faziam presentes, decidi deixá-las na cena, não me preocupando em afastá-las ou negá-las, pois, de alguma maneira, como trabalhava com danças advindas do Candomblé, era natural que estas memórias vindouras de um terreiro de Linha Cruzada “aproveitassem” a torrente e emergissem no trabalho – Ver cena ou clip da cena construída com a técnica de translocação caleidoscópica “Alla ricerca di um Zanni” no DVD: MENU: 2 TRANSLOCAÇÃO CALEIDOSCÓPICA : 2.2 - ALLA RICERCA DI UM ZANNI – clip. 2.3 – ALLA RICERCA DI UN ZANNI – cena. Após ter realizado todo o percurso de codificação e decodificação com as células das práticas espetaculares populares brasileiras e recodificação em uma estrutura de cena, comecei a trabalhar para transformar aquela cena em commedia dell’arte, utilizando a máscara física do Zanni. Tal processo gerou uma experiência ímpar, pois a máscara física do Zanni é muito grotesca e como toda máscara dell’arte continiana, sua movimentação é muito específica e codificada. Fazer este trabalho de ajuste de circuitos musculares e energético na máscara do Zanni com as células das práticas espetaculares populares brasileiras foi um trabalho “artesanal”, pois era preciso dedicar-me a detalhes mínimos desta “transdução”. 41 Entidade Espiritual (integrante da Umbanda e Linha Cruzada) que possui relação com os antigos escravos. O Exu também faz parte das entidades da Umbanda e o termo “Calunga” indica os meios com o qual ele se relaciona, no caso, as almas e o cemitério. 43 A mímesis corpórea é uma técnica estruturada por Luís Otávio Burnier, cuja habilidade está na observação e imitação, porém, em uma “observação profissional”, calcada no detalhe, na fisicidade e na corporeidade. Trata-se de uma “capacidade mimética” que tenta abranger não somente a forma mas também as energias, ritmo, élan e impulsos que fazem parte daquele que é observado. Para saber mais sobre mímesis corpórea, ler: A Arte de Ator: da Técnica à Representação. Elaboração, codificação e sistematização de técnicas corpóreas e vocais para o ator, de Luis Otávio Burnier. 42 177 Apesar de, anteriormente, a Máscara do Zanni ter sido muito citada e comentada, foi falado mais em termos de mito ou daquilo que ela representa para a Commedia dell’arte, por isso, precisa-se falar um pouco da transformação do corpo do ator em Máscara física do Zanni, tal como ela era em 1500 e tentar entender a metamorfose que esse corpo deve passar para transformar-se em um Zanni. Tornemos a lembrar as características do Zanni, não só de caráter, mas de como seu corpo porta este arquétipo desde o período em que estas subiram aos palcos e alcançaram o sucesso (1800), além de quando nem mesmo faziam parte da cena teatral (1400). Claudia Contin, a meu ver, é quem melhor relaciona Máscara-corpo-caráter e a passagem desta máscara do “mundo popular e mítico” para os palcos das ruas e praças e, posteriormente, para os teatros e palácios. Como já remarcado, Zanni é uma máscara de origem camponesa, especificamente, do interior de Bérgamo. Segundo Claudia Contin (1999, p. 44), os trabalhadores rurais bergamascos tinham um corpo muito peculiar: Zanni é uma máscara de origem bergamasca e os bergamascos – por algum estranho orgulho antropológico – gostam de se autodefinirem “traccagnotti” [parrudos], isto é “baixinhos” de estatura, sólidos e bem plantados na terra. Para tanto, o ator deve baixar muito o baricentro do próprio corpo. Porém, o termo “traccagnotto” [parrudo] não significa somente “baixo de estatura”, quer dizer, também: forçudo, musculoso, “pequeno touro”. Então, o ator deve botar para fora toda a musculatura lateral da caixa torácica – as chamadas “asas” – e adotar para o dorso uma curvatura, 44 desenhando a forma de costas forte e habituada a suportar muito peso. A partir destas características, começa-se a imaginar a máscara física do Zanni e podese, até mesmo, em meio à penumbra, imaginar o corpo de um capoeirista “traccagnotto”, com grande força e agilidade. Ao lado deste corpo parrudo, há outras características muito específicas que auxiliam na composição, absorção, compreensão, metamorfose e imaginação desta máscara física: [...] Zanni tem as mãos cheias de calos, grandes e duros “como batatas”, que o impede de fechar ou relaxar os dedos. Porém, Zanni é muito orgulhoso em mostrar seus calos de trabalho e, por isso, as mãos parecem grandes flores coriáceas, nas quais os dedos “brotam” bem alargados e se movem com gestos secos, lenhosos e decididos (CONTIN, 1999, p. 45). 44 Tradução da autora: Zanni è una maschera di origine bergamasca e i bergamaschi - per qualche strano tipo di orgoglio antropologico - amano definirsi "traccagnotti", cioè "bassotti" di statura, solidi e ben piantati per terra. Perciò l'attore deve abbassare molto il baricentro del proprio corpo. Il termine "traccagnotto" - però non significa solo "basso di statura", vuol dire anche: forzuto, muscolosetto, "torello". L'attore deve spingere in fuori la muscolatura laterale della cassa toracica - le cosiddette "ali" - ed assumere una posizione incurvata del dorso, disegnando la forma di una schiena forte ed abituata a sopportare grandi pesi.). 178 O desenho das mãos do Zanni, pelo trabalho que é habituado a fazer, é muito preciso, porém, isso não acarreta um tipo de rigidez, seu desenho é definido e permanece quando as mãos não estão envolvidas em ações, senão ela move-se normalmente, sem perder a tensão habitual e necessária. Continuando a descrição da máscara física do Zanni, Contin (1999, p. 45) fala: Sendo um tipo do interior, certamente Zanni não é um estúpido, mas, também, não é muito culto: não pôde estudar, mas – em cada caso – não quer ser enganado por advogados e comerciantes [...]. Por isso, Zanni é atento a tudo, principalmente àquilo que não conhece, é curiosíssimo e empurra a cabeça para frente como uma mula enxerida que quer meter o nariz em todas as coisas, até mesmo naquelas que não entende. Neste seu comportamento simplório, Zanni não é somente curioso de tudo, mas também tem a característica de se admirar de tudo: a sua boca é sempre aberta, escancarada pelo estupor, como um “O” alongado em direção ao solo, com os lábios para fora e o maxilar completamente abaixado. Esta posição da boca é uma característica típica do Zanni, a parte inferior do rosto, abaixo da meia máscara de 45 couro, é sempre exageradamente alongada em direção a terra. Pode-se perceber que Claudia Contin reconhece as características arquétipas da Máscara na composição física desta, desse modo, elas tornam-se ainda mais destacadas e confirmadas. O mesmo acontece com a fome atávica do Zanni, e a relação desta com a região do púbis, que, segundo Contin, como representa todas as fomes (comida e sexo), dever ser tão direcionada para frente quanto o nariz. A primeira fome, a instintiva, coloca a púbis bem à frente, o intestino acompanha esta fome, já que é o lugar de transformação de alimento em energia e o estomago é sempre vazio. A modulação do corpo nesta posição mostra as características citadas: a cabeça vai para frente, como se quisesse conhecer tudo, a boca mostra a admiração com o mundo, as costas e os braços robustos se alargam mostrando a sua capacidade e potência para o trabalho, o estomago, permanecendo para dentro, parece um buraco e a púbis, tenta saciar a sua fome. Com este corpo, jamais será possível um Zanni comportar-se como um nobre, a sua forma grotesca já o exclui de certos “papéis” ou interpretações e declara traços muito marcantes de sua personalidade. 45 Tradução da autora: Essendo un tipo campagnolo, Zanni non è certamente uno stupido, ma non è neppure molto colto: non ha potuto studiare, ma - in ogni caso - non vuole lasciarsi imbrogliare da avvocati e commercianti [...]. Per questo Zanni è attento a tutto, a tutto ciò che non conosce, è curiosissimo ed innesta la testa in avanti come un mulo testardo che vuole ficcare il naso in ogni cosa, anche quelle che non capisce. In questo suo comportamento da sempliciotto Zanni non solo è curioso di tutto, ma ha anche la caratteristica di sorprendersi di ogni cosa: la sua bocca è sempre spalancata dallo stupore, in una sorta di "O" allungata verso il basso, con le labbra sporgenti e la mascella completamente abbassata. Questa posizione della bocca è una tipica caratteristica dello Zanni: la parte inferiore del volto, al di sotto della mezza maschera di cuoio, è sempre esasperatamente allungata verso terra. 179 Mas além destas, existem outras características específicas e significativas que compõem o corpo e o comportamento do Zanni: Este camponês robusto – nos vales bergamascos, com os tamancos de madeira nos pés – devia caminhar com passos grandes e pesados, nos quais toda a perna se eleva mantendo numa curva aberta e larga e o pé bate por terra com potência, enquanto que o quadril permanece solidamente em avanço e os braços desenham amplos arcos 46 ao lado do corpo (CONTIN, 1999, p. 46). Tratando-se de uma pesquisadora que não permanece na superfície das descobertas, ainda havia, nas iconografias do período de 1600, características que tinham sofrido algumas mudanças, o que a fez ir mais além e descobrir a passagem do Zanni de Bergamo até o Zanni das ruas e praças de Veneza e da Commedia dell’arte. Era muito lógico que o arquétipo bronco, parrudo e simplório daquele Zanni de Bergamo, com seus pés apontados, não condissesse, em tudo, com aquele das iconografias e testemunhos da Commedia de 1600, então, era preciso saber o que aconteceu como mudança na sua vida cotidiana, para transformar, também, as características físicas. E Contin, através de uma exaustiva pesquisa em documentos, livros e imaginação, descobriu que as mudanças do corpo do Zanni aconteceram devido a uma passagem, não da rua para o palco, mas de trabalho e do meio em que vivia. Tal passagem se deu, principalmente, por uma questão econômica, um êxodo rural dos Zanni, fazendo com que estes saíssem do interior e fossem procurar emprego nas cidades desenvolvidas. Em 1500/1600 as regiões próximas à Veneto, incluindo a zona bergamasca e a região de Friuli, não eram terras livres, mas sim províncias submetidas à República de Veneza, a qual se enriquecia cada vez mais, através das transações mercantis com o Oriente e pela exploração agrícola das terras que pertenciam aos seus domínios. Como em toda relação de exploração de território, o espaço geográfico acabava transformando-se em cidades e regiões muito pobres, porque, embora possuíssem meios naturais de se manterem, não tinham como explorarem os próprios recursos ou sobreviverem da produção local, o que forçava os habitantes ao êxodo, saindo em busca de lugares mais propícios. Foi por causa deste mecanismo, que os Zannis foram obrigados a sair de Bergamo, rumo à cidade das oportunidades da época: Veneza. São muitos os documentos de igrejas e instituições 46 Tradução da autora: “Più o meno questo contadinotto tarchiato - nelle sue valli bergamasche, con gli zoccoloni di legno ai piedi - doveva camminare più o meno con dei grandi passi pesanti, in cui tutta la gamba si solleva mantenendo una curva aperta e divaricata, ed il piede sbatte poi a terra con potenza, mentre il bacino rimane solidamente innestato in avanti e le braccia compiono ampi archi di cerchio a fianco del corpo". 180 governamentais da época que testemunham este fenômeno de emigração de Bergamo à Veneza, conforme comenta Alessandra Mignatti. Outro ponto interessante é que nestes documentos, cartas trocadas entre mercantes e manuscritos da Igreja, segundo Contin, é remarcado que os trabalhadores que chegavam da região bergamasca eram aqueles que trabalhavam como carpinteiros, pedreiros, carregadores e outros trabalhos do gênero, isto é, os bergamascos eram aqueles que faziam o “trabalho braçal”, mudando de ambiente (campocidade), mas não de “papel social”. Naquele período Veneza era a cidade das oportunidades, até por que, conforme um imaginário, se Veneza se enriquecia com toda a riqueza que as suas províncias produziam, era compreensível que a população das “colônias” se dirigisse para o local da concentração monetária. Foi com este pensamento de ter um trabalho bem remunerado, que, segundo Contin, Zanni chega à Veneza. Diferentemente dos mercantes, para os Zanni, Veneza não foi a terra das boas oportunidades. Aliás, possibilidade de fazer fortuna, não tiveram nenhuma, pois eram explorados da mesma forma que em Bergamo. O Zanni migrado de Bergamo é um trabalhador nato, ele está sempre disposto a trabalhar (quando pode não, ele não trabalha, mas se deve, então o faz bem), porém, por não ter tanto estudo, o único trabalho que encontrava era como servo ou operário: Em Veneza, estes Zannis forçudos, parrudos e poucos civilizados podiam encontrar trabalho, exclusivamente, como servos dos ricos mercantes venezianos ou como carregadores e transportadores das mercadorias dos barcos. Enfim, trabalhador 47 braçal (CONTIN, 1999, p. 47). Porém, esse tipo de trabalho, apesar de fazer uso de “força bruta”, fez com que o Zanni não lidasse mais com animais, plantações e outros camponeses habituados a relações agrestes, como era no interior e montanhas de Bérgamo. Segundo Contin, essa relação citadina estabeleceu um relacionamento muito mais próximo do seu patrão e, a partir desta aproximação, surgiu a oportunidade de trabalhar dentro da casa do patrão, fazendo o servidor e empregado da casa, aquele que era chamado para fazer serviços braçais mais domésticos, como cortar lenha, carregar malas, carregar as compras da feira, mudar os móveis de lugar e outras atividades do gênero. 47 Tradução da autora: “In Venezia questi Zanni forzuti, traccagnotti e poco civilizzati potevano trovare lavoro esclusivamente come servi dei ricchi mercanti veneziani o come facchini per lo scarico delle navi e il trasporto delle merci. Uomini di fatica insomma.”. 181 Por ser chamado pelo patrão para fazer parte dos domínios mais pessoais e domésticos, Zanni foi se adaptando, também, fisicamente e a sua natureza rude e simplória, foi sofrendo algumas pequenas transformações que o deixaram mais elegante e leve na gestualidade, pois não poderia ter o mesmo modo de caminhar e de se comportar que tinha no campo, com o chão de terra firme sob seus pés. Também, não podia falar com os patrões como falava com seus companheiros Zanni, precisava deixar seus gestos e caminhada mais elegantes e a fala mais doce. Contin (1999, p. 48-9) conta resumidamente este pequeno percurso do Zanni Bergamasco ao Zanni da Commedia dell’arte e a transformação física que ocorreu desta adaptação do campo à cidade. Ele [Zanni] não se encontra mais no campo entre os seus parreirais ou os campos de feno, mas se encontra diante de coisas que nunca tinha visto antes: palácios refinados com fachadas riquíssimas, portais bífores e trífores e rosáceas de mármores coloridos, senhores elegantes que passeiam pelos jardins e perfumes de especiarias e incensos. A sua admiração aumenta desmedidamente, a sua cabeça começa a levitar como massa de pão, torna-se leve como um balão, enquanto que Zanni olha em torno com uma boca tão aberta e alongada que poderia cair o maxilar. Antes a curiosidade do Zanni era obstinada e incisivamente à frente, a partir daí qualquer admirável maravilha faz a cabeça levantar vôo, tornando o pescoço flexível e alongado como o de um ganso. Ainda, tem-se a sorte de encontrar trabalho como empregado de um mercante rico, Zanni se vê diante da situação de entrar, pela primeira vez, em uma casa que supera a imaginação: com aqueles famosos pavimentos venezianos, cuidados e lustrados, com aqueles tapetes orientais delicados e preciosos, com aqueles salões construídos sobre pavimentos de madeira flexíveis, os quais, quando se caminha pesadamente, todos os móveis balançam e os cristais caem, quebrando-se. Zanni não pode, então, permitir-se usar – na casa do novo patrão – a sua caminhada camponesa e “rudimentar”, com grandes e pesados passos, ele adquire, então, um pensamento de respeito e circunspecção, dessa forma, coloca-se à meia-ponta e assume uma nova caminhada – sempre muito grotesca e 48 bruta – mas que tem, também, alguma coisa de elegante e leve [...]. Estas pequenas modificações são muito importantes para entendermos porque, em algumas iconografias que retratavam a Commedia dell’arte em questão, como as de Calloi, os 48 Tradução da autora: “Egli non si trova più in campagna tra i suoi filari di vite o i campi di fieno, ma si trova di fronte a cose che non ha mai visto prima: palazzi raffinatissimi con ricche facciate, bifore e trifore e rosoni di marmi colorati, signore eleganti che passeggiano per i campielli, profumi di spezie e incensi. Il suo stupore aumenta a dismisura, la sua testa comincia a lievitare come il pane, diventa leggera come un palloncino, mentre lo Zanni si guarda intorno con una bocca aperta talmente allungata che potrebbe quasi cadergli la mascella. Mentre prima la curiosità di Zanni era caparbiamente e rigidamente innestata in avanti, ora una stuporosa meraviglia gli fa quasi levitare la testa, rendendo il collo flessibile ed allungato come quello d'un oca. Poi, se ha la fortuna di trovare lavoro come servitore presso un ricco mercante, Zanni si trova ad entrare per la prima volta in una casa che supera ogni immaginazione: con quei famosi pavimenti alla veneziana lucidi e curati, con quei tappeti orientali delicatissimi e preziosi, con quei saloni costruiti su elastici solai di legno che se ci cammini sopra troppo pesantemente tutti i mobili rimbalzano e le cristallerie si frantumano. Zanni non può dunque permettersi di usare - nella casa del nuovo padrone - la sua camminata campagnola e "zoccoluta", con le grandi falcate pesanti; egli viene preso da un senso di rispetto e circospezione, così si mette sulle mezze-punte dei piedi ed assume una nuova camminata - sempre molto grottesca e grezza - ma che contiene anche qualcosa di elegante e leggero [...].” 182 Zanni possuem, às vezes, os pés bem plantados no chão e outras, os pés em meia-ponta, como se dançassem. Esta mudança, de um ponto de vista, parece sutil, de outro aparece como uma grande força e característica vital, pois foi o modo que o Zanni encontrou para se adaptar e sobreviver à nova realidade - amortecendo seus grandes e pesados passos rurais - conforme explicação de Contin. A partir desta aparente pequena adaptação, vieram as outras mudanças e, daí, para se transformar em um servidor de hotel ou restaurante (Brighella), empregado de loja (Trufaldino) ou servo de companhia (Arlecchino), é muito mais compreensível tais desdobramentos de uma máscara em outras. São estas pequenas, mas importantes modificações que nos fazem entender as transformações da Máscara ao longo da história e seus traços arquétipos. A Máscara do Zanni e qualquer derivante desta fazem parte da classe de pobres, broncos, esfomeados emigrantes, camponeses deslumbrados com a cidade, desajeitados deselegantes, mas muito astutos e ágeis no seu trabalho. Segundo Contin, são estas características que formam o conjunto dos aspectos cômico-grotescos dos Zanni retratados na commedia dell’arte. A partir da cena “Alla ricerca di um Zanni”, pensando na corporeidade retratada do Zanni, começaram os trabalhos com Zann Piedini, e a primeira imagem que se formou, como uma possível conexão, conforme já foi comentado, foi a de um capoeirista. Não somente pelo corpo parrudo e ágil, o que lembra muito o corpo de um capoeirista, mas também pela ligação com a mandinga, com a situação de fome, seja ela qual for, com a agilidade, esperteza e malandragem com que conseguiam levar a vida e as situações em que se encontravam, cada qual em sua realidade. Apesar de ter o capoeirista e a capoeira em mente como forte ponto conectivo, não foram negadas outras possibilidades de conexões e dentro dessas possibilidades encontrou-se o côco, mais especificamente a umbigada, e o gincado da dança dos Orixás49. A partir da construção\sustentação da máscara física do Zanni com os códigos das práticas espetaculares populares brasileiras, foi-se estabelecendo uma prática com outros códigos provenientes destas manifestações, deixando que estes se conectassem, se transformassem, se translocassem, se metamorfoseassem e se transduzissem na máscara do Zanni e na ação da cena. 49 Ver os códigos que auxiliam na construção da máscara física do Zanni, no DVD que acompanha a Tese. MENU: 4.1 – ZANNI: 4.1.2 – ZANNI - dança. 183 Apesar dos Zannis serem camponeses rústicos, eles são tão espertos quanto os capoeiristas e, buscando descobrir uma forma de satisfazer sua situação de fome insaciável e constante, sempre tentam enganar os seus patrões, tirando um pouco de proveito da situação já que são poucas as situações que lhe são favoráveis ao desfrute de qualquer pequena regalia, conforme se pode ver em tantos canovacci (roteiros) da commedia dell’arte50. Relacionando canovacci de commedia dell’arte e as histórias de Chicó e João Grilo, percebi que a imaginação que o autor impregnou àqueles personagenes cabia perfeitamente numa fala de um Zanni, todas as mirabolâncias e peripécias criadas e que certificam a todos como fato vivido e/ou testemunhado. Tudo isso é comum à dupla de Zanni, as histórias tem as mesmas características dos “sonhos maravilhosos” destes. Era normal, então, que através destes caminhos subterrâneos, a máscara continuasse a ecoar e requerer um trabalho mais detalhado. Para uma pequena amostra da máscara do Zanni, com a técnica de transdução, foi criada a cena “Le avventure di Zann Piedini”, que se trata do seguinte argumento: Zanni vem para o Brasil acompanhando seu Patrão (Padrum) e acaba perdendo-se deste. Enquanto o está procurando, percebe que tem muita gente em volta e, então, pensa que pode ter comida também. Permanece na dúvida entre procurar o patrão ou a dispensa em que está guardada toda a comida daquelas pessoas e, após muito se perguntar, decide procurar o patrão.51 Para a pequena cena de Zann Piedini, utiliza-se células de maracatu, cavalo-marinho, samba, coco, ciranda, dança dos orixás, xaxado, caboclinho, frevo e capoeira, tudo muito mesclado e conjugado com a fisicidade e corporeidade do Zanni. Dessa maneira, a máscara torna-se muito mais rica em movimentação e modulação de energias, bem como potencializa as ações e movimentos que já fazem parte das “clássicas” partituras que integram a Máscara do Zanni52. Como exemplo, pode-se utilizar algumas frases da cena criada: De fora da cena se houve um grito: - Zanni!!!!! E, depois, ouve-se a resposta (ainda fora da cena): Arrivo Padrum! Entra Zanni correndo e, depois, coloca-se no meio da sala fazendo sua saudação pernas de base com a posição da “ponteira” da capoeira; tronco e braços da dança dos Orixás (Omolú) (igual à postura da reverência do Zanni) – “Eccomi qua, Padrum!” 50 Para saber mais, ler: Tutti i lazzi della Commedia dell’arte. Un catalogo ragionato del patrimonio dei Comici, de Nicoletta Capozza; I Canovacci della Commedia dell’arte, organização de Annamaria Testaverde. 51 Ver clipe da cena ou a cena integral, no DVD que acompanha a Tese. MENU: 4.1 – ZANNI: 4.1.3 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – clip; 4.1.4 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – cena. 52 Contin possui um elenco de partituras para cada máscara. Para o Zanni, a mais utilizada é a reverência do Zanni – a qual inicia a cena “Le avventure di Zann Piedini”. 184 “Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010. Percebendo que ninguém responde, ele pergunta: Salto de Oxumaré, com tronco baixo: – Pota! Depois, com postura base da capoeira e golpe de máscara pergunta novamente: - Padrum!? Padrum!? Salto de Oxumaré com tronco baixo e, em seguida, passo de ciranda – Ma, dov’é mi Padrum? “Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010. “Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010. Dando um passo com o golpe ponteira (movimento da capoeira regional) e passo da dança do Orixá Xangô: – Ma varda quanta gente. “Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010. Depois, golpe “benção” da Capoeira regional: - Ma varda dove mi son caipat! Passo da dança do Orixá Iansã, seguido de passo do maculelê e, depois, frevo: - Immagina te la mesura della dispensa per tutti quanti qui! 185 Início da “benção” e desce para a “negativa” (ambos da capoeira regional) – Mi tocca scovèlzer! “Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010. E, dessa maneira, como um caleidoscópio de células de manifestações espetaculares populares, a sequência foi sendo trabalhada. Tal como na Commedia dell’arte, primeiro estruturei uma sequência muito rígida, para depois deixar espaço para a improvisação, pois o corpo já tinha assimilado tantos códigos que se organizava mais velozmente, podendo assim arriscar espaços de total improvisação e outros de partitura fixa. O primeiro contato que tive com a commedia dell’arte foi num estilo mais oitocentesco, seguindo o estilo francês e, já naquele período de aprendizagem deste gênero, ela fazia parte de um universo que me instigava. O que me estimulava, todavia, na commedia dell’arte eram os seus aspectos grotescos, carnavalescos, lúdicos, sua ligação com os instintos e com o mundo primitivo e ritualístico. No decorrer do descortinamento da commedia dell’arte, na história social e teatral, esta faceta não tão divulgada das máscaras dell’arte começou a ser vislumbrada e, então, a me seduzir cada vez mais. As máscaras que se fizeram descobrir eram parte de uma Commedia dell’arte mais antiga que aquela de 1800, tão antiga que ainda não era conhecida como tal e, nem mesmo, possuía os mesmos padrões estéticos da commedia dell’arte de Goldoni ou Molière. A commedia dell’arte que me interessa é aquela que, segundo Bragaglia (1981, p.15), contém seus primeiros testemunhos muito antes de 1500, um teatro que “[...] os contemporâneos fazem alusões, porém, denominando-a “commedia all’improviso”, “commedia improvisa” [...]53. Este gênero chamado há “pouco tempo” de commedia dell’arte, ao longo de seu percurso histórico, estrutural e profissionalizante, recebeu muitos nomes. Conforme Tessari, Taviani, Mignatti, Testaverde e Contin assinalam, ela foi chamada de “commedia dei Zanni”, “Maschere del teatro italiano”, “Maschere all’italiana” ou simplesmente Maschere. É esta commedia dell’arte mais grotesca que me interessava, interessa-me e é com ela que toda esta 53 Tradução da autora: “[...] alla quale i contemporanei fanno allusione perlopiú denominandola “commedia all’improviso”, “commedia improvisa” [...].” 186 pesquisa se relaciona e submerge e, também, é dentro da perspectiva de suas máscaras, que o próximo capítulo desenvolve-se. Neste transcurso de apreensão e apropriação, a prática das manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa é continua, e o trabalho com as máscaras físicas da commedia dell’arte, também. Com o estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore, com Claudia Contin, Ferruccio Merisi e toda sua equipe, a laboração que vinha desenvolvendo com as máscaras dell’arte foi enriquecida e fortalecida. O trabalho realizado por Contin e Merisi vinha ao encontro daquilo que procurava como Commediante dell’Arte e foi a experiência com eles que propiciou meu mergulho mais profundo no universo das Máscaras dell’Arte - num período primordial destas máscaras, o qual, para esta pesquisatriz, constitui uma importante fase deste gênero de teatro - aquele das ruas, das praças e carnavais de 1400 e 1500. Foi através deste intenso mergulho que a imaginação trabalhou e trabalha arduamente. As imagens das práticas espetaculares populares que já trabalhavam e agiam em mim fisicamente, com a aquisição das máscaras físicas da commedia dell’arte de Claudia Contin e todos os códigos corporais pertencentes a cada uma destas máscaras criavam novos circuitos, e as conexões realizavam-se de modo dinâmico. Com todo o acervo de movimentos adquiridos, codificados e recodificados das manifestações espetaculares populares brasileiras e das máscaras físicas da commedia dell’arte, a conexão entre os circuitos energéticos e musculares que se assemelhavam aconteciam num processo quase “natural”. Enquanto me exercitava nas máscaras dell’arte nos ensaios e trabalhos com os atores da Scuola Sperimentale dell’Attore, a musculatura recordava tais circuitos - como aconteceu quando fiz a máscara do Arlecchino. A primeira verificação destes circuitos com pontos em comum era rápida, mas constituía o início de uma série de averiguações e constatações mais penetrantes, chegando até a comoção dos pontos que formam os circuitos, aproximando-os e obtendo o resultado desejado para geminar máscaras dell’arte com práticas espetaculares populares brasileiras. Investigando mais profundamente os circuitos, através da prática insistente, o corpo desenvolve uma capacidade de aproximação dos circuitos musculares e energéticos de ambas as práticas espetaculares populares (commedia dell’arte e manifestações espetaculares populares brasileiras) e, dessa forma, recria as gesticulações e ações para as máscaras dell’arte – seguindo a “lógica corporal, física e arquétipa” das mesmas – porém, tendo como reservatório/motor as células codificadas das manifestações espetaculares populares brasileiras. 187 Para melhor explicar: cada máscara continiana possui uma gama de ações codificadas, as quais fazem parte de sua movimentação (caminhar, saltar, sentar, dançar, dormir) e, a partir destas, desdobram-se todas as ações que constituem a movimentação total da máscara para um espetáculo, improvisação ou, simplesmente, uma prática assídua. Para dar um exemplo, tem-se a partitura de como a máscara de Pantalone senta, corre, caminha, dança valsa, conta dinheiro (entre outras), então, conhecendo as tensões do corpo e qualidades destas ações, podem-se criar outras, como tomar sopa, pular num banco, pensar, jogar carta, entre outras. A partir dos códigos que já se conhece (aqueles estruturados por Contin), pode-se criar outros. A sequência de códigos é que compõe a ação da cena. Os códigos são compostos de qualidades de energias, qualidades de movimentos e tensões musculares. Para introduzir alguma movimentação nova em uma máscara, deve-se saber que tipo de movimento, tensão e qualidade de energia tal máscara dell’arte requer. Um dos trabalhos que fazem parte das razões desta pesquisa está na capacidade de manter as máscaras físicas dell’arte continianas, graças ao potencial que a musculatura desenvolveu através da prática das manifestações espetaculares populares brasileiras. Mais ainda, além de darem o suporte físico e energético necessário para manter as máscaras dell’arte continianas, as práticas espetaculares populares brasileiras permitem-me, através da codificação e decodificação destas, chegar a novos movimentos e ações que se assemelham aos das máscaras, em tensão e qualidade. Durante meu estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore, criava minhas partituras para as cenas a partir da geminação de códigos advindos das manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa. Sempre, para obter a boa combinação dos códigos, fazia muita atenção aos circuitos musculares e energéticos de tais códigos, bem como, às tensões e qualidades com que empregava estes. Com esse encaminamento cauteloso, os movimentos e ações que desenvolvia para as cenas com as máscaras dell’arte obtinham a aceitação e aprovação de meus “maestri italiani”. A harmonia que a geminação entre as Máscaras dell’Arte e os códigos das manifestações espetaculares populares brasileiras pode chegar é de uma semelhança e equilíbrio tão grande, a ponto de tornar impossível a diferenciação da origem de tais códigos, pois a amálgama que se forma dá a impressão de ser uma coisa só, de ter uma só fonte, de ter somente um reservatório\motor54. O estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore rendeu alguns espetáculos e cenas, trabalhos que me são muito caros, porém, tem um pelo qual alimento um sentimento mais 54 Na verdade, a ideia de um espaço como o Fundo Comum dos Sonhos é de ter uma “fonte única” que se ramifica através de um DNA imaginal. 188 especial. O espetáculo “Papaietta Poliglota”55, cuja direção é de Claudia Contin e supervisão de Ferruccio Merisi, foi construído visando esta união entre a commedia dell’arte e as manifestações espetaculares populares brasileiras. Em agosto de 2008, ao final da primeira apresentação do espetáculo, realizado somente para convidados da Scuola Sperimentale dell’Attore, Merisi falou, reflexivo, que, nas cenas, não era mais possível distinguir quais movimentos “pertenciam” à commedia dell’arte e quais eram advindos das práticas espetaculares populares brasileiras. Por tudo o que já foi expresso a respeito da imaginação, do Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, da formação dos circuitos e metamorfose destes, pode-se compreender porque as ações e movimentos em “Papaietta Poliglota” eram tidos por Contin e Merisi como “giusti” (justos, corretos) dentro da perspectiva das máscaras dell’arte. Pois, tais movimentos portavam genes imaginais advindos das práticas espetaculares populares brasileiras, embora fossem compartilhados, também, pelas máscaras dell’arte – ou, na visão deles, o contrário: eram genes que faziam parte das máscaras dell’arte e, também, das práticas espetaculares populares brasileiras. Claro que se trata de proporções de micropartículas imagéticas e energéticas que integram a parcela do imaginário que atravessa o tempo e o espaço, que transborda e inunda a pluralidade. Mas são nestas ínfimas, porém, grandiosas, frações de comunhão, que as ações e a cena obtêm a homogeneidade de natureza, é onde acontece a transdução dos movimentos. Continuando com a apresentação dos “afluentes” deste imenso mar, introduzirei as máscaras dell’arte continianas, algumas considerações a respeito destas e das experiências mais intensas que tive com elas na cena. 55 Meu espetáculo solo, dirigido por Claudia Contin e com supervisão de Ferruccio Merisi. O nome do espetáculo vem de nome da minha Servetta – Papaietta - e do fato que, no espetáculo, falo em português, italiano oficial, dialetos do italiano, italiano macarrônico e espanhol. Posteriormente será falado especificamente deste espetáculo. 189 5. IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS “O estudo sistemático das produções do imaginário efetivo propicia o acesso a aspectos mais profundos dessa realidade, disfarçados pela roupagem colorida do fantástico.” Monique Augras (2009, p.10) Se o Bufão permitiu-me vislumbrar o lado carnavalesco e ritualístico das máscaras dell’arte, o Zanni fez-me perceber os desdobramentos destas, suas conexões, as correntes em galerias fluviais subterrâneas que deságuam em atitudes lúdicas. Como já comentado, as máscaras do Zanni e do Arlecchino acompanharam todo meu processo de aprendizagem e apropriação das outras máscaras dell’arte. Zanni é a primeira máscara ensinada por Claudia Contin. Segundo ela, Zanni é uma espécie de “carro abre-alas”, isso “[...] porque é uma das máscaras mais antigas da Commedia dell’Arte, juntamente com os Capitani” (CONTIN, 1999, p.44) 1 e então ela, de certa forma, apresenta o fantástico universo destas máscaras. Antes mesmo de aprender esta e as outras máscaras com Claudia Contin (Roma, 2007, fui apresentada ao Zanni continiano pelo professor Dr. Giuliano Campo (Paris, 2005). Quando fui para a Scuola Sperimentale dell’Attore (Pordenone/2008) como atriz/aluna/estagiária e colaboradora/professora desta, fui realizando mergulhos mais profundos no mundo de cada máscara dell’arte, através de laboratórios com o grupo (Claudia Contin, Ferruccio Merisi, Lucia Zaghet, Veronica Risatti e Xu Xuan) , com a professora Veronica Risatti, em laboratórios e trabalho individual em sala de aula e espetáculos. Os primeiros laboratórios do estágio foram dedicados à investigação das máscaras femininas da commedia dell’arte. De manhã, trabalhava em laboratórios individuais com a professora Veronica Risatti e a noite com o grupo. Foi um mergulho intenso e penetrante, conhecendo o funcionamento destas máscaras e sendo “batizada” na primeira Máscara dell’Arte. Este costume de receber um nome e assumi-lo, sempre que vestir a máscara, é uma tradição deste gênero de teatro – porém, pessoalmente, acredito que isto é uma característica de todo teatro que trabalha com a máscara e o travestimento. Segundo Tessari (1981, p.85), a commedia dell’arte teve a “generosidade” de deixar (como uma espécie de herança ou marca) para os atores que se dedicavam a este gênero de teatro, o nome da máscara a que se destinavam: 1 Tradução da autora: “[...] perché è una delle maschere più antiche assieme ai Capitani della Commedia dell’Arte”. 190 Aqui, a fisicidade do tipo escolhido pelo intérprete – herdado de uma tradição e replasmado por uma vida inteira de arte (ou, ao menos, por uma ampla porção desta) - encontra o seu símbolo mais claro e inquietante na atitude que induz o comico a acrescentar, ao próprio nome, aquele da máscara que sempre interpretou: quase em um processo de osmose e de confusão entre individualidade social e papel cênico, o que sintetiza na forma mais jocosa e mais cruel o nexo de construção e de “liberdade” criativa sobre o qual se edifica a tarefa “tão belíssima, quão difícil e perigosa” da improvisação.2 O nome da máscara ligado ao nome do ator funciona como uma espécie de identificador e, também, de neutralizador da identidade do ator (singular e plural). Um identificador, porque destaca o ator dentro da arte da máscara, como os vários casos citados por Taviani e Schino ao longo do livro “Il segreto della Commedial dell’Arte. La memoria delle compagnie italiane del XVI, XVII, XVIII secolo” (1982). Neste estudo, os autores trazem a publicação de cartas (pessoais e documentos institucionais), nas quais, em muitas delas, o ator assina e, ao lado de seu nome, acrescenta o da máscara ou firma somente com o nome da máscara. Um exemplo deste caso é o de Zan Ganassa, famoso ator de commedia dell’arte, conhecido pelo seu nome de arte, mas que se chamava, na realidade, Alberto Naselli. Quando endereçava suas cartas à autoridade da realeza, assinava, também, como Zan Ganassa (TAVIANI; SCHINO, 1982, p. 90). Assinar com o nome de arte dava uma dupla identidade ao ator. A duplicidade poderia destacá-lo entre os comicos dell’arte e, também, dentro da sociedade. Por outro lado, o nome de arte o coloca dentro de um espaço comum a todas as máscaras (no caso de Naselli, do Zanni), pulverizando-o dentro deste outro universo e, certamente, protegendo-o porque, sob o caráter da máscara, o ator tinha licença para agir fora das normas sociais e fazer exigências ao seu público. Nas cartas divulgadas por Taviani e Schino (1982), muitos são aquelas em que, utilizando-se do nome de arte, o ator pede favores, pagamentos e presentes aos barões, duques e reis3. Utilizando o nome de arte, o ator/atriz possuía, muitas vezes, permissão para frequentar a corte ou, até mesmo, era convidado por seus membros para frequentá-la. Ainda, 2 Tradução da autora: Qui, la fissità del tipo scelto dall’interprete – ereditato da uma tradizione e riplasmato per una intera vita d’arte (o almeno, per amplissime porzione di questa) – trova il suo simbolo più chiaro e inquietante nell’atteggiamento che induce il comico ad aggiungere al proprio nome quello della maschera sempre interpretata: quasi in un processo di osmosi e di confusioni tra individualità sociale e ruolo scenico, che sintetizza nella forma più giocosa e più crudele il nesso di costruzione e di “libertà” creativa su cui si fonda l’impresa “bellissima, quanto difficile e pericolosa” dell’improvvisazione. 3 No segundo capítulo desta tese, foi citada uma observação de Cesare Molinari, sobre tal artimanha dos comicos dell’arte (o autor se referia à Tristano Martinelli), chamando tal estratagema de “fazer o bufão” ou “jogo bufonesco” (MOLINARI, 1985, p.110). 191 em alguns casos, o ator tornava-se mais conhecido pelo seu nome de arte que pelo seu nome de batismo, como aconteceu com o já citado Zan Ganassa. Claudia Contin, atualizando e seguindo a tradição dos “nomes de arte”, assina “Arlecchino Claudia Contin” e “batiza” os atores do grupo com o nome das máscaras que estes assumem. A primeira máscara com a qual fui “batizada” foi a de Servetta/Cortigiana Papaietta. Quando me refiro “a primeira” é que a teoria desenvolvida por Contin prevê que o ator deve passar por todas as principais máscaras dell’arte. Para Contin, uma máscara “seguirá” o ator e ele irá assumi-la inteiramente, para tanto, ele deve conhecer o mundo de cada uma delas, uma vez que somente conhecendo os mundos destas é que ele, em cena, poderá jogar livremente. O jogo da improvisação dell’arte depende de uma série de fatores: do total conhecimento do mundo da máscara que se endossa, do conhecimento do mundo das máscaras com que se dialoga, do conhecimento das possibilidades de construção de cena dentro das perspectivas destas máscaras e do conhecimento das possibilidades, dentro da cena, de cada ator e da comunicação em cena entre os atores. Dentro destes encaminhamentos, endossei algumas máscaras com mais intensidade e afinidade e recebi, para estas, nomes que me identificavam. Para cada máscara dell’arte que apresentar, revelarei os códigos utilizados na técnica de transdução, farei também um relato resumido das experiências resultantes do acesso a ela, realizado na Scuola Sperimentale dell’Attore. Tal procedimento é necessário visto que penso que tais espetáculos e participações podem servir como uma espécie de comprovação ou validação da técnica que proponho, pois exercitei a transdução entre aqueles que são considerados, pelo próprio público e academia italiana e francesa, como “profissionais”4 e experts da commedia dell’arte. 4 Foi meu orientador, Dr. Raimondo Guarino da Universitá di Roma Tre, que me “encaminhou” para o trabalho de Claudia Contin, afirmando que ela é, atualmente, a principal profissional ligada à prática da commedia dell’arte. O mesmo me foi dito pelo Dr. Giuliano Campo, especialista em Commedia dell’Arte e pela Drª. Beatrice Picon-Valin, da Sourbone (FR), grande estudiosa de Meyerhold. Ouvi muitos outros comentários do mesmo gênero, não é o caso enumerá-los, penso que é suficiente dizer que Claudia Contin é muito respeitada entre os pesquisadores da Commedia dell’Arte e encaminhar os leitores para a bibliografia desta tese, para que possam ter acesso às indicações de seus livros e artigos . 192 5.1. SERVETTA “PAPAIETTA”, A CORTIGIANA ENAMORADA: MÁSCARAS FEMININAS DA COMMEDIA DELL’ARTE “O poder de Eva é apenas uma parte do poder masculino, enquanto que o poder de Lilith é o poder feminino em toda a sua plenitude [...] é necessário seguir os caminhos do imaginário que, ao longo dos séculos, asseguram a permanência de antigas representações.” Monique Augras (2009, p. 40-41) Antes de qualquer colocação, deve-se relembrar e readirmar que a Commedia dell’Arte é um gênero de teatro que utiliza a máscara. Inicialmente foi falado que a máscara, para esta pesquisa, não é somente um objeto, é uma complexa categoria, dentro da qual estão situadas, entre outras, o clown, o bufão e as máscaras dell’arte. Quanto às máscaras que integram a commedia dell’arte, nem todas utilizam a máscara de couro, porém, todas possuem uma máscara física. É o caso das máscaras femininas e dos enamorados ou nobres, os quais não utilizam o objeto máscara, mas são constituídos de uma máscara física. Tal qual o bufão, as máscaras dell’arte tomam o corpo inteiro. Como primeira máscara dell’arte, assumi a Servetta/Cortigiana, e foi com este “batismo” e convivência no grupo que entendi que o nome que me foi dado, coloca-me em um grupo ou coletivo e, paralelamente, num espaço singular. No grupo, éramos quatro Servette (Servetta Caipirinha/Veronica Risatti, Servetta Polentina/Lucia Zaghet, Servetta Mandarina/Xu Xuan e Servetta Papaietta/Joice Aglae Brondani), onde tal nome identificava meu lugar no coletivo e meu espaço pessoal dentro deste – com tudo que era comum às máscaras da Servetta e aquilo que era especificamente meu5. O primeiro estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore foi um mergulho nas máscaras femininas, um trabalho destinado à criação do espetáculo “Né serva, Né Padrona” - direção de Claudia Contin e Ferruccio Merisi (Ver Anexo B). A máscara da Servetta é uma máscara de origem tão popular quanto à do Zanni. Na verdade, ela é a companheira do Zanni e, tanto quanto a máscara de seu companheiro, ela também se desdobrou em muitas outras. Quando as companhias dell’arte “invadiram” a 5 O nome Papaietta surgiu de um discurso que fiz. Gosto muito de mamão (seja papaia, formosa ou qualquer outro tipo) e, depois de alguns meses na Itália, tinha muita vontade de comer esta fruta. Então, procurei por todos os mercados e feiras de Pordenone e encontrei-a em uma pequena loja de frutas exóticas. Eram caríssimos, pequenos e estavam verdes, mesmo assim, tamanha era a minha vontade, que comprei uma embalagem com três papaias. Chegando à Scuola, coloquei-os para amadurecer próximos à janela da cozinha. Um dia, depois do ensaio, fui “saborear” a fruta, quase sem aroma e com um gosto horrivelmente amargo, para mim, um desastre. Então fiz um longo discurso sobre a dificuldade de encontrar papaia, o sabor diferente que a fruta tinha na Europa, o preço absurdo por um pequeno exemplar da fruta e todos riam da minha “fúria” contra os mercantes e a natureza que não proporcionava papaias mais saborosas na Itália. Desde então, passaram a me chamar de Papaietta. 193 França, a máscara da Servetta já chegou com seus desdobramentos e tornou-se mais conhecida pelo seu segundo nome, pode-se citar como exemplo a Colombina e outros como Riciulina e Franceschina (CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.57). Foi o mesmo processo de desdobramentos da máscara que aconteceu com o Zanni. Apesar de ser a companheira do Zanni, enquanto que este tem origem bergamasca, a Servetta, segundo Contin (1999, p. 134), é de origem veneziana: [A Servetta] É geralmente identificada como máscara de origem veneziana – mesmo se existiam Servettas de várias proveniências – talvez por causa de uma certa fama de maior desinibição social das mulheres venezianas, em relação àquelas de outras regiões.6 Conforme especificado por Contin, existiam Servettas de toda parte da Itália. Clavier e Duchefdelaville (1994, p.58), por exemplo, não falam da origem da Servetta, dizem apenas que ela foi seduzida por Arlequin, em Veneza e que, depois do fato consumado, tornou-se uma comediante. Outro exemplo de sua múltipla origem está em um texto intitulado “Il saluto di uma Servetta”, contido em R. Tessari (1981, p.159), cujo trecho é extraído de outro texto, nomeado “Saluto di serva toscana” de A. Perrucci, contido no livro “Dell’Arte rappresentativa premeditata e all’improviso” (1699). Neste texto, a Servetta conta histórias, tão fantasiosas como as histórias de um Zanni, que envolvem mitos como Netuno, Baco, Adonis e Marte, são causos que interpõem o absurdo, o cômico e a esperteza destas máscaras dos servos. Segundo Tessari (1981, p.20), não existe um documento que possa dizer, com exatidão, a data da aparição da mulher na cena - não se sabe, também, se a Servetta foi a primeira máscara feminina a aparecer na cena (ou se foi a Cortigiana ou Nóbile). Mas, conforme a observação do autor, sabe-se que a presença da mulher nos palcos está ligada, sem sombra de dúvidas, à commedia dell’arte. Pois, anterior ao fenômeno das companhias dell’arte, tradicionalmente, eram os homens que faziam os papéis femininos. Foi, certamente, na commedia dell’arte que a mulher assumiu seu papel na cena. As máscaras femininas da commedia dell’arte foram parte de um movimento que ecoou, não somente no mercado, mas na sociedade em todos os sentidos. Conforme Tessari (1981, p.20) assinala, a escolha de colocar mulheres em cena foi, também, mercadológica e 6 Tradução da autora: “Viene spesso identificata come maschera di origine Veneziana – anche se si ebbero Servette di svariata provenienza – forse a causa di una certa fama di maggiore disinibizione sociale delle donne Veneziane rispetto a quelle di altre regioni.” 194 econômica, pois como não era um costume ter mulheres “expostas” com todas as suas capacidades de tramas e encantos, a presença feminina chamava a atenção do público em geral, mas, principalmente, do masculino. A presença da mulher em cena, em uma época em que as mesmas não podiam expor-se, foi muito impactante, principalmente, porque a máscara feminina na commedia dell’arte tem como base mais importante, segundo Contin, a exuberância, a beleza e o fascínio da feminilidade. Em “Commedia dell’arte: la Maschera e l’ombra” (1981), Tessari traz muitas observações sobre este incrível fascínio que as mulheres exerciam na cena. Ele cita documentos clericais que “denunciam” as companhias dell’arte que usavam mulheres em cena “desvirtuando” os jovens, os pais de família e as jovens que se encantavam com aquele universo e dedicavam-se à arte de interpretar. Enfim, para a igreja, as compagnias dell’arte eram consideradas engenhos de desvirtuação e tentação aos bons costumes e à sociedade. Muitos documentos que contêm tais observações também são encontrados em La Commedia dell’Arte e la Società Barocca. La fascinazione del teatro, de Ferdinando Taviani (1991). Certamente, que a commedia dell’arte contribuiu, mesmo se pensasse de forma mercadológica, para um movimento importantíssimo: a presença da mulher dentro do universo das artes e, daí, para um engajamento desta, até mesmo, na sociedade. É impossível não pensar que muitas conquistas femininas tiveram, como passo inicial, o ato da mulher estar em cena, enfrentando rejeições e acusações. Contudo, esta tese não se dedica a estas implicações. Na commedia dell’arte, as mulheres não usam máscaras. Isso porque, na época, a companhia desejava mostrar que o papel feminino estava sendo realizado por uma mulher e não por um homem vestido de mulher. Segundo Contin (1999: 133), se a compagnia dell’arte colocasse uma máscara sobre o rosto da mulher, estaria cometendo um grave erro, pois estaria desfigurando a “poderosa arma de chamar público” - que era a presença da mulher no palco com um pedaço de couro que, com certeza, não seria tão belo quanto o rosto da atriz. Não se pode esquecer que mesmo a beleza apolínea da Servetta possui um ligame com o universo subterrâneo. Como serva, ela contém a mesma fome característica do Zanni, porém é travestida na sua esperteza, capacidade de duplo sentido, independência e “liberdade” (CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.58). 195 Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Papaietta Poliglota Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 24 07 2008 Nas máscaras dell’arte continianas, a exuberância feminina explora seu lado dionisíaco, e seus aspectos carnavalescos e grotescos também são convocados, exatamente, no exagero desta feminilidade. A máscara da Servetta une a beleza, o grotesco e o absurdo. Seus discursos podem ser tão absurdos quanto os do Zanni. Cito como exemplo um belíssimo trabalho que assisti, depois apreendi, e tornou-se uma das cenas de meu espetáculo dirigido por Contin e Merisi, intitulado “La scorza di melone”7. Trata-se de uma cena reconstruída por Contin, de um discurso e jogo típico da Servetta. Cena em que uma jovem conta como um escorregão em uma casca de melão a fez engravidar de um Capitano que, querendo ajudá-la a levantar-se do tombo, descuidadamente, escorregou na mesma casca e caiu no seu colo. Dessa queda, então, ela engravidou, restando a ela o destino de ser comediante e construindo com todos os seus filhos uma compagnia dell’arte. Trata-se de uma história totalmente fantasiosa, cheia de duplos sentidos, a qual mostra o lado sensual, “ingênuo”, esperto e grotesco da Servetta. Segundo Contin, Servetta é tão alegre quanto o Zanni e tão jovial e rebelde quanto Arlecchino - ela é uma explosão de energia. Sua risada lembra um relincho, um grande sorriso, que mostra quase todos os seus dentes. Leve e saltitante como se fosse uma pipoca estourando, ela é radiante e provocativa (CONTIN, 1999, p.132). Estas mesmas características são assinaladas por Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.58). 7 “La scorza di melone” teve seu texto reconstruído por Claudia Contin e faz parte do acervo da Scuola Sperimentale dell’Attore. 196 Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Papaietta Poliglota Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 24 07 2008 Na codificação de Claudia Contin, a Servetta possui uma gama de movimentos e partituras (quadril, braços, saudações, caminhares) bem específicos. Parto da sua principal caminhada: o passo duplo. Isto é, ela caminha dando dois passos com a mesma perna, alternadamente. Porém, não são passos “secos” e “duros”, ela acrescenta a esse modo de caminhar, uma espécie de pequenos saltos com certa “maciez”, como se fosse um gingado, fazendo com que o seu caminhar pareça quase uma dança. Máscara física continiana da Servetta Desenho de Alice Mosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2008 Com este passo duplo, cuja movimentação a deixa ainda mais jovial, a Servetta locomove-se pelo espaço e seus braços repousam de forma graciosa na cintura, salientando o peito, os quadris ou ventre (partes do corpo feminino que, naquela época, eram muito importantes, pois tinham relação com a maternidade) e com a movimentação das mãos que também ajudava a salientar os atributos femininos. Quando caminha com este passo duplo, as pontas dos pés são lançadas para cima, um modo sutil de levantar um pouco a saia, fazendo com que os tornozelos fiquem sutilmente à mostra (muito audacioso para uma época em que as mulheres eram altamente reprimidas). Conforme afirma Contin (1999, p.135), as companhias dell’arte apresentavam-se nos palcos das praças, estes palcos eram colocados, mais ou menos, a um metro ou metro e meio de altura, deixando os tornozelos levemente desnudos na altura dos olhares do público. Outro 197 ponto que Contin ressalta sobre as mulheres e o modo de estarem em cena, é o exagero em enfeites nos cabelos e decotes, estes acessórios funcionavam como uma espécie de “moldura” para o rosto maquiado cuidadosa e elegantemente, ressaltando olhos e boca. Os decotes também eram enfeitados com fitas e babados em torno do colo, mantendo o mesmo efeito de “emolduramento” e “enquadramento”, puxando o foco dos olhares do público para aquela parte do corpo e chamando a atenção através da sensualidade. Dessa forma, trabalhando com detalhes e truques, as atrizes tornavam-se mulheres exuberantíssimas, quase mágicas, ou melhor, feiticeiras que encantavam o público, dentro e fora da cena – e foi com estes pequenos sortilégios da cena que a fama de feiticeiras das atrizes da commedia dell’arte foi sendo construída. Tessari e Taviani trazem um discurso de cunho religioso, feito em 1631, por Pedro Hurtado de Mendonza contra as companhias dell’arte, afirmando que estas eram, na verdade, um grupo de pessoas imorais. Nelas, os jovens pensavam somente no amor, a ponto de aprenderem fervorosas e apaixonadas poesias. Sublinhando que ainda mais imoral era a situação de coabitação entre homens e mulheres, nas quais viviam de forma promíscua, todos juntos, sem que as mulheres tivessem um quarto somente para elas. Para Mendonza, nas companhias, as mulheres eram sempre, ou quase sempre, despudoradas, pois os homens viamnas meio nuas e até chegavam a ajudá-las a despir-se e vestir-se rapidamente para entrarem em cena. Mendonza (apud TESSARI, 1981, p.21), continuando o discurso, vai mais além, alertando que nada se igualava ao pior dos pecados, à tentação que estas mulheres representavam: Para as mulheres, acrescenta-se outro perigo, nem um pouco mais leve: com freqüência, são extraordinariamente belas, elegantes no comportamento e no modo de vestir, com palavras suaves, hábeis na dança e no canto, experts na arte de recitar. E tudo isso arrasta os espectadores à libido.8 A partir destas palavras, pode-se entender o fascínio que as mulheres, que até então não apareciam nos palcos, exerciam sobre o público. Este fascínio acabou chamando a atenção e desencadeando, por vários motivos, a cólera da Igreja sobre as companhias de commedia dell’arte. Alguns documentos trazidos por Tessari (1981) e Taviani (1969) são de acusação de clérigos contra as companhias dell’arte. Os motivos eram muitos, falavam do fato que o público dava dinheiro para as companhias e poderiam, assim, deixar de cumprir os 8 Tradução da autora: Per le donne si aggiunge un altro pericolo per niente più lieve: spesso sono straordinariamente belle, eleganti nel comportamento e nelle vesti, di facile parola, abili nella danza e nel canto, esperte nell’arte della recitazione. E tutto ciò trascina gli spettatori alla libidine. 198 deveres sociais. Afirmavam que muitas famílias esperavam (a semana, o mês) e preparavamse para ir até a praça assistir às companhias dell’arte (isso quer dizer que as peças de teatro foram ganhando importância na vida da sociedade). Em Taviani (1969, p.356) e Tessari (1981, p.22-23), pode-se ler uma carta do jesuíta Domenico Ottonelli, de 1652 (ambos os autores divulgam este documento), a qual é plena de graves acusações contra as companhias dell’arte. Em tal documento, o jesuíta chega a afirmar que os meretrícios e as meretrizes eram permitidos e aceitos pela igreja, pois evitavam pecados mais sérios como o adultério, o incesto e outros, mas as comédias (referindo-se às peças das companhias dell’arte), ao contrário, instigavam o público em direção à ação destes graves pecados. Lendo tais documentos, a partir dos comentários ali escritos, pode-se ter uma ideia de como as máscaras femininas da commedia dell’arte foram alvos de discursos contrários a sua presença em cena. As atrizes, por parte das instituições religiosas, acabaram sofrendo algumas “condenações”. Por esta “demonização” da figura feminina, em algumas iconografias, as fitas e enfeites dos cabelos das Servettas acabavam desenhando duas pequenas guampas, mas não se sabe se este detalhe do ornamento das cabeças faz parte do grupo das causas ou das consequências dos comentários tecidos pela igreja. Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Papaietta Poliglota Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 24 07 2008 Segundo Contin, estes ornamentos colocados de forma a lembrar pequenos cornos, é um modo de reafirmar a ligação desta máscara com o universo infernal e subterrâneo. Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.58) também chamam a atenção destes recursos “demoníacos” da Servetta, no uso da maquiagem e ornamentos. Mas esta ligação da Servetta com o universo xamânico e demoníaco vai muito além de uma condenação eclesiástica, ela passa por toda a relação que é inerente ao Zanni, seu companheiro. Como uma “zanna”9, ela também possui as mesmas conexões telúricas que ele 9 Nome que também é chamado a Servetta companheira do Pulcinella, em Napoli. 199 tem com o universo subterrâneo, dionisíaco, xamânico e infernal (este último, muito relacionado a Arlecchino, como será visto mais adiante). Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Né Serva, Né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atrizes: Joice Aglae e VeronicaRizatti Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 18 01 2008 Estudando as máscaras femininas e as conexões xamânicas destas, percebi que a Servetta não recebe somente as conexões xamânicas e telúricas do Zanni, ela possui uma conectividade específica dela que se reafirma a cada vez que ela se move, está no seu caminhar em passo duplo. Apesar de Arlecchino caminhar deste mesmo modo, com o passo duplo e Contin (1999, p.133) falar desta ligação entre Servetta e Arlecchino, este passo duplo da Servetta vem, também, de outra conectividade. A Servetta tem, com este duplo passo saltitante, doce e leve, uma conexão com um ritual antigo da região mediterrânea italiana. Ela se locomove com o mesmo passo base da tarantella – dança xamânica (tida como curativa e de transe) do sul da Itália, realizada por mulheres (especificamente em Puglia, tinha\tem uma grande concentração de tarantatte – eventos\rituais em que tocam e dançam a tarantella – tanto a música, como a dança que fazem parte da tarantatta são chamadas de tarantella). Antigamente, acreditava-se que esta dança tinha o poder de curar as mulheres que tinham sido vítimas de uma “picada de aranha” (taranta). Então, quando as mulheres apresentavam os sintomas da “picada da taranta”, os músicos iam até a casa da hipotética doente e, com violino e tamorra, tocavam tarantella. A “doente”, como em uma espécie de transe, levantava-se e dançava até que todo o “veneno” saísse do corpo. A tarantatta não tinha/tem hora para terminar, dura o tempo necessário que a “doente” precisa para “expulsar o veneno” através da dança, então, para que os músicos dessem conta da demanda, muitas vezes, eram reunidas mais de uma “doente” e, nessa reunião de “doentes” em transe, dançando freneticamente, o ritual de cura pela dança, parece uma festa. Com o tempo, este ritual foi se tornando, também, um evento festivo, foram surgindo aqueles que se contagiavam pelo ritmo e entravam para dançar e festejar, sem uma intenção curativa – festa e ritual – e hoje, na Itália, a tarantella é uma das fontes de inspiração para a dança contemporânea. 200 Hoje, através de estudos, sabe-se que não se tratava de uma picada de aranha, mas sim, de um fenômeno psicológico, o qual, com o transe causado pela dança e música era, de forma catártica, “exorcizado”10. A tarantatta, este ritual de cura pela dança, ainda existe nos dias de hoje. Em Puglia, é possível encontrar rituais muito próximos daqueles que se faziam antigamente, mas é preciso ir além da época dos festivais que transformaram o ritual em evento turístico ou dança contemporânea. Os grandes festivais acontecem em junho e a maioria dos rituais também, pois a festa de São João (San Giovanni – San Gianni) é o ponto alto destes rituais (ligação da tarantatta com Zanni). Muitas vezes, é necessário procurar as tarantattas nos arredores da cidade, longe do centro e assim, encontrar aquelas que ainda mantêm algumas características originárias do evento. Para esta pesquisa, este duplo passo advindo da tarantatta é mais um fio que vem fortalecer as ramificações rizomáticas desta pesquisa com o universo ritualístico, com a festa e com as máscaras dell’arte. A tarantella, então, é um dos elementos que serve de reservatório/motor para a Servetta. Esta sua caminhada advinda da tarantella, com uma pequena modificação do circuito, transformou-se em um caminhar suave, doce, arredondado, mas também vigoroso, marcante e vivaz. Estas mesmas características de suavidade e vitalidade podem aplicar-se a uma dança brasileira, a qual possui, também, conexões com o ritual e a festa: o samba. No acesso através da técnica de transdução caleidoscópica, a máscara da Servetta, seu caminhar e toda a movimentação do quadril, pernas e pés, têm como base células/códigos advindos do samba. Esta conexão precisa de uma pequena modificação no circuito muscular e no acento rítmico do passo. Com estas pequenas mudanças, a tarantella transduz-se em samba e, vice-versa. Além do samba, na técnica de transdução caleidoscópica, na parte superior, o tronco acompanha o samba e os braços e as mãos ganham a fluidez da água e a força do vento, com os movimentos das danças dos Orixás, principalmente, das de Oxum, Iemanjá e Iansã. Ver a “construção” da máscara física da Servetta através das práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA - 4.2.1 – SERVETTA – fotos e dança. 10 Para saber mais sobre a tarantatta, ler: Tracce di teatro sciamanico tra Africa e Mediterraneo. Le maschere e la danza come contatto con stati di coscienza “diversi”. In Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontr, de Giovanni Azzaroni; Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte, Lo Scaffale Racolta De Teatro; Antropologia delle anime in pena. Teatralità e malattia nella cultura napoletana “underground napoletano”. In Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontr, de Marino Niola; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico. In Progetto Sciamano 2000. Esperienze di Teatro-ed-Handicap, Eugenia Casini Ropa. 201 Foto: Léo Azevedo Aula-Demosntração: Transduções e Imaginações Caleidoscópicas Direção/Atuação: Joice Aglae Data: Outubro 2009 Outra máscara feminina muito presente nas tramas e canovacci é a da Cortigiana11. Segundo Contin (1999, p.144-145), a Cortigiana é uma máscara dupla, pois reúne nela as corporeidades e fisicidades da Servetta e da Nobile (ou Enamorada). Sua natureza alternase entre populacha, agressiva, requintada e dengosa. Nas tramas, a Cortigiana é quem assume os papéis de dançarina, cantora, cigana e coisas do gênero. Ela não é uma serva e nem mesmo uma patroa, mas pode comportar-se das duas maneiras e, por isso, permear estes dois universos. Por estar neste lugar que lhe propicia o diálogo com ambos os universos, ela é uma máscara que contém traços misteriosos e exóticos, servindo, inclusive, para os papéis de estrangeira e feiticeira. Esta dupla natureza da Cortigiana se manifesta numa interseção contínua de duas precisas máscaras físicas: a primeira é aquela de uma jovem popularesca rude e com gestualidade mais grosseira e musculosa que a de uma Servetta normal; a segunda é aquela de uma nobre amorosa, refinadíssima e muito arredondada, com a gestualidade rica em elementos de dança e de sedução [...] A comicidade da Cortigiana depende, exatamente, do efeito que estas suas repentinas mudanças de comportamento agem sobre todos os personagens que a rodeiam. Geralmente a voz é extremamente móvel e pode passar, repentinamente, de um gorjeio lírico a um rugido profundo de uma leoa (CONTIN, 1999, p.145).12 11 Esta máscara pode ser confundida com a máscara da “La strega” ou em francês, “La sorcière” (CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.60), que seria “A feiticeira”, uma espécie de herbolária, cujo papel, dentro da trama é ligado à feitiçaria. Esta função, originalmente, era desenvolvida pelo Dottore, Capitano, Ciarlatano e Cortigiana. A Cortigiana pode trabalhar com poções mágicas e feitiços, mas seus domínios não se resumem a este universo da “feitiçaria”. 12 Tradução da autora: Questa doppia natura della Cortigiana si manifesta nell’intersecarsi continuo di due precise maschere fisiche: la prima è quella di una popolana rude e dalla gestualità più pesante e muscolosa di quella d’una normale Servetta; la seconda è quella di una nobile amorosa, raffinatissima e molto flessuosa, dalla gestualità ricca di elementi di danza e di seduzione [...] La comicità della Cortigiana dipende proprio dall’effetto che questi suoi repentini cambi di comportamento ottengono su tutti i personaggi che la circondano. Persino la voce è estremamente mobile e può passare improvvisamente dai gorgheggi lirici al ruggito profondo di una leonessa. 202 A Cortigiana possui uma conexão grande com o bufão, não somente pela “aura” de mistério que circula esta máscara, mas, também pela retórica, ela é muito hábil com a ironia e a sedução, como arma de manipulação. A Cortigiana incorpora a inversão do poder, porém, faz isso de maneira graciosa e leviana – ela possui a malandragem e o “jogo de cintura” do capoeirista e do sambista. Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópicas Direção/Atuação: Joice Aglae Data: outubro 2009 Com sua rebeldia e traquejo, a máscara da Cortigiana, na técnica de transdução, ganha vida através de células do samba, da capoeira, da ciranda, do maculelê e das danças dos Orixás (principalmente, Iansã, Oxum, Iemanjá, Xangô, Ogum, Oxumaré e Exu). Numa dinâmica caleidoscópica da imaginação, conforme caminhos líquidos já mencionados, a geminação de códigos, circuitos musculares e energéticos destas práticas espetaculares populares brasileiras dá vida e forma a base de sustentação da máscara da Cortigiana. Ver a construção da máscara física da Cortigiana através das práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.3 – CORTIGIANA – fotos e dança. Como dito, a primeira máscara que incorporei foi a da Servetta, porém, a primeira cena solo de commedia dell’arte, dentro da Scuola Sperimentale dell’Attore, foi de uma Cortigiana, no espetáculo “Né serva, Né Padrona”, dirigido por Claudia Contin e Ferruccio Merisi. Para fazê-la, tive de aprender, primeiro, as máscaras da Servetta e da Nobile. Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Né Serva, Né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atriz: Joice Aglae Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 18 01 2008 203 Prosseguindo, então, na descrição das máscaras femininas que incorporei, devo falar da outra faceta, cuja fisicidade integra a máscara da Cortigiana: a Nobile. Os Nobili, tanto femininos como masculinos, também não usavam/usam máscaras/objeto, mas possuem a máscara física. Segundo Contin (1999, p.109), as companhias de commedia dell’arte seguiam o preceito de que os “nobres de coração”, ou seja, aqueles que representavam/representam o amor (e outros sentimentos nobres) nas tramas, não deveriam/devem esconder-se atrás de máscaras. Contin ainda ressalta outro aspecto estético da cena que contribuía para a visão “poética” destas máscaras, cuja visível pele pálida daqueles que sofriam/sofrem por amor sobressaía ao obscuro mundo das máscaras de couros escurecidos e grosseiros. Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Data: outubro 2009 A máscara física continiana de um Nobile (maculino e feminino) é bastante complexa, plena de tensões e torções, pois nela se contradizem os instintos e os sentimentos e, segundo Contin, é nessa total contradição que estão as suas características cômicas e grotescas. Segundo as máscaras continianas, a Nobile (lê-se ambos os sexos), quando parada, possui uma postura quase de bailarina, esguia e elegante, a aparentar uma “educação clássica”. Os seus pés possuem uma abertura de 90 graus, os tornozelos aproximam-se elevando levemente as extremidades externas dos pés, como se fossem levantar vôo. Apesar dos pés serem levemente abertos, as pernas são tesas e bem fechadas, com uma certa tensão nas coxas. Mesmo que a parte inferior do corpo seja tensa, numa tentativa de bloquear os instintos, seu corpo é muito leve. O quadril apresenta uma característica torção, constituindo uma negação desta região instintiva, ele é girado na direção oposta à do peito, onde está o coração e seu sentimento nobre. O peito é alongado, direcionado para o alto, como quem deseja desgrudar-se do quadril para fazer o coração voar junto com as suas aspirações românticas. Então, na máscara física da Nobile, os pés e o peito são voltados para o lado oposto ao do quadril: 204 Portanto, o Nobile na tentativa de separar as próprias pulsões, acrescenta uma torção deste tipo: o quadril permanece voltado para um lado, ao centro do ângulo formado pelos pés, enquanto o busto gira em outra direção, procurando dar-se vida e existência própria, independentemente da parte inferior (CONTIN, 1999, p.111).13 Máscara física continiana dos Nobili Desenho de AliceMosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 O rosto do Nobile é voltado para o alto, como se fosse puxado pelo nariz, que cheira suavemente o perfume das “sferi celesti”, “esferas celestes”. Os braços são elevados seguindo a linha dos ombros, uma forma de negar e de manter as mãos longe da zona instintiva do quadril – diferente da Servetta e da Cortigiana que os apoiam nesta região com muito desembaraço. Os cotovelos e pulsos são semiflexionados, dando a impressão de que os braços são asas e as mãos passeiam pelo ar desenhando as ondas emocionais (CONTIN, 1999, p.109114). Todas estas tensões e formas específicas da máscara da Nobile são encontradas nas práticas espetaculares populares brasileiras. A postura esguia e elegante pode ser encontrada no maracatu, na postura do rei e da rainha ou na coluna ereta típica do xaxado. Os pés, com abertura de 90 graus, têm a mesma posição de um dos códigos que fazem parte do golpe de capoeira chamado “armada de costas”. A tensão nas extremidades externas dos pés é possível encontrar entre os códigos de uma das danças de Xangô e, também, está presente no maracatu, entre as células da dança do Porta-estandarte (ou dança do vassalo do Portaestandarte). É ainda na dança desta figura do maracatu que se encontra uma tensão nas pernas semelhante às tensões das pernas dos Nobili. Já a leveza do corpo, o seu modo de caminhar e as posições dos braços são parecidos com os códigos advindos da ciranda. Então, a máscara física da Nobile, na técnica de transdução caleidoscópica, conecta-se e recebe energia da 13 Tradução da Autora: Pertanto il Nobile, nel tentativo di separare le proprie pulsioni, aggiunge una torsione di questo tipo: il bacino rimane rivolto da un lato, al centro della squadra formata dai piedi, mentre tutto il busto ruota in un altra direzione cercando di darsi vita ed esistenza propria, indipendentemente dalla parte inferiore. 205 ciranda, da capoeira, do maracatu e da dança dos Orixás. Ver a construção da máscara física da Nobile através das práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.2. – NOBILE – fotos e dança. Reafirmo que não é simples falar de uma dinâmica caleidoscópica da imaginação, pois se, conforme Bachelard, uma imagem só pode ser explicada por outra, então, sabe-se que as tentativas de explicação destes engendros são usualmente falhas. O relato de algumas experiências dos espetáculos de commedia dell’arte que participei na Scuola Sperimentale dell’Attore, pode ajudar não a explicar, mas a entender que o acesso às máscaras dell’arte construído através das práticas espetaculares populares brasileiras é possível. 5.1.1. “Né Serva, né Padrona” “Né serva, né Padrona” foi um espetáculo preparado para o início das comemorações do carnaval italiano de 2008, na região de Pordenone. Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Né Serva, né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Joice Aglae, Lucia Zaghet, Veronica Risatti e Xu Xuan Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 10 01 2008 Para a construção do espetáculo e para que eu tivesse acesso a todas as informações sobre as máscaras femininas, a Scuola Sperimentale dell’Attore realizou um laboratório de pesquisa prático-teórico interno, isto é, somente para os atores da Scuola Sperimentale dell’Attore, em cujo grupo fui engajada. O laboratório intitulado “Carattere Femminili della Commedia dell’Arte” aconteceu de 08 a 18/01/2008 (60 H/A), dirigido por Claudia Contin e Ferruccio Merisi, contando, ainda, com o auxílio da professora Veronica Risatti. Os assuntos desenvolvidos dentro do laboratório foram: “Le Servette, Le Amorose, Le Cortigiane, Prime e Seconda Donne di Compagnia, Amor Sacro e Amor Profano, Cantatrici, Danzatrici, Suonatrici, Mezzane, Ruffiane e Curatrici, L’Amor nel Gioco e nella Poesia”; sendo divididos em 30 horas de laboratório prático; 20 horas de ensaios e dramaturgia cênica; 10 horas de 206 treinamento e atividades de divulgação pública. O laboratório seguiu conforme indicado: primeiro foi trabalhada a máscara da Servetta (como máscara feminina companheira de Arlecchino), depois foi a Nobile (como máscara que representa o amor) e, por fim, a Cortigiana (a máscara dupla, serva e nobre). Aprender detalhadamente as máscaras femininas serviu para aprofundar em detalhes o diálogo com as manifestações espetaculares populares brasileiras, descobrindo novas conexões e confirmando aquelas já vislumbradas. Nas cenas em que entrava como Servetta, aos olhos dos mestres, estava fazendo “à italiana”, mas internamente utilizava a técnica de transdução de forma sutil, trabalhando os circuitos energéticos, buscando a ancestralidade festiva do samba e das danças dos Orixás. A utilização deliberada das práticas espetaculares populares brasileiras foi permitida, pelos mestres, quando entrava para fazer a cena do monólogo da Cortigiana, com texto adaptado de um dos discursos de Ottonelli, cujas palavras eram de julgamento e observação do comportamento das comicas dell’arte e do comportamento social para com elas. Nesta cena, a pedido de Merisi, a capoeira servia como base, como reservatório/motor para a máscara física (juntamente com a ciranda, o maracatu, o samba e a dança dos Orixás), mas também para a movimentação dentro da cena. Construída com uma sequência de movimentos da capoeira, a Cortigiana Papaietta percorria todo o palco. Mais tarde, a sequência de golpes foi sendo trabalhada e transformada, tornando-se menos identificável como capoeira e mais adequada às ações que a cena requeria. Apresento abaixo o texto da cena da Cortigina Papaietta (adaptado por Claudia Contin e Ferruccio Merisi, extraído de uma carta de A. D. Ottonelli). Na cena, o discurso é feito pela própria Cortigiana, que conta como é bom, para uma mulher, ser chamada de “Senhora” e ir a grandes cidades encontrar-se com nobres cavalheiros, com suas carruagens, depois, ser conduzida a um quarto bem preparado, ser recebida com presentes, banquetes, grandes honras e, finalmente, esperar pela noite, por uma nobre consumação. Acredita-se que não seria o caso de colocar uma tradução, uma vez que a cena é apresentada, originalmente, em italiano e por se tratar de uma adaptação, há uma mistura de italiano antigo e atual. Então, fez-se um panorâma da situação para colocar o leitor a par da ação da cena. Para ler o texto integral e sem adaptações, reencaminho o leitor para “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra”, de Roberto Tessari (1981, p.22): O che gusto per uma donna che si possa preggiare del grazioso titolo di Signora. O che gusto per uma donna, si è. Andar ad una grand città, et esser tal volta incontrata da nobil cavalcate, et anche da carrozze da 4 o da 6 posti. E vedersi condotta a preparate stanze, et ivi ricever subito regali di rinfreschi per far lauti pasti e deliziosi. O che bella, anzi bellissima cosa, ricevere onori grandi e grand 207 presenti e alla fine sperare per la notte d’aver l’onore di una nobilissima consumazione. A sequência da cena da Cortigiana resultou na seguinte forma: O che gusto [passo de maculelê com mãos e braços das danças dos Orixás (Oxum)]. Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Outubro 2009 Per una donna (passo de ciranda) Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Outubro 2009 Che si possa preggiare del (rasteira do cavalo marinho ou da capoeira). Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Outubro2009. Grazioso titolo di Signora (passo da ciranda). E, dessa forma, a cena foi tomando forrma. Primeiro, ela fez parte da conferênciaespetáculo intitulada “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte – Né serva, né Padrona” e foi a público pela primeira vez, no Auditorium Comunale di Roveredo in Piano, nos dias 18/01/08 e 20/01/08, na Sala Arlecchino da Scuola Sperimentale dell’Attore (PN-IT). Neste mesmo espetáculo, outra colaboração da cultura popular brasileira: uma canção de ninar brasileira, cantada em português e em italiano e que se tornou uma cena do espetáculo, na qual Arlecchino escolhia um espectador e entregava-o às Servette (éramos quatro) para que estas o fizessem dormir. 208 Foto: Alessio Prosser Espetáculo: “Né Serva, Né Padrona” Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet, Veronica Risatti e Xu Xuan (e público) Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 18/012008 Os códigos da cultura popular brasileira e da commedia dell’arte geminaram-se de forma bem equilibrada e as cenas conectaram-se tão bem que acabaram fazendo parte, também, do espetáculo “Arlecchino e le sue colombine”, apresentado meses mais tarde, especificamente, no dia 16/05/08, no Agriturismo La' Di Fantin, em Pordenone (IT). 5.1.2. Preparação do espetáculo para Papaietta A criação de um “espetáculo dell’arte” realizado com códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras, sempre foi um dos propósitos desta tese. Porém, após o primeiro curso de dança popular brasileira que ministrei na Scuola Sperimentale dell’Attore (16 a 22/06/2008) e da primeira aula-espetáculo mostrada ao público italiano (“Tracciati Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane” - Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT, em 23/06/2008), cujo tema central foi a técnica de translocação e o vislumbramento da técnica de transdução, Contin e Merisi mostraram interesse pela direção de tal espetáculo. Então, no dia 30 de junho de 2008, começaram os ensaios de “Papaietta Poliglota”. De 30 de junho a 23 de julho de 2008, uma rotina de trabalho foi estabelecida para a criação de um espetáculo com uma parceria colaborativa harmoniosa, cujo texto é de organização e criação de Claudia Contin. O trabalho ganhou a seguinte dinâmica: pela parte da manhã, eu entrava em sala de aula sozinha e trabalhava utilizando o texto escrito por Contin e as máscaras físicas da commedia dell’arte, porém, já usando a técnica de transdução. Dentro do trabalho matinal que realizava só, colocava na movimentação das cenas, códigos e movimentações que advinham das práticas espetaculares populares brasileiras (e que fossem coerentes com o perfil da máscara dentro da ação da cena). As tardes eram reservadas para os cursos que ministrava dentro da Scuola (“danças populares e o trabalho do ator”, “clown” e 209 “capoeira e o trabalho do ator”) e cursos nos quais era aluna (laboratórios individuais das máscaras dell’arte com a professora Veronica Risatti). À noite, entrava em sala com Claudia Contin. Ela via o material que tinha trabalhado, só, pela parte da manhã e organizava-os, dirigindo as cenas dentro da perspectiva da commedia dell’arte. Com esse mecanismo, o espetáculo foi sendo criado. No dia 24 de julho de 2008, o processo do laboratório “La Servetta, Cortigiana e Damma Enamoratta – Papaietta – Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari, Popolari Brasiliane” foi apresentado aos integrantes da Scuola Sperimentale dell’Attore e a um pequeno grupo de convidados. Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Né Serva, Né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Joice Aglae Data: 24 07 2008 Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore De 25 de julho a 10 de agosto, tivemos ensaios e apresentação do espetáculo “Arlecchino e la vale dell’uomo” e de 11 a 23 de agosto/2008, as atividades laboratoriais para “Papaietta Poliglota” foram retomadas, desta vez, baseadas na máscara de Pantalone, para a composição da segunda parte do espetáculo. Mais tarde, falar-se-á da participação de Pantalone em “Papaietta Poliglota” - como também, do próprio espetáculo. 5.2. PANTALONE, IL VECCHIETO PICANTIN / O VELHINHO PICANTEZINHO Depois das máscaras femininas, é necessário falar de uma máscara que tem muita relação com elas: Pantalone. Pantalone é uma máscara que usa a máscara objeto e possui grande parte de suas tramas ligadas às máscaras femininas e ao Zanni, pois como afirma Contin, ele é o seu patrão por excelência. Pantalone é de origem veneziana. Trata-se de um velho mercante de Veneza, o mais avaro deles, deve-se especificar. Como Veneza era a região mercantil da Itália, por causa de sua posição e zona portuária, Pantalone é um típico homem de negócios, trabalha com 210 dinheiro (compra e venda) e tem como principal característica a avareza. Ele é totalmente libidinoso, o que economiza nos mercados, gasta em presentes para mulheres, principalmente para as Coritigianas. Apesar de fazer parte do grupo dos patrões, Pantalone não é um nobre: “Pantalone representa uma figura de mercador veneziano que enriquecceu com a florescência comercial da “Serennissima”: é avaríssimo, senhorial, mas não nobre, aliás, ele é de claríssima origem popular” (CONTIN, 1999, p.62).14 Conforme Contin, Pantalone é muito velho, é como se fosse o arquétipo da velhice, não basta dar-lhe 90 anos, mas 290 anos que lhe pesam sobre as costas, fazendo com que os ombros caiam para frente e a coluna ganhe uma pequena curvatura, na altura das escápulas, como se equilibrasse este peso da idade nesta pequena corcunda. É importante ressaltar que esta curvatura das costas do Pantalone não é igual àquela do Zanni, que possui a tensão empurrando o estômago para trás. No Pantalone, tem uma tensão em direção ao alto [é a mesma que se forma nos ombros e na coluna no gincado da dança dos Orixás (Exu), porém, quando, na técnica de transdução, os códigos são adaptados e os circuitos sofrem pequenos ajustes, aproveita-se para tornar os movimentos mais evidenciados e dilatados que quando feito nos rituais de candomblé]. Esta curvatura vista de costas parece ser o ponto pelo qual Pantalone se mantém “pendurado” no firmamento e que o mantém em pé. Vista de frente, observa-se um espaço côncavo que se forma entre os ombros pendidos para frente, que se transforma em uma pequena “área de proteção”, um lugar para contar o dinheiro dos negócios. As características de Pantalone são bem definidas, como todas as máscaras dell’arte continianas. Pantalone envelheceu de forma peculiar, apesar da idade avançada, ele não perdeu a sanidade e, quando o assunto é “negócios”, ele está sempre alerta e esperto. Além disso, Pantalone não envelheceu alargando as medidas, ele permaneceu magro, aliás, Contin compara-o com uma árvore que envelheceu secando. Apesar desta comparação com a árvore seca, no que diz respeito ao seu corpo, não é nem um pouco decrépito, ao contrário, tem muita energia, principalmente se for para ganhar dinheiro, escapar de uma dívida ou cortejar uma jovem. Para conseguir passar todas estas informações, o corpo do ator que incorpora a máscara do Pantalone está sempre dentro de uma luta de tensões. Por causa da sua idade, o 14 Tradução da autora: Pantalone rappresenta una figura di mercante veneziano che si è arricchito con i fiorenti commerci della “Serenissima”: é avarissimo, signorile ma non nobile, anzi egli è di chiarissima origine popolare. 211 peso do corpo age no sentido da gravidade e suas pernas lutam para deixar o corpo em pé. Nesta luta de gravidade versus vitalidade, os pés permanecem unidos, mas giram para fora, o mesmo acontece com os joelhos, que se alargam e, devido ao peso, flexionam-se, dessa forma, Pantalone ganha uma boa base de sustentação. Essa construção acaba deixando, no meio das pernas, a forma de losango, onde agem outras forças. Como a do seu órgão genital, que deve dar a impressão de um peso pendurado em meio a este losango. Claudia Contin (1999, p.68) cita que, em alguns figurinos vistos em iconografias antigas, Pantalone tem preso na cintura um saco de dinheiro, o qual fica pendurado, exatamente, neste losango, fazendo uma alusão ao seu órgão e ao seu recurso com as mulheres. Este “imaginário” órgão genital pesado em meio às pernas puxa-o para baixo, evidenciando, ainda mais, a sua idade, ao mesmo tempo, que o puxa para frente, mostrando seu desejo libidinoso com as mulheres. É necessário lembrar que Pantalone mantém sua libido ligada à vontade e não à ação. Segundo Contin, é nesta fome sexual que a origem popular de Pantalone se revela e, nas cartas de amor, revela-se a sua tentativa de ascensão à nobreza. Máscara física continiana de Pantalone Desenho de Alice Mosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro/2010 A sua hipotética virilidade não funciona, mas, em sua fogosa imaginação, Pantalone realmente acredita que realizará seus desejos sexuais com as Servettas e Cortigianas que galanteia. Estas, por sua vez, sabem que ele não oferece nenhum tipo de “perigo” e aproveitam para ganhar agrados do Pantalone, que possui como única realização de sua libido, presentes, mimos e cartas de amor. Muitos canovacci trabalham com o enredo em que Pantalone envia, por Zanni, uma carta de amor a sua amada (geralmente uma Cortigiana), como exemplo desse tipo de intriga, pode-se citar o texto de Goldoni, intitulado Bancarrota. Tessari (1981, p.144) traz algumas observações de A. Perrucci quanto à distribuição de papéis nas companhias e às características das máscaras em cena e, no que diz respeito a Pantalone, os comentários e acusações são bem incisivos. Deste mesmo teor são as 212 observações de P.M. Cecchini, também divulgadas por Tessari (1981, p.125). Cecchini fala da presença de Pantalone como um velho engenhoso que, por ser um idoso, deveria impor respeito, mas se mostra ridículo em suas vestes, linguagem (pois se diz “nobre”, mas fala em dialeto), voluptuosidade em direção às jovens e tramas com os servos, chegando até a desvirtuar a classe nobre, já que se apresenta como mercador, diz-se nobre, contudo, age de forma vergonhosa15. Quando se lê discursos com tais conteúdos, pode-se perceber que Pantalone chegava a causar alguma indignação e desconforto na sociedade, por suas características e modo de agir, já que, dizendo-se mercador, permanecia entre os nobres, mas se comportava como servo, tratando com eles como se fossem da mesma classe, deixando-se levar pelos impulsos sexuais e falando em dialeto - característica da classe subalterna. Toda a voluptuosa sexualidade, avareza e origem populacha de Pantalone são identificáveis na máscara física continiana. Com tanta fome sexual, o quadril de Pantalone também é projetado para frente, como o do Zanni. Porém, ao contrário do último, Pantalone não age sexualmente e sua volúpia acaba manifestando-se em cartas de amor e presentes. Como dito anteriormente, quem sabe aproveitar esta situação é a Cortigiana, que recebe muitos agrados e mimos de Pantalone, mas se relaciona com o Zanni ou Nobile. Quanto à máscara física, Pantalone possui três forças que agem: a gravidade que o puxa para baixo e as pernas que o empurram para cima, tendo como aliada a corcunda (que o prende ao firmamento), e o quadril que o puxa para frente. Na sua caminhada, ainda possui um pequeno impulso nos calcanhares, que também o ajudam a avançar. Dentro da técnica de transdução, a postura do Pantalone é sustentada com códigos advindos do coco, cavalo marinho, samba e dança dos Orixás. Para ter a força e tensão necessária nas pernas, pegam-se códigos do passo marcante do coco, daquele que caracteriza a “pisada” e, no quadril, mantém-se a força e o movimento da umbigada, também, do coco. Para as coxas, encontra-se a mesma tensão nas coxas e panturrilhas da perna quando se faz o passo “margüio” do cavalo marinho. Para a tensão das costas, como já dito, utilizam-se os códigos da dança dos Orixás (Exu). Para caminhar, utiliza-se uma partícula de um código advindo do samba e, assim, tem-se o pequeno impulso no calcanhar. Para os braços, na sua postura de base, que são para trás, pode-se utilizar a postura dos braços do xaxado ou das danças dos Orixás (código de uma postura de Oxóssi) e, para as mãos, pede-se emprestado uma partícula da dança dos Orixás (Oxumaré), que mantém 15 Por se tratar de uma escrita em italiano antigo, pensa-se que seja melhor não fazer uma tradução, então, para aqueles que desejam ler o discurso, aconselhamos buscá-lo na própria fonte (TESSARI, 1981, p.125). 213 uma “energia frenética” como a de um guiso de cobra. Nas mãos do Pantalone, há uma agilidade de quem conta dinheiro e a qualidade destas ações são fortes, “secas” e leves - como o guiso da cobra (ou, como Contin fala, são como antenas de um inseto). Ver a construção da máscara física do Pantalone no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.4 - PANTALONE: 4.4.2 – PANTALONE – dança. A máscara do Pantalone foi meu segundo profundo mergulho dentro do universo das máscaras dell’arte e constituiu a continuação do trabalho para os festejos carnavalescos de 2008, realizados pela Scuola Sperimentale dell’Attore em Pordenone (Ver publicidade no Anexo E). A preparação do cortejo carnavalesco que passaria pelos restaurantes e bares de Pordenone seguiu o mesmo esquema do trabalho com a máscara da Servetta. Tivemos (o grupo da Scuola Sperimentale dell’Attore, eu e Luciana Basilicò) um laboratório de pesquisa (prático-teórico) intitulado “Carattere di Pantalone”, ministrado por Claudia Contin e Ferruccio Merisi, auxiliados por Veronica Risatti, de 26/01/2008 a 02/02/2008. Foram oito dias de intenso trabalho dentro do universo da máscara de Pantalone, passando por todos os assuntos e características que dizem respeito a esta máscara: Il Vecchio Avaro, L’Amor Senza Età, L’a Figura dell’Ebreo Errante, Senilità, Fecondità, Caparbietà, Saggezza, Richezza, Sublimazione e Rapporti com le Parate degli Antichi Carnevali Montani Europei. Sempre dentro do mesmo esquema de produção, pela parte da manhã, trabalhávamos em um treinamento com a professora Veronica Risatti, à tarde, tínhamos laboratório com Claudia Contin e, à noite, a construção do cannovacio com Ferruccio Merisi, em uma distribuição de 21h/a de laboratório prático, 21h/a de trainning do personagem, 14h/a de ensaios e dramaturgia cênica e 5h/a de preparação e atividades de divulgação pública, totalizando 61h/a, incluindo o trabalho com capoeira, maculelê e samba de roda. No trabalho com Contin, passávamos a máscara física e a incorporação desta no seu universo e sua conexão com o carnaval. À noite, com Merisi, trabalhávamos jogo e improvisações e, pela manhã, trabalhávamos a fixação e a organicidade da máscara física com Veronica Risatti. Este trabalho para o carnaval foi idealizado por Merisi e tinha como fio inspirador a peça “Arlecchino servitore di due Padroni”, de Goldoni. Porém, neste caso, éramos cinco Pantaloni para um Arlecchino e o cortejo/scorribanda, por conseguinte, chamou-se “Arlecchino servitore di... quatre Padrone” (no início, havia quatro e, depois, foi incorporada ao grupo uma atriz de Pordenone, passsando, então, a cinco Pantalones no cortejo). (Ver publicidade no Anexo F) 214 Neste trabalho, foram utilizadas muitas práticas espetaculares populares brasileiras, inclusive, incorporadas ao laboratório de grupo de preparação do cortejo e das cenas. Para os atores e mestres da Scuola Sperimentale dell’Attore, as práticas espetaculares populares brasileiras não trabalhavam na máscara física, como para mim, mas serviam para a movimentação dos Pantalones durante o cortejo. Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet, Luciana Basilicò,Veronica Risatti, Xu Xuan Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 02 02 /2008 O cortejo foi criado com uma estrutura fixa e outra flexível [como a estrutura do cavalo marinho (OLIVEIRA, 2007) e como a estrutura das peças dell’arte, segundo Contin (1999, p.200)]. A partir de cenas estruturadas, improvisávamos. Um exemplo desta combinação era: conforme o sinal de Arlecchino (realizado com um apito, ou chocalho), os Pantaloni se reuniam próximos a ele e giravam em torno, chamando-o para realizar esta “pequena cena”, nesse caso, era utilizado o passo base do samba de roda. Estes mesmos passos eram utilizados quando os Pantalones, depois de fecharem o cerco em torno de Arlecchino, viravam de costas para ele e iam em direção ao público, “blasfemando” contra ele que escapava. Ou ainda, com Arlecchino ao centro e Pantalones ao redor, o cortejo seguia pela rua e, para avançar na caminhada (a depender do chamado de Arlecchino), era utilizada a ginga ou o avanço com a troca de negativa, ambos da capoeira. Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet, Luciana Baslicò, Veronica Risatti, Xu Xuan Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 02 02 2008 215 Também foi preparado o canovacci de duas cenas, em que ambas eram de desafio: em determinado momento, dois Pantalones apaixonavam-se pela mesma mulher (uma freguesa do restaurante, que era escolhida na hora através de jogo de cena), então, Arlecchino preparava o desafio, um era um “jogo” de capoeira e outro de maculelê e, assim, quem vencia (não era combinado dependia do jogo e da música) tinha “o direito sobre a donzela”, porém, quem a galanteava diretamente e saia com ela nos braços era Arlecchino, fazendo com que todos os Pantalones corressem atrás dele, que saía do restaurante. Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Joice Aglae e Lucia Zaghet Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 02 02 2008 Vale lembrar que, apesar das máscaras físicas serem bem codificadas, Contin, sempre que preparávamos uma cena, lembrava que as máscaras físicas não são formas cristalizadas, mas deformações do corpo a partir do próprio universo que as engendraram. Então, a máscara física deve funcionar como um elástico: estender-se para realizar a ação e retornar a sua forma e tensão. Porém, nesta “ação do elástico”, o ator não pode relaxar e desfazer todo o trabalho de construção da máscara física, para tanto, ele deve ter o conhecimento do universo da máscara, para saber que tipo de qualidade de tensão reflete no movimento que ele irá fazer. Devido à atenção com as qualidades de tensões, Pantalone pode jogar capoeira, maculelê, dançar ciranda e muitas outras práticas espetaculares populares brasileiras16. Com isso, pode utilizar as práticas espetaculares populares brasileiras para a construção da máscara física, dentro da trama, como subsídio para a estruturação da cena e para a movimentação das máscaras dentro desta. 16 Devido ao conhecimento dos universos das máscaras dell’arte e do repertório de qualidades de tensões e energias de cada uma delas, acaba-se percebendo que algumas ações podem ser feitas por determinadas máscaras, outras não. Por exemplo: Pantalone pode jogar capoeira, maculelê e dançar ciranda (e muitas outras práticas) e, certamente, será diferente da ciranda dançada por um Nobile, porém, com certeza, este não jogaria capoeira, nem maculelê, embora pudesse usar a movimentação destas práticas para a cena. Isso porque Pantalone tem uma variação de energias que o permite jogar com a diversidade, enquanto que o Nobile possui uma gama mais homogênea, o que não exclui certas atividades, mas pedem uma adaptação maior dos circuitos. Poder-se-ia dizer que com as máscaras dell’arte, tudo é muito relativo, podendo requerer grandes ou quase nenhuma adaptação de circuitos musculares e energéticos. Mas muito mais que relativo, o que age/comove é o dado sensível e tudo passa a ser mutável e re-combinável, nada é excluído (como é típico dos engendros do imaginário). 216 A scorribanda passou pelos restaurantes e bares de Pordenone e, em quase todos, os donos ofereciam taças de vinho (como manda a tradição) e o ator não pode não aceitar, por que o vinho é oferecido para a máscara, não para o ator. Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale Data: 02 02 2008 Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Joice Aglae e Lucia Zaghet Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Contin decidiu colocar em cena a máscara do Pantalone para “contracenar” com as máscaras femininas, porque foi com esta máscara que dei meu segundo intenso mergulho no universo das máscaras dell’arte - mas, esta experiência será comentada posteriormente. Como já dito, o processo com Pantalone foi de 11 a 23 de agosto/2008. O sistema para a montagem das cenas com Pantalone foi o mesmo adotado para as cenas da Servetta e Cortigiana: durante a manhã trabalhava sozinha e, à noite, trabalhava com Claudia Cotin. Desse modo, a trama do espetáculo foi sendo montada e ganhando a unidade. Contudo, conforme dito, “Papaietta Poliglota” é de propriedade da Scuola Sperimentale dell’Attore, assim, da parte de Pantalone não possuo, nem mesmo, fotografias. Então, também, para Pantalone criei uma nova cena, a qual faz parte do espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações: Máscaras dell’Arte e Cultura Popular Brasileira” – que será comentado posteriormente. 5.3. THE HOLY FOOL: CAPITANO E BRIGHELLA Depois do período de trabalho para a scorribanda, começaram os trabalhos para o Progetto Sciamano. Um projeto social que tem como objetivo a criação de uma relação entre o universo das máscaras dell’arte e portadores de necessidades especiais17. Este projeto 17 O Progetto Sciamano trabalha com portadores de necessidades especiais do Centro ANFFAS “G. Locatelli”, de Pordenone. O projeto acontece desde 1999 e apresenta, sempre, ao final do processo, um espetáculo, o qual tem a intenção de levar a público a relação dos frequentadores deste centro contracenando com o universo das máscaras17. O espetáculo final intitulado “Sherwood delle Danze”, com direção de Ferruccio Merisi e Claudia 217 ocupou a maioria dos dias de abril e maio, sendo que também tivemos os ensaios de preparação e apresentação do espetáculo “Arlecchino e le sue Colombine”. Do dia 31de maio a 11 de junho de 2008, foi realizado o laboratório “Carattere di Zanni”, para mim e outra aluna vinda de Roma. O laboratório foi ministrado por Verônica Risatti, sob a coordenação de Ferruccio Merisi e Claudia Contin, e teve a duração de 26h/a. Durante o trabalho, foi explorada a máscara física do Zanni, sua movimentação e temas pertinentes a esta: Carnavale, Servitù, Amore e Fame. Tal laboratório não tinha a finalidade de uma apresentação, somente de adentrar mais profundamente esta importante máscara dell’arte. Mas, para esta pesquisadora e para a técnica de transdução, foi um laboratório imprescindível e de importância impar, pois foi a partir dele que Zann Piedini ganhou força conforme mencionado anteriormente. Posterior ao laboratório da máscara do Zanni, aconteceu o curso de danças populares brasileiras que, juntamente com o professor Dr. Erico José Souza de Oliveira, ministrei na Scuola Sperimentale dell’Attore18. O encerramento do curso foi com a aula-espetáculo em que apresentei a técnica de translocação caleidoscópica e indicava o caminho para a técnica de transdução caleidoscópica, dando início, então, ao processo de construção de “Papaieta Poliglota”19. Então, após uma sequência20 de atividades desenvolvidas, chegou a época do festival L’Arlecchino Errante - Ano XII. Este festival caracteriza-se particularmente pelo fato de, a cada edição, estabelecer o diálogo da commedia dell’arte com uma prática espetacular ou cultura diversa. No ano de 2008, o tema escolhido para trabalhar dialogando com a commedia Contin, teve três apresentações. Duas foram realizadas na Sala Arlecchino Teatro Studio da Scuola Sperimental dell’Attore nos dias 26 e 27/05/08 e outro no Auditorium Concordia de Pordenone, no dia 28\05\2008 (Ver publicidade do evento em Anexo G – evento do dia 28 de maio\2008). Mesmo nesta experiência que não tem relação com minha tese, mas que participei, por estar na Scuola Sperimentale dell’Attore, a cultura popular brasileira esteve presente, em uma cena, Arlecchino chama alguns dos frequentadores do ANFFAS e joga maculelê com eles, que acabam dando uma “surra” em Arlecchino. Foi uma bela experiência, mas que não está entre as mais importantes desta tese, pois participei como assistente de todo o processo, mas não usava nenhuma máscara dell’arte. Aqueles que desejam saber mais sobre o Progetto Sciamano, de Claudia Contin, devem ler as revistas específicas do projeto: Progetto Sciamano 1999. Proposte Didattiche per le attività di Drammatizazione e Teatrali; Progetto Sciamano 2000. Esperienze di Teatro-ed-Handicap; Progetto Sciamano 2001. Incoltro col Teatro Cinese. Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mondo; Progetto Sciamano 2004. Teatro interetnico e teatro Social; Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontri. Todas com Org. de Claudia Contin e Scene Senza Barriere. Um’ocasione di dibattito sulle iniziative per il teatro della differenza, com Org. Claudia Contin e Ferruccio Merisi. 18 A publicidade do curso está contida no Anexo C. 19 Perpendicular ao processo de montagem do espetáculo “Papaietta Poliglota”, teve a montagem do espetáculo, já comentado, “Arlecchino e la valle dell’uomo”, no qual participava com meu Bufão: Murcia (Publicidade no Anexo G – evento do dia 26 de junho/2008). 20 Durante o período que estive na Scuola Sperimentale dell’Attore, ministrei cursos de clown, dança e capoeira, alguns, para os atores da mesma e outros abertos ao público (ver relação das atividades realizadas com a Scuola Sperimentale dell’Attore, no Apêndice D). 218 foi a arte do bufão. No conjunto das atividades durante o festival, todos os professores da Scuola Sperimentale dell’Attore entram em sala com os alunos: Contin ensina, trabalha as máscaras dell’arte, improvisações com elas e dirige o espetáculo final; Veronica Risatti fixa e exercita as máscaras dell’arte; Lucia Zaghet trabalha acrobacias e danças populares para a cena de commedia dell’arte; Alice Mosanghini trabalha canto para a cena de commedia dell’arte; Ferruccio Merisi trabalha com a voz para a máscara e dirige o espetáculo final; no caso deste ano, em que o diálogo era com a arte da bufonaria, o mestre convidado foi Léo Bassi e este trabalhava na sua área. O festival aconteceu de 31 de agosto/2008 a 21 de setembro/2008, formando, ao todo, 200h/a. No festival, através do conjunto das atividades desenvolvidas, trabalharam-se as máscaras dell’arte e todo o universo que as circunda. Além do curso com as atividades práticas relacionadas às máscaras dell’arte, o festival reúne muitos espetáculos da Itália e de outros países, bem como, realiza simpósios com temas que dialogam com a natureza do Festival.21 Durante o festival, todos os alunos passam por todas as máscaras dell’arte de forma intensa, pois se tem uma grande carga de atividades com todas elas. Para mim, aproveitei para apreender e mergulhar nas máscaras que não tinha trabalhado ainda em laboratórios com a professora Veronica Risatti, somente em trabalhos e laboratórios individuais: Dottore, Arlecchino, Pulcinella, Brighella e Capitano, sendo que as últimas duas, Merisi e Contin confiaram-me para o espetáculo final intitulado “The Holy Fool”, apresentado no dia 21 de setembro de 2008 – espetáculo em que Contin pediu, também, a participação do meu bufão22. 5.3.1. Brighella, o zanni trabalhador Brighela, então, foi uma das máscaras que tive de “defender” no espetáculo final do festival Arlecchino Errante 2008. Esta máscara também é da linhagem dos servos contendo todas as conexões telúricas e xamânicas inerentes às máscaras de Zanni. Segundo Contin (1999, p.102), Brighella também é de origem bergamasca, ainda que, muitas vezes, apareça na tradição lombarda e nas cidades de Milano e Brescia. Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.46) também assinalam a origem bergamasca de Brighella e acrescentam outras informações: a de que Bergamo seria uma Para ver a programação, resumida, do festival ANO XII, ver Anexo H. 22 Ver publicidade do espetáculo no Anexo I. 21 219 cidade dividida em cidade baixa e cidade alta, e que Brighella seria da parte alta, enquanto que Arlechino seria da parte baixa. Brighella é um grande amigo de Arlecchino, conforme se vê em muitos canovacci (e cita-se novamente como exemplo a peça de Goldoni “Arlecchino Servitore di due Padroni”). Segundo Contin (1999, p.104), tal como Arlecchino, Brighella é um Zanni que se desdobrou em uma máscara autônoma. Ao contrário de Arlecchino, que não gosta de trabalhar, Brighella, mesmo sendo um servo de idade avançada, é muito trabalhador, característica herdada do Zanni. Segundo Contin (1999, p.104), o nome “Brighella” possui duas conotações: uma é a de furbo, que significa astuto, malandro e a outra é a de sbrigare, que quer dizer resolver, despachar, encaminhar, finalizar23. Para Contin, a segunda versão é mais significativa que a primeira, levando em conta informações trazidas em roteiros tradicionais de commedia dell’arte, em que Brighella é um serviçal exemplar. Trata-se de um servo que gosta muito do que faz e procura fazer da melhor forma possível, sbrigando-si/se esforçando ao máximo. Sempre pronto a servir, seu espaço de trabalho é a cozinha e coisas que dizem respeito à “arrumação”. Se ele trabalha para alguém (Pantalone, Dottore ou Nobile), é uma espécie de “mordomo maior” ou “chef” da cozinha, ele não é da mesma condição do Zanni, que é um serviçal normal. Algumas vezes, em alguns canovacci24, Brighella é dono de uma pensão ou restaurante, porém, nada de luxuoso, um estabelecimento modesto voltado para o “mercado” dos servos. Também, neste caso, percebe-se, pelo seu modo servil de agir, que se trata de alguém que não tem inclinações para patrão. A máscara física brighellesca de Contin, como todas as outras, traz todas as características do seu universo para o corpo, no caso desta, são as deformações do próprio trabalho (CONTIN, 1999, p.104). Como sempre trabalhou muito, Brighella, como grande mordomo, mantém sua postura ereta. Seus braços, de tanto se manterem dobrados acima da altura da cintura (quase no peito), com a toalha de mesa ou pano de copa pendurado, como é hábito de todo o bom criado de mesa, acostumaram-se naquela posição. 23 Brighella é uma máscara que possui algumas contradições, entre os estudiosos: Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.50-52) falam da amizade entre Arlecchino e Brighella e, também, do nome Brighella derivar de “briga” e que seu caráter é de alguém que cria confusões. Afirmam ainda que, Brighella é tão preguiçoso quanto Arlecchino e comentam sobre a capacidade que este tem de manipular Arlecchino – uma visão bastante contrária àquela de Contin. Como está se trabalhando com as máscaras continianas, não se adentrará nestas discussões. 24 Para aqueles que desejam ler alguns destes canovacci, procurar em: Tutti i lazzi della Commedia dell’Arte, de Nicoletta Capozza; I Canovacci della Commedia dell’Arte, de Anna Maria Testaverde (organização). 220 Como todo bom serviçal, Brighella permenece grande parte do tempo em pé, pronto para atender e sbrigare/resolver qualquer pedido feito por seus clientes ou patrão, o mais rápido possível. Por causa desta prontidão e grande número de tarefas que sempre teve de cumprir, pois como tem um estabelecimento modesto, não possui empregados, com isso, ele é quem organiza e faz tudo. Com isso, suas maiores dores, como na maioria dos serviçais de prontidão, localizam-se nos pés. Tais ferimentos o levaram a desenvolver uma caminhada muito específica, com a qual procura aliviar seu sofrimento: O maior problema dos criados é localizado nos pés [...] Cada vez que Brighella apoia o pé no chão é um sofrimento, qualquer que seja o sapato ou pantufo que coloque, jamais encontra alívio. O que é que acontece no corpo de uma pessoa que caminha com tanta dor nos pés? Os ombros erguem-se num impulso, contraídos e altos até as orelhas, como se um arrepio doloroso percorresse continuamente a espinha dorsal. As pernas se enrijecem e permanecem retas, porque senão, uma forte flexão dos joelhos, colocaria em tensão, automaticamente, também, a estrutura dos pés, ao passo que, com a perna reta pode deixar a planta relaxada [...] Desse modo, Brighella tende a caminhar sem dobrar muito os joelhos, movimentando, ao invés, exageradamente as ancas, de modo a descolar os pés da terra, graças à elevação alternada dos glúteos [...] Por isso, todos os acentos da caminhada brighellesca são em direção ao alto (CONTIN, 1999, p.104-105).25 Toda a máscara física de Brighella é advinda de seu trabalho, que constitui o maior argumento de seu jogo na cena da commedia dell’arte. Outra característica sublinhada por Contin (1999, p.105) é que, as mãos também auxiliam nesta perspectiva de tirar o peso do corpo dos pés, numa tentativa de aliviar o sofrimento causado pelas dores. Como os braços permanecem na postura de mordomo que carrega a toalha, as mãos, ao invés de permanecerem fechadas como de costume, abrem-se e tentam “ensinar” os pés a pisar de maneira doce e leve, elas vão pisando suavemente o ar como se, dessa forma, suspendessem o peso do corpo. Tradicionalmente, Brighella é gago, característica que possui e que faz parte de sua comicidade. Mas, segundo Contin (1999, p.106), não é uma gagueira resultante de um problema congênito, a sua tem relação com suas características de servidor nato e da exigência de perfeição, típica de quem gosta de seu trabalho – como é o seu caso. A 25 Tradução da autora: Il problema più grosso dei camerieri è localizzato nei piedi [...] Ogni volta che Brighella appoggia il piedi a terra è una sofferenza, qualunque scarpa o pantofola metta ormai non trova più sollievo. Cosa succede al corpo di una persona che cammina con cosí tanto “mal di piedi”? Le spalle si sollevano con un scatto, contratte e alte fino alle orecchie, come se un brivido doloroso percorresse continuamente la spina dorsale. Le gambe si irrigidiscono e rimangono dritte, perché altrimenti una forte piegatura del ginocchio metterebbe automaticamente in tensione, anche la struttura del piede, mentre la gamba dritta può lasciare la pianta rilassata [...] Cosí Brighella tende a camminare senza piegare troppo le ginocchia, muovendo invece esageratamente le anche in modo da staccare i piedi da terra grazie al sollevamento alternato dei glutei [...] Perciò tutti gli accenti della camminata Brighellesca sono verso l’alto [...]. 221 pesquisadora explica que, como deve servir imediatamente, Brighella ganha uma ansiedade que o faz gaguejar, isto faz com que a sua fala ganhe ritmos diversos. São tantas tarefas a fazer que enquanto está cumprindo uma, já está pensando em como irá realizar a outra e, como bom serviçal, ele é simpático e solícito com todos. Máscara física continiana: Brighella Desenho de Alice Mosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 Para compor a máscara física do Brighella e dar vida a esta através da técnica de transdução, o ator deve saber maracatu, especificamente, a dança/caminhar do Portaestandarte (ou dança do vassalo do Porta-estandarte), pois ele possui um caminhar, durante o cortejo, que “imita” uma marcha de um cavalo, cujos joelhos são levemente flexionados e o movimento, por não utilizar muito os joelhos, parte das ancas. Por segurar o estandarte à frente do corpo, os braços e ombros do vassalo adquirem as mesmas qualidades que Contin ressalta como brighellescas e as mãos espalmadas, cuja intenção é a de manter uma leveza, tais traços encontram-se na dança dos Orixás, em um código de uma das danças de Iemanjá. O espetáculo “The Holy Fool”, direção de Claudia Contin e Ferruccio Merisi, era composto por uma trama de cenas que continham todo o material apreendido durante o curso (acrobacias, danças, argumentos, músicas, improvisação, tudo dento do contexto da commedia dell’arte). Uma das tramas tinha como centro Brighellino, como Contin chamava a minha máscara de Brighella. Ele era dono de um restaurante, cuja lista de devedores era imensa, entre eles, Pulcinella - o maior de todos. Brighellino entra em cena e faz um discurso contando sobre seus devedores e decide ir cobrar as dívidas. No caminho, encontra Pulcinella dormindo, acorda-o e cobra a dívida, este, por sua vez, ri de Brighellino e o paga em “pauladas”. Brighellino sai correndo e depois retorna, num pequeno solilóquio diz que sabe o que fazer com os maus pagadores e tira do bolso um rato morto. 222 Na Itália, principalmente na região das montanhas de Piemonte, o rato morto é símbolo da peste e da loucura, bater com um rato morto em alguém é como se desejasse a peste ou a loucura para essa pessoa. Porém, quem o porta, tem-no como uma espécie de amuleto contra as energias negativas. O rato morto, então, é como um desconjuro. Esta crença foi-me “revelada” em uma conferência organizada pela Scuola Sperimentale dell’Attore, em Pordenone (18/02/2009), para marcar o início das festividades carnavalescas/2009, cujo convidado e conferencista foi o antropólogo e pesquisador da Facoltà di Lettere e Filosofia dell’Università degli Studi del Piemonte Orientale “Amedeo Avogadro”, Dr. Davide Porporato. Porporato possui um vasto estudo sobre os carnavais antigos e tradições que se perpetuam nas montanhas de Piemonte. O pesquisador não se detém, somente, em escrever artigos ou livros, ele trabalha, também, com vídeos e projetos multimídias. Projetos como o “Bestie Santi Divinità, Maschere animale dell’Europa tradizionale”, o qual pode ser encontrado no Museo Nazionale della Montagna – CAI Torino (IT), que mostra um pouco desta tradição26. Além da importante conferência que realizou a Pordenone, Davide Porporato mostrou-se muito interessado na relação entre as culturas populares da Itália e do Brasil e colaborou cedendo material de sua pesquisa para que eu pudesse ter uma noção das tradições carnavalescas das montanhas de Piemonte. Com esta crença do rato morto, Brighellino partia outra vez para cobrar as dívidas. Ao encontrar Pulcinella, pedia o pagamento e quando este se negava, ele tirava do bolso o rato morto e, gargalhando, corria atrás do devedor que escapava amedrontado. Posterior a esta cena e em meio a cenas de outras máscaras, Brighellino atravessava o palco, mostrando o rato e gargalhando, como se ele mesmo estivesse possuído pela loucura portada pelo rato morto. Mais uma vez, o espetáculo de encerramento do Festivale Arlecchino Errante é de direito da Scuola Sperimentale dell’Attore e, portanto, não possuo nenhuma imagem deste, seja em fotografia ou filme. A própria direção da Scuola S.A., por ocasião do Festival, no momento em que pediu aos alunos que assinassem o termo de concessão de imagem, disselhes que seríamos presenteados com um CD com algumas das imagens do Festival e do “Saggio Finale”, mas já se passou mais de um ano, já aconteceu outra edição do festival e nenhum dos alunos recebeu tais imagens, permanecemos na espera e torcendo para que elas cheguem em breve, pois é uma boa lembrança da experiência vivida. 26 Outras obras do antropólogo e pesquisador que possuem relação com as festividades e tradições italianas são: Bestie Santi Divinità. Maschere animali dell’Europa tradizional, de D. Porporato (Multimidia); Oggetti e immagini. Esperienze di ricerca etnoantropologici, D. Porporato, F. Tamarozzi (a cura di); “Il carnevale delle olimpiadi. Il ritorno “Du grand Carnaval” de Champlas du Col”; “Il Rosario dell’albero del maggio. Sacro e profano a Costamagna di Lequio Tanaro”; “Le Parlate. Il venerdì santo a Entraque”, D. Porporato, André Carénini, Piercarlo Grimaldi, Luca Percivalle (Vídeos). 223 É preciso dizer que Brighella não é uma das máscaras integrantes do espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”. Foi uma difícil escolha, mas, por questões práticas dramatúrgicas, Brighella, juntamente com Dottore e Pulcinella ficaram para um próximo espetáculo. Dottore Ballanzone e Pulcinella porque foram máscaras que não “incorporei” em espetáculos na Itália e Brighella, porque se trata de mais um servo e já estão no espetáculo Zanni e Arlecchino. Então, optei em deixá-lo de fora da Aula-Demonstração27. 5.3.2. Capitano: o “grande” guerreador Capitano foi outra máscara que incorporei no espetáculo “The Holy Fool” e devo confessar que ela seduz, intriga e comove forças. Contin apresenta a máscara do Capitano como uma das mais antigas e complexas da commedia dell’arte, pois se trata de uma máscara dupla - como a Cortigiana. Porém, a Cortigiana, como foi relatado, é sedutora, forte, atrevida, esconde o seu lado perverso, ela é perspicaz no jogo de manipular as situações e as pessoas. Em algumas situações, ela pode ser velhaca, principalmente, tratando- -se de Pantalone, Ballanzone e, até mesmo, do Capitano. Ao contrário, Capitano é dono de um discurso falacioso. Narra as maiores guerras que o mundo poderia viver, como se as tivesse vivido e vencido. Segundo seu discurso, possui técnicas de ataque e defesa, conhece e luta com armas brancas (como a espada) muito bem, luta todos os tipos de artes marciais e se pronuncia como o maior lutador e herói de todos os tempos. Mas tudo isso é para disfarçar sua outra faceta: a de covarde (CONTIN, 1999, p.115). O Capitano, na verdade, é uma máscara que porta para cena uma grande eloquência e o absurdo, a sua cena “[...] é uma parte pomposa de palavras e gestos, que se vangloria de sua beleza, de graças e de riqueza, quando, na verdade, é um monstro, um pateta, um covarde, um pobre coitado e louco de amarrar” ( PERRUCCI apud TESSARI,1981, p.14).28 Típico falastrão, nas mãos da Cortigiana, vê-se em apuros, pois ela, como é uma máscara dupla, também reconhece alguém com duas facetas e sabe muito bem quais são as que fazem parte do Capitano, jogando com isso o tempo todo. Mas a porção covarde do Capitano pode aparecer a qualquer momento, qualquer rumor, um estouro ou livro que cai, 27 No Anexo J, pode ser visto algumas fotografias que dizem respeito a momentos da cena “Alla ricerca di un Zanni”, nas quais as geminações dos códigos das manifestações espetaculares populares brasileiras criaram circuítos que se assemelham à máscara física do Brighella. 28 Tradução da Autora: “[...] uma parte ampollosa di parole e di gesti, che si vanta di belezza, di grazie e di recchezza, quando per altro è um mostro di natura, un balordo, un codardo, un poveruomo e matto da catena.” 224 pode fazer as suas máscaras se alternarem e, num lapso, passar de uma grande encenação de guerra e heroísmo a um coelho que se esconde do predador. Não é possível determinar com certeza as origens da máscara do Capitano, uma vez que não há clareza nos dados de seu surgimento, nem mesmo em relação à região e data29. Segundo Contin (1999, p.44), o Capitano é uma máscara tão antiga quanto a do Zanni, porém, rastrear a região ou cidade da Itália em que este arquétipo concretizou-se como objeto/máscara é muito difícil. Contin (1999, p.120) afirma que dentro da commedia dell’arte, ele é reconhecido como estrangeiro, geralmente, usa sotaque espanhol, mas, também, alemão ou, ainda, siciliano (pois quando a Itália de hoje ainda não existia como um único país, a Sicilia era terra estrangeira). Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.61) são categóricos em afirmar que o Capitano fala com uma característica espanhola. Tessari traz as observações de P.M. Cecchini (apud TESSARI,1981, p.126) e A. Perrucci (apud TESSARI,1981, p.145) em que, ambos, em cartas, afirmam que a máscara do Capitano “combina” mais com o sotaque espanhol. Perrucci, inclusive, afirma que os “bravos capitães de antigamente” (citando Miles gloriosus de Plauto e o Trasone de Terencio em Eunuco), naquele momento (1699), eram feitos em diversas línguas (citando: toscano, napolitano, romanesco, calabrese, siciliano e espanhol), ratificando a diversidade de sotaque e idiomas desta máscara. Lendo tantas observações a respeito da fala do Capitano, é possível perceber que a fala era uma característica muito marcante desta máscara dell’arte e não passava despercebida pelo público, fosse ele contra ou a favor deste gênero de teatro. Segundo Molinari (1996, p.106), a fala do Capitano é fundamental, também, para o desenvolvimento de outra característica muito marcante desta máscara: o discurso hiperbólico. Analisando as várias línguas com que o Capitano faz seus discursos, Molinari (1972, p.106) traz à tona a questão de sua origem e observa que a máscara do Capitano, não pode ser vista como uma, mas como uma classe de máscaras, pois tanto quanto o Zanni, a máscara do Capitano desdobrou-se em uma grande variedade de capitães. Nesse sentido, Contin (1999, p.158) acrescenta, ainda, que alguns Capitanos, inclusive, são desdobramentos de Zanni, alguns deles seriam Zanni que, querendo ter “origem” mais nobre, passavam-se por capitães, citando como exemplo o calabrese Giangurgolo ou Scaramuccia, que era napolitano. 29 Quanto a estes dados, Clavilier e Duchefdelaville (1994:60) afirmam que a máscara do Capitano nasceu no momento das invasões espanholas e alemãs, tendo seu grande sucesso em toda a Europa, durante o séc.XVI e início do séc.XVII – também não se adentrará em uma discussão sobre estas discordâncias. 225 Molinari (1996, p.106) chama a atenção para o fato de que, dentro desta classe dos Capitani, por possuir muitas variações, as máscaras, muitas vezes, nem possuem o elo dialetal como regra, podendo falar em italiano, espanhol e tantos outros. Os Zannis possuem o dialeto bergamasco como uma característica própria, já o Capitano pode falar dialetos de diversas partes da Itália e até idiomas diferentes. Então, pensando na língua/idioma/dialeto de cada máscara dell’arte como uma característica própria e de identificação entre elas (Zanni: bergamasco; Pantalone: veneziano; Brighella: bergamasco; Servetta: veneziano; Dottore: bolognese...), o Capitano não a possui. Todavia, pensando por outro viés, esta ausência de um dialeto e/ou idioma de unificação passa a constituir uma das características do Capitano (embora não se possa esquecer que o espanhol é aquele que melhor representa a máscara, segundo as opiniões já citadas). Sempre na perspectiva de Contin (1999, p.120), esta característica de não ter um dialeto/idioma específico, vem, também, do próprio perfil da máscara. Nas narrativas das guerras, batalhas e conquistas que diz ter vivido, Capitano conta e revive suas peripécias e proezas realizadas pelo mundo, caracterizando-se como um viajante. Esta “áurea” de andarilho reforça a possibilidade dos diversos dialetos/idiomas para uma mesma máscara, sem que isto cause estranhamentos. Mas, Contin concorda com os outros estudiosos de que o espanhol ajusta-se muito bem à máscara do Capitano. Outras características são destacadas por Molinari (1996, p.106) a respeito do Capitano. Para este autor, trata-se de uma máscara verbosa e redundante e que seus discursos são sempre eloquentes, cheios de “vantagens” e falsas glórias que ele conta como verdades absolutas. Contin fala que esta eloquência verbal com todo o tipo de hipérbole e excessos é uma forte característica da máscara do Capitano, mas que toda esta pomposidade oral é acompanhada de uma hábil gesticulação. A cada guerra que conta, Capitano a ilustra com exagerada ênfase em cada fato, deixando seu discurso ainda mais suntuoso e alegórico. Este lado falastrão do Capitano faz parte, segundo Contin (1999, p.115), de sua segunda máscara, a que “ele criou para se mostrar ao mundo”: Na realidade, o Capitano é um grande covarde, um coelho que tem medo de tudo: teme, até mesmo, a sua sombra. A sua verdadeira máscara física caracterizadora representa uma postura angulosa, com as pernas dobradas e trêmulas, os joelhos são voltados para dentro, se tocam e se batem um contra o outro, o corpo é retraído da covardia, os braços contorcidos ou pendurados, vibrantes de medo e o pescoço é encolhido pelo temor de uma desgraça que possa cair do céu. Mas sobre esta miserável estrutura, o Capitano é capaz de construir uma segunda máscara física, 226 com a qual se apresenta em sociedade, uma máscara fictícia que lhe permite suportar – ao menos diante de si mesmo – os exageros que conta.30 Apesar da primeira máscara do Capitano ser a do “pobre coitado\covarde”, a técnica continiana não a tem como referência, o trabalho maior é a partir da segunda, daquela que ele criou para se mostrar – a do falso valente. Esta porção pomposa, exuberante, ágil e plena de recursos do Capitano advém, então, de sua segunda máscara. É com esta que ele convive. A primeira aparece, somente, em momentos de descontrole, causado por sustos e surpresas. Por conseguinte, no processo de apreensão da máscara do Capitano, chega-se a sua faceta covarde a partir da sua segunda porção, pois ela é, na verdade, a desconstrução da faceta falastrona, daquela que ele mostra. Por isso, primeiro apreende-se como ele se vê, o que ele quer mostrar de si mesmo, para depois desmontar esta imagem criada. Então, de fato, a porção “vangloriante” da máscara do Capitano, dentro do processo de apreensão da sua complexidade, é a primeira a ser apreendida e trabalhada, uma vez que esta se sobrepõe à outra, à porção covarde. É claro que estas duas porções, a covarde e a falastrona, compõem a complexa máscara do Capitano, mas, por ser aquela com que ele apresenta-se, é com a porção valente que a técnica de transdução caleidoscópica trabalha. Sendo a parte covarde, a desconstrução da valente, do que se conclui que tendo a faceta vangloriosa bem estruturada, chega-se à medrosa. Sobre esta dupla personalidade e sua presença nas peças dell’arte, A. Perrucci (apud TESSARI,1981, p.145) acrescenta ao seu comentário, citado anteriormente, que a máscara do Capitano “[...] quer viver com a fama daquilo que não é [...]”31 e, continuando as suas observações, ele é incisivo em advertir a influência negativa desta máscara na conduta de jovens, pois estes aprenderiam, com o Capitano, a se passarem por pessoas dignas de respeito, a se vangloriarem de “[...] nobreza e riqueza, sendo plebeus, velhacos e paupérrimos [...]”(apud TESSARI,1981, p.145). 32 Mas os cômicos dell’arte, apesar de tantas manifestações contra o seu ofício, continuavam a representar as suas peças nas praças e ruas e a máscara do Capitano, conforme sublinhado, agradava muito ao público. Este fator cômico, segundo Contin (1999, p.132), vem 30 Tradução da Autora: In realtà il Capitano è un grande vigliacco, un coniglio che ha paura di tutto: teme persino la sua ombra. La sua vera maschera fisica caratteriale presenta una postura nodosa, con le gambe piegate e tremanti, le ginocchia rivolte verso l’interno che si toccano e sbattono l’una contro l’altra, il corpo rattrappito dalla vigliaccheria, le braccia contorte, oppure penzolanti, vibranti di paura, il collo incassato nel timore di una disgrazia che possa cadere dal cielo. Ma sopra questa misera struttura il Capitano è in grado di costruire una seconda maschera fisica con cui presentarsi in società, una maschera fittizia che gli consenta di supportare – almeno di fronte a sé stesso –le esagerazioni che racconta. 31 Tradução da autora: [...] vuol vivere col credito d’esser tenuto quello che non è [...]. 32 Tradução da autora: “[...] nobiltà e ricchezze essendo plebei, forfanti e poverissimi”. 227 exatamente da contraposição das suas duas naturezas, dos dois pólos que constituem a complexa máscara do Capitano: uma porção pomposa e exuberante e outra covarde e velhaca. Esta dinâmica de troca entre as suas duas porções e toda a capacidade elocubrante do Capitano, deixam esta máscara interessantíssima, intrigante e cômica, beirando o absurdo e o surreal. Isto porque o Capitano não economiza nas demonstrações de seus dotes físicos, para mostrar como é capaz de sozinho derrotar inteiros batalhões. Essas demonstrações acabam criando certo dualismo, pois seu vigor físico em mostrar os golpes e lutas travadas durante a “guerra” poderia convencer de sua capacidade, mas se depara com um discurso hiperbólico. Então, se por um lado vê-se que ele é, verdadeiramente, ágil e entende de lutas, por outro, o seu exagero nos detalhes da guerra, em querer reconhecimento e glória por parte dos “ouvintes” o condena ao inverossímil. O Capitano é uma máscara que necessita de um corpo ágil e bem trabalhado, porém, não pode ser parrudo como o de um trabalhador como o Zanni, pois ele se diz nobre, então, mesmo sendo um “guerreiro”, ele deve ser “elegante”: Mesmo estando, quase sempre, em más condições o Capitano deseja sempre se passar por um Nobre Cavaleiro/Nobile Cavaliere, mesmo tendo, comumente, origens populares ou ambíguas, revelando-se, então, um Falso Nobre/Falso Nobile ou, no máximo, um Nobre Decadente/Nobile Decaduto. Mas não se dá, jamais, por vencido e procura redesenhar o seu corpo segundo uma educação cavaleirosa: copia dos Nobili a posição em ângulo dos pés, as pernas esticadas - mesmo se estas lhe desmoronem sempre em alguns ataques de tremores e transforma a postura de bailarino em uma postura marcial de soldado em “Atenção”. O Capitano copia dos Nobili, também, o alongamento do busto em direção à esquerda, em respeito ao quadril, porém a transforma em uma atitude de alerta, para estar mais preparado a pegar a espada em caso de perigo. Não imita a elevação nobre do nariz que, no seu caso, permanece ameaçadoramente muito abaixado, enquanto o gira em torno continuamente, procurando admiradores e admiradoras. Os ombros, enfim, são elevados até as orelhas e deslocados pra frente, numa tentativa vã de mostrar a força e a virilidade da própria musculatura (CONTIN, 1999, p.120-121).33 33 Tradução da autora: Pur essendo spesso in povere condizioni, il Capitano desidera comunque farsi sempre passare per un Nobile Cavaliere, anche se solitamente egli ha origini popolari o ambigue e si rivela dunque un Falso Nobile, oppure può farsi passare al massimo per un Nobile Decaduto. Ma non si da mai per vinto e cerca di ridisegnare il suo corpo secondo un galateo cavalleresco: copia dai Nobili la posizione a squadra dei piedi, la drittezza composta delle gambe – anche se spesso gli sfuggono in qualche cedimento di tremore – e trasforma la postura da ballerino in una postura marziale di soldato sull’“Attenti”. Il Capitano copia ai Nobili anche l’allungamento del busto verso sinistra rispetto al bacino, però la trasforma in un atteggiamento di allerta, per essere più pronto ad afferrare la spada in caso di pericolo. Non imita invece l’elevazione nobile del naso che, nel suo caso, rimane minacciosamente molto abbassato mentre ruota continuamente tutt’intorno alla ricerca di ammiratori e ammiratrici. Le spalle infine sono sollevate fino all’orecchio ed esposte in avanti nel tentativo vanno di mostrare la forza e la virilità della propria muscolatura. 228 Como o Capitano imita com seu corpo o corpo do Nobile, na técnica de transdução, também são utilizados quase os mesmos códigos das práticas espetaculares populares brasileiras que se utiliza para a máscara imitada. Máscara física continiana do Capitano Desenho de Alice Mosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 A postura esguia e elegante a que Contin refere-se “como de bailarino” encontra-se no maracatu, como dito anteriormente, na postura do rei e da rainha ou na coluna ereta típica do xaxado. Os pés com abertura de 90 graus ou em ângulo, como diz a pesquisadora, faz parte, também, de um dos códigos que constituem o golpe de capoeira regional (Mestre Alabama) chamado “armada de costas” ou “queixada”. Só que o Capitano não possui a tensão nas extremidades externas dos pés (típica dos Nobili), seus pés são bem plantados no chão, pois ele se diz um homem de lutas, como os pés do xaxado. A tensão necessária para as pernas da máscara física do Capitano e do Nobile encontra-se entre os códigos da dança do vassalo do maracatu, no seu passo que imita a marcha de um cavalo. A torção do busto e do quadril encontra-se na “armada de costas” da capoeira regional e os ombros e braços pode-se encontrar nos códigos da dança dos Orixás, no gincado comum a todos os Orixás e na postura de braços de Iansã. Ver a construção da máscara física do Capitano através de códigos das práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.5 – CAPITANO: 4.5.2 – CAPITANO – dança34. Como sempre, cada máscara física é composta pela combinação de códigos específicos, mas se conectam e recebem energias de muitas outras. Com a do Capitano acontece o mesmo mecanismo, conectando-se com a capoeira, o maracatu, danças de Orixás, frevo, maculelê e todas as outras práticas espetaculares populares brasileiras. 34 O DVD apresenta um engano na edição da imagem que compõe o fundo do ítem “CAPITANO – dança”, subdivisão do menu relativo ao CAPITANO: 4.5.2 . A imagem que ficou como “papel de parede” é de uma máscara de Arlecchino e não do Capitano, como deveria ser. 229 Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Data: outubro 2009 Uma das cenas do Festivale Arlecchino Errante/2008, em que incorporava a máscara do Capitano, tinha como enredo um duelo entre dois Capitani. Meu Capitano (chamado por Contin de Cocodrilo), cuja estatura é pequena (1,52cm), e um outro muito mais alto (1,90cm) fazíamos um duelo, simulando uma luta de espadas que, na verdade, era maculelê misturado com muitas acrobacias. No final, revelava-se que meu Capitano era aprendiz do outro Capitano (mais velho) e este lhe estava ensinando golpes durante o falso duelo, assim, não havia um vencedor. Por se tratar da apresentação final do Festival Arlecchino Errante, integrante do arquivo de imagens da Scuola Sperimentale dell’Attore, e também pelas razões já relatadas, não possuo imagens da apresentação. Em janeiro de 2009, a Scuola Sperimentale dell’Attore promoveu o 1º Arlecchino Errante Invernale, uma versão condensada do Arlecchino Errante, cuja finalidade era de aprofundamento em uma das máscaras que tinham sido confiadas ao aluno durante o festival Arlecchino Errante. Para mim, neste estágio aprofundado, foi destinada a máscara do Capitano. Neste período de uma semana de pesquisa sobre a máscara do Capitano, trabalhei seguindo todas as indicações de Merisi, mas empregava a técnica de transdução. Durante o trabalho, apresentávamos as cenas que estavam sendo construídas e estes mestres, ao verem a cena do Capitano, afirmavam que os movimentos eram “giusti” (justos), como costumava dizer Merisi. Um dia, apresentei meu monólogo à turma e Merisi, com seu olhar analítico e pontual, deu-me uma grande satisfação, quando olhou para a turma e disse aos outros alunos: “Bene... Tutti devono arrivare a questo! \Muito bem... Todos devem chegar neste ponto!”. 230 Para a confirmação da técnica de transdução, ouvir que os movimentos eram exatos, dentro da perspectiva da commedia dell’arte, foi muito importante, pois eu estava trabalhando com códigos e, até, movimentações da cena, advindos da cultura popular brasileira, mas “vistos” por olhos especializados em commedia dell’arte. Esta nova experiência deu-me ainda mais certeza de que o caminho de acesso e apropriação para dar vida às máscaras dell’arte continianas a partir das práticas espetaculares populares brasileiras, as quais faziam parte de meu reservatório/motor, era sólido. Desta experiência no 1º Arlecchino Errante Invernale, construí o discurso de autoapresentação do Capitano, que mescla italiano espanhol e português e faz parte da AulaDemonstração “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações” – porém, com uma livre adaptação, pois se trata de um longo discurso. 5.4. ARLECCHINO, O ZANNI ESPERTO A última máscara deste capítulo está relacionada, diretamente, com o Zanni – para, de certa forma, “retornar” à primeira máscara dell’arte. Na verdade, trata-se de um Zanni que se tornou tão famoso, a ponto de alcançar status próprio, sendo, talvez, uma máscara mais conhecida que a própria commedia dell’arte: é a mascara do Arlecchino. Arlecchino é uma máscara plena de lendas e suas torrentes são tão (ou mais) rizomáticas quanto às do Zanni, pois, sendo ele um desdobramento deste servo, já contém as conexões advindas dele e mais as que se ramificaram através das suas próprias conexões. A máscara do Zanni foi desaparecendo da cena e deu lugar aos Zanni que se destacavam, sendo nomeados, não mais por primeiro e segundo Zanni, mas por seus “nomes próprios”, como é o caso do Brighella, Arlecchino e outros servos. Neste movimento dos papéis das máscaras dentro da trama e do processo de fama destas, Arlecchino alcançou sucesso, não somente na Itália, mas na França e em outros países da Europa e fora dela. Dessa forma, a máscara do Arlecchino foi-se tornando uma espécie de ícone da commedia dell’arte e ganhando, cada vez mais, espaço e proporções internacionais. Neste caminho pelo mundo, a máscara do Arlecchino, Arlequim, Herlequin ou Hellequin também foi sendo rodeada de lendas e misticismos. Se de um lado, Arlecchino é um Zanni, de outro, é uma máscara emblemática por si só. Fausto Nicolini (1993, p.3), no livro “Vita di Arlecchino”, faz um estudo aprofundado desta máscara, comentando, inclusive, 231 sobre alguns atores que se dedicaram a ela e reafirmando que se trata de um desdobramento do Zanni: Arlecchino (e do mesmo modo Pulcinella) não é, como se acredita normalmente, um nome genérico originário de um tipo cômico fundamental, mas um dos tantos nomes específicos indicador das muitas variedades do quarto, entre os quatro tipos cômicos fundamentais ou máscaras da Commedia dell’arte: o Magnifico (Pantalone), o Dottore (chamado primeiro de Graziano, depois Baloard ou Balouard, enfim Balanzón), o primeiro zanni e – habitualmente também o chefe da compagnia – o segundo zanni.35 Mais adiante, Nicolini mais uma vez comenta da ligação entre Arlecchino e Zanni. Porém, enfocando o ator que teria incorporado a primeira máscara de Arlecchino, na França, e que antes, na Itália, era o famoso Zan Ganassa. Trata-se de uma transformação que se realizou através de uma atitude muito consciente, quanto à troca de nome do ator: O nome de arte do mais famoso entre os zanni cinquecentista, isto é, do primeiro que teria assumido na França, com justa discussão da opinião tradicional, nome e máscara de Arlecchino, foi Zan Ganassa [...], cujo nome de batismo era Alberto Naselli (NICOLINI,1993, p. 13).36 Naselli já foi citado outras vezes nesta tese. Faz-se necessário dizer que não se está pretendendo investigar os caminhos do ator, o importante das palavras de Nicolini é a compreensão de que existiu esta outra possibilidade de desdobramento do Zanni em Arlecchino. Uma transformação muito consciente de um ator que incorporava a máscara de Zan Ganassa e, ao chegar à França, queria um nome fácil de ser divulgado e, como já comentado, os cortejos carnavalescos dos Charivaris eram muito conhecidos, Alberto Naselli, adotou o famoso nome de Herllequin – uma observação diferente daquelas em que se afirma que o tempo teria sido “responsável” pelo desaparecimento do nome “Zan”, pois deixa a entender que a escolha de abstrair o primeiro nome da máscara teria sido um ato totalmente consciente. Contin também reafirma o desdobramento de Zanni para Arlecchino, juntamente com Merisi, no artigo “Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni 35 Tradução da autora: “Arlecchino (e, al modo medésimo, Pulcinella) non é già, come si crede comunemente, un nome generico originario d’un tipo comico fondamentale, bensì uno dei tanti nomi specifici indicanti una delle tante varietà del quarto tra i quattro tipi comici fondamentali o maschere della Commedia dell’arte: il Magnifico (Pantalone), il Dottore (chiamato prima Graziano, poi Baloard o Balouard, infine Balanzón), il primo zani e – abitualmente anche capocomico – il secondo zani.” 36 Tradução da autora: Il nome d’arte del più famoso tra gli zani cinquecenteschi, cioè del primo che, giusta la discutibile opinione tradizionale, avrebbe assunto in Francia nome e maschera di Arlecchino, era Zan Ganassa [...] il suo nome di battesimo era Alberto Naselli. 232 carnevalesche” (In Progetto Sciamano 2002), mas se detém às relações das máscaras, não adentrando as questões que dizem respeito aos atores. No referido artigo, os autores relacionam Zanni e Arlecchino (principalmente o segundo) com tradições de antigos carnavais, não somente da Europa. Na verdade, os pesquisadores tentam fazer um esboço do complexo emaranhado de crenças, lendas e vertentes da história que se relacionam com a máscara do Arlecchino. Na commedia dell’arte, segundo Contin (1999, p.89), a máscara do Arlecchino é mais seiscentista, apareceu posteriormente à do Zanni - sendo ele um “desdobramento” desta. Apesar de ser uma derivação do Zanni, Arlecchino o superou, tornando-se uma das máscaras dell’arte mais conhecidas pelo mundo (juntamente com a do Pulcinella). Isto porque ele possui uma segunda natureza que é anterior a sua existência na commedia dell’arte, podendo ser a máscara que tem mais “mistérios” a sua volta. Como visto anteriormente, Zanni possui conexões diretas com os bufões e Sátiros - todos os servos da commedia dell’arte carregam, em proporções diversas, estas características. Além disso, foi visto que a Servetta possui conexões com a tarantatta e Brighella com a “alquimia” da cozinha, Arlecchino também possui suas próprias conexões: Arlecchino é um personagem complexo porque não tem somente características humanas ou grotesco-humanas como vimos para os caracteres precedentes; ele conserva, também, aspectos de animal, de boneco, de pequeno diabo ou de servidor do diabo em pessoa (CONTIN, 1999. p.89).37 Esta conexão entre Arlecchino e o mundo das almas vem de uma “raiz literária”, segundo Beccaria, está registrado nos escritos do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321): No inferno dantesco, nos deparamos com diabos mais que simpáticos. São diabos em cena que se comportam como em um tablado de uma representação sacra. Diabos rumorosos que gritam, berra Minosse, Cerbero urra. São grosseiros e vulgares. O canto XXI termina com uma prazerosa brincadeira populacha, comum entre os diabos europeus do medievo; no canto sucessivo os diabos são enganados (segundo a tradição) por Ciampolo [...] [Os diabos] Têm, mais que nomes, sobrenomes engraçados que revelam a sua natureza má (Malacoda, Graffiacane), ou seus aspectos rosnantes e animalescos (Cagnazzo, Draghinazzo) e também cômico, de máscara ou de duende, come Barbarica, Scarmiglione, Farfarello4 e Alicchino (que tem a mesma raiz da máscara Arlecchino, cuja origem demoníaca faz jus à máscara negra, os saltos e os movimentos repentinos que lhe são específicos e o distingue. Talvez, o bastão [que Arlecchino carrega] seja o mesmo do duende que anda nos bosques das Tre Venezie (cfr.cap.IV, §7), ou uma variação do bastão, característico daquele uomo selatico/homem selvagem que, uma vez, víamos guiar aquele cortejo dos mortos, o qual Tacito faz alusão na Alemanha: uma procissão 37 Tradução da autora: Arlecchino è un personaggio complesso perché non possiede solo caratteristiche umane o grotesco-umane come abbiamo visto per i precedenti Caratteri; egli conserva anche delle aspetti di animale, di burattino, di diavoletto o di servitore del diavolo in persona. 233 itinerante de malditos que depois Mille [do ano 1.000] toma um caráter diabólico, a “família Herlechini” da qual Oderico Vitale fala na sua Storia Eclesiastica, a.1140).38 O pesquisador Gian Luigi Beccaria tem um profundo estudo sobre nomes, suas origens e transformações dentro da cultura popular. Na citação acima, faz-se outra visita à obra de Dante, mas desta vez o foco não está em Ciampolo (como quando a visitamos através da máscara do Zanni), mas na a aparição de Arlecchino como um dos diabos que foi enganado por ele. Ainda, Beccaria não só lembra que Arlecchino estava presente na obra de Dante, como também cita outras duas conexões desta máscara entre as crenças populares: entre os duendes (região de Veneza) e nos cortejos macabros da Alemanha. Estes cortejos das almas dos mortos são muito estudados por Contin e Merisi (2002, p.204). Os dois pesquisadores levam o leitor a um passeio pelas conexões que Arlecchino possui: Hellequin pode-se considerar como um dos misteriosos nomes antigos do Arlecchino, quer dizer, uma das raízes medievais da qual a máscara cinquescentesca tardia do primeiro Arlecchino teatral extraiu a sua potência misteriosa e, ao mesmo tempo, a sua persistente renovada atualidade no imaginário coletivo dos séculos sucessivos.39 Contin e Merisi fazem um resumo das referências mais antigas sobre a Máscara do Arlecchino passando pelas “bataglie noturne”, “caccia selvaggia”, os cortejos das almas errantes, as relações com o “Sabba”, citando o profundo estudo "Storia notturna: Una decifrazione del Sabba” de Carlo Ghinzburg (1989), os escritos de Alessandro Veselofskij, “Alichino e Aredolesa” (in Giornale Storico della letteratura italiana – XI – anno 1888, p. 325-343), dando destaque, ainda, ao estudo “Storia Ecclesiastica” de Orderico Vitale (1091), 38 Tradução da autora: Nell’inferno dantesco c’imbattiamo in diavolacci tutt’altro che antipatici. Sono diavoli in scena, che si comportano come sul tavolato d’una sacra reppresentazione. Diavoli rumorosi, che gridano, urla Minosse, Cerbero sbraita. Sono grossolani e volgari. Il canto XXI si chiudi con una loro compiaciuta manollata sconcia, consueta tra i diavoli europei del Medioevo; nel canto successivo i diavoli si lasciano ingannare (secondo tradizione) da Ciampolo [...] Hanno, più che nomi, buffi soprannomi, che rivelano la loro mala natura (Malacoda, Graffiacane), il loro aspetto digrignante e ferino (Cagnazzo, Draghignazzo) e anche comico, da maschera o foletto, come Barbarica, Scarmiglione, Farfarello4 e Alichino (che ha la stessa radice della maschera Arlecchino, della cui origine demoniaca fanno fede la maschera nera, i salti e i movimenti improvvisi che lo contraddistinguono, e forse il mazzuolo è lo stesso del folletto che si aggira nei boschi delle Tre Venezie (cfr.cap.IV, §7), o modificazione della clava, prerogativa di quell’uomo selvatico che talvolta vediamo guidare quel corteo dei morti cui già allude Tacito nella Germania una torma itinerante di maledetti che doppo il Mille prende un carattere diabolico, la “familia Herlechini” di cui parla Oderico Vitale nella sua Storia Eclesiastica, a,1140). 39 Tradução da autora: Hellequin si può ormai considerare come uno dei misteriosi nomi antichi di Arlecchino, ovvero una delle radici medievali da cui poi la maschera tardo-cinquecentesca del primo Arlecchino teatrale ha tratto la sua potenza misteriosa e al contempo la sua persistente rinnovata atualità nell’immaginario collettivo dei secoli successivi. 234 também reverenciado por Beccaria, como um dos mais antigos e importantes testemunhos do trânsito desta máscara. Os estudiosos passeiam pelas diversas variantes que a “famiglia Herlechini” sofreu, apontando um caminho de desenvolvimento e passagem da máscara do carnaval ao teatro: Daquele momento, os testemunhos de vislumbramento de diversas variantes da familia Herlechini se seguiram pelos séculos sucessivos sofrendo contínuas mutações: da manada de mortos condenados ao mítico exército de cavaleiros errantes imortais, ao exército dos diabos e espíritos irreverentes, até as aproximações trecentistas nas tradições de teatro de praça e arrebatadores cortejos carnavalescos, dos quais é exemplo típico, o Charivari francês [...] No famoso Roman du Fauvel, do século XIV141, é descrito um Charivari com um texto acompanhado de interessantes imagens miniaturas142. Trata-se de uma espécie de violento cortejo, de sarabanda endiabrada, de festa mascarada e descontrolada que corre pela estrada em ocasião das contestadas núpcias do terrível Fauvel com Vaine Gloire. Uma espécie de cortejo nupcial ao inverso, à frente do qual encontramos o próprio Hellequin em pessoa143. Além das evidentes afinidades com o desenvolvimento das festividades carnavalescas, o texto descritivo deste Charivari foi muitas vezes analisado e identificado, também, como ponto de passagem entre os antigos mitos e crenças populares, nas quais se insere aquelas técnicas teatrais coletivas que, no medievo, estavam se definindo; técnicas cênicas que teriam portado a gradual formação daquela “profissão de ator” que a Commedia dell’Arte cinquecentesca, por assim dizer, consagrou (CONTIN, MERISI, 2002, p.205).40 O texto “Roman du Fauvel” a que Contin e Merisi fazem referência está na Bibliothèque National de Paris, cuja descrição literária do Charivari e as imagens são muito interessantes. Nelas, é possível reconhecer Hellequin com um chapéu de asas (como o de Hermes), guiando o cortejo das almas perdidas. Todas as imagens, segundo os estudiosos, são interessantes, mas duas delas merecem um olhar diferenciado: na primeira, Hellequin guia uma charrete que é uma espécie de berço, na qual estão almas de crianças mortas e, na segunda, ele aparece no meio do cortejo, não mais guiando, mas junto com outras máscaras demoníacas41. Estas duas imagens são muito significativas, por que, posterior a este texto, quando 40 Tradução da autora: Da quel momento le testimonianze di avvistamento di diverse varianti della famiglia Herlechini si susseguono nei secoli successivi subendo continue mutazioni: da masnada di morti dannati, a mitico esercito di cavalieri erranti oltre il tempo, a orda di diavoli e spiriti irriverenti, fino agli approcci trecenteschi nele tradizioni di teatro di piazza e di irruenti cortei carnevaleschi di cui è tipico exempio lo Charivari francese [...] Nel famoso Roman du Fauvel, del XIV secolo141, è descrito uno Charivari con un testo accompagnat]o da interessanti immagini miniate142. Si trata di una sorta di violento corteo, di sarabanda indiavolata, di festa mascherata e scatenata che si snoda per le strade in occasione de contestate nozze del terribile Fauvel con Vaine Gloire. Una sorta di corteo nuziale alla rovescia, a capo del qualle incontriamo proprio Hellequin in persona143. Oltre alle evidenti affinità con lo sviluppo delle festività carnevalesche, il testo descrittivo di questo Charivari é stato più volte analizzato e identificato anche come punto di passagio tra gli antichi miti e credenze popolari, cui si è accenato, e quelle tecniche teatrali collettive che nel medioevo si andavano definendo; tecniche sceniche che avvrebbero portato alla graduale formazione di quella “professione d’attore” che la Commedia dell’Arte cinquecentesca ha, per così dire, consacrato. 41 Todas as imagens podem ser vistas, também, no artigo: Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesche. In Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mondo, de Claudia Contin e Ferruccio Merisi. 235 Arlecchino já tinha se fixado como máscara dell’arte, encontra-se muitas iconografias em que ele aparece carregando uma cesta cheia de crianças – ideia que está ligada, também, à fertilidade e à perpetuação da vida, característica própria dos Zanni. Na segunda imagem, conforme Contin e Merisi, Arlecchino retoma a sua origem selvática, de fauno, de uomo selvaggio. Esta ligação de Arlecchino com o mundo dos mortos e dos infernos é muito latente e toda a ligação com o mundo subterrâneo, própria de qualquer Zanni potencializa-se com as lendas de Hellequin. Neste sentido, os escritos de Oderico Vitale têm um grande valor para a construção do imaginário, pois, como afirma Contin, talvez estes escritos sejam a ponte entre as festividades carnavalescas e a tomada destas pelo teatro, especificamente, pela Commedia dell’Arte. Estes festejos guiados por Hellequin têm muita importância, não somente para estudos teatrais, mas sociológicos e antropológicos. Em determinado momento, segundo Monique Augras (2009, p.10), quando se trata de uma “bacia semântica” como a cultura (a autora cita Gilbert Durand), os fatos, sejam eles históricos ou imaginados, acabam por tocar o campo do sagrado e, então, igualam-se, porque aquilo que é histórico sempre é reinventado e o imaginado, com o tempo, acaba ganhando contornos reais. O antropólogo brasileiro Ordep Serra, no seu inquietante estudo “Veredas: Antropologia Infernal” (2002), sobre o imaginário que circula a atmosfera “infernal”, vai até os cortejos fúnebres dos Charivaris e traz a figura de Hellequin como protagonista destes cortejos. O autor faz esta busca, também, através os escritos “Storia Eclesiastica” (1091) de Oderico Vitale. Outros estudos antropológicos e sociológicos, que não vem ao caso enumerá-los, vão buscar no mito e no sagrado, a resposta e compreensão de muitos fenômenos. Fausto Nicolini (1993) pesquisa incessantemente a origem do nome Arlecchino, contrapondo dados e datas, fazendo um percurso pela obra de Dante, pelas lendas da Alemanha, Inglaterra, passando por variações dialetais italianas, pela literatura de Giulio Cesare Croce, pelos cortejos dos Charivaris e pelos escritos de Orderico Vitale. Segundo Nicolini (1993, p.69), foi através destes cortejos que Herlequin/Hellequin, já na metade de Duzentos, na França, alcançou o perfil de um tipo de diabo cômico, porém, foi na Itália, muitos anos depois (mais de 200), que Arlecchino transformou-se em máscara do teatro. Para Nicolini, é incontestável a ligação destes cortejos fúnebre dos Charivaris franceses, com o Arlecchino da Commedia dell’Arte. Muitas destas relações fortaleceram-se nas conexões do Zanni com o universo telúrico e muito também se deve ao fato que na região de Veneto, entre as suas lendas, já existia um duende com o nome Alichino. Conforme comentário anterior, 236 Nicolini levanta a hipótese do ator que incorporava Zanni (Alberto Naselli, o Zan Ganassa) ter-se aproveitado da difusão do nome Alecchino/Hellequin/Herlequin, para dar uma forma a este, uma máscara. Como muitas companhias dell’arte dirigiam-se à França, Arlecchino seria um nome fácil de ser lembrado em terras francesas e italianas. Nicolini (1993) levanta muitas considerações até chegar a esta hipótese, terminando por lembrar ao leitor que, mais importante que o fato, é o mito. Contin (2008) possui muitos artigos dedicados a esta máscara que a acompanha. No artigo Perseguindo Arlecchino, traduzido por esta autora, ela conta como a máscara de Arlecchino lhe foi confiada e como teve que trabalhar, transformando o seu corpo, para conquistá-la. Nesta transformação, Contin (1999, p.90) foi descobrindo algumas características desta máscara, como “[...] quando salta é muito leve e “aeroso”, quando retorna ao chão, ao contrário, é como se fosse esculpido em uma madeira sólida e pesada”42. Através de pesquisas e seguindo seus mestres, Contin (1999, p.91-93) foi compreendendo e redesenhando a máscara física do Arlecchino: Arlecchino é um dos maiores “boas-vidas” da história: se pudesse não fazer nada, nunca, ele seria muito contente: odeia o trabalho com todas as suas forças e todo o seu corpo o está dizendo. O calcanhar plantado na frente, não é uma simples mania, mas uma espécie de “freio” [...] Os dois joelhos não são retos, mas bem dobrados e dão uma impressão de força e de ser seguro de si [...] a postura base prevê o baricentro do corpo muito abaixado com as duas pernas posicionadas de modo a formar uma espécie de losango. As mãos flexionadas para trás e apoiadas com o pulso contra o quadril [...] testemunham, mais ainda, a atitude de uma pessoa que não tem nada para fazer [...] os ombros são recuados e abertos, mas os cotovelos são empurrados para frente, quase protegendo as mãos de qualquer tentação de trabalho. Segundo um dito popular vêneto-friulano diz-se que quem não tem vontade de fazer nada “puxa a bunda para trás” [...] Arlecchino já tem o quadril emperrado no ato de “retirada”.43 De acordo com a descrição, a pesquisadora realça algumas características demoníacas que, de modo sutil, outras bem visíveis, continuam fazendo parte desta Máscara. Uma delas é o sorriso que Arlecchino sempre tem estampado no rosto, até mesmo quando tem um acesso 42 Tradução da autora: [...] quando viene tirato verso il l’alto risulta leggero ed “arioso”, quando ricade al suolo è invece scolpito in un legno secco e pesante. 43 Tradução da autora: Arlecchino è uno dei più grandi “scansafatiche” della storia: se potessi non fare mai niente lui sarebbe davvero molto contento; odia il lavoro con tutto sé stesso e tutto il suo corpo lo sta indicare. Il tallone piantato in avanti non è un semplice vezzo, ma una sorte di “freno” [...] Entrambe le ginocchia non sono diriti, ma bien piegate e danno un’impressione di forza e di capàrbia [...] la postura base prevede il baricentro del corpo molto abbassato, con le due gambe posizionate in modo da formare una sorta di “losanga”. Le mani flessi in dietro ed appoggiate con i polsi contro i fianchi [...] testimoniano piuttosto l’atteggiamento di una persona che non ha nulla da fare [...] le spalle sono arretrate e aperte, ma i gomiti sono spinti molto in avanti, quasi a proteggere anch’essi le mani da qualunque “tentazione” di lavoro. Secondo un gergo popolare venetofriulano si dice che chi non ha voglia di fare niente “tira il sedere in dietro” [...] Arlecchino ha il sedere ormai incastrato all’indietro nell’atto della “ritirata. 237 de raiva, porém, neste momento, este sorriso transforma-se em uma espécie de relincho ou grito de ave de rapina, um resquício de sua ligação com o mundo infernal e suas risadas diabólicas. Outra característica, diz Contin (1999:94), está no movimento do quadril, que é encaixado para trás, também, porque nele, deve-se imaginar um rabo, que num processo de civilização lhe foi cortado, mas que se move como um prolongamento da coluna e que é, na verdade, a lembrança da sua porção animalesca. Neste mesmo processo de civilização, foi-lhe cortadas as guampas. Em algumas máscaras pode-se ver a marca desta castração, o que pode parecer uma pequena marca arredondada, como se fosse uma verruga, logo acima de um dos olhos da máscara é, na verdade, o que restou de um corno podado. Em outras, ainda, pode-se ver uma pontinha de um pequeno corno que insiste em “brotar” como é o caso da máscara do meu Arlecchino. Máscara física continiana: Capitano Desenho de Alice Mosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 Algumas máscaras cujo modelo é “cinquecentesco”, como é o caso da máscara do Arlecchino Claudia Contin, apresentam, na parte lateral da testa, duas protuberâncias, que são dois pequenos cornos. Contin sinaliza que, mesmo que lhe tenham cortado suas guampas, Arlecchino mantém na movimentação da cabeça a lembrança delas, preservando pequenos “golpes de máscara”, como ela chama (1999, p.96), os quais consistem em movimentos secos laterais ou curvos em direção ao alto, como se movimentasse os cornos de modo a atacar ou cutucar, com as suas guampas, o companheiro de cena ou o público. Então, Arlecchino é um desdobramento do Zanni que contém conexões próprias com o mundo subterrâneo. Sobre isso, poder-se-ia fazer um longo discurso como foi realizado com a máscara do Zanni, mas, como diz Contin, este abre a porta do universo das máscaras dell’arte e compreendendo ele, compreende-se muito de seus desdobramentos. Com isso, para o leitor que deseja saber mais sobre esta máscara e suas conexões com o mundo infernal, aconselha-se as leituras específicas de: Il MonDologo di Arlecchino. Spetaccolo comico grotesco per anime perse (2001), Gli Abitanti di Arlecchinia. Favole didattiche sull’arte dell’attore (1999), Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte (1995) e Perseguindo Arlecchino.(2008) de 238 Claudia Contin; Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesche. De Claudia Contin e Ferruccio Merisi (2002); Vita di Arlecchino de Fausto Nicolini (1993); Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte de Allardyce Nicoll (1980). Na técnica de transdução, a máscara física do Arlecchino contém para as pernas, joelhos e pés, uma mistura de capoeira e frevo; para o quadril, frevo; para os braços, cotovelos e mãos, códigos da postura de Iansã. Ver a construção da máscara física da máscara do Arlecchino através de códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.6 – ARLECCHINO: 4.6.2 – ARLECCHINO – dança. Como sempre, para a movimentação na cena e dar vida a esta máscara, várias outras práticas espetaculares populares brasileiras são acessadas. Na Scuola Sperimentale dell’Attore, não participei de nenhum espetáculo incorporando a máscara de Arlecchino – já havia um Arlecchino no grupo: L’Arlecchino Claudia Contin - mas a trabalhei com afinco em laboratórios individuais (só) e nos cursos da Scuola S. A. abertos ao público (em Roma, no Arlecchino Errante, no Arlecchino Errante Invernale. Os laboratórios individuais, os laboratórios com a professora Veronica Risatti e os cursos com Claudia e Ferruccio foram muito importantes para entender, corporalmente as transformações da máscara. Interessante que, com a Servetta, tive o desdobramento da Cortigiana e, com Zanni, tive o desdobramento do Arlecchino. Ambos muito importantes para minha aprendizagem dos transcursos fluviais que o imaginário engendra. A máscara do Arlecchino está no espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”, que será comentado no Apêndice E desta tese. Com a máscara do Arlecchino, chega-se a um “nó” importante da rede conectiva que se forma nesta tese. Pois as conexões entre as máscaras dell’arte e as práticas espetaculares populares brasileiras começaram quando fiz, pela primeira vez, a máscara do Arlecchino com a professora Dr.ª Inês Marocco. É significativo e importante que este ciclo da pesquisa (o qual foi nominado doutorado) retorne, modificado e fortalecido pelas conjecturas realizadas, para o nó que a impulsionou. Com este movimento, de certa forma espiralado, ganha força e nova impulsão para recomeçar um novo ciclo e novas conexões. 239 6. CONCLUSÃO Desde o início desta tese, deixou-se claro que “Esta pesquisa flutua!” e, na medida em que se foi estruturando o pensamento e revelando os encaminhamentos que constituem os transcursos fluviais desta pesquisatriz, percebia-se que vadear era o destino a ser seguido. Legitimada, principalmente, na ideia de imagem/imaginário em Gaston Bachelard e fundada sobre o preceito de circulação de estados (pensamento estruturado no primeiro Capítulo desta tese), Bachelard, Deleuze e Guatarri engendram--se, liquidificam-se, liquefazem-se e ramificam-se, formando uma relação de profundas sutilezas e deixando a possibilidade de seguir ramificando-se rizomaticamente, sem lançar âncora, mas atracando em portos e orlas de diversas ilhas para, depois, continuar mar a fora, seguindo correntezas, torrentes e marés. O Fundo Comum dos Sonhos que, numa dinâmica recíproca com o Fundo Poético Comum, através de um processo de imaginação, metamorfoseia-se no corpo do ator em máscaras físicas, foi o processo, aqui, desvelado. A ação processual mostrou uma pesquisatriz que se deixa levar por impulsos criativos da atitude lúdica, buscando vivenciar o jogo-festaritual em cada prática espetacular popular, seja italiana, ou brasileira, comportando genes vindouros de uma outra esfera - de uma ancestralidade festiva. Porém, para elucidar tais transcursos, foi necessário adotar critérios para definir as práticas espetaculares que constituíram o corpo desta tese, pois, do contrário, uma imensa torrente de conectividades apresentar-se-ia em desdobramentos múltiplos e, se a porção atriz comovida pelo impulso criativo da atitude lúdica consegue dar conta de tais conectividades, a parte que deve desdobrar-se na explicação e estruturação do pensamento formador de tais conectividades não acompanharia tamanha a velocidade e as ramificações rizomáticas no tempo que se fazia necessário. Nesta tese, foram reveladas algumas destas conectividades, uma vez que, como dito, a pesquisa poderia estender-se por muitas outras manifestações espetaculares populares brasileiras e máscaras dell’arte. Todavia, devido ao esquema adotado, as práticas elencadas foram a consequência de experiências adquiridas, tanto nas práticas espetaculares populares brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Capoeira, Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás) quanto nas Máscaras dell’arte (Zanni, Brighella, Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Nobile/Innamorata, Pantalone e Capitano). Foram experiências vivificadas pela ação do imaginário no próprio corpo - em atitude lúdica e 240 imaginação – onde as relações imagéticas possuem grande importância e suas inúmeras articulações foram e são as fontes de comoção para o acesso às máscaras dell’arte. As dinâmicas conectivas dialógicas entre a commedia dell’arte e as manifestações espetaculares populares brasileiras foram estabelecendo-se na medida em que trabalhava as máscaras dell’arte. Como dito muitas vezes, a musculatura requeria, nos circuitos musculares conhecidos, a força propulsora e energética que necessitava para acessar e apropriar-se das máscaras dell’arte, buscando, naquilo que já estava inerente, um caminho para “o novo”. Sem elencar justificativas e valendo-se da prática realizada foi possível delinear os campos de atuação e, se não foi possível adentrar todas as principais máscaras da commedia dell’arte, muito menos um número maior de práticas espetaculares populares brasileiras, procurou-se encaminhar o leitor às pesquisas mais específicas de tais campos e deixaram-se muitas questões para vadiagens além desta tese e/ou como encaminhamentos para pesquisas posteriores. No transcurso realizado, na medida em que se avançou em direção às máscaras dell’arte, o Bufão ganhou importante posição - um nó determinante dentro da rede conectiva. Para compreender as máscaras dell’arte, seus universos e conexões com a tríade de Huizinga, jogo-festa-ritual, fez-se necessário compreender, também, o universo carnavalesco, partindo dos rituais de fertilidade até os cortejos carnavalescos: reino do Bufão por excelência. Seria impossível apropriar-se de modo integral e intenso das máscaras dell’arte sem vadear e vadiar no oceano bufonesco. Assim, o Bufão auxiliou na compreensão da relação entre mito dionisíaco e máscaras dell’arte como também da relação destas máscaras com a ancestralidade festiva, assinalada por Oliveira, advinda do mito e que se emana em festa. Esta ancestralidade festiva foi “perseguida” nas (e através das) práticas espetaculares populares brasileiras, intentando translocar e transduzir tal emanação, através da conjunção e geminação de circuitos musculares e energéticos para as máscaras dell’arte. Porém, foi necessário, num primeiro momento, dar conta das teorias que poderiam elucidar estes mecanismos imaginativos. Tal tentativa de esclarecimento mostrou-se um nó importante, pois, a partir do entendimento do funcionamento de tais engendros, foi possível passar e compreender o segundo momento da tese – o Bufão. Neste segundo passo a caminho das máscaras dell’arte, a técnica de Bufão foi criada e, com a compreensão dos engendros anteriores, foi possível entender a importância da imagem para esta técnica. Nas 241 encruzilhadas do universo bufonesco, encontrou-se o carnaval e esta conexão do Bufão levoume ao encontro com a festa carnavalesca, as festividades e as práticas espetaculares populares brasileiras. A partir desse encontro entre Bufão e Brasil, foi possível estabelecer a conexão das máscaras dell’arte e as práticas espetaculares populares brasileiras. É como se o Bufão fosse/é, de certa forma, o elo conectivo (ou cabo conector) das duas práticas. Pois, visto que o Bufão é o grande representante e incorporador da força popular, assinalada por Backthin, ele consegue, por sua grande capacidade de metamorfose, transformação e desdobramento, estender- -se até as práticas espetaculares populares que integram esta pesquisa e alimentar-se desta força ancestral e festiva. Com a compreensão da intensa relação do bufão com o carnaval, a festa e as máscaras dell’arte, fez-se um rápido passeio pelas manifestações espetaculares populares brasileiras que integram a pesquisa, sinalizando algumas das possíveis conexões entre tais práticas espetaculares e estas. A partir desta compreensão, adentrou--se o universo das máscaras dell’arte. Na construção do panorama das máscaras, a visão que predomina é a da técnica continiana. No breve horizonte realizado, tentou-se mostrar os encaminhamentos de acesso e apropriação destas máscaras, apontando a possibilidade destas ganharem vida através de códigos advindos das manifestações espetaculares populares brasileiras, o que consiste nas técnicas de translocação e transdução. Percebendo que ainda se fazia necessária alguma atenção aos resultados práticos, foi construído um apêndice no qual estão contidos os roteiros do espetáculo realizado na Scuola Sperimentale dell’Attore, cuja direção é de Claudia Contin e Ferruccio Merisi, “Papaietta Poliglota”, e da Aula-espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginação: Máscaras dell’Arte e Cultura Popular Brasileira”. Com a mesma finalidade do Apêndice E, a tese contém outro “apoio à compreensão dos transcursos realizados”, um DVD com imagens dos espetáculos de Bufão, da técnica de translocação e das máscaras dell’arte com a técnica de transdução. Não se trata dos espetáculos e aula-demonstração propriamente ditos, mas de imagens destes. Com o DVD, a tese tenta apresentar, de forma mais visível, algumas das resultantes desta pesquisa, chegando a um ambívio nó que intenta ser probante das técnicas aqui expostas e propostas como um possível acesso às máscaras dell’arte. 242 Quando se diz que o DVD é uma apresentação das resultantes desta pesquisa, não se está afirmando que é uma finalização da mesma, mas sim a representação do arremate de um pensamento que intenta elucidá-la - um delineamento, não um limite. O DVD é um nó em cruzado, que testemunha as técnicas constitutivas do corpo/transcurso desta tese e pesquisatriz, uma tentativa de representação da vasta rede conectiva de um imaginário líquido que transcende barreiras culturais, espaciais e temporais. De certa forma, é este aluvião subjacente do imaginário que esta pesquisatriz intenta emergir e, a partir dele, estruturar técnicas para a cena. Talvez os transcursos realizados tenham ido, às vezes, por correntezas turbulentas e de difícil navegação, mas, de vez em quando, concordando com Beccaria (1995, p.6), é necessário aventurar-se por caminhos que não se conhece muito bem, agregando dados e deixando levar-se por estes: É verdade que tanta dispersão pareceria desencorajar cada iniciativa, e nunca somos capazes de estabelecer comparações sincrônicas. [...] Mas em âmbitos de pesquisas como a nossa (âmbitos, frequentemente, cobertos daquele véu de mistério, que envolve caminhos não mais construíveis e percorríveis, que envolve as crenças que têm seguido as pegadas dos homens, as quais o tempo apagou e a poeira dispersa destas não permite avançar em hipóteses plausíveis relativas a nascimento, sorte e precisos trajetos de difusão), não resta mais que reunir os espaçados testemunhos convergentes, úteis para fixar núcleos de grandes latitudes e antiguidades que, com variantes e ampliamentos, permanecem inalterados ao longo dos séculos, com o objetivo de indicar conexões não vagas, mas concretíssimas, entre culturas diversas e longevas.1 Se foi difícil tentar explicar um processo que se move e, com isso, me comove, também é difícil fazer considerações finais, sabendo que aqui não é a finalização. Acredito que, para pesquisar, necessita-se de um espírito aventureiro e o desta pesquisatriz, conforme anunciado muitas vezes anteriormente, afirma que este estudo ainda me levará a muitos mares, a conhecer novos horizontes e universos - a viagem não terá fim com esta tese. A pesquisa continuará a flutuar em outros mares, oceanos, redescobrir-se-á em possibilidades e novos desdobramentos. 1 È vero che tanta dispersione sembrerebbe scoraggiare ogni iniziativa, e non si è mai in grado di stabilire comparazioni sincroniche. [...] Ma in ambiti di ricerca come la nostra (ambiti spesso coperti da quel velo di mistero, che avvolge cammini non piú costruibili e percorribili, che avvolge le credenze che hanno seguito le orme degli uomini che il tempo ha cancellato, e il polverio disperso di quelle non consente piú di avanzare ipotesi plausibili relative nascita, fortuna, e precisi tragitti di diffusione) non resta che adunare le sparse testimonianze convergenti utili a fissare dei nuclei di grande latitudine e antichità che. Con varianti e ampliamenti, perdurano inalterati nel corso dei secoli, allo scopo di indicare conessione non vaghe ma concretissime tra culture diversi e lontane. 243 Com isso, as declarações de finalização da tese, são, na verdade, de recomeço de um novo lançar-se. Mais uma volta da espiral foi conhecida, mas ela continua a espiralar-se e, sabe-se que flutuar, navegar, vaguear, vadiar e devanear, é preciso, é necessário e é imprescindível. Esta pesquisatriz segue ao sabor do vento e das águas que carregam a sua casa/jangada. 244 REFERÊNCIAS ABELAR, Taisha. A travessia das Feiticeiras. A jornada iniciática de uma mulher. Trad. Terezinha Batista dos Santos. Rio de Janeiro: Record – Nova Era, 1996 (2ªed.). AMORIM, Maria Alice; BENJAMIN, Roberto. Carnaval. Cortejos e Improvisos. Recife: Fundação de Cultura Cidade de Recife, (Col. Malungo vol.5) 2002. ______. Leão Coroado é Nação. In: Continente Documento. Recife: ano 4, n.43, 2006. AMORIM, Deolindo. Africanismo e Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 1993. AMORIM, Ubiratan Soares de. Fundamentos da Umbanda que te foram negados. Salvador: Pergaminho Ltda, (sem data). APPIA, Adolphe. A obra de arte viva. (1921) Trad. Redondo Júnior. Lisboa: Sebentas, Coleção Teorias da Arte Teatral. 2005. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ARTONI, Ambrosio. Il teatro degli Zanni. Rapsodie dell’Arte e dintorni. 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CORO: Um tempo, página infeliz da nossa história, paisagem desbotada na memória, de nossas novas gerações. Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída2... (Quando recitam “subtraída”, o coro para e somente a realeza continua). PETITCAGÔ e HRALA-CU-REI: “ (...) em tenebrosas transações”3. CORO: Subtraída???? (Se coloca em posição oposta a deles). CORO: Subtraída!? (Indagando à realeza). PETITCAGÔ: Ma terre a de palmiers où chant un oiseau, les oiseaux que chantent par ici, ne chantent pas comme là bà! HRALA-CU-REI: Fala direito! 1 Citação de um fragmento extraído da letra da música “Ê Bahiana” de autoria de Fabrício da Silva, Bahianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio. 2 Citação de um fragmento extraído da letra da música “Vai Passar” de autoria de Francis Hime e Chico Buarque. 3 Idem. 263 PETITCAGÔ: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá (...).4 CORO: Minha terra com palmeiras você veio me roubar! E sabes que aqui gotejam, minas de ouro pra levar!5 HRALA-CU-REI: Minha terra com palmeiras é o que vim pegar! O ouro que aqui roubo serve pra m’enricar!6 ______________________________________________________________________ Cena: chegada do Bispo Sardinha no Brasil HRALA-CU-REI E PETITCAGÔ: Vindo diretamente de Portugal! PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Redimir. PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Absolver. PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Catequizar. PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Ajudar a roubar. HRALA-CU-REI e PETITCAGÔ: Bispo Sardinha! Os dois fazem a figura “da capela”, Da Banguela fica no centro da “capela”, enquanto os outros prestam reverência. Depois, voltam o rosto para o público: cantam. HRALA-CU-REI: Como canta Gilberto Gil “Primeira missa, primeiro índio abatido também!”.7 CORO: Ah ah ah ah! Que deus deu! Ô ô ô ! Que Deus dá!8 A A Aaaméééém! (todos se ajoelham). Da Banguela dá um passo à frente cantando. 4 Citação de um fragmento extraído da poesia “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias. Paródia de um fragmento extraído da poesia “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias (Fragmento: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá [...].). 6 Exílio” de Gonçalves Dias. (Fragmento: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá [...].). 7 Citação de um fragmento da letra da música “Toda Menina Baiana” de autoria de Gilberto Gil. 8 Idem. 5 264 DA BANGUELA: Rompemus os culus que comemus! CORO: Também! ________________________________________________________________ Cena: Dom Pedro II narra as mudanças que foram realizadas no seu mandato. CHUPA CULUS: Dom Pedrinho II foi coroado! (Depois de coroá-lo, bate em Tumor e segue com o Coro). CORO: Hehehehehehehehe!!! (Como torcida de futebol, vão até o fundo da sala). TUMOR DE FEIJÃO: (Levantando e falando para o público) Em 1850, O Brasil teve progresso. CORO: (O coro percebe que Tumor está falando, param e seguem caminhando lentamente, em direção a Tumor – em tom de xingamento) Progresso? Vai tomar no seu café! TUMOR DE FEIJÃO: O tráfico negreiro foi proibido! CORO: Proibido? Vai tomar no seu café! (Se aproxima de Tumor - mais bravo). TUMOR DE FEIJÃO: O Paraguai declarou guerra contra o Brasil! CORO: Guerra! Vai tomar no seu café! (Se aproxima de Tumor - mais bravo). TUMOR DE FEIJÃO: Primeiro o Ventre livre... Depois, a abolição (encolhido de medo). CORO: Abolição? Vai tomar no seu... cú! (Saltam para cima de Tumor de Feijão, batem e seguram-no pela cintura, todos olham para frente e exclamam). 265 APÊNDICE B – A ORAÇÃO CENA QUE ORIGINOU: A PRECE Texto construído a partir de poemas de Antoin Artaud e Augusto dos Anjos. Texto da cena experimento que originou o atual scketch “A ORAÇÃO” Autoria: Joice Aglae. Direção e Interpretação: Joice Aglae – Bufão: Murcia. Me dá o teu cérebro. Me dá o teu crânio em chamas! Me dá o teu crânio em brasa, em carbono. No banquete em que me sirvo, me esbaldo. No banquete em que me sirvo, me esvaio... Escorro na tua boca e deixo fiapos de minha carne entre seus dentes. E deslizo para me banhar nos ácidos do teu estômago. Depois me alojo no âmago do teu ventre... Nas paredes do teu intestino... Nas pregas do teu cú... No teu saco escrotal ou... entre os teus lábios... E ali eu arranho... coço... e espero que, Num peido flamejante ou num jato de gozo Me lance outra vez no espaço... onde pairo outra vez no ar... Infecto o espaço e penetro no teu pulmão... No teu cérebro... no teu crânio... Me dá o teu crânio em chamas, em brasa, em cinzas. Queimado de tanto pensar... de tanto pensar que pensa. Me dá o teu crânio em carvão, em carbono, em gás carbônico... em gás... Em gases... gases cerebrais... peidos cerebrais... Pensamentos produzidos pela tua merda cinzenta Merda cinzenta... merda... merda e vermes... Vermes e ser humano... ser humano é verme Verme é ser humano... ser humano... Ser... humano? Ser ou não ser? O que? Humano? Ser humano... verme! 266 No banquete em que me sirvo... eu me sirvo... de você! SCKETCH TEATRAL A ORAÇÃO Texto construído a partir de poemas de Antoin Artaud e Augusto dos Anjos. Autoria: Joice Aglae. Direção e Interpretação: Joice Aglae – Bufão: Murcia. Canto: Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá Eilá Eilá Eilá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láá! Bonjour mes enfants... Je suis venu pour vouz racconté une histoire... La vostra storia! Allors... Je comence del debut... si percché l’inizio é proprio um bom começo Je vous racconterait tout... Non vi preocupate che vi parlerò tutto. Vou abrir a minha boca... vou por a boca no trombone... (ir para a cesta para ascender a vela) Je commence... Au debut a été la nuite profonde... si ... Proprio all’inizio... sollo il buio... as trevas.. Et aprés... (tirar a vela acesa) NO!!! Je n’aime pas comment cette stoire comença... Non me piase per niente questo inizio Ma não gosto mermo! Je recomence... (pegar o copo com querosene) Allors, toutt a comencé avec une grande explosion A explosão foi enorme... Ma proprio grande la splosione Grande très grand explosion.. (riso)... une très grand (fogo) explosion… (riso)... Et comme ça la vie a commencé. (ir para a cesta e largar a vela e o copo, do lado da cesta) Si. Semplice cosí la vita a cominciato. BUM... e a vida se criou! BUM e la vie... (riso)... 267 C’est plus poetique come ça... com mais poesia è molto più bello!... eu gosto dessa poética da criação (ir para a cesta e pegar os fogos de artifício) Aprés, la explosion... BUM - une cellule (pegar um fogo de artifício), autre cellule (pegar um fogo de artifício) et autre cellule (pegar um fogo de artifício) ... e comme ça ... avec c’est rendevouz delle cellule... l’être humaine... (levantar os fogos de artifício) ... (riso) C’est la qu’est plus drôle ... é che.. l’être humaine... lui pense... (riso e colocando os fogos de artifício no lugar) Um ser humano pensante... (riso) l’essere umano che pensa (riso) C’est três dröle ça.... (riso) Bien... après ... l’être humanie á grandit – cresceu vu... ma é cresciuto tanto.. ma tanto que pendant sont percour dan sa propre stoire ... l’être humaine si è perdu... perso nell buio... si é perdu dans la nuit... ... dans le tènebres... cel la d’autre debut.... ... no no no no no autre fois les ténèbres e la stoire della luce... (pegar a vela e caxixis) c’est pas possible... … toujours ont retour, sempre si ritorna sempre all tizio della luce... ma NON... toujour on ce rejouiandre avec le Monsier della lumiére... le electricien du monde... ô da luz... je t’appelle... ô da luz... ô da, ô da, ô da da da da da (ascender os fogos) ô da, ô da, ô da da da da da, da da da da da da da... Ahhhhh divina... ai divina, ai ai divina; ai divina, ai ai divina A nós descei divina luz ... A nós descei divina luz A nós descei, A nós descei, A nós descei descei descei descei.... ... (cantar e dançar até os fogos se apagarem) Il ne decendre pas... ma non scendi perché... pour qua¿ (largar o caxixi e a vela do lado da cesta. Não desce porque sabe que aqui ta uma bagunça.... (pegar o pote para o sal) Il sait que ici c’est la foole un casino enorme E bien je vous farait une declaration très importante. (colocar o pote do sal no chão) L’être humaine soufre... il sofre la poverità... (procurar sal) la peuvraité espirituale... e quelques une aussi la peuvraité materiale... e ancor quelche foil’essere umano a une ame vide, sans feu... una ânima vuota... fair l’argent - lavoro e sudore - travaille et souer, il sent le sel della vie et plusier fois lui stesso é lo sel della vie... (deixar cair o sal dentro do pote) lo sel et l’homme ... lo sel vien de la mére ... lo sel vien dell’homme aussi... 268 l’homme est la terra, l’homme é la mére... L’homme porte l’eau, terre, air e feu... lui é fait des elements della nature... ma si est perdú... (finalizar a caída do sal) e bien... j’essai de vouz aidé... (rituaile du sel) Sel: carrière de l’âme. Dans la mère si crée Su le soleil si fait in pierre “pierre chant le destin!” Destin si devvelope dans le temps – grand juge e consiglière Destin\temps transformateur... Sel: carrière de l’âme. Que se seuleve in müre Que rendre fort e est forteresse Sel du munde: en corps, viand, sang, larme e sueur Sel de la vie La Vie en chemin dans cet nonde. Ou trouve nid dans le coeur du château fort - salpêtre (ir na direção do público com o sal) Être de sel e vie... Être de sel e force... Protege de quelque mal prend viguer Dans le rende-vous avec il vent Rejouendre son chemin de aire e sable – saule. Dans le rende-vouz avec la plui Rejouendre sa liquefetion Et en tempête (jogar o sal para o ar) de joi Échape au son destin la mère - saline du monde - (jogar o sal para chão nos pés do público) Reprendre ta vie averse et Recomence en nouveau cycle... En nouveau cycle... La ba au lo cerveaux ne va pas pour quoi il a peur de ne pas reucir La ba au ce que est espirituel c’est plus importent que le materiale... La ba ou la vie sempli il y a um valeur... 269 ... vouz avez tout… seuf la notion della semplicitè (levar a tigela do sal para ofundo, do lado da cesta) Vous avez perdu le sens della simplicitè della vie... au tour de vouz seulment la tecnologie, la comoditè e la solitude... Le monde... le monde même avec le grand population ça ressemble un lieu inabité... mentenait vouz étes tout seule... je vous dit que l’homme, est devenu un jeu de lui mêmme... et en plus il y quelques autrê que s’amusent beacoup avec lês être humaine... ses tragedie e commedie Je doit prendre ma responsabilité ... moi aussi, je trouve très amusent voir votre vie... vous etè shouaite... et pour ça, just par ce que vous éte shouait, haujourd’oui vous aussi peuvont essaye quelques emotion diverses... c’est la que vous verait ici sont des criature très speciaux, sont quelque chose de teuchent, de comovent, ils ont la propriete de rentré dans l’ame e trouve pas seulement vaccum eux treuvent le coeur, les sentiment eux soufflent la vie autre foi nelle ame.... allors que... il feut se prepare car on arrive... et vous rirait, peu-t-ètre plurait, peu-t-ètre reflescirait e … penserait nel sal, ne la vie ... nel être humaine..... Profitez vouz... (coçar a cabeça) Est trop tard... je doit partir... ma je voudrais porte quelque recordation de vouz (procurar as minhocas) Donne-moi votre cerveaux.... Donne-moi votre cerveaux (tirar algumas minhocas da cabeça) Donne-moi votre cerveau brillant, en lumiére... votre cerveaux en feu, en braise, in cendre... donne-moi votre serveaux en feu, en carbone... Donnez-moi votre cerveaux brûle Donnez moi votre cerveux brûle de trop pense De pensé que pense. (tirar algumas minhocas da cabeça) Moi un peuvre bouffon, fils du soufre et du carbone Moi que fait la digestion de ce la que est indigerible... Je rentre dans ton corpos comme aire, je suis le envahisseur de tes viscère Je me prommene dans ton corps (pegar o copo com querosene)... Je rentre dans ton stomac et intestins, Je fait la fête ...(riso)... feu pirotecnique... ...(riso)... ...gaze flatos flamejantes... ...(riso)... ( cuspir fogo) Sens que vouz se rend conte je vouz connêtre dans le votre intimité... ton trü de cul (colocar vela e copo do lado da cesta) 270 Je vouz conné jusqu’au fond, au contraire... (tirar algumas minhocas do corpo) “antropofagique” en nature, Je vouz mange pour rendre-moi fort... je vouz mangé pour vous rendre fort Je vouz mange pour rendre-moi fort ... et vous jete pour vous rendre fort... Aussi lês merdes servont de engrais... Et du engrais ça peut revenir la vite... autre fois Vie et mort que se rejoundrent atravers di moi... tout se rejouendre en moi... cet la que est ètè, cet la que est et cet la que serait... Moi fils du soufre et du carbone ... Bessa me! Crachat sur le lèvre que te fait des bisoux!!! Des bisoux….. bisoux Excusez-mois se j’ai parlait quelque chose que n’a pás été avec votre “d’accord”… (guardar as coisas dentro da cesta) mai... Moi… je suis un peuvre bouffon... um peuvre bouffon que parte sens auqun recordation de vouz... mai bien a éte très agreable vouz visité... Merci de votre companie... vouz éte shouait... (colocar a cesta no pescoço) Je vouz salut !!!! e Buon courage dans la vie.. (riso) Vouz aurait besoain... (Partir) Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá Eilá Eilá Eilá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láá! Buon courage (Partir) 271 APÊNDICE C – “ALLA RICERCA DI UN ZANNI” Livre adaptação da versão italiana (tradução: L. Lotti: Guaraldi, 1992) do texto dos personagens João Grilo e Chicó, da peça “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. Eccomi qua, in questo mondo ci sono di storie sai... credi che una donna vuole benedire il suo can per vedere se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so come è questa gente, hé! Ma non c’è niente di strano. Io stesso ho avuto un cavallo benedetto. Io ho avuto davvero un cavallo benedetto, cosa posso farci? Vuoi che menta? Vuoi che dica che non l’ho avuto... Non ha fidúcia? Il signore Antonio Martino è qua? Lui può provare quello che dico... è vero che il signore Antonio Martino è morto tre anni fa... Ma era vivo quando ho avuto la bestia! ... Ho avuto la bestia è modo di dire, non è che io sono stato a partorire il cavallo... no, io no. Ma dal modo in cui vanno le cose, oh..., io non mi stupisco più di niente. Sì... nella settimana scorsa una Donna ne ha avuto uno nella sierra di Araripe, dalle parti di Cearà... Ma racconto come è andata con il mio cavallo. Ecco, è stata una vecchia (n’é) che me l’ha venduto a basso prezzo (n’é mi figlio), sì, perché cambiava casa . Mi raccomandò di avere molta cura di lui perché era un cavallo benedetto (n’é mi figlio). E doveva essere davvero perché io un cavallo così buono non l’avevo mai visto. Una volta abbiamo corso dietro una vitella dalle sei del mattino alle sei della sera senza mai fermarci, io a cavalo lui a piedi. Sono riuscito a prendere la vitella che era già notte e quando ho finito il lavoro mi sono guardato attorno... non conoscevo il luogo dove eravamo. Allora ho preso una verga che era lì e via, per il sentiero, frustando il bue... Sì, erano una vitella e un bue e io correvo dietro a tutte le due in una volta, e essi correvano insieme per tempo senza separarsi.. come mai questo è successo, non lo so! So soltanto che è stato così. Io poi sono uscito da Paraíba spingendo bue e vitella .... improvvisamente ho avvistato una città, ho chiesto ad un uomo dov’ero e lui mi disse che ero a Sergipe e ... Sì io ero corso fin là con il mio cavallo, segno che era benedetto o no! Come ho attraversato il rio San Francisco, non lo so! So soltanto che è stato così! Può darsi che in quello momento il fiume fosse secco perché non mi ricordo di averlo attraversato... e in tutto questo tempo il cavallo lì senza riclamare niente... 271 272 Canne benedetto, cavallo benedetto sono tutte cose che ho già visto ... io non mi stupisco più di niente.... Ma vedi... a questo punto credo che il cane della donna sia morto...Sì... è compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro destino sulla terra, con quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò che vive in un sol gruppo di condanati, perché tutto ciò che vive muore! “Tutto ciò che vive muore!” Bello! Questo ho sentito dire da un parroco, nel giorno in cui il mio Pirarucu è morto. Mio è un modo di dire, perché per dire la verità, penso che ero io che ero suo... Fu quando ero in Amazzonia. Avevo legato una corda all’arpione, la corda dell’arpione attorno al mio corpo tanto non poter muovere le braccia. Quando ho afferrato il pesce, lui mi ha datto uno stattone così forte, che mi sono cadutto nel fiume... è proprio così, il pesce mi ha pescato e, per farla corta, mi ha trascinato lungo il fiume per tre giorni e tre notti... io non sentivo fame, no, ma una dannata voglia di fumare...si! Quello che è più buffo è che lui mi ha lasciato prima di morire, proprio all’entrata di un paesino, in modo che io mi potessi salvare. Il giorno dopo ci fu il suo funerale e io non ho più dimenticato quello che il prete disse ai bordi della fossa... Ma non me ricordo però come ho fatto per salvarmi... Ah sí, ho alzato un braccio, finché una lavandaia mi ha avvistato e cosí sono corsi a liberarmi. Ecco! Si... è vero che stavo con le braccia legate... ma, beh, nell’ora del bisogno c’è un rimedio per tutto. Come sono stato salvo... Non lo so! So soltanto che è stato così! E poi... Io non mi stupisco più di niente... Ad esempio di fantasmi di cane. Esistono, esistono... io ne ho già incontrato uno. Là dove passa il Rio di Cosme Pinto, mi avevano detto che là si vedono di fantasmi, ma non sapevo si trattasse di fantasmi di cane. Beh, se sia posto di fantasmi non lo so, so che quando stavo attraversando il fiume mi è caduta nell’acqua una moeda de dez. Io stavo lì con il mio cane e davo già persa la moneta, quando ho visto che lui, il cane, stava confabulando con un altro. All’improvviso si tuffa e mi raporta i soldi! Vado a verificare e trovo solo duas de cinco?! Beh, forse le alme dell’aldilà hanno moedas trocadas? Non lo so! So soltanto che è stato così! Ma queste cose dell’ aldilà poi... Una volta un grande amico... Povero João, povero Giovanni, poreto Zanni! Così giallo, così svergognato... è stato morto... Ha compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro strano cammino sulla terra, quel fatto senza spiegazioni che eguaglia tutto ciò che vive in un sol mazzo di condannati, perché tutto ciò che vive muore! ... É morto davanti a me da un Cangaceiro... una morte tragica... Io, dopo piangere tantissimo, sono 272 273 stato in chiesa a pregare per l’anima di João, il Grilo più intelligente del mondo, e poi l’ho portato in maca all cimiterio, per il funerale...lui però era venuto così pesante che mi sono fermato per riposarmi un po’... in questo momento lui ha cominciato a parlare con me... Madonna mia! Volevo scappare ma avevo l’impressione di aver perso le gambe, e poi non era mica fantasma, era proprio lui...risuscitato grazie alla Madonna... Sì, proprio lei... la Compassionevole... Credo ... Credo, però... non lo so! So soltanto che è stato così! E poi dal modo in cui vanno le cose ... io non mi stupisco più di niente... 273 274 APÊNDICE D – RELATÓRIO DE ATIVIDADES Relação (técnica) das atividades realizadas durante o estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore. Curso: Maschere fisiche della Commedia dell’Arte Ministrantes: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Teatro del Lido di Ostia (Roma) Período: 03 a 06/12/2007 - 24H/A Conteúdo: As Máscaras físicas da Commedia Dell’Arte: Zanni, Pantalone, Servetta, Capitano, Pulccinella, Nobili, Ballanzone e Arlecchino. Laboratório de Pesquisa (Prático e Teorico): “Carattere Femminili della Commedia dell’Arte”. Ministrantes: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Local: Scuola Sperimentale dell'Attore - Itália Período: 08 a 18/01/2008 Conteúdo: Le Servette, Le Amorose, Le Cortigiane, Prime e Seconda Donne di Compagnia, Amor Sacro e Amor Profano, Cantatrici, Danzatrici, Suonatrici, Mezzane, Ruffiane e Curatrici, L’Amor nel Gioco e nella Poesia. 60 H/A: 30 horas de laboratório prático; 20 horas de ensaios e dramaturgia cênica; 10 horas de treinamento e atividades de divulgação pública Conferência Espetáculo “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte” Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Auditorium Comunale di Roveredo in Piano Data: 18/01/08 Conferência Espetáculo “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte” Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Sala Arlecchino della Scuola Sperimentale dell’Attore - Pordenone (PN - IT) Data: 20/01/08 Laboratório de Pesquisa (Prático-Teórico) “Carattere di Pantalone” Ministrantes: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone Período: 26/01/2008 a 02/02/2008 Conteúdo: Il Vecchio Avaro, L’Amor Senza Età, L’a Figura dell’Ebreo Errante, Senilità, Fecondità, Caparbietà, Saggezza, Richezza, Sublimazione, Rapporti com le Parate degli Antichi Carnevali Montani Europei. Atividades: Atriz e Colaboradora Colaboradora: Encontros com Danças Populares Brasileiras - maculelê, frevo e capoeira. 61 H/A: 21 horas de laboratório prático 21 horas de training do personagem 275 14 horas de ensaios e dramaturgia cênica; 05 horas de allestimento e atividades de divulgação pública Ouvinte - “Cen-ferenza: Meditazione Conviviale sulla magia dei Carnevali Antichi: Hellequin – Dentro le maschere delle montagne venete” Conferencista: Gianluigi Secco Local: Osteria “Al Teston” – PD - IT Organização: Scuola Sperimentale dell’Attore – Pordenone Data: 30/01/2008 Cortejo Itinerante “Il Servitore di... Quattro Padroni” Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Centro Storico di Pordenone Data: 02/02/08 Tradutora do artigo “Inseguendo Arlecchino / Perseguindo Arlecchino” de Claudia Contin Revista “OUVIROUVER” Nº4, 2008 - Departamento de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais – BR Progetto Sciamano – Rapporto tra Commedia dell’Arte e Desabili Coordenação: Claudia Contin & Ferruccio Merisi Atividade: Colaboradora Local: Scuola Sperimentale dell’Attore (PN-IT) Período: abril e maio/2008 Total: 71 H/A Espetáculo “Arlecchino e le sue Colombine” Direção: Ferruccio Merisi Atividade: Atriz e Colaboradora local: Agriturismo La' Di Fantin - Pordenone (IT) Data: 16/05/08 Espetáculo-demonstração “Sherwood delle Danze” Integrado ao “Progetto Sciamano” – Scuola Sperimentale dell’Attore Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Sala Arlecchino Teatro Studio – Scuola Sperimental dell’Attore – PN – IT Datas: 26 e 27/05/08 Espetáculo-demonstração “Sherwood delle Danze” Integrado ao “Progetto Sciamano” – Scuola Sperimentale dell’Attore Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Auditorium Concordia – PN - IT Datas: 28/05/08 Laboratório de Pesquisa (Prático-Teórico) “Carattere di Zanni” Ministrantes: Veronica Risatti 276 Coordenação: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone Período: 31/05/2008 a 11/06/2008 Conteúdo: Carnavale, Servitù, Amore e Fame Atividades: Atriz. 26 H/A 10 horas de laboratório prático 12 horas de training do personagem 04 horas de dramaturgia cênica “VIVA – Danzare per Vivere” Laboratório de Danças Populares Brasileiras: Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Afoxé e Cavalo Marinho. Ministrantes: Joice Aglae Brondani e Erico José Souza de Oliveira Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: 16 a 22 / junho/ 2008 Total: 18 H/A “Arreia” - Conferência-Espetáculo sobre Teatro Popular Brasileiro Tradutora da conferência do Dr. Erico José Souza de Oliveira: “Il Cavalo-Marinho di Condado – Pernambuco - BR” Local: Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT Data: 23/06/2008 “Arreia” - Conferência-Espetáculo sobre Teatro Popular Brasileiro Conferencista e atriz: “Tracciati Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane” Local: Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT Data: 23/06/2008 Espetáculo: “Arlecchino e la Valle dell’Omo” Direção: Ferruccio Merisi Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Auditorium Concordia – PN - IT Data: 26/06/08 Laboratório individual para “La Servetta, Corteggiana e Damma Enamoratta – Papaietta” - Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari, Popolari Brasiliane Ministrante: Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell’Attore Período: 30 de junho a 23de julho / 2008 Total: 60 H/A Apresentação interna à Scuola Sperimentale dell’Attore “La Servetta, Corteggiana e Damma Enamoratta – Papaietta” – Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari, Popolari Brasiliane Direção: Claudia Contin Atividade: Atriz Pesquisadora Local: Sala Arlecchino Data: 24/julho/2008 277 Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore “Iniciação às Técnicas de Clown” Conteúdo: Metodologia Brasileira – Joice Aglae Brondani - Trabalho com os elementos (terra, água, fogo e ar) e a relação com a Máscara de Clown. Produção e canalização de Energia para a Máscara de Clown. Da energia à descoberta da lógica-corpórea do Clown. Período: Agosto 2008 Total: 24 H/A Laboratório individual para “Pantalone Picantin de’i Coleottori” Ministrante: Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell’Attore Período: 11 agosto a 23 agosto/2008 Total: 20 H/A Workshop Internazional “L’Arlecchino Errante” Ministrantes: Claudia Contin Ferruccio Merisi Leo Bassi - Mestre Convidado Professores da Scuola: Alice Mosanghini Lucia Zaghet Veronica Risatti Local: Scuola Sperimentale dell’Attore Período: 31 agosto/2008 a 21 setembro/2008. Total: 200 H/A Ouvinte: Festival L’Arlecchino Errante – Simpósio: Omaggio alla Legge Basaglia: "OUTSIDER ART" (con Video, Musica e Performance) Data: 12 setembro/2008 Conferencistas: Alessandro Ciriani – Assessore alla Programmazione Sociale - Pordenone Giovanni Zanolin – Acessori alle Politiche Sociale - Pordenone Peppe dell’Aqcua – Direttore dell Dipartamento di Salute Mentale - Trieste Giulia Scabia – Drammaturgo Allessandro Garzella – Autore e Regista Teatrale Giorgio Pacorig – Musicista Claudia Contin – Scuola Sperimentale dell’Attore - Progetto Sciamano Ouvinte: Festival L’Arlecchino Errante – Simpósio: "THE SMARTY FOOL - Metodo e Follia nell'Arte dell'Attore " (con Video, Radio e Performance) Data: 13 setembro/2008 Conferencistas: Dottoressa Cristina Valenti - Università di Bologna Ambrogio Artoni – Uniersità di Torino Gustavo Giacosa e Carlo Rossi – Compagnia Pippo Delbono Claudia Contin – Scuola Sperimentale dell’Attore Spiro Scimone e Francesco Sframeli – Compagnia Omonima Ugo Giacomazzi e Luigi Di Gangi – Compagnia Teatri Alchemici Paolo Billi – Compagnia del Carcere del Pratello di Bologna “The Holy Fool” - Apresentação Final do Masterclass do Festival L’Arlecchino Errante 278 Direção: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Sala Arlecchino Teatro Studio – Scuola Sperimentale Dell’Attore Data: 21 setembro/2008. Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore de “Danças Populares Brasileiras: Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Afoxé, Cavalo Marinho, Caboclinho e Xaxado”. Conteúdo: Le danze popolari brasiliane – una possibilità per il lavoro dell’attore. Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: 24 de setembro a 04 de outubro / 2008 Total: 24 H/A Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore – Capoeira Conteúdo: Capoeira – una possibilità per il lavoro dell’attore Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: fevereiro, agosto e outubro / 2008 Total: 24 H/A Laboratório individual - “Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane – Maschere Femminile e Pantalone” Professores: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: 01 a 10 / outubro/2008 Total: 10 H/A Workshop Internazionale “L’Arlecchino Errante Invernale” Condotto da: Claudia Contin Ferruccio Merisi Tutors della Scuola: Lucia Zaghet Veronica Risatti Alice Mosanghini Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 35 ore “L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” - Workshop “Giocoleria” Condotto da: Guido Nardin Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 10 ore “L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” - Workshop “Improvvisazione e dinamiche di gruppo” Condotto da: Marco Canuto Presso alla: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 10 ore Condottrice: “L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” – Workshop “Danze Popolare Brasiliane e Capoeira” 279 Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 10 ore Ouvinte: Cen-ferenza “Le carnevale antiche di Piemonte” Condotto da: Davide Porporato Presso il: “Cenacolo” – PN - IT Organizzazione: Scuola Sperimentale dell’Attore – PN - IT Data: 18/02/2000 Workshop “L’attore che canta ... e il cantante che sa interpretare” – corso intensivo di espressione vocale. Condotto da: Alice Mosanghini Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal16 al 21 marzo/2009. Totale: 15 ore 280 APÊNDICE E – SOBRE PAPAIETA E TRANSDUÇÕES Reafirmo que não é o simples falar de uma dinâmica caleidoscópica da imaginação, ainda mais, levando em conta a afirmação de Bachelard (1990), de que uma imagem só pode ser explicada por outra imagem, então, sabe-se que as tentativas de explicação destes engendros imaginativos de qualquer outro modo são falhas. O que vem em seguida não é uma tentativa de explicação do processo de transdução caleidoscópica, mas um breve panorama dos encaminhamentos realizados para as montagens de “Papaietta Poliglota”, dirigido por Claudia Contin e supervisão geral de Ferruccio Merisi e do espetáculo sucessor: “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”, cuja criação é de minha autoria - desta pesquisatriz. “PAPAIETTA POLIGLOTA” A criação de um espetáculo cujos códigos adviessem das práticas espetaculares populares brasileiras, mas que se confundissem, pela natureza de ambos, com os códigos das máscaras dell’arte, sempre foi um dos propósitos desta tese. Como já foi comentado muitas vezes, foi após o primeiro curso de danças populares brasileiras que ministrei1 e da primeira aula-espetáculo mostrada ao público italiano2, cujo tema central foi a técnica de translocação e vislumbramento da técnica de transdução, que Contin e Merisi mostraram interesse pela direção do espetáculo que seria o ponto de amarrar um dos nós desta etapa da pesquisa. No dia 30 de junho de 2008, começaram os ensaios de “Papaietta Poliglota”, os quais se estenderam até outubro do mesmo ano, com alguns pequenos intervalos, para a realização de outros espetáculos e eventos. De 30 de junho a 23 de julho de 2008, uma rotina de trabalho foi estabelecida para a criação de um espetáculo com uma parceria colaborativa harmoniosa. O texto é de organização e criação de Claudia Contin e a supervisão da cena, de Ferruccio Merisi, com minha colaboração, no que diz respeito à cultura popular brasileira. De 25 de julho a 10 de agosto, tínhamos, também, os ensaios e a apresentação do espetáculo “Arlecchino e la vale dell’uomo”, comentado anteriormente, cuja preparação 1 De 16 a 22 de junho, de 2008 – Publicidade no ANEXO E. 2 “Tracciati Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane”, na Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT, em 23/06/2008 – Publicidade no ANEXO E. 281 causou uma pausa nos ensaios de “Papaietta Poliglota”, mas que não interferiu em seu crescimento e intensidade. De 11 a 23 de agosto de 2008, as atividades laboratoriais foram retomadas, desta vez, calcadas sobre a máscara de Pantalone, que iria compor a segunda parte do espetáculo. De 24 a 30 de agosto, foram as preparações para o festival Arlecchino Errante, que aconteceu do dia 31 de agosto a 21 de setembro de 2008, em Pordenone/IT. Após o festival Arlecchino Errante, começaram os ensaios para a finalização do espetáculo “Papaietta Poliglota”. Neste período de 01 a 10 de outubro de 2008, o qual constituiu a terceira etapa do processo de montagem, éramos três trabalhando no espetáculo. Ferruccio Merisi, nesta etapa, entrou em sala de aula para realizar a direção de voz e supervisão do espetáculo, trabalhando sobre o material construído por mim e dirigido por Contin. Dessa forma, o espetáculo “Papaietta Poliglota” foi construído e estava pronto para ir a público. No que diz respeito à metodologia ou processo e encaminhamentos para a montagem do espetáculo, não houve um primeiro momento de montagem somente com as máscaras físicas da commedia dell’arte para, num segundo momento, acrescentar os códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras. O espetáculo foi sendo criado já com a experimentação e procura dos códigos que se encaixariam na ação do espetáculo. Pela parte da manhã, eu entrava em sala de aula e trabalhava sozinha com a técnica de transdução caleidoscópica, utilizando o texto criadoorganizado por Contin e as máscaras físicas da commedia dell’arte continiana. As tardes eram reservadas para os cursos que ministrava3 e seguia, sempre dentro da Scuola Sperimentale dell’Attore4, conforme mencionado em outros momentos e elenco das atividades realizadas na S.S.A. contidas no Apencide D. À noite, entrava em sala de aula para trabalhar com Claudia Contin. Trabalhávamos sem a interferência de nenhum outro aluno ou integrante do grupo de atores da S.S.A.. Primeiro, mostrava a ela o material que tinha trabalhado sozinha pela manhã e, então, ela os organizava/dirigia dentro da perspectiva da commedia dell’arte e da máscara que estava incorporando. Com esta dinâmica de trabalho, o espetáculo foi sendo criado. Na etapa em que trabalhei com Merisi, o esquema era o mesmo: trabalhava sozinha pela parte da manhã e, à noite, sem a interferência de outros interantes do gupo da S.S.A., em sala de aula, com ele. 3 Danças populares Brasileiras e o trabalho do ator; Clown e Capoeira e o trabalho do ator. 4 Laboratórios das máscaras dell’arte, em grupo e individuais. 282 A máscara de abertura do espetáculo é a da Servetta. Posteriormente, me transformo em uma Cortigiana, depois em Nóbile, na “Strega” e no bufão (sem o figurino original, mas utilizando a saia para me disfarçar). Para finalizar esta parte feminina, retorno à Cortigiana e saúdo a todos, dançando Frevo e jogando pipoca no público, como se fossem confetes de carnaval – como acontece na festa de lavagem do Senhor do Bonfim BA. O espetáculo tem o nome de “Papaietta Poliglota”, porque é realizado em italiano macarrônico5, uma mistura de dialetos italianos, italiano clássico, português e espanhol. Contin preferiu realizá-lo desse modo, buscando os moldes dos cômicos dell’arte – com a mistura de dialetos e línguas, não buscando uma língua gramaticalmente correta, mas inteligível dentro da ação da cena. O termo “poliglota”, contudo, diz respeito não somente ao idioma, mas também à linguagem física, pois vou passando de uma máscara à outra - começo incorporando a máscara da Servetta (que cita Arlecchino, Capitano, Zanni), depois, a máscara da Cortigiana, posteriormente, incorporo a máscara da Nobile e, ainda, passo rapidamente pela Strega, pelo Bufão e retorno para a Cortigiana. Para finalizar o espetáculo, incorporo a máscara de Pantalone, que fala de seu amor e admiração pelas máscaras femininas da commedia dell’arte. Também, o termo “poliglota” mantém relação com o diálogo que se estabeleceu no processo de montagem e no espetáculo, com as práticas espetaculares populares italianas e brasileiras. Por conta da mescla de línguas e dialetos que acontece ao longo do espetáculo, pensase que não vem ao caso uma tradução, pois seria impossível, já que se trata de uma maneira muito específica de comunicação. Desse modo, para o leitor, realizo um resumo das situações que dão forma ao espetáculo. O espetáculo começa com a máscara da Servetta. Entro de costas para o público, coloco-me no centro da sala, ao fundo, e grito como se fosse uma feirante: - Papaia, papaia, papaia! Olha a papaia... Papaietta! “Papaietta Poliglota” Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atação: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 julho 2008 5 No capítulo II, foi explicado o que é o “italiano macarrônico”, que as máscaras dell’arte e, também, os bufões utilizavam para a cena. Rapidamente e, de forma resumida, “macarrônico” é um termo utilizado para designar uma fala burlesca. Mistura várias línguas ou falsas línguas como a inclusão de palavras com terminações do latim, para sublinhar o efeito burlesco. 283 Virando-me de frente para o público, canto uma canção e ofereço a eles, em uma pequena travessa, biscoitos de papaia. Na outra mão, carrego uma pequena xícara de café. Depois de oferecer os biscoitos, dirijo-me até o centro da cena, equilibro a travessinha na cabeça e tomo meu cafezinho. “Papaietta Poliglota” Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 07 2008 Depois, pego a travessa e, com todos os objetos seguros entre as mãos, cumprimento o público (bom dia/boa noite) em italiano, português, francês, inglês, espanhol e alemão. Após o cumprimento, uma risada e depositando a xícara e a travessinha no chão, no fundo do palco, coloco-me, novamente, no centro do palco. Então, me apresento, falando meu nome e digo que estou ali para contar a minha história. Conto que sou “metade italiana”, mas baiana de coração. Afirmo que sei interpretar uma serva rebelde, uma Cortigiana obediente, uma Nobile enamorada, enfim, que sei ser uma comediante: Intanto sappiate che son Comica per professione... e per amoroso servizio della Gran Tradizione del Teatro Italiano de la Commedia de l’Arte. Tradizione errante che girò per lo Mundo, deixando tanto signos e portando tanto signos de cada staniera cultura. Così anche mi, son Comica errabonda: meza italiana de horigini, ma bajana profonda, un poco francesa quando civetto, ma vera brasileira ne i sogni, quando che vago a letto! So far la serva ribelle, so far la cortigiana ubbidiente, so far la dama innamorata, so far la Comica con ogni parlata. E oggi son qui, per stringere una alleanza tra la mia anima italiana e la mia anima brasiliana. Posso, per esempio, favelàr per voi tuti li dialetti italici! Ostrega! Son venessiana de Venessia se ghe xé bisogno, oh gli son pure toschanella di Firenze a l’ochorrenza, mo vè che non ci ho probleeema a passar da bologneeesa, e nu puoco pure de nnapulitana tengo in t’o sangue mmio, o m’allargo a la romana, o – pota! – po’ ciapo sü e me svolto via a la bergamasca. E posso anche, per voi, danzar tuti i dialetti de la musica del Brasile! Perchè il mio corpo è un’Amazzonia! Son indie le mie ossa, son creole le mie giunture, son ispanici i miei peli, 284 son portoghesi i miei occhi... ... ed è così africano il cuore mio.6 Nesta narrativa, conto que sou cômica, venho do Brasil e tenho, em mim, a mistura de várias culturas. Passeando pelo mundo como uma “comica errabonda”, cheguei à Itália para fazer a minha “metade brasileira” encontrar minha “metade italiana”. Mas isso só foi possível porque sou uma comediante, e começo, assim, a contar a história de como me tornei uma. Contin e Merisi foram generosos, cedendo a partitura da cena da “Scorza di melone” para Papaietta, transformando-a em “Scorza di papaia”. E, então, revelo ao público como um escorregão em uma casca de papaia fez com que me transformasse em uma comediante. Tudo aconteceu quando era jovenzinha e um Capitano cortejava-me. Na ocasião do assédio, querendo fugir do galanteador, fui correr e escorreguei na casca de papaia, caindo deitada, de costas para o chão. O Capitano, mostrando-se um cavalheiro, correu para me ajudar a levantar-me, mas, não vendo a casca de papaia, acabou escorregando e também caiu deitado, porém, sobre mim. E foi desta brusca queda que engravidei e, por orgulho, fugi da cidade, formando, com todos os meus filhos, uma Compagnia dell’Arte. Após esta cena, canto uma tarantella (Che bella cosa far la commedian) e organizo o palco para a próxima cena: coloco uma cadeira e uso, como objeto cênico, um espanador; também, solto os cabelos, que antes estavam presos e trançados. Com os cabelos soltos, coloco-me, então, na máscara da Cortigiana. Começo um discurso que é, na verdade, uma adaptação de um texto de Domenico Ottonelli, divulgado por Roberto Tessari em “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra” (1981), sobre o fascinante mundo da commedia dell’arte e da relação das atrizes com a cena e a sociedade. Esta cena fez parte do espetáculo “Né serve, Né Padrona”, porém, aqui, Merisi e Contin trabalharam outras entonações e ritmos. Nesta cena, conto como é bom ser chamada de “Senhora”, ser esperada e recebida com banquetes e presentes e depois, ter uma noite agradável e esperar a glória e honra reservada às grandes cômicas. Após esta cena, reorganizo o palco, coloco a cadeira no outro lado e vou para trás do biombo, ascendo uma luz e, ao som de uma caixinha de música, canto, coloco a saia da Nobile e, depois, com um pente e um espelho nas mãos, entro em cena. 6 O texto é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. 285 “Papaietta Poliglota” (cena: troca de figurino) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 07 2008 Penteando os cabelos, olhando-me no espelho e cantando, sigo até o centro da cena. Depois, guardando o espelho e o pente dentro do figurino (no dorso), recomeço a falar com o público, ao mesmo tempo, em que prendo, novamente, os cabelos. Numa conversa informal com o público, comento que não se pode nem imaginar as coisas que uma cômica deve saber fazer: Non vi crediate che a far la Commediante non si apprenda anche a far la Gran Dama Ennamorada! (mentre s’acconcia i capelli) S’impara a suspirare, s’impara a poetizzare, s’impara ad arrossire... e a impallidire... ed anche a svenire quando serve et conviene. (mentre completa l’acconciatura) Così come faceva la famosissima Comica Isabella, che con le sue artistiche pazzie amorose, innamorava tutti i cuori... ed insieme li divertiva.7 Após estar com roupa e cabelos arrumados, coloco-me na máscara física da Nobile e começo a cena com um poema intitulado “Memoria di Isabella Andreini e il Sonetto del Cuor Duro - livremente inspirado no “Sonetto CXXV”, de Isabella Andreini, publicado por Luigi Rasi em “I comici italiani” (edição/1897 - texto em italiano antigo): E comunque... Io non t’amo crudel, perché me l’impedisce del mio cor selvaggio la natia durezza. Eppur, se vedo qualcun con tua bellezza tutta l’anima mia cinguetta e stupisce. E contro il mio voler nel cor mi scende un’affetto d’amara, empia dolcezza. E tant’è potente l’amorosa stranezza, ch’un estroso umidor in me riaccende. 7 O texto é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. 286 Dura legge d’Amor!!! Dura legge d’Amor!!! Dura legge d’Amor!!! Dunque conviene amar questo in quest’altro? E l’altro invero farlo cagion insieme di gioie e pene! Ahi! Ben tronca é nel mezo ogni mia spene! Né pace più, né più salute spero se da cotanti “rivi” il mio dolòr viene. (Si scatena in una battaglia di calci acrobatici da Capoeira brasiliana, che si conclude vittoriosamente ed elegantemente seduta sulla poltroncina)8 Após esta cena, retorno à máscara da Cortigiana, levanto-me da cadeira e, agradecendo a todos, tiro de debaixo da mesma uma pequena cesta de vime cheia de confetes brancos, jogo-os no público, cantando e abençoando a todos com a “benedizione del maestro carnevale”/ benção do mestre carnaval. Terminando com os confetes, deixo a cesta na frente do palco e vou até o fundo, pego uma gamela com pipocas e, jogando-as no público, canto, deixando, desta vez, o “axé do mestre carnaval”. Após terminar com a benção das pipocas, deixo a gamela ao lado da cesta e, girando de costas para o público, vou caminhado em direção ao fundo do palco, transformando meu corpo na máscara física do bufão. Então, utilizando a saia como manto, canto em “tom gregoriano” “Carnaval! Carnavalis! Charivaris!”. Girando–me em direção ao público: Benedictus sia tuo pu-santo sudoris, danzante! (da monaco giullare) Benedicte tucte glandulis vostris, danzantis! Et preziozizzimus bulbus pilliferum... omnium: irtus et ricciulus, danzantis! Benedicti pés teus et patas tuas et omnia vescicula, danzante! Bendicte unhas et unghias, pestatus et consuntus, in plùrima noctis profundus, danzantis!(da monaca giullaressa) (Danza Frevo con la gonna “ombrellone”) “Papaietta Poliglota” (cena: La Strega) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 07 2008 8 A adaptação é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. “Papaietta Poliglota” (cena: Il Buffone) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 07 2008 Após falar como público com a máscara do Bufão, recomeço a cantar, acelerando o ritmo e transformando-o em frevo. A música de um frevo (instrumental) entra, a canção vai sumindo, ao mesmo tempo, em que a dança do frevo ocupa todo o palco, utilizando a saia como se fosse “uma sombrinha”. Dançando frevo, vou até o fundo e pego outra gamela cheia de pipoca, entrego ao público, pedindo que me abençoe com as pipocas. Enquanto o público joga pipocas, continuo dançando e, dessa forma, dirijo-me ao fundo do palco, saindo para trás do biombo - o frevo só termina quando não estou mais em cena9. “Papaietta Poliglota” (cena: frevo) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 07 2008 Quando a música acaba, acendo, novamente, a luz e abro a caixinha de música. Sobre o biombo, estendo o lenço que utilizo como Servetta, cheio de flores bordadas. Tiro as saias, permanecendo com a bombachinha e a blusa. Pegando o figurino, maquiagem e máscara de Pantalone, fecho a caixinha de música, desligo a luz e entro novamente. “Papaietta Poliglota” (cena: frevo) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 07 2008 9 No dia 24 de julho de 2008, este trecho do espetáculo foi apresentado aos integrantes da Scuola Sperimentale dell’Attore e a um pequeno grupo de convidados. 288 Depois desta “mudança no figurino”, volto à cena, coloco a roupa do Pantalone no chão, ao fundo, vou até a frente, falo para o público das características da máscara física de Pantalone, transformando meu corpo nela na medida em que a explico e, por último, faço a maquiagem que fica sob a máscara10. Após fazer a maquiagem, vou até o fundo do palco. Primeiro coloco a máscara e o chapéu, depois, começo a vestir o figurino do Pantalone – dizendo como é bom ver os “dotes” de uma jovem. Como Pantalone, conto ao público como me enamoro pela Servetta/Cortigiana, enumerando o desenho das curvas do seu corpo e como me encanta a sua beleza. Reclamo para o público que ela, porém, não me dá atenção. Por mais que a persiga, tente encontrar-me com ela ou permaneça esperando sob a sua sacada, ela não se importa comigo. Finalmente, chego à conclusão de que as mulheres e o ouro possuem uma relação única e descubro que, através do ouro, posso chegar no coração de qualquer mulher. Por último, canto contente, pois encontrei a solução para conquistar a Cortigiana e, cantando, vou para traz do biombo. Estendendo meu lenço cheio de corações, ao lado do da Servetta – as luzes se apagam e o espetáculo termina. Como dito anteriormente, da parte de Pantalone, não possuo nenhuma fotografia para integrar a este relato. Após o último dia de ensaio, Ferruccio Merisi entregou-me um documento para que eu assinasse. Este documento dizia que sempre que houvesse a possibilidade de apresentar o espetáculo “Papaieta Poliglota” deveria comunicar Contin e Merisi para obter a aprovação de ambos. Desse modo, era claro para mim que estavam colocando o espetáculo “Papaietta Poliglota” sob os domínios da Scuola Sperimentale dell’Attore, o que é totalmente cabível e legal já que a direção do espetáculo pertence a Contin e a supervisão geral à Merisi. Este seria o caminho a ser percorrido, e foi. Porém, quando surgiram duas oportunidades de apresentar “Papaietta Poliglota” em Salvador (na sede da Dante Alighieri e na Escola de Teatro da UFBA), duas vezes pedi autorização a Merisi, duas vezes me foi negada a apresentação de “Papaieta Poliglota” e duas vezes apresentei, no lugar do referido espetáculo, a cena “Alla ricerca di un Zanni”. Então, para mim, ficou claro que “Papaietta 10 Contin utiliza uma maquiagem sob a máscara por algumas razões, para tornar a máscara mais homogênea ao corpo do ator, para salientar características grotescas e animalescas e para lembrar/homenagear o teatro de bonecos, teatro que “salvaguardou” muito das características das máscaras e roteiros da commedia dell’arte, quando esta quase desapareceu, após seu apogeu no renascimento. Para outras informações sobre esta maquiagem, ler “CONTIN, Claudia. Gli Abitanti di Arlecchinia. Favole didattiche sull’arte dell’attore. Pasian di Prato (UD) /IT: Campanotto Editore. 1999. Pp.161-167. Esta maquiagem pode ser vista, também, no DVD que acompanha esta tese. MENU. 3 – TRUCO SOTTO MASCHERA – fotos. 289 Poliglota” fazia parte dos domínios da Scuola Sperimentale dell’Attore, o que é muito justo, já que foi criado e ensaiado na Scuola e com uma parceria colaborativa do interesse dos três maiores envolvidos no projeto de montagem do espetáculo (Claudia Contin, Ferrucio Merisi e Joice Aglae Brondani). Contin e Merisi cederam algumas fotografias do espetáculo “Papaietta Poliglota”, porém, somente das máscaras femininas. Algumas delas podem ser vistas ao longo do corpo do texto, as outras estão no DVD que acompanha esta tese; MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.3 - PAPAIETTA POLIGLOTA – fotos. Permanece o agradecimento incontestável à colaboração de Contin e Merisi, grandes mestres na arte das máscaras dell’arte e inesquecíveis em sua qualidade, empenho e atenção. Mas não poderia ficar na perspectiva de total submissão, sem autonomia para apresentar um espetáculo que teve iniciativa dentro desta pesquisa de doutorado, tendo como dever primeiro a lealdade aos objetivos desta e seu cumprimento perante os órgãos que primeiro acolheram e subvencionaram (CNPQ – PPGAC\UFBA) tal estudo. Por isso, quando estive na Scuola Sperimentale dell’Attore para um novo período de relações, o espetáculo “Papaietta Poliglota” passou, efetivamente, a ser patrimônio da Scuola Sperimentale dell’Attore. Para a tese, construí outro espetáculo solo, na verdade, trata-se de uma Aula-Espetáculo, intitulada “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”. “TRANSDUÇÕES CALEIDOSCÓPICAS E IMAGINAÇÕES” Este espetáculo tem como objetivo ser uma das resultantes do processo de acesso e apropriação das máscaras dell’arte – especificamente, as continianas - que apresento nesta tese. É um processo muito específico, o qual se conecta com os Bufões e com as práticas espetaculares populares brasileiras com uma liquidez subterrânea e rizomática. Como este espetáculo sempre esteve nos objetivos desta tese, quando Contin e Merisi começaram a trabalhar comigo “Papaietta Poliglota”, ele já estava sendo encaminhado por conta das experiências que fui acumulando. Quando “atraquei” na Scuola Sperimentale dell’Attore, os trabalhos com as técnicas de Bufão e de translocação caleidoscópica já tinham acontecido e o vislumbre da técnica de transdução, também. O porto de Pordenone foi parada obrigatória para a técnica de transdução ganhar força, consistência e maior riqueza, graças aos respeitáveis mestres que ali encontrei. 290 O espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”, mais do que um objetivo a ser cumprido, mais que um resultado probatório e positivo deste possível acesso que proponho, é um modo de agradecer a todos os mestres que descobri no decorrer deste transcurso. Mestres, populares e acadêmicos, nominados e anônimos, que se mostraram generosos na arte de ensinar o seu conhecimento. “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações” tem um roteiro simples, uma sucessão de explicações sobre a máscaras dell’arte e de cenas com estas. As máscaras não possuem uma relação entre si, pois foram organizadas de modo a auxiliar a dinâmica da aulaespetáculo, principalmente, com a questão das trocas de figurinos. A compilação dos textos que compõem as cenas das máscaras é bem abrangente. Textos que foram entregues aos alunos do Arlecchino Errante Invernale (a todos os alunos, não somente a mim); textos de autoria própria; adaptações de textos documentais trazidos por Tessari; textos de Goldoni; textos e canções populares de domínio público. Também aqui, fala-se em italiano macarrônico e a tradução não seria o recurso ideal. Então, segue-se apresentando o resumo da situação das cenas que compõem o espetáculo. No palco, estão, ao fundo, à esquerda, uma pequena mesa com as máscaras do Arlecchino, Capitano, Pantalone, os objetos utilizados por estas e os da Cortigiana. Do lado direito do palco, tem uma arara com os figurinos. Como sonoplastia de fundo, um samba (instrumental). Tudo escuro, eu me encontro fora de cena. Ouve-se uma voz chamando o Zanni e, logo depois, a resposta. Entro como Zanni, correndo - a música baixa quando paro de correr. Respondo ao chamado do meu “padrum” e percebendo que ninguém responde a minha reverência, começo a procurar o “padrum”. Quando descubro que tem muita gente e muita jovem bonita, deduzo, então, que meu “padrum” está correndo atrás de alguma jovenzinha. Deduzo, também, que se tem gente, deve ter uma dispensa com comida para todos que estão ali e tenho a ideia de procurá-la. Quando lembro que tenho que procurar meu “padrum”, então a dúvida permanece, até que decido continuar procurando meu “padrum”. - Zanni “Eccomi qua Padrum! Pota! Padrum? Padrum? Ma!? Dov’é mi padrum? Mi son venu con lui in carneval di Brasile e lui... sparisce!!! Ma varda quanta zente!!! E tante Jovenzin... Allora mi padrum é andato dietro a qualche jovensin. E si! E.... Ma varda te dove mi son capitat!!!.... Immagina voi la mesura xè la dispensa per tutti quanti qui! Mi tocca sgovelzer... mi toca cercare... mi toca procurar... 291 Ma ... il padrun .. o la dispensa! Il padrun..... la dispensa... il padrun... la dispensa... il padrun..... la dispensa... il padrun! (trasformano in samba, maculelê ed altre danze) Il Padrun....sempre mi Padrum ! Poreto del Zanni!..Arrivo Padrun! (esce di scena)11. Retorno à cena sem a máscara. Falo sobre a máscara do Zanni, mostro/falo como é possível sustentar e dar vida à máscara através das práticas espetaculares populares brasileiras. Falo da técnica de translocação caleidoscópica e mostro a cena “Alla Ricerca di un Zanni”: Eccomi qua! In questo mondo ci sono di storie ... credi che una moglie vuol benedire il suo can, per veder se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so come è questa zente, ma non c’è niente di strano. Io stesso ho avuto un cavallo benedetto. Io ho avuto davvero un cavallo benedetto, cosa posso farci? Vuoi che menta? Vuoi che dica che non l’ho avuto... Non ha fidúcia? Beh! Il signore Antonio Martino è qua? Lui può provare quello che dico... È vero... il signore Antonio Martino è morto tre anni fa... Ma era vivo quando ho avuto la bestia! ... Ho avuto la bestia è modo di dire, è! Non è che io sono stato a partorire il cavallo... no, io no. Ma dal modo in cui vanno le cose, mmh... Io non mi stupisco più di niente. Nella settimana passadta una Donna ne ha avuto uno, nella sierra di Araripe, dalle parti di Cearà... Ma vi racconto come è andata con il mio cavallo. Ecco, è stata una vecchia che me l’ha venduto a basso prezzo, né mio figlio. Perché cambiava casa, né. Mi raccomandò di avere molta cura di lui... perché era un cavallo benedetto, né mio figlio!? E doveva essere davvero perché io un cavallo così buono non l’avevo mai visto. Una volta abbiamo corso dietro una vitella dalle sei del matuttino as seis della sera senza mai fermarci, io a cavalo lui a piedi. Sono riuscito a prendere la vitella che era già notte. Quando ho finito il lavoro mi sono guardato attorno... non conoscevo il posto dove eravamo. Allora ho preso una vara che era lì e via, per lo camino, frustando il bue... Sì, erano un bue e una vitella ed io correvo dietro a tutte le due in una volta e essi... essi correvano insieme per tempo senza separarsi.. come mai questo è successo, non lo so! So soltanto che è stato così. Io poi sono uscito da Paraíba spingendo bue e vitella .... improvvisamente ho avvistato una città, ho chiesto ad un ome dov’ero e lui... lui mi disse che ero a Sergipe... Sì... Io ero corso fin là con il mio cavallo! Segno che era benedetto o no! Mah, come ho attraversato il fiume San Francisco, non lo so! So soltanto che è stato così! Può darsi che in quello momento il rio fosse secco... Perché non mi ricordo di averlo attraversato... Cane benedetto, cavallo benedetto sono tutte cose che io ho già visto ... io non mi stupisco più di niente... Ma vedi... a questo punto, credo che il can della donna sia morto...Sì... è compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro destino sulla terra, con quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò che vive in un sol gruppo di condanati, perché tutto ciò che vive muore! “Tutto ciò che vive muore!” Bello! Questo ho sentito dire da un parroco, nel giorno in cui il mio Pirarucu è morto. Mio è modo di dire, ãh!? Perché per dire la verità, penso che ero io che ero suo... Fu quando ero in Amazzonia. Avevo legato una 11 A dramaturgia foi criada a partir das improvisações e laboratórios em grupo, durante o Arlecchino Errante 2008, laboratórios individuais e trabalho com a professora Veronca Rizatti, durante estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. Localização: MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.1 – ZANNI: 4.1.3 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – clip. 4.1.4 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – cena. 292 corda all’arpione, la corda dell’arpione attorno al mio corpo tanto non poter muovere le braccia. Quando ho afferrato il pesce, lui mi ha datto uno stattone così forte, che mi sono cadutto nel rio... È proprio così, il pesce mi ha pescato e, per farla corta, mi ha trascinato lungo il fiume per tre giorni e tre notti... e io... io non sentivo fame... no... ma una dannata voglia di fumare, si...! Quello che è più buffo è che lui mi ha lasciato prima di morire, proprio all’entrata di un citadina, in modo che io mi potessi salvare. Il giorno dopo ci fu il suo funerale e io non ho più dimenticato quello che il prete disse na bera da fossa... Ma, non me ricordo però come ho fatto per salvarmi... Ah sí, ho alzato un braccio, finché una lavandera mi ha avvistato e cosí son corsi a liberarmi. É é é... Si... è vero che stavo con le braccia legate... ma, nell’ora del bisogno c’è un rimedio per tutto. Come sono stato salvo... Non lo so! So soltanto che è stato così! E poi... Io non mi stupisco più di niente... Ad esempio di fantasmi di cane. Esistono, esistono... io ne ho già incontrato uno. Là dove passa il Rio Cosme Pinto. Mi avevano detto che là si vedono di fantasmi, ma non sapevo si trattasse di fantasmi di cane. Beh, se sia posto di fantasmi non lo so, so che quando stavo attraversando il fiume mi è caduta nell’acqua una moeda da diez. Io stavo lì con il mio cane ... e davo già persa a moneta. Quando ho visto che lui, il cane, stava confabulando con un altro. All’improvviso si tuffa e mi raporta i soldi! Vado a verificare e trovo solo duas de cinco. Ma, forse le alme do lado di lá hanno trocado? Non lo so! So soltanto che è stato così! Ma queste cose dell’ aldilà poi... Una volta un grande amico... Povero João, Povero Giovanni, Poreto Zanni... così giallo, così svergognato... è stato morto... Ha compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro strano cammino sulla terra, quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò che vive in un sol mazzo di condannati, perché tutto ciò che vive muore! ... É morto davanti a me da un Cangaceiro... una morte tragica... Io, dopo piangere tantissimo, sono stato in chiesa a pregare per l’anima di João, il Zanni più intelligente del mondo, e poi l’ho portato in maca all cimiterio, per il funerale...lui però era venuto così pesante che mi sono fermato per riposarmi un po’... in questo momento lui ha cominciato a parlare con me... Madonna mia! Volevo scappare ma avevo l’impressione di aver perso le gambe, e poi non era mica fantasma, era proprio lui...risuscitato grazie alla Madonna... Sì, proprio lei... la Compassionevole... Credo ... però... non lo so! So soltanto che è stato così! E poi dal modo in cui vanno le cose ... io non mi stupisco più di niente... di niente!12 Após mostrar a cena com a técnica de translocação caleidoscópica, continuo a falar do universo dos servos dentro da Commedia dell’Arte e realizo uma breve explanação do que é a máscara do Arlecchino, mostrando a sua máscara física e falando das células das práticas espetaculares populares brasileiras que utilizo para acessar e dar vida a esta. Passo então à demonstração da máscara do Arlecchino. A cena da máscara do Arlecchino é, na verdade, uma “adaptação resumida” da cena “A Oração” de Murcia. Arlecchino fala com os homens sobre o rumo que o mundo tomou e, rapidamente, comenta com Deus e com o Diabo sobre o Homem, mas acaba indo embora, pois o Ser Humano não é um problema dele. 12 Como já foi dito anteriormente, a dramaturgia é uma livre adaptação da tradução de “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna, realizada por L. Lotti: Guaraldi, 1992. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 2 - TRANSLOCAÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 2.2 - ALLA RICERCA DI UM ZANNI – clip. 2.3 – ALLA RICERCA DI N ZANNI – cena. 293 Bom giorno a chi é di buon giorno, buona sera a chi é di buona sera, bom dia e boa noite, bonjour e bon soireé, good night... gothen narthene... bien - avete capito.. Mi hano inviato per favelare a voi di come siete arrivati in questo casino.. e beh... vediamo cosa quelli mi hanno combinato.... ..... ok – allora, tutto a cominciato cosí All’inio era solo il buio, as trevas profundas e doppo é stato creato la luce e..... mhmmmm non me piase proprio questo inizio.... leggiamo un può di più ... veddiamo... dia quatro... girno cinque.... giorno sei.... mmm... anoiante, da vero entediante... allora... ricomincio al mio modo... aaaahahahahah! Tutto ha cominciato con una grande splozione... CABRUM, ZIRIGUIDUM, PRACATUM PRACATUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, PRACATUM, PRACATUM, ZIRIGUIDUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, BUUUMMMMM! E doppo questa poetica splosione la vita ha cominciato e cosí si sono rincontrati una celula, altra celula e altra e altra e altre e é stato creato l’essere humano... é vero... mi dispiace, ma voi seres humanos, non são grande roba... un incontro di celule e basta.... Ha! Ma quello che é piu buffo é che é stato messo in voi, un cervello... CABRUM, ZIRIGUIDUM, PRACATUM PRACATUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, PRACATUM, PRACATUM, ZIRIGUIDUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, BUUUMMMMM! gnagnagnagna gna Vi spiego... un cerebro é una macchina di ragionamento e raciocinio... .... E loro due hanno messo questa machiana in voi pensando che... eravate inteligente e cosí, il mondo sarebbe bien condoto da voi... e loro avrebbero le vacanze... férias per tutta l’eternitá.... gnagnagnagna gna.... hahahahaha.. che muoio da ridere... hahahahha.... Avete capito..... non... mmm ... scusatemi, ritorno súbito. Toc toc! Ma, voi due... avete visto, la macchina non funziona e... beh - non c’é niente da fare! Problema vostro... io me ne vado... Ha, siete ancora li... vi spiego il divertento é che loro non volevano più lavorare e voi date tanto da fare... che loro non hanno ne mesmo o domingo di pausa.. gnagnagnagna gna che merda hanno fato.... e che merda avete fato del mondo... loro... lavorano come bestie. Beh.... non é problema mio... io hehe, me ne vado... me ne vado, me ne vado, me ne vado.. FUI!!! 13 Após a cena do Arlecchino, começo a falar sobre a máscara do Capitano, um pouco de seu caráter e ação. Mostro, então, os códigos das manifestações espetaculares populares brasileiras que são necessários para se apropriar e dar vida a esta máscara. A cena do Capitano é uma adaptação de um texto que trabalhei no Arlecchino Errante Invernale (janeiro de 2009), este faz parte do acervo da Scuola Sperimentale dell’Attore, porém, Ferruccio Merisi entregou a todos do workshop uma cópia dos textos trabalhados, liberando o uso destes pelos alunos. A ação da cena, contudo, teve adaptações, já que tive de reduzir o discurso do Capitano, diminuindo suas elucubrações fantasiosas sobre sua valentia e poder, mas mantendo um pouco de seu característico exagero na sua autodescrição. 13 O texto é de minha criação, inspirada na cena de Murcia e em improvisações realizadas em laboratórios individuais na Scuola Serimentale dell’Attore. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.6 – ARLECCHINO: 4.6.3 – ARLECCHINO – clip. 4.6.4 – ARLECCHINO – cena. 294 Na cena, como Capitano, descrevo como sou valente, minhas relações com o universo demoníaco, minha valentia e minha beleza. Comento sobre o sucesso que faço com as mulheres. Porém, dentro de meu discurso e faceta vangloriosos, algumas vezes, a porção covarde “escapa” de meu controle, aparecendo diante do público, embora sempre me recomponha, mostrando-me mais glorioso ainda. Sou eu sou eu, sou o Capitão sou eu.. son Jo, son Jo, son Jo il capitan son Jo.... Ãh…. Quanta gente!! Quanta gente!!!! Soy il Capitan della vale moribunda! - ai Il demonico principe de las ordens eqüestres, figlo del terremoto, pariente della muerte e muy amico e confidente del gran diavolo dell’inferno.... Jo il grandissimo toreador, banderilhador, matador, ressussitador, domador, dominador y dondolador dell’Universo! Quando Jo nasci, Marte me entro ne los ombros, Ercules nel brasso dereccio, Sansão nel sinistro, Atlas em lãs piernas, Mercurio en la cabeza, Vênus en los ojos, Cupido nel corazon e Jupiter em todo el cuerpo... E por isso me siento Muito, muito, muy... povoado por dentro! ( isso pode pegar mal) Quando camino ago tremar la Tierra, el céu si espanta, las plantas si secam, las mujeres desmaian e los hombres... solo al mirarmi escominciam a escavar las suas proprias sepulturas..... Ma vós, Señora, Patrona mia, non temais jamais destas meraviglas.... perche in vostra presenza Jo controleró tutta la mia folgorante terrabilita, tutta la mia terrible folgarantitá.... Jo, valente e animoso, si orrendo y spaventoso, pur caliente e sospiroso, me faró por vós pecheño, piccinino, morbidetto e agnellino .. come piace a te - mio tesor! Percché.. son jo.. son jo, son jo , son jo il Capitan son jo…14 Afirmo que com Capitano adentrou-se em um outro mundo, não mais dos servos ou dos nobres, mas aquele das máscaras que querem ou conseguem aproximar-se dos nobres, cujas origens populares continuam escapando nas suas ações. Como Pantalone, máscara que dá continuação ao espetáculo. Falo sobre Pantalone, sua máscara física e características, para, então, falar das células das práticas espetaculares populares brasileiras que utilizo para me apropriar e dar vida a esta máscara. O discurso de Pantalone segue o seu tema principal: o amor pelas jovens. Como Pantalone, começo cantando que sou o “dono do espaço” (son il Patrun), mas, depois, confesso que sou “o dono”, embora a “Clariceta” seja a minha dona. Falo um pouco de nosso relacionamento, queixo-me da falta de atenção da minha amada e termino a cena “encontrando” o caminho para o coração das “jovens”: o ouro! 14 A dramaturgia é uma livre adaptação do texto trabalhado no Arlecchino Errante Invernale\2009, cedido, por Merisi e Contin, aos alunos daquele workshop. A cena foi trabalhada por mim e supervisionada por Contin e Merisi durante o evento. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.5 – CAPITANO: 4.5.3 – CAPITANO – clip. 4.5.4 – CAPITANO – cena. 295 Aqui, utilizo um pedaço do poema que é utilizado no espetáculo “Papaietta Poliglota”, de domínio popular. Reafirmo, na minha saída, que o grande problema é que sou sempre “mal” compreendido pelas mulheres. Poreto Pantalon sfortunao. Oooohhhhh! Che bella cosa.... che bella cosa Poter mirar, le galanterie d’una bella zovina... E che comand é me che E che ghe la mi ca che O sa í che a e che e che O sa í che a e che e che E che comand é me che E che ghe la mi ca che O sa í che a e che e che Son il padrum... E sí.. mi son il padrum ma la Clariceta é la padrona del padrum... O poreto Pantalon sfortunao... Che la Clariceta no’ la me consola e no’ la me comprende, ma anzi, la se burletta de mi e la se difende. So bem parche la gha cosi tanta soperbia! Parche la xé bella e zovene, e mi son vecchio e debole, e de natura docile... La fa la serva a tutti, ma quando che passo mi la se sdrizza tutta Con brutt’occhio e naso alzao La fa cussi parche la sa che son innamorao Oh le done.... é si... ghe vo l’oro con le done Ostrega... ostrega!? L’oro xé dell’amor La necessaria scorta Con la chiave d’oro Si apri ogni porta Ma poi... l’amor si fa da tirano E grazie non fa che non ritornano in dano... le done e l’oro quanto ne combinano no no no ... no cussi non va il vecchio Pantalon é sempre ma cciapa... no no no ... no cussi non va il vecchio Pantalon ormai é sempre ma cciapa...15 Com a máscara do Pantalone, termino a parte das máscaras masculinas da aulaespetáculo. Começo, então, a apresentação das máscaras femininas. Começo falando da máscara da cena que será apresentada em seguida: a Cortigiana. Para falar da Cortigiana devo mostrar as duas facetas que a constituem: uma nobre, Nobile; e outra servil, a Servetta. Para que o público entenda a complexidade da máscara da Cortigiana, apresento as características e máscaras físicas das duas facetas que a formam. Primeiro falo da Servetta, suas características, sua máscara física e dos códigos das práticas espetaculares populares que utilizo para dar vida e apropriar-me desta. Depois, falo da Nobile, seguindo a 15 O texto é uma livre adaptação, feita por mim, de um monólogo de Pantalone extraído da peça “Bancarrota” de Goldoni, com o acréscimo de músicas populares italianas, em dialeto bergamasco e friulano\veneto. É possível ver o clip da cena ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.4 - PANTALONE: 4.4.3 – PANTALONE – clip. 4.4.4 – PANTALONE – cena. 296 mesma ordem explicativa. Após falar e mostrar as duas máscaras dell’arte que formam a máscara da Cortigiana, mostro como elas se fundem através da cena. O texto da cena que o público assiste foi criado a partir de cartas que comentam o teatro que se apresentava como “commedia dell’arte” e como são as mulheres que realizam este gênero de teatro. Os trechos foram extraídos do livro de Roberto Tessari “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra” (1981), que, para a cena, sofreram adaptações. A segunda parte da cena é o texto que Contin e Merisi ocuparam, também, no espetáculo “Né Serva, Né Padrona” e, posteriormente, integraram ao espetáculo “Papaietta Poliglota”. Como dito anteriormente, é um texto extraído de um documento muito antigo, escrito por Perrucci e divulgado por Tessari, desse modo, não faz parte do acervo da Scuola Sperimentale dell’Attore e sim, já faz parte do domínio público. Por isso, decidi manter a cena nesta aulademonstração, porque é uma fala importante para o conhecimento da situação das atrizes da commedia dell’arte. Na cena, como Cortigiana, falo “Cos’é le donne e la Commedia dell’Arte”. Si deve a storie come questa il fenômeno strano per cui la Commedia dell’Arte continua a vivere nell’immaginazione di oggi, senza appoggiarsi tanto a testi, né a una tradizione cosí vivente, ma solo a immagini e descrizioni. Il modo in cui essa soppravive nella tradizione del teatro moderno si intreccia e si sovvrappone alla sua storia. La Commedia dell’Arte , tradizione errante che girou pelo mundo é oscurta dalle leggende che si sono fissate e dai simboli che sono spuntati intorno ad essa. Dalla pura immagine, per exempio, di un teatro che nasconde e supera i suoi limiti, libero e chiuso dalla maschera. Perché pur essendone l’emblema la maschera spinge magia e religine nella commedia e, sul vulto dell’attore, una dimensione più ampia dell’umano16. Cosi com’é successo con il Zanni bergamasco, con l’Arlecchino diavoletto e .. le Donne...si le donne erano le streghe... oh le done.. le done. Oh, che gusto per una donna che si possa pregiare del grazioso titolo di Signora! Oh, che gusto per una donna... l’andar ad una gran città, si è, et esser tal volta incontrata da nobili cavalieri, con carruagens da 4 o da 6 posti. E vedersi condotta a preparate stanze, et ivi ricever subito regali, rinfreschi e petiscos per far banchetti lauti e deliziosi... Oh, che bella, anzi bellissima cosa, si è, ricevere onori grandi e gran presenti... e alla fine tenere speranza, per la notte, d’aver l’onore d’una nobilissima “consumazione”17. Come si favela della famosa Comica Isabella Andreini... e d’altre Comiche molto celebrate – come mi. Che bella cosa far la commediante, che bella cosa far la commediante, ma poi toca servire, ma poi toca servire, ma poi toca servire il mio padrone... (transformando a canção emsamba) MANDI... AXÉ A TUTTI!!! (fazendo um agradecimento e saíndo de cena)18 16 Inspirado nos escritos de Tessari do livro Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra. Pp.15-61 17 Inspirado nas cartas do jesuíta Domenico Otteneli, do livro de Tessari Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra. P.22. 18 É possível ver o clip da cena ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.4 – COS’É “LE DONNE E LA COMMEDIA DELL’ARTE” – clip. 4.2.4 – COS’É “LE DONNE E LA COMMEDIA DELL’ARTE” – cena. 297 As luzes se apagam e saio de cena. 298 ANEXO A – IMAGENS GRÁFICAS IMAGEM GRÁFICA nº1 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 59. IMAGEM GRÁFICA nº2 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 63. 299 IMAGEM GRÁFICA nº3 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 65. IMAGEM GRÁFICA nº4 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 70. 300 ANEXO B – “ARLECCHINO E LA VALLE DELL’OMO” Fragmentos do Espetáculo “Arlecchino e la Valle dell’Omo”. Direção Geral: Ferruccio Merisi. Texto e criação das Cenas do Bufão Murcia: Joice Aglae. Data da apresentação do espetáculo: 26 06 2008 MURCIA E O VALE Oração inicial (...) Canto... inicial All’ inizio era il buio... (cuspir fogo) All’inizio era il Valle... E il Valle fu il “Vale dell’Uomo” (pegar a bandeja com as velas, tendo debaixo o pote com o sal) 4 miglioni d’anni fá. Ascender 3 velas Australopithecus… Paranthropus… Kenyanthropus… Tutti e tre assai prolifici, padri di ben nove specie… Acender 3 velas Si dice oggi che eravate quasi scimmie Eh, come se “scimmia” fosse “meno”… Acender 2 velas l’Uomo Abilis! e l’Uomo Rudolfensis i primi a lavorare la pietra... grande passo avanti di civiltà... (pegar a bacia com água) due miglioni di anni fa! E doppo, Acender 2 velas Homo Ergaster e Homo Erectus (duas pessoas sentadas juntas) insieme, come allora: voi coabitavate E tutto questa vita, ancora nel Vale dell’Omo, nella vostra Africa Orientale. Pegar 2 velas 301 Viva. (brinde) I primi a dominare il fuocco (passar mãos sobre o fogo), Erectus e Ergaster,... e i primi a caminare sopra due piedi (colocar velas no lugar) davvero grande passo avanti di civiltà !!!!! Pegar 2 velas Viva. (brinde) Acender velas Sempre voi. i primi a uscire dell’Africa... attraverso il Medio Oriente verso la vostra Europa e poi l’Asia... (pegar uma vela) Ed ecco l’Homo Sapiens”, beata gioventù, quindici o venti …centinaia di migliaia di anni. Ma dov’è Neandertal?! (olhar para as velas e para as pessoas) Neandertal!!!!... che dicono giovane come voi. (pegar 3 velas e ascender – levar para os Zanni e Arlecchino) Neandertal????!!!! Si dice che Sapiens ha vinto… Neandertal kaputt. Neandertal era una specie diversa o era una tua sottospecie? (urinar o sal) Cenas.... Sapiens (passe de cabeça com o sal), colui che ragiona, per questo ha vinto... dicono… (fazer círculo pequeno ao redor da vela central) Pegar as ervas - ma non è più così certo che sempre hanno vinto i migliori. Così ormai in tutto l’Universo dei viventi, “evoluto” significa solo sopravvissuto alla sfida con l’ambiente.... E il Caso e la Crudeltà spesso aiutano sopravvivere più del patrimonio fisico, più della intelligenza, più della scienza. E cosí dopo di tutti voi venne e fu Re il Sapiens. Caminhada no círculo - Che ha ingrandito il Vale dell’Omo fino al Vale di Neander, fino a tutta la Pianeta Terra e oltre.... Valle di sangue, Valle di lacrima…Ma, voi sapete cos’é un vale? Un vale é un posto dove c’é vita… Dove c’è vita! Dov’è finita la vita? Ritual do Sal - fazer o círculo com o sal, por trás do público Sale: Petraia d’anime. Nel maré si crea Nel sole si fa in pietra “Pietre, cantate i destini!” Destino svilupasi nel tempo – grande giudice e consigliere Destino/tempo trasformatore... 302 “Sale: petraia d’anime!” Che alzasi in muri Che fortifica e fa fortezza Sale del mondo: in corpo, carne, sangue, lacrime e sudori Sale della vita Vita in camminata in questo mundo dove trova nido nel cuore del roccaforte salina Ritual das ervas Essere di sale e vita... Essere di sale e forza... Proteto di qualsiasi male rinvigorasi Nell’incontro con il vento ritrova suo camino in aira e sabia – salnitro. Nell’incontro con la pioggia ritrova sua liquifazione ed in tempesta di auguri scapa al tuo destino mare - salasso del mondo – Riprende la tua vita acqua e Ricomincia un nuovo ciclo... (olhando a água) Sapiens Sapiens, dove tu sei? Circundando a bacia com as ervas All’inizio era il Valle... l’Uomo Sapiens Sapiens l’ha coperta, tutta, con il proprio sangue, il proprio seme, le proprie creature, le proprie invenzioni… e anche con l’ombra di tutto questo… l’ombra…là dove il cervello non vuole andare, perché ha paura di non sopravvivere… Olhando as imagens na água e girando com os dedos - L’ombra che ti fa egoista, che ti rende schiavo del tuo oro, giallo o nero che sia, che ti rende schiavista verso i poveri, che ti fa usare la religione come una assicurazione ben pagata, che ti fa usare il potere come una religione…L’Ombra…L’ombra che come un’immondizia non riciclabile ha coperto tutto… (olhando a água) Sapiens Sapiens, dove tu sei? Nel Valle della Salvezza, dopo la morte?!?!? Davvero? Hai fatto tutto quello che volevi e, nel Valle delle Ossa ti sei pentito in tempo e ora riposi nella perfezione della Valle di Dio?!!! 303 Scusate-mi... Scusate-mi... Scusate-mi... Scusate-mi All’inizio era il Vale... adesso é il buio! (apaga a vela com a boca) Canção – PRIEGHERA Donne-moi votre cerveau Donne-moi votre cerveau brillant en feu, en lumiére... Dammi vostri cervelli Dammi vostri cervelli luminosi In luce, in fuoco, in brace, in cenere... Dammi vostri cervelli in fuoco, in carbone... Dammi vostri cervelli bruciato In cenere e carbono Dammi vostri cervelli bruciati di tanto pensare.... Di tanto pensare che pensa. Io figlio del zolfo e del carbono, che digerisco l’indigesto ... Senza renderti conto ti conosco all rovescio “antropofagico” in natura, Mangioti per fortificarmi... mangioti per fortificarti Mangioti per fortificarmi... ti erutto per fortificarti... Anche gli escrementi servono come concime... E del concime puo revenire la vita... altra volta Vita e morte - tutto si rincontra in me... quello che é stato e quelo che sará... Io, figlio del zolfo e del carbone... Sputa in questa faccia che ti baccia! (dançando) Sputa in questa faccia che ti baccia! Sputa in questa faccia che ti baccia! Sputa in questa faccia che ti baccia! Sputa in questa faccia che ti baccia! (Parando de repente) 304 É sempre cosí... Ogni volte che vengo qui.. O é troppo presto o é troppo tardi... oppure non parlo la lingua ... (pega um celular) Madre? Qui - terra, pronto al teletrasporto. Salta no fosso. 305 ANEXO C – PUBLICIDADE 1 Publicidades (Web) do Curso “VIVA! Danzare per vivere” (de 16 a 22\junho\2008) e do Evento “ARREIA” (23\junho\2008), expedido pela Scuola Sperimentale dell’Attore. 306 307 ANEXO D – PUBLICIDADE 2 Matérias de publicidade do espetáculo, divulgado nos jornais da região, na época. 308 ANEXO E – PUBLICIDADE 3 308 309 ANEXO F – CARTAZ 1 310 ANEXO G – PROGRAMA 1 311 ANEXO H- PROGRAMA 2 Toda a programação pode ser acessada, em detalhes, no site do festival: www.arlecchinoerrante.com www.arlecchinoerrante.com 312 ANEXO I – “L´ARLECCHINO ERRANTE” Espetáculo: “The Holy Fool” Data: 21 009 2008 313 ANEXO J – IMAGENS “ALLA RICERCA DI UN ZANNI” Mascara física continiana do Brighella Desenho de Alice Mosanghini, a partir da imagem da atriz Veronica Risatti As imagens abaixo são da cena “Alla ricerca di un Zanni” (Adaptação DireçãoInterpretação: Joice Aglae), construída com a técnica de translocação caleidoscópica. A partir do desenho ao lado e da comparação deste com as imagens abaixo, pode-se perceber semelhanças do mesmo com as imagens criadas a partir da técnica citada, com isso, pode-se pensar que a técnica de transdução caleidoscópica também pode ser utilizada para a máscara dell’arte do Brighella. Fotos: Léo Azevedo Outubro2009 314 ANEXO L – DVD Foto: Verônica Rizatti